segunda-feira, 17 de abril de 2017

A HISTÓRIA DO SARGENTO VARGAS


UM



Em derredor dele há tanta guimba que ele até parece uma ilha cercada de bitucas por todos os lados. Ele está por elas insulado em torno dos pés, que se alternam em batidas nervosas. Também há a impertinente fumaça que não para de empestear o ambiente aéreo, criando uma espécie de cena fantasmagórica. Sai da boca, do nariz e do toco de mais um cigarro esquecido entre os dedos. É tensão cruciante, eis que falta ao sargento Vargas a decisão do corpo de magistrados da Câmara Criminal que lhe julga um recurso. A espera é longa e penosa, é a expectativa duma melhor decisão, porquanto a anterior lhe fora desfavorável.

Enquanto ali está, em quietude de nitroglicerina quase a explodir, escoltado por dois milicianos, seus pares em quartel, porém agora na posição de algozes, Vargas ouve o zunido de vozes e o estalar seco e fino de muitos passos apressados esmagando grãos da poeira que viajam na sola dos sapatos daquela gente em vaivém impertinente. Sim, o lugar mais parece formigueiro fervilhando, e ele não pode sair dali, não tem a liberdade necessária: está preso.

O suor desce pela fronte, escorre pelo pescoço e molha abundantemente a gola da farda do sargento, que se deixa ficar a mais e mais com os nervos por conta da oscilação da balança da Justiça, até então pendente contra ele. Por isso ele está indubitavelmente abalado, porém sem demonstrar qualquer medo no seu semblante externo de cabra-macho. É tudo acontecendo do lado de dentro, de suas entranhas físicas e psicológicas fragmentadas pela injustiça anterior. Sim, o lado de fora do miliciano é estoico, impassível, na verdade uma prática que lhe vem da meninice e do sofrimento da miséria nordestina – a sua origem. Ele conta 40 anos de idade e 20 de PM.

É janeiro. O sol queima as ruas e transporta para o interior do Fórum um calor infernal. Ele, o calor, vem agarrado aos corpos das pessoas, evolando-se em insuportáveis baforadas que entram pelas apertadas portas daquele imenso prédio, como se ele, o prédio, fosse um aleijão arquitetônico, um bicho enorme de boca miúda, porém insaciável a engolir e a expelir voluptuosamente a massa humana como se fora alimento ou vomição. E não deixa de ser, eis que o prédio, que é corpo, e a Justiça, que é a sua alma, respectivamente se alimentam de gentes e tragédias. É o Fórum do Rio de Janeiro...

Nos corredores sem ar-refrigerado homens e mulheres em trajes solenes suam por todas as bicas. São advogados e advogadas que diariamente labutam naquele lugar, somando-se ao andar de muitas gentes tensas. Sobraçam papéis como as formigas conduzem sistematicamente as folhas para o monte de terra que lhes tampa e protege o nicho. As mulheres são muitas, e, como sempre, mais arrumadas; os homens são em maior quantidade, porém estão, em sua quase totalidade, desalinhados. Mas todos, indistintamente, trazem os rostos perolados por gotas do suor que não cessa nunca, o terrível calor não deixa. Formam, advogados e advogadas, o contraste com os sempre elegantes juízes, juízas, promotores e promotoras que chegam ao expediente e logo ingressam em seus gabinetes refrigerados. E nem aguentariam, se assim não o fizessem naquele árduo cotidiano a que se obrigam sem hora de parar, porém livres do passeio obrigatório pelo Fórum ou pelas ruas poeirentas e abrasadoras do centro da cidade.

Nos corredores apinhados de gentes modestas passam muitos presos pés-de-chinelo algemados e escoltados por policiais mal-encarados e tão pés-de-chinelo quanto os primeiros. É importante, contudo, esse tipo de fisionomia grave dos policiais: é para lhes valorizar a autoridade... E aquela fieira de homens presos uns aos outros por algemas mistura-se ao poviléu que espera alguma decisão da Justiça: uma separação, uma sentença de guarda de filho, enfim, alguma penosa solução de dramas particulares em processos cuidados por defensores de justiça geralmente insuficientes para atender aos inúmeros e variados problemas da ralé. E policiais e marginais, física e moralmente acorrentados entre si, ambos marginalizados, deixam a impressão de que tanto faz como tanto fez que um puxe o outro. Na verdade, ambos de quando em quando são réus em processos criminais. Por isso, há certa solidariedade no ódio que nutrem um contra o outro. Ou então não há ódio nenhum, há até certo interesse mútuo em agredir uma sociedade que os trata igualitariamente, ou seja, com indiferença, aversão, ira. Assim, no todo, vê-se ali a realidade de uma cidade sem justiça social. De quando em quando, porém, surgem ricaços ou artistas acompanhados por elegantes advogados... E tudo vira festa.

Mas naquela hora de calor insuportável está no Fórum o sargento Vargas. E depois de muito cigarro e suadouro ele finalmente entra em dia de vitória, sente a emoção de ver anulada sua anterior condenação a 45 anos de reclusão, esta que já o mantivera em injusto cárcere durante mais de três anos, e até aquele dia, por acusação de triplo homicídio com requintes de crueldade, segundo denúncia ministerial feita em meio ao clamor público, e segundo o julgamento ocorrido em meio ao clamor público, e segundo a sentença de primeira instância prolatada em meio ao clamor público. Claro que contrariamente ao PM...

Sua alegria, porém, não se manifesta tão claramente – permanece friamente oculta sob a fumaça de seus cigarros fumados sem parar. Esta, sim, a frieza, é sua marca registrada, fruto de anos e anos enfrentando riscos públicos e injustiças particulares. E lá está o cigarro, que nunca lhe sai do canto da boca, até chegar ao filtro mecanicamente arremessado ao chão, não sem antes ser substituído por outro cigarro aceso. Não, não, sem o cigarro queimando entre os dedos ou no canto da boca o sargento Vargas não é o sargento Vargas.





Tudo ocorrera na favela Pato Donald. Num malfadado confronto, ele metralhara três facínoras pelas costas, a uma distância de mais ou menos 30 metros. Não havia como negar que fora ele o autor, a balística confirmara que os projéteis saíram da metralhadora que portava, arma da caserna, por conseguinte nem lhe daria para escamoteá-la, se fosse o caso. O sargento Vargas, porém, apresentara-se normalmente na delegacia policial e alegara legítima defesa e resistência à prisão, pedindo para lavrar o respectivo auto e explicando que os bandidos corriam lhe dando as costas, mas atiravam sem parar apontando para trás, por cima dos ombros, suas armas poderosas. E atrás estava ele, o sargento, e sua guarnição de PATAMO, recebendo os tiros argutamente disparados pelos marginais em fuga.

Deram, sim, muita sorte, mas ninguém acreditara naquela versão, reputando-a fantasiosa; e ele, o sargento, recebeu a condenação. E sozinho, porque assumira a ocorrência e suas consequências, deixando de fora os demais companheiros. Fora, sem dúvida, e mais uma vez, e segundo seus próprios valores, um valente. Assim agasalhara a martelada implacável da Justiça. Mas recorrera e lhe sobreveio a favorável decisão depois de três anos algemado ao fado adverso. Afinal, a sorte batera asas em sua direção: fizera surgir uma fita gravada por cinegrafista amador, e este, mesmo sendo morador da favela, e por razões jamais esclarecidas, encaminhara-a ao comandante do batalhão junto de uma carta dizendo que filmara casualmente a escaramuça. E lá estava, como vinha o sargento Vargas afirmando, a verdade inelutavelmente documentada: os três bandidos corriam favela adentro, e por cima dos ombros atiravam sem parar com suas pistolas. Eram muitos tiros em direção à guarnição, que respondia atabalhoadamente ao inesperado ataque enquanto se protegia de todos os modos. E foi nesta hora documentada pelo cinegrafista que partiu a rajada mortal da macaca do nordestino fardado de sargento: três bandidos mortos.

Sim, era a mais cristalina verdade, o sargento Vargas apenas revidara a agressão que de fato sofrera, e mandara de volta a saraivada de balas que por fortuna antes não atingira ninguém de sua guarnição, e certamente os milicianos não foram antes atingidos porque o sargento acertara primeiro os bandidos. Pelas costas, sim, não havia como ser diferente. Mas, como crer nisso?... Como crer num policial?... A providencial fita salvou-o da desfortuna de uma condenação definitiva. O processo se reverteu e ele logrou, enfim, a absolvição e a liberdade. Ficou-lhe, porém, a revolta, gravou-se-lhe, no íntimo, a descrença no sistema, veio-lhe a ira contra tudo e todos, porque ele passara mais de três anos amargando a humilhação extrema do cárcere e do desprezo de superiores, pares e subordinados. Ele destilava ódio, nunca mais seria o mesmo...

O sargento Vargas era um pequeno paraibano. Magro, seco como um esfomeado, trazia dentro de si a esquistossomose malcuidada e externamente se marcava por um andar estranho, de feio gingado lateral, como um papagaio passeando, não porque o quisesse, mas devido ao joelho esquerdo ferido em acidente de carro, e talvez em consequência do peso da arma e dos pentes de balas que sempre conduzia na cintura, do lado direito. Na cabeça, o sargento entremeava cabelos brancos com os castanhos que lhe vinham teimosamente da juventude. E a sombra de uma barba cerrada, sempre dando a impressão de que não fora rapada naquele dia, escurecia-lhe um pouco o semblante já bastante inamistoso. Formava, sim, o sargento, uma figura sombria. Parecia uma pedra de gelo inacabada. E estava derretendo debaixo da tensão e do calor daquele Fórum até emergir a decisão que o descontraiu um pouco, mas apenas por dentro...

É verdade que o sargento Vargas se arreliava por qualquer motivo. Falava arrastado e com forte sotaque da terra natal, algo que o tempo e a distância não mudaram, quiçá devido à influência de seus pais e avós, e também dos irmãos que ainda viviam no interior da Paraíba e com ele mantinham estreito contato. Também a mulher lhe representava a certeza de que estava em terra estranha, pois, mais que ele, a paraibana fazia questão de preservar a cultura nordestina, inclusive ajudando nas despesas: fabricava e vendia artesanato na Feira de São Cristóvão. E o sargento Vargas, devido ao nome, tinha o apelido de Presidente.

Fiel à sua origem, Vargas não abdicava de usar debaixo da gandola a peixeira sempre afiada e encapada em bainha de couro cru. Como essa peixeira tinha história de sangue!... Além disso, gostava de ostentar uma pulseira de prata no pulso direito, um pesado balangandã que lhe dava orgulho, pois tomara de um traficante já emborcado no chão, morto por ele com uma saraivada de tiros. Mas nesta ocorrência o arguto sargento não assumira a autoria; registrara-a como “troca de tiros entre bandidos”, eis que matara o meliante com uma arma fria, nunca cadastrada, que na ocasião portava como segunda opção de defesa e que eventualmente lhe poderia servir de “vela” a “plantar” em defunto desarmado. Mas desta vez apenas negou a autoria do crime, atribuindo-o a terceiros, desconhecidos, que “trocavam tiros” quando chegou a polícia. E não havia testemunhas a contestar a fantasiosa versão... Porque, mesmo que se decidisse por oficializar a ação e assumir a autoria, tinha sempre consigo a ideia que lhe passara um dia um antigo miliciano: “Testemunhas... nem de defesa...”


DOIS



O cabo Lessa chega ao quartel para mais um serviço interno, na faxina. Sempre trabalhara em radiopatrulha; porém, uma acusação de suborno o levara a responder ao Conselho Disciplinar depois de cumprir trinta dias em xadrez. O acusador, parente de um coronel, realmente lhe oferecera dinheiro para liberá-lo da fiscalização que o flagrara com a carteira de habilitação vencida. O cabo recusara a oferta e procedera a apreensão do documento e do veículo, mesmo com o usuário alegando ser sobrinho do coronel. Até aí, tudo bem, só que o cabo inadvertidamente deixara de aplicar mais uma multa no usuário, falha que lhe veio contra, pois servira para “provar” sua má-fé e o pseudo-recebimento da tal propina para “fazer por menos”. O resto lhe sobreviera por conta do parentesco do faltoso com o oficial; e ele, o cabo Lessa, culminou na corda bamba, sem saber que desfecho teria o Conselho Disciplinar. Mas os capitães, membros do colegiado, decidiram que a prisão lhe fora suficiente, decisão também acolhida pelo comandante do seu batalhão, um tenente-coronel.

Na verdade, todos sabiam que o cabo agira corretamente e não deveria ser punido por coisíssima nenhuma; mas não podiam deixar de prestigiar o coronel, este que contava com o poder de retaliar os oficiais subordinados, especialmente o tenente-coronel, que, naquela ocasião, dele, do coronel, dependia na votação da Comissão de Promoções. Era, portanto, o poder do coronel indiretamente pressionando. Assim, o tenente-coronel teve de capitular. Daí é que sobreveio ao cabo a injusta punição, a tranca de trinta dias e a revolta contra o sistema que já o infortunara e a outros seus colegas por motivos igualmente impróprios. Mas o tenente-coronel recebeu o prêmio: foi promovido a coronel, tornando-se colega do outro...

O cabo Lessa, negro, alto e forte, bigode aparado e olhar afiado, era de pouco falar. Tinha o apelido de Cerol Fino à boca miúda de seus companheiros, que sempre com ele contava para alguma empreitada que pudesse resultar em confronto e morte na calada de uma “minerada” em favela. Curioso é que ele nunca admitia qualquer suborno, porém era capaz de depenar um bandido até deixá-lo pelado, literalmente nu, e geralmente morto. Era, sem dúvida, mau feito o diabo.

Solteiro, costumava dizer que passaria pela vida sem rasto de filhos. Achava o mundo ruim e as mulheres, putas. Não confiava nelas, apesar de namorar a todas como apaixonado, levando-as aos pagodes e curtindo-as com ardor. Tudo, porém, encenação com o fim único do sexo. Nada mais, nada demais, não no seu caso, cuja perversão incluía até o homossexualismo... Na verdade, o negócio de Cerol Fino era mesmo a aventura, a guerra sem lei contra os facínoras perigosos, dos quais invariavelmente se sentia inimigo. E não era gratuita sua inimizade, eis que perdera um irmão mais novo, também PM, assassinado por traficantes. Por isso o cabo Lessa era movido pelo ódio acirrado contra a marginalidade. E logo fez amizade com o sargento Vargas...


TRÊS



Enquanto isso, em quartel diferente, o soldado Capistrano amarga a enxovia por conta de uma absurdamente falsa acusação de que teria matado uma criança durante tiroteio contra traficantes. Houve o protesto popular com queima de pneus, fechamento de via movimentada, e a imprensa dando sensacional cobertura. Por isso ele fora trancafiado até que o fato fosse devidamente apurado em inquérito e viesse o resultado da balística, desta forma atendendo-se às pressões externas e esfriando-as convenientemente. Foi assim que o soldado Capistrano esperou dez dias, preso, até se concluir que ele não matara criança nenhuma, e muito menos seus companheiros de guarnição, todos, como ele, trancados como suspeitos de um crime que não cometeram. Ficaram, porém, marcados. E marcaram o sistema com um ódio cada vez mais acumulado. Sim, era ódio contra tudo e todos.

Capistrano era um exemplar esdrúxulo. Branco, e muito feio, ainda acentuava sua feiúra com as roupas deselegantes que usava. Tinha a antonomásia de Lagartixa porque suas mãos eram invariavelmente geladas. Contava 35 anos, mas a magreza diáfana do seu corpo, de quase 1.80 m, já meio encurvado por hábito postural errôneo, dava a impressão de ser ele mais velho. Também os cabelos finos e rarefeitos, além de grisalhos, dissimulavam para mais o verdadeiro tempo que ele carregava no embornal da vida. Era, enfim, uma figura sinistra.



QUATRO



Pior acontecera com o soldado Sérpio, que recebera injusta condenação por extorsão, apesar de protestar inocência. A acusação partira de um traficante por ele preso em flagrante com grande quantidade de cocaína e algumas armas. De raiva, o bandido confessara o crime, porém inserira a falsa acusação de que havia muito mais droga e arma, e que o soldado Sérpio teria recebido propina para deixar na favela boa parte do material apreendido. Desta maneira o bandido, que já sabia que a autuação e o processo lhe seriam inescapáveis, com a falsa confissão lançou dúvida contra o seu desafeto, que era o soldado Sérpio, este que acabou todo enrolado, tendo de se defender de algo que absolutamente não o fizera. Foi parar no xadrez, por via das dúvidas... E, mesmo que nada contra ele se provasse, fora afastado do serviço externo e colocado na guarda do quartel, atividade geralmente executada por velhos e cansados milicianos, ou por frouxos, ou por “inadaptados” para o serviço de rua. E o soldado Sérpio, como não era velho, nem cansado, nem frouxo, nem “inadaptado”, ficou ali, de sentinela da hora, recebendo as mangações dos companheiros...

Sérpio era uma figura deforme pela excessiva gordura acumulada no abdome. Com a tez amorenada, tinha a antonomásia de Índio, mas também alguns poucos o apelidavam de Mata-Borrão. Para ele, na verdade, pouca diferença fazia, atendia naturalmente a ambos. E não era uma figura menos sinistra que seus igualmente injustiçados companheiros...

CINCO



E o soldado Calixto? Este já estava trancafiado quando Sérpio chegou ao xadrez. Fora penalizado porque, depois de prender dois assaltantes de banco, não sem antes corajosamente sustentar cerrado tiroteio contra eles, na empolgação dera entrevista a um canal de tevê. Resultado: trinta dias de prisão por ter tido a audácia de descumprir as rigorosas normas impeditivas de tal comportamento. E, como já houvera sido punido por outras faltas bobas, culminou no comportamento mau, com forte possibilidade de ganhar o olho da rua, apesar de seu gesto heróico. Mas acabou permanecendo na milícia, pois, afinal, arriscara a vida e poderia haver especulação midiática contra seus infalíveis superiores. Paradoxalmente, foi salvo pela própria imprensa, que pressionara sistema a seu favor, mas lhe ficara na mente a incontida revolta, pois fora também parar na guarda do quartel como “inadaptado”...

Calixto era um negro de seus 30 anos, alto, magro, e sempre sorridente, por pior que se lhe apresentasse a situação. Por isso era chamado de Sorriso Congelado. Mas o que ele tinha mesmo congelada era a maldade, pois dentro do grupo sempre se ocupava da iniciativa de eliminar tantos bandidos quanto mais podia. E também por isso o grupo tomava conta dele, uma preocupação constante de seus companheiros que, todavia, dele não abriam mão. Sim, porque Sorriso Congelado deslizava feito cobra na favela e sempre alcançava e prendia antes o bandido, isso quando não o eliminava sumariamente. Depois consertava a ocorrência com alguma “vela”, como gostava de fazer e pouco dizer...


SEIS



Após algum tempo, todos esses milicianos culminaram movimentados – “punição geográfica” – para um mesmo quartel da Baixada Fluminense... Não seria nada demais se devido ao mero acaso não se formasse uma guarnição de PATAMO que marcaria com sangue e terror sua passagem pela Polícia Militar... Eis, pois, a guarnição que um dia o Destino formou, para desgraça de muita gente, bandidos ou não, favelados ou não: Presidente, Cerol Fino, Lagartixa, Índio e Sorriso Congelado. Porque, sem que nada programassem, montaram com eles uma guarnição para policiar movimentada zona comercial e bancária. E logo no primeiro serviço eles bateram de frente com uma quadrilha de assaltantes de banco, sete facínoras, contra os quais entraram em violenta escaramuça e os venceram facilmente: morreram todos os sete. Foi quando eles perceberam que formavam um grupo imbatível. E dentro desse máximo risco forjaram um sentimento de grupo coeso e hermético que se tornaria inseparável – dentro e fora da farda, dentro e fora do quartel, dentro e fora do serviço, dentro e fora da lei...


SETE



Vargas era o líder e ninguém o contestava. Mas também sabia respeitar o sentimento do grupo e jamais discordava dos amigos sem antes se justificar miudamente. Também não se vexava em voltar atrás, bastando que seus parceiros deliberassem em uníssono sobre determinado assunto. Liderava na amizade e era igual em tudo que ocorria dentro do grupo. Ali, tudo fechadinho entre eles, não havia hierarquia, mas solidariedade extremada.

Assim eles ganharam prestígio no batalhão. O comandante e os oficiais se impressionavam com a eficácia operacional daquela guarnição metida em fardas impecáveis e portando armamentos regulares, tudo em rigorosa observância aos regulamentos. E nunca se atrasavam ou desguiavam da missão. Por isso seus companheiros também os admiravam, e mais ainda quando ocorriam confrontos. Nessas horas, era uma guarnição de leões, despida de vaidades, pois eles não se importavam em deixar que outros companheiros assinassem os autos de resistência e se beneficiassem de prêmios e promoções, que, na verdade, seriam deles. Sim, fardados eles assim se comportavam. Mas, na calada da noite...

Era-lhes praxe sempre planear em minúcias qualquer ação fora do quartel e nunca aceitavam a participação de estranhos na guarnição, por mais leal e valente que algum miliciano se lhes provasse ser. Eram unos, dentro e fora da farda, juramento de sangue que fizeram quando se viram escalados em PATAMO. Sim, porque já haviam conversado muito, desde que chegaram transferidos, sem imaginar que a ideia de seus superiores fosse a de aproveitá-los daquela forma. Melhor assim, porque a decisão agradara aos cinco, que, de certa maneira, já se conheciam nos bastidores do submundo policial. Sabiam que comungavam a mesma ira contra o sistema. E cada qual já assentara que seu compromisso era consigo mesmo e nada mais. O sistema apenas seria o apoio às suas pretensões, enquanto fosse possível. Depois... Bem, depois era depois...

A regra era simples: ocorrências fardadas pertenciam ao sistema. Interessava-lhes manter um conceito elevado e não ter problemas com superiores e colegas. Mas do lado de fora o jogo era somente deles e eles jamais atuavam na área do próprio batalhão nem nas demais que lhe faziam fronteira. O anonimato era-lhes questão de suma relevância. Sem ele, abortava-se qualquer parada que porventura estivessem encetando, e qualquer um deles poderia pôr os demais em combate, desde que seus mandamentos de segurança fossem respeitados. Eles eram, sim, uma espécie de reedição, ampliada a cinco, dos três mosqueteiros...

Não agiam de improviso. Cada passo devia ser antes medido, cada arma definida, cada função planeada, cada disfarce explicado e ajustado às diversas situações, de modo que jamais fossem identificados por repetição de gestos, palavras, roupas ou quaisquer outros detalhes que lhes pudessem singularizar numa investigação posterior. Mas dependendo do que determinado investigador apresentasse, e que lhes pudesse porventura comprometer, com certeza complementava-se o serviço eliminado o perigo...

Também não discutiam seus gostos sexuais e taras particulares. Nesse aspecto cada qual cuidava de si e aos demais somente importava que as ações individuais não comprometessem a segurança do grupo. Tanto que Cerol Fino por vezes manifestava estranhos interesses homossexuais, especialmente quando pegava algum garoto bonito portando droga. Sumia com ele para algum canto isolado e se fartava do terror do menino, que não escapava de enrabar o mal-encarado miliciano, ou de ser por ele enrabado, dependendo da sua dele disposição momentânea de ser macho ou fêmea. Mas logo o garoto era liberado, desde que cumprisse a parte que lhe era determinada.

Ninguém falava nada, assim como todos também fingiam não ver a tara de Lagartixa, que não deixava escapar uma menina bonita, desde que também estivesse conduzindo droga, não lhe fazendo diferença se era para uso ou tráfico, tudo resultando em sexo oral e muita vez num coito apressado. Assim a menina se livrava do mal maior, e não necessita dizer que as ações clandestinas do grupo nunca incluíam a hipótese de alguém ser por eles oficialmente preso. Ou se soltava ou matava.

Eles não se interessavam por desvios de conduta que não fossem os já traçados e objetivando o lucro fácil. Entretanto o perigo, na cabeça deles, era para quem estava do outro lado, pois, além do anonimato, eram ferozes como sete milhões de diabos raivosos e tinham um trato de sangue: se algum deles saísse ferido passava a ser prioritário o resgate e o socorro, tudo logicamente já acordado e simples, muito simples, bastando ao ferido alegar em hospital que fora assaltado em via pública. Pois ali estava a materialidade representada pelo ferimento e ninguém melhor que a vítima para relatar boa história... Contudo, se um deles morresse, era-lhes imperioso priorizar o resgate e o sumiço do corpo, para o que já possuíam planos minudentemente elaborados. Era o combinado. Mas a sorte ainda os acompanharia por muito tempo...


OITO



Sim, durante muito tempo houve uma sucessão de ocorrências que culminaram positivas à guarnição de Vargas, algumas repercutindo inclusive na grande imprensa. Aqueles cinco não se furtavam ao serviço, porém agiam com indispensável cautela. Não mais cometiam os desatinos do passado, assim como buscavam sempre contornar problemas que envolvessem interesses maiores. Deste modo granjeavam a simpatia de todos no batalhão, especialmente dos superiores, que faturavam largo prestígio na cidade e no quartel-general por conta dos endemoninhados milicianos.

Uma ocorrência marcante foi um assalto à residência de um médico e sua esposa, ambos idosos. Logo de manhã, bem cedinho, ao sair para comprar pão e jornais, o médico foi rendido no portão por três facínoras armados com pistolas e revólveres. Arrogantes e violentos, eles empurraram o velho médico de volta ao interior da casa, manietando assim o casal. Mas por sorte um vizinho, que casualmente chegara à janela do pavimento superior de sua casa, em frente da do médico, avistou o momento inicial da abordagem dos bandidos e ligou para o 190. Foi tudo muito rápido, e logo a casa estava cercada por aparato policial. Acuados, os bandidos mantinham sob a mira das armas o casal de velhinhos e ameaçavam matá-los, acrescendo algumas exigências para a fuga em segurança.

A situação atingira o máximo de tensão. Um oficial tentava sem sucesso a negociação, que apenas estava a estimular a arrogância dos marginais. Neste momento o sargento Vargas e sua guarnição chegaram ao local e se aproximaram da casa, tomando pé da situação. O tenente estava uma pilha de nervos, suava e tremelicava de pânico e ira. Sentia-se o seu temor à flor da pele, com ele comentando estar preocupadíssimo com a vida do casal.

Os policiais não avistavam nenhum facínora de onde estavam, nem o casal era visto. Nesta hora de indecisão o soldado Calixto penetrou furtivamente na casa, alçando o muro da vizinha, onde adentrara com autorização do morador. Ninguém notou o movimento de Sorriso Congelado, que coleou como cobra venenosa e desapareceu no quintal da casa do médico... e o que se ouviu, de súbito, foi a sucessão de duplos disparos de pistola – pou, pou... pou, pou... pou, pou... –, que imediatamente cessaram. Houve então um silêncio mortal, até que surgiu no umbral da porta da sala o negro enorme e sorridente dizendo: “Tudo resolvido!”

Sim, o perigoso miliciano entrara na casa como um furacão e eliminara, um a um, os bandidos, que caíram em espanto e alcançaram a morte sem saber de onde viera. Sim, sim, naquele átimo em que se postaram no susto receberam a carga rápida da pistola nove milímetros que o soldado Calixto portava como segunda arma, carregada com munição importada e especial. E a cada dois tiros que disparava uma alma penada descia ao inferno.

Houve ainda um lance deveras curioso, pois o médico tivera seu anel de grau subtraído por um dos meliantes. Quando reclamou do seu desaparecimento, deu-se logo um mal-estar. Mas Sorriso Congelado ampliou o semblante na alegria de seus dentes alvos enquanto revistava o bandido apontado como autor da tal subtração: o anel se encontrava dentro da sua dele boca, local que o enfiara quando viu entrar o furacão matador chamado Calixto. O sucesso foi tão estrondoso que o comandante elogiou a guarnição e ainda lhe proporcionou uma semana de folga. E muita coisa de ruim aconteceu nesta semana do lado de fora...


NOVE



A noite é de quarto minguante; nuvens plúmbeas cobrem o céu da favela. O relógio marca meia-noite quando aqueles cinco homens começam a deslizar pelas vielas com uma familiaridade que indica que eles são nascidos ali, embora não o sejam. Trazem os rostos ocultos por máscaras de tricô, pretas; aliás, como todo o resto de suas vestimentas, enquanto suas mãos enluvadas seguram firmes as armas mortais.

Ninguém subestima a audácia do grupo, especialmente sabendo que a quadrilha de Zeca Malandro conta com mais de 50 homens armados, além dos que atuam sem armas somente negociando a droga. Mas aqueles cinco sabem que os quadrilheiros não podem supor que eles sejam apenas cinco, principalmente pelo modo rápido e preciso com que coleiam na favela, largando no caminho um rasto de sangue. Sim, porque antes de atirar usam a faca e cortam as gargantas de incrédulos soldados do tráfico que se surpreendem com os canos apontados em suas caras.

Há, em alguns casos, a rendição, e parece que tudo não passa de manobra de policiais em “minerada” (prende, recebe propina e solta). Logo, então, há o acerto, e tudo termina bem, como sempre. Mas, não. Não naquele caso, não com aqueles cinco, que têm dentro de si o diabo desdobrado em milhões de diabos e sabem exatamente aonde vão e que objetivo alcançar; vêm na certa dar o bote fatal no homizio de Zeca Malandro, local onde o bandido guarda seu arsenal, o grosso da droga e o que os homens de preto principalmente buscam: dinheiro.

O deslocamento do grupo é como o deslizar da serpente atrás de presas fáceis hipnotizadas ao espanto. É surpresa e morte sem tempo de reação. E assim, da entrada da favela até o ponto principal, dez traficantes têm suas goelas cortadas, até que o alvo lhes surge, e eles, implacavelmente, fuzilam Zeca Malandro e mais seis comparsas. Em seguida arrematam as bolsas com dólares e moeda nacional e saem como entraram, sem vestígios. A favela fica tão morta como os bandidos, não há quem coloque a cara de fora. E naquela noite ocorre o que fora antes combinado: ninguém se distrai com garotinha ou garotão. O alvo seria o dinheiro, as armas e a droga. O alvo é atingido com êxito total.

No dia seguinte a favela entra em polvorosa, com a polícia arguindo que aquela ação somente poderia ter sido decorrente de guerra entre quadrilhas. Os mortos, 17, com requintes de crueldade, sugerem que a favela fora invadida por mais de 50 desafetos de Zeca Malandro, este que jaz perfurado a tiros como peneira sem valor. Acabara ali a valentia do traficante; haveria a disputa pela hegemonia do lugar e muito mais mortes entre os que ainda sobraram; a ambição faria muitas vítimas naquela cruenta contenda pelo mando da favela. Os causadores da carnificina, porém, já estão longe dali. Na ação clandestina o sargento Vargas e seus companheiros lucram cada um 200 mil dólares, valor considerável que eles bem sabem como escamotear, e pela mesma via dos bandidos: a lavagem em casas de câmbio.

Ainda no final da semana de dispensa o grupo de patameiros arrebentaria com uma perigosa quadrilha de sequestradores e deles arrecadaria outra fortuna. A vítima pagara o resgate e fora liberada. E exatamente quando os bandidos festejavam em orgia de álcool e drogas o sucesso da empreitada criminosa, numa casa em bairro afastado da favela onde normalmente se homiziavam, os milicianos surgiram de surpresa, como sempre deslizando silenciosamente na escuridão. Não houve tempo para nada: os ferozes PMs já chegaram matando homens e mulheres, indistintamente. Depois de pouco tempo, jaziam os corpos perfurados a tiros de armas silenciadas por abafadores. Mas isso não interessava aos sanguinários patameiros, que logo saíam carregando os valores daquela guerra particular que travaram contra os criminosos barras-pesadas na semana de folga. No dia seguinte, para variar, só havia especulação desencontrada, suposições sem nexo e mais algumas mortes sem autoria a se somarem ao rol de muitas outras acumuladas em inquéritos eternamente adormecidos nas delegacias policiais. Mas, em compensação, havia cinco milicianos mais ricos do que já estavam...

  DEZ


 A semana escorreu rapidamente e os patameiros já lá estavam integrados ao serviço. Sempre, é claro, com as cautelas devidas. Eles nunca buscavam sarna para se coçar quando agiam oficialmente. Mantinham-se dentro dos paradigmas regulamentares, somente atendendo a pedidos de auxílio por patrulhas ou agindo a mando da Central de Operações. Porém, às vezes não podiam se furtar de cruzarem com alguma ocorrência perigosa. Quando assim acontecia, logo se comunicavam com a Central de Operações e pediam a presença da supervisão e apoio. A partir daí atuavam dentro dos mais rigorosos ditames legais, até mesmo correndo risco. Mas a experiência permitia-lhes que esperassem até o último instante, dando certa vantagem aos contendores, mas que logo desaparecia quando eles partiam ao contra-ataque. No fim de tudo vinha-lhes a vitória e um mais auto de resistência juridicamente impecável, tanto que resultava em elogios do próprio Ministério Público ao sugerir o respectivo arquivamento. Não podia ser diferente, pois tudo fora verdadeiramente feito dentro da lei.

Contudo, do lado de fora eles eram incontroláveis. Tramavam e agiam com uma desenvoltura tão estupenda que sempre lhes garantia sucesso. E mantinham uma fachada de seriedade, revezando-se como motoristas de crianças ricas, levando-as da casa ao colégio e trazendo-as de volta em singeleza dar gosto. Isto de dia, porque à noite, quando todos os gatos ficavam pardos, aí sim, eles partiam transmudados em feras e iam ao bote mortal contra marginais endinheirados que adrede investigavam. O resultado era sempre morte, dinheiro e joias.

Era assim, entrava e saía semana com eles faturando prestígio e elogios em quartel, enquanto matavam e depenavam bandidos e mais bandidos. Tudo com muito ódio, tanto contra o sistema ao qual fingiam servir como contra os facínoras. E não de outro modo que eles, atuando na guarnição de PATAMO, partiram ao gesto heroico de salvar dois reféns num assalto a banco. Eram oito, os assaltantes, ocupando uma agência bancária em rua movimentada. Mas em razão do alarma disparado o banco fora cercado pelo aparato policial. E ficou aquela tensa situação, com os bandidos mantendo os empregados e a clientela sentados e amontoados num canto, e mantendo à vista da polícia duas jovens com armas apontadas às suas cabeças.

O pânico estava generalizado quando chegou o sargento Vargas com sua equipe, grupo respeitado até pelos marginais, que sabiam de antemão sobre a ferocidade da guarnição: não havia outro assunto no submundo do crime. Vargas então assumiu o comando das ações e partiu à negociação direta com os assaltantes, especialmente os que mantinham as moças sob a mira de suas armas e lideravam os demais. Assim, psicologicamente, na realidade eram dois contra um, porém ali uma contenda muito mais de verbo e disposição que de tiros...

Vargas logo notou que não lhe seria difícil negociar. No fundo, sentira que os bandidos desejavam se entregar, já que não lhes seria dada nenhuma chance de se escafeder dali. Na verdade, negociariam com Vargas suas vidas, porque, se houvesse confronto, não teriam a mínima possibilidade de sobrevivência. Tudo isso Vargas percebera, e foi assim que ele se aproximou da porta do banco e partiu corajosamente na direção de ambos, que se mantinham protegidos pelos corpos das apavoradas moças.

– Olha aí, amizade, qual é a sua?... – gritou um dos bandidos.

– Muito simples. Vocês entregam as armas e saem comigo de mãos para o alto. E ninguém se machuca. A imprensa tá de lá, filmando, e a ordem é a de não correr sangue. Que você acha?... Só pra seu governo, sei quem são vocês e onde moram suas famílias...

– Mas qual a garantia de que não vamos tomar tiro, amizade?... – falou um dos bandidos, entendendo o duro recado do sargento e capitulando diante da ameaça.

– Eu sou a garantia! Largo minha arma no chão e saio com vocês atrás de mim. Escondo todos no meu peito. Vou de frente. Podes crer que ninguém se machuca.

Havia uma questão de decisão e firmeza, atributos que sobravam no sargento Vargas, o Presidente, que conduziu o desfecho favorável. Sim, porque os bandidos fizeram uma fieira medrosa atrás do sargento, saindo de mãos para o céu, enquanto os clientes e empregados permaneciam sentados. Deste modo tudo chegou a termo na maior tranquilidade, culminando com a prisão pacífica dos meliantes e a polícia aplaudida entusiasticamente pelos circunstantes. Sim, mais uma vez o sargento Vargas ganhou a justa fama de herói, garantia de “mineradas” do lado de fora em razão da dispensa que ganhou sua guarnição: duas semanas de folga.

 ONZE



Na favela, a noite faz surgir o silêncio. Desvanecem-se os ruídos de uma vitalidade diurna que se substitui pelo vácuo do medo. Mas há o som de passos dos soldados do tráfico que circulam com armas a tiracolo. Estão atentos a quaisquer movimentos estranhos, especialmente aos ruídos dos botins massacrando o chão das vielas que cortam a favela. É o som da morte, que costuma vir com a noite. Mas até então o silêncio é calmoso, aparentando paz, e a cada hora que passa os bandidos se convencem de que naquela noite não haverá visita incômoda, tudo está sob controle, e até o movimento entra em declínio.

Passa o tempo, é meio da madrugada, a calada da noite continua a cobrir a favela com seu manto indecifrável. Ali nunca se sabe como será o momento seguinte, se tranquilo ou violento. Porém, no meio daquele silêncio ouve-se o primeiro ruído da morte, apenas o baque de um corpo indo ao chão. É um dos traficantes que acaba de ter sua goela aberta pela faca afiada de Presidente. O corpo, espantado, desaba, o sangue espirra formando uma horrenda listra vermelha na terra. Enquanto isso, outros corpos caem silenciosamente sob a ação eficaz de Lagartixa, Índio, Cerol Fino e Sorriso Congelado, como se todos estivessem disputando surdamente quem mais matará naquela noite. Contudo, o objetivo do grupo é o de sempre: chegar ao tesouro do traficante-mor seguindo as pistas recebidas de um informante. Ocorre, porém, que o local é alcançado e está vazio de gente e de tudo mais que lhes interessavam. Então eles entram em incontida ira, até que manietam mais um soldado do tráfico, e este lhes informa, antes de receber o corte na goela, que ali antes estivera um grupo da Polícia Civil e tudo levara, inclusive o chefão, em viagem provavelmente sem volta.

Surpresa desagradável, sem dúvida, risco pra nada, não era a primeira vez que chegavam atrasados nem seria a última, por conta daqueles concorrentes cruzando seus caminhos. Mas desta feita fizeram a jura: matariam os desafetos, senão poderiam acabar mortos, bastando haver um inesperado encontro e o confronto entre eles. Nenhum deles gostaria de ser identificado. Melhor, então, se antecipar...

Eles mataram dez traficantes por coisíssima nenhuma e não se conformavam com o fracasso. Mas absorveram, na frieza de sempre, a derrota, combinando que o tal informante apenas lhes daria mais uma informação, ou seja, a próxima “minerada” dos concorrentes: quando e onde?... Eles lá estariam para eliminá-los, o que efetivamente ocorreu no dia seguinte à informação recebida e à morte imediata do informante, que teve sua goela larga cortada pela audácia de servir a dois senhores ao mesmo tempo. Quis ganhar demais, perdeu tudo...

Contudo, ficou a dúvida quanto ao anonimato do grupo. Havia, sim, a possibilidade de o informante ter também compartimentado seus contatos com o intuito de se preservar contra possíveis represálias. Mas isto era problema resolvido, aquele não informaria mais nada a ninguém. Faltava, portanto, aos milicianos, organizar a empreitada para desarticular o grupo rival, o que não lhes seria fácil. Afinal, tratava-se de policiais tão perigosos quanto eles. Mas o confronto seria inevitável e eles não poderiam perder a vantagem de surpreender os inimigos no momento que invadissem a favela sublinhada pelo informante. Por coincidência, era a favela Pato Donald, a mesma que atrapalhara a vida do sargento Vargas, o que o incomodava deveras, ao mesmo tempo em que lhe representava vantagem em relação aos desavisados inimigos: ninguém conhecia o miserável lugar mais que ele...


DOZE


 Era sábado. A favela Pato Donald mantinha-se acordada, mesmo já passando da meia-noite. No céu limpo e estrelado reinava a lua cheia. Não era noite a ser manchada com sangue, pensavam os moradores e os traficantes, todos descontraídos nos prelúdios de uma madrugada que entrava em quietude. Ledo engano, porque não tardou em surgir aquele grupo de policiais vomitando fogo contra os traficantes que, surpreendidos, recuavam sempre do modo que já enrolara a vida do sargento Vargas: correndo e atirando para trás.

Mas desta feita eram os tiras que chegavam “no bicho”, pois não traziam nada que os identificasse. Aliás, nem precisavam fazê-lo, porque o povo favelado sentia o odor de sempre: o da hostilidade policial... Com efeito, a maneira de agir daqueles policiais vinha amiúde sobrepujando seus disfarces, e o linguajar estereotipado instintivamente aflorava deles, muito embora houvesse infrutíferas tentativas de dissimulação ao se comunicarem entre si em gritos possessos. E, se já estava perigosamente insustentável o ambiente, pior ainda ficou quando irrompeu favela adentro uns silenciosos homens, cinco, vestidos de preto, mascarados, atirando contra o outro grupo que atacava os bandidos, estes que, por sua vez, passaram a atirar contra os dois grupos que também se digladiavam mortalmente. Formou-se assim uma atabalhoada e terrífica contenda, com os moradores jogando-se ao chão em gritaria apavorada. O espanto misturava-se ao perigo e o sangue fazia o resto, ou seja, transformava aquele local, antes calmoso, em inferno.

Os estampidos eram ouvidos em todos os cantos da favela. Ninguém mais se entendia. Corpos sem vida se espalhavam pelas vielas. Foi assim que os tiras misturaram o sangue de seus corpos ao pó da favela e ao sangue de alguns bandidos, enquanto os cinco homens de preto saíam carregando um deles ferido. Era Cerol Fino, que fora atingido na coxa, havendo inclusive a preocupação de seus parceiros, – que pensavam ter sido ele atingido na femoral, – de que seu comutador da vida se desligasse definitivamente. Suspeita infundada, mas nem por isso o ferimento deixava de ser menos grave, eis que o balaço partira o fêmur de Cerol Fino e lhe arrebentara de caminho carne e condutos sanguíneos.

Houvera entre os milicos uma baixa a lamentar, mas os tiras ficaram estirados para sempre na favela, sem que ali ninguém lhes pudesse oficialmente justificar a presença. A ilegalidade do ato aflorava aos olhos e ouvidos dos favelados, que, com a certeza do fim dos combates, iniciaram uma algaravia de protestos. Assim o dia clareou, com a favela avermelhada em sangue. Foi como as autoridades a encontraram ao amanhecer daquela noite de terror.

A imprensa constatou a ferocidade dos confrontos. Mas o que ninguém sabia é que os cinco milicos de preto, que iam já muito longe, contribuíram deveras para toda aquela desgraceira. Enquanto isso, num determinado hospital da cidade dera entrada um miliciano ferido em “assalto no Aterro do Flamengo”. Era Cerol Fino, deixado na porta do nosocômio por seus companheiros, logo alegando ter sido levado por desconhecidos. Assim, mais uma vez passou despercebida a ação criminosa dos ferozes liderados do sargento Vargas.

No quartel, havia a preocupação de todos com o estado de saúde de Cerol Fino. Seu elevado conceito garantia a veracidade de sua mirabolante história. Segundo dissera, ele vinha andando pela calçada e passara um carro com quatro marginais que o enquadraram e lhe determinaram a entrega dos pertences. Ele reagiu, pois sabia de antemão que, ao ser identificado, seria assassinado sem dó nem piedade. Daí ter levado o tiro, tendo, porém, a certeza de que acertara em cheio pelo menos dois dos que estavam no interior do veículo, que partiu em disparada... A história caiu como luva e todos aplaudiram a coragem suicida do miliciano, da qual ninguém duvidava. O tempo cuidou do resto, e os cinco milicos ficaram absolutos do lado de fora, somente enfrentando concorrências improvisadas por amadores. Eles não, eles eram profissionais dentro e fora do quartel, dentro e fora da lei.

Contudo, lá na Delegacia de Homicídios um delegado inferia profundamente sobre a matança de seus companheiros na favela, e se informara sobre os cinco homens de preto que se enfiaram em meio ao tiroteio entre os policiais civis e os traficantes. Arguto, o delegado determinara o levantamento da entrada de feridos em todos os hospitais da cidade na noite em que ocorrera a invasão. Já sabia a respeito do “assalto” sofrido por Cerol Fino. Tinha tudo sobre a sua mesa. Os milicos, sem nem mesmo sonhar, entraram na mira do delegado. Entretanto, a este não seria fácil vincular pessoas e fatos em circunstâncias tão complexas. Até porque o quarteto recuou à forma cística aguardando pacientemente a recuperação de Cerol Fino. Assim quatro meses se passaram, sem que eles ultrapassassem os limites das ações oficiais. Aí, sim, devido ao tempo decorrido, o próprio delegado esfriou o seu ímpeto inicial e até se esqueceu da específica investigação, também já atropelado por novos acontecimentos.

Cerol Fino, por sua vez recuperado, retornou à atividade, porém sem condições plenas para o enfrentamento dos serviços externos. Ficou mais três meses em quartel torcendo por seus companheiros, que, por outro lado, mantinham-se em absoluta cautela. Havia, sim, o substituto de Cerol Fino completando a guarnição. Era um miliciano combativo e leal, mas os parceiros de empreitadas criminosas preferiam cumprir o juramento de jamais confiar em qualquer outro fora do grupo. Eram cinco por um e um por cinco e mais nada e ninguém.

O tempo cuidou de ajustar novamente o azimute dos cinco milicos, que se norteavam sempre de comum acordo. O rumo de um, era o dos demais, e foi assim que Cerol Fino tornou ao grupo e à ação. Mas eles não se arriscaram logo em empreitadas externas. Esperaram a chance de boa ocorrência oficial, e de nova dispensa, para então articular outra produtiva “minerada”. Já estavam com tudo planeado e definido que eles não seriam mais cinco homens de preto e mascarados. Chegara a hora de mudar o estilo da ação...


TREZE


 Tinham razão, mesmo sem saber que além do delegado havia outro personagem que desconfiava de que eles não eram assim tão moralmente asseados. A bem da verdade, na ânsia de não deixarem pistas de seus crimes, eles vinham vindo exagerando no pudor profissional, deste modo alertando o capitão comandante da companhia pelo caminho inverso dos demais, que geralmente apresentavam um desvio de conduta aqui, outro ali, fato normal numa profissão que não guarda relação com nenhum monastério. Mas o quinteto se comportava como monges, ou seja, demasiadamente zelosos em suas condutas. Havia, por exemplo, uma estranha incoerência entre o destemor que demonstravam no combate ao crime e a inocente atividade de motoristas de criancinhas. Mesmo assim, por mais que o capitão desconfiasse, e até discretamente investigasse, nada contra eles descobrira até então. Nem por isso, contudo, ele afastava da mente suas dúvidas, assim como o delegado também ficara com elas retidas no fundo do seu baú profissional.

Por instinto, talvez, e principalmente em vista da muita experiência que tinham, Vargas e seus parceiros concluíram que era hora de montar uma fachada mais compatível com o prestígio que gozavam. Aguardavam apenas a oportunidade de realizar esse mister, e ela finalmente lhes surgiu através do empresário que resgataram de sequestro por mero acaso. Nem tanto acaso, porque fora Calixto quem apurara o fato já pensando na “minerada” que o grupo faria após o pagamento do resgate e a devolução da vítima. E trouxe ao grupo a preciosa informação.

Sim, com a frieza que lhe era característica, Calixto investigara a identidade e o paradeiro dos sequestradores, acabando por descobrir o local do cativeiro numa favela situada na área do batalhão. E a sorte parece que perseguia aqueles cinco, posto que Calixto chegara ao quartel trazendo em suas algibeiras as precisas informações. Mas, de posse delas, Vargas preferiu repassá-las ao desconfiado capitão, obtendo deste a autorização para conferi-las, porém acompanhado de mais outra guarnição, todos comandados por um tenente. Assim partiram rumo à favela e, como sempre, a guarnição de Vargas se antecipou e resgatou heroicamente o empresário, matando dois sequestradores. Com estes identificados, chegaram aos demais, prendendo-os numa operação que resultou em estupendo sucesso.

A repercussão da brilhante ação policial correu o noticiário, alçando o comando do batalhão à notoriedade. Também o empresário acolheu a ideia de vestir camiseta do batalhão para dar sua versão, o que fez emocionado e agradecido. Enfim, uma ocorrência perfeita, mas que deixara num foco imperceptível os verdadeiros agentes que a encetaram, estes que, todavia, não demonstravam nenhum interesse em aparecer. Não lhes atraía a notoriedade. Demais, havia a necessidade de se manter o anonimato de Presidente, Cerol Fino, Índio, Lagartixa e Sorriso Congelado, codinomes de cinco feras das noites de sangue que promoviam em cobiça.

Contudo, o empresário lhes ficara grato, advindo daí a chance de aproximação posterior e o surgimento da oferta para que cuidassem da segurança pessoal da vítima agradecida. Com isso lhes veio a ideia de organizar a empresa de segurança, que dali em diante seria a fachada de negócios sérios de que precisavam para ostentar suas fortunas acumuladas, além de outras que certamente lhes bafejariam em outras “mineradas”. Forcejava-lhes uma irresistível vontade de matar por matar, mesmo que, em determinados casos, nada de valioso carreassem aos seus cofres já abarrotados.

Deste modo o endiabrado quinteto saiu do anonimato da carência material para a ostensividade do sucesso empresarial, deveras ampliado com a ajuda do grato empresário, agora entregue com a família aos cuidados da empresa de Vargas e de seus parceiros em igual sociedade. Tudo como bola de neve, pois a eficiência dos serviços que prestavam, – contando com a colaboração de diversos outros companheiros escolhidos a dedo, – essa eficiência lhes garantia mais clientes da roda de relacionamento do próprio empresário. Foi como em pouco tempo os negócios cresceram tanto que eles não mais necessitavam ocultar seus sinais exteriores de enriquecimento. Mas subestimaram a inveja de seus superiores, e por aí se iniciaria a derrocada do grupo... Sim, porque se tornaram alvo de investigações de toda ordem, tanto pelo capitão desconfiado como pelo delegado de homicídios, este que voltara à carga contra eles depois de outra matança com a mesma característica da dos tiras, ou seja, muitas gargantas cortadas à peixeira.

Era a peixeira do sargento Vargas um vício de origem que ele nunca admitia abdicar, por mais que seus companheiros o alertassem para os rastos que a arma branca lhe vinha deixando. Mas Presidente era insistente em seus princípios de nordestino enfezado e machão. Admitia até largar a mulher, porém jamais sua amada peixeira. Confiava mais nela que nas armas de fogo. Não se incomodava com o fato de que isto lhe poderia ser, no futuro, a desgraça, e teimosamente não alterava a maneira de cortar as goelas alheias. Mantinha instintivamente um só padrão, o que permitira à perícia a constatação que a peixeira era a mesma. Só faltava chegar ao seu dono e aos demais que o acompanhavam: os cinco homens mascarados, não mais de preto, porém ainda mascarados. E havia o testemunho assustado de um favelado, que apenas citara que numa das mãos que cortavam as goelas ele vira uma pulseira de prata brilhando no escuro. Esse testemunho poderia ser decisivo, mas muita coisa faltava para se chegar à conclusão de que o grupo assassino era exatamente aquele quinteto tão conceituado em quartel...

 QUATORZE



O sargento Vargas, depois de amargar três anos de prisão injusta, também ganhara sabedoria, ou talvez tenha aprimorado seus instintos. Verdade é que ele, de tão admoestado por seus parceiros sobre a peixeira, passou a aceitar a ideia de que estava realmente deixando um rasto perigoso. Daí, mesmo contrariado retirou da cinta sua arma predileta, trocando-a, todavia, por um pequeno punhal. Porque era certo que ele não deixaria de cortar as goelas inimigas, algo que lhe dava satisfação insubstituível. Era-lhe patológica a motivação de matar do modo nordestino. E trocou convenientemente a pulseira de prata por uma outra, de ouro puro, cravejada de brilhantes, que retirava antes de praticar suas ações clandestinas.

Também o grupo sentia na pele certo temor, sentia no ar do quartel um peso diferente. Na verdade, os milicianos estavam gerando desconfiança em demasia, o que atribuíam, porém, à inveja dos demais com a ostentação que agora não resistiam encenar em todos os lugares. No fim de contas, estavam mesmo endinheirados; tudo, claro, por conta da empresa de segurança, cuja contabilidade apontava um lucro estupendo, mas também em razão dos acréscimos que faziam de dinheiro sujo ao ganho honestamente.

Sim, dinheiro sujo nunca parava de ser introduzido nas contas da empresa sob a forma de clientes fantasmas, geralmente “estrangeiros”, que pagavam caro por serviços especializados. O contador sabia como executar as trapaçarias técnicas para burlar as leis contábeis e financeiras. Só não transigia com o Imposto de Renda. Este era pago religiosamente. Contudo, ou por inveja, ou porque, no fundo, os demais milicianos contavam com boa rede de informantes, verdade é que o grupo não estava tão hermético como no início. Os cinco milicos agora eram olhados com inveja por dezenas, mas o risco se concentrava em apenas dois: o capitão e o delegado...

Com efeito, o delegado foi apertando a mais e mais o cerco em torno dos argutos milicos. A pulseira de Vargas era o objeto principal das investigações, e cada vez mais se confirmava que aquela sucessão de assassinatos em favelas levava a marca do diabólico quinteto. Por esse motivo, eles estavam sendo seguidos por experimentada equipe da delegacia de homicídios, incluindo-se a observação sutil de outros milicianos, por ordem do capitão, que se integrara à investigação da Polícia Civil. O cerco se fechava, mas ainda muito demoraria a confirmação, porque a necessidade dos cinco não ultrapassava o interesse pelo risco e a vontade de matar por matar. Não mais havia neles a cobiça, estavam ricos. O delegado e o capitão teriam, pois, de esperar que eles novamente agissem, o que, porém, levaria meses.

 QUINZE



Escorrido o tempo, num dia qualquer, em primeiras horas da manhã, entra nos rádios das viaturas uma chamada de emergência: assalto a uma empresa de vigilância e guarda de valores. Segundo informações preliminares, dez assaltantes fortemente armados haviam dominado a sede da empresa após eliminar covardemente dois vigilantes. Também se sabia que a radiopatrulha do setor percebera a movimentação dos meliantes e os patrulheiros mantinham-nos acuados no interior do prédio, com eles sustentando intenso tiroteio. Mas logo os reforços chegaram, entre eles a guarnição do sargento Vargas.

Do jeito que estava a situação, parecia que não havia chance de desfecho favorável. Além dos vigilantes mortos, mais cinco deles permaneciam reféns dos bandidos. Do lado de fora já se concentravam mais de 50 policiais civis e militares, numa tal balbúrdia que deixaria envergonhada a própria Torre de Babel. Exatamente por isso ninguém percebeu a movimentação silenciosa do sargento Vargas e de seus parceiros que, através do edifício ao lado, em manobra arriscada e usando uma corda, alcançaram o telhado do prédio da empresa de vigilância. Nesta hora é que são vistos pelos demais, aos quais pedem, por gestos, que não parem de distrair a atenção dos bandidos. E assim todos fazem, já que a iniciativa dos cinco se torna irreversível. Eles não recuarão e estão dispostos a partir ao confronto com os marginais. São dez contra cinco, mas aqueles cinco valem por vinte...

A tensão máxima é a principal arma da guarnição de Vargas, com destaque para o escorregadio Lagartixa, que, fazendo jus ao apelido, desliza do telhado para o espaço vazio situado nos fundos da empresa. Logo se ouvem tiros, enquanto os demais milicianos somem do telhado e se atiram no pátio interno onde já está Lagartixa. Daí em diante ninguém mais ouve outra coisa além de tiros e explosões, uma barulheira infernal de rajadas e estrondos terríveis, até que, de repente, tudo se acalma. E se dá um silêncio de túmulo, sem que ninguém do lado de fora possa prognosticar qualquer resultado. Na verdade, todos entendem que o quinteto agira temerariamente e se dera mal. Eia!... Enganaram-se, porque o primeiro a surgir pela porta da frente do prédio foi exatamente o sargento Vargas. E por seu semblante risonho logo se deduziu que ele e seus parceiros saíram vitoriosos contra os dez bandidos. E como!...

O trabalho do restante do aparato policial resumiu-se a somente contar os corpos ensangüentados, muitos deles dilacerados por sucessivas explosões de granadas jogadas pelos milicianos. Ninguém ali podia antes imaginar que eles fossem utilizar esse recurso extremo, imprevisto e ilegal. Mas eles logo explicaram que as granadas estavam com os três primeiros marginais eliminados por Lagartixa na descida, e que eles apenas as utilizaram contra seus próprios donos. Bela mentira, hein?... Mas, quem os desmentiria?... Os vigilantes já salvos?... Ora!...

Heróis, sim, sem dúvida! Eles mais uma vez tamparam as bocas dos maliciosos, todos se rendendo ao clamor público favorável. A imprensa elogiava de tal modo o feito policial que o delegado e o capitão, de parceiros inseparáveis contra os milicianos, passaram a disputar quase que a tapas os louros daquela vitória particular contra o crime, que, na realidade, não lhes pertencia. Mas somente eles podiam falar aos repórteres, e não pouparam elogios à heróica guarnição que ambos conjuntamente “comandaram”... E não houve outra alternativa ao comandante do batalhão que não fosse a de novamente dispensar os heróis por duas semanas. Fê-lo com prazer, porque seu comando vinha sendo comparado aos melhores de todos os tempos na briosa. Com efeito, o ego do comandante estava num ponto tão máximo que ele parecia que iria explodir de tanta satisfação. Sim, foi com este clima que os velhacos se escafederam às ruas, logicamente imaginando aproveitar a dispensa da forma que mais gostavam: praticando “mineradas” produtivas e sanguinárias, mais a segunda hipótese, menos a primeira...

 DEZESSEIS



O ódio do sargento Vargas pelos bandidos da favela Pato Donald não lhe saía da cabeça. Ele também internalizara uma espécie de sentimento particular contra aquela comunidade, atribuindo-lhe seu azar passado. Por isso a escolheu para revirar pelo avesso os traficantes lá homiziados, uma quadrilha que se instalara depois de expulsar os meliantes locais, enfraquecidos desde a violenta escaramuça que resultara na morte dos tiras.

Não lhes fora difícil reunir informações detalhadas sobre os facínoras. Como eram estranhos ao lugar, choviam miudamente notícias contra eles, o que permitiu ao sargento Vargas montar uma detalhada ação a ser executada na calada da noite. Nada mais, portanto, faltava, a não ser o ataque, muito mais para eliminar os bandidos do que para conquistar tesouros.

Tudo à feição, para se garantir o pleno sucesso da ação, eis que as informações recolhidas garantiam isto. E assim eles invadiram a favela, como sempre coleando pelas vielas em velocidade quase que irreal. Desta forma foram eliminando os bandidos, cortando-lhes as goelas como nos velhos tempos. Mas toda essa empolgação lhes custaria um preço caro, porque os informantes também haviam repassado suas informações para outros organismos policiais que, por coincidência, partiram para a favela na mesma noite. Só que os demais policiais se arremeteram à ação oficialmente e comandados pelo obstinado delegado de homicídios...

Os cinco endemoninhados milicos já se encontravam em plena ação quando a favela foi invadida por impressionante aparato policial que incluía também muitos PMs especialmente designados em apoio à coirmã. Houve então o encontro e o confronto dos cinco milicianos com um reduzido grupo de policiais que, por acaso, lhes cruzaram o caminho. Rápidos, todos se protegeram e passaram a trocar tiros ferozmente, tendo Vargas logo percebido que não se tratava de bandidos.

Liderando os atônitos companheiros por veredas que conhecia como ninguém, Vargas conseguiu despistar os policiais, estes que já se haviam comunicado com o delegado e relatado o confronto. Nada mais, portanto, faltava para o delegado ter certeza de que chegara o dia de desmascarar aqueles impertinentes assassinos, fossem quem fossem. Mas, onde teriam eles se metido?... Em que buraco, enfim, se ocultaram?... Foram horas de busca, mas nesse andar da carruagem, já sem qualquer bandido dando sopa, todos se haviam escafedido para locais distantes. Agora era a polícia toda atrás de apenas cinco; mas onde estariam eles?...

O dia clareou, e nada. Mas a polícia não arredava pé do lugar. Sabia que o perigoso grupo de “mineradores” ainda poderia estar enfiado ali dentro e acabaria tendo de sair de alguma forma. Mas como?... Com essa terrível dúvida, e com a favela repleta de repórteres sabendo que os assassinos dos tiras estariam acuados em algum ponto, todos esperavam, esperavam, esperavam... Depois, irritados, os policiais comandados pelo delegado começaram a abordar os moradores pedindo permissão para vasculhar seus barracos, o que peremptoriamente lhes era negado, para deleite dos profissionais de imprensa.

Enquanto isso, o sargento Vargas e seus quatro parceiros se mantinham enfiados no interior de um barraco que sabiam ser o esconderijo preferencial dos bandidos, eis que possuía paredes falsas e linhas de fuga subterrâneas, algumas até atingindo as cercanias da favela. Ali não seriam encontrados, a não ser que algum morador os denunciasse, algo improvável, porque a polícia, por motivos que dispensam maiores comentários, era odiada pelos favelados. No mínimo manteriam o silêncio, até porque o local pertencia aos traficantes, estes que certamente voltariam depois de passada a borrasca policial.

Nessas circunstâncias desfavoráveis, a polícia permaneceu durante três dias vasculhando sem sucesso a favela. E os policiais começaram a se irritar com o delegado, que insistia naquela permanência sem qualquer sentido prático. Ele mesmo já cedia às pressões de seus comandados, até que lhes permitiu a retirada. Assim, de repente, a favela se tornou vazia de bandidos e de policiais, transformando-se momentaneamente num oásis, lugar ideal de se viver, como uma nuvem branca pintando o céu, porém logo levada pelo indiferente vento para outras veredas. Sim, porque tão logo perceberam o vazio, Vargas e seus quatro parceiros abandonaram o esconderijo, indo para um homizio que possuíam, um sítio fora do Rio de Janeiro.

Contudo, enquanto eles se refaziam do susto suas casas eram vasculhadas por policiais civis e PMs, todos de posse de Mandados de Busca e Apreensão providenciados pelo delegado junto ao Ministério Público e a Justiça. Mas nada havia indicando ser os milicos assassinos seriais de traficantes e tiras. E instituíram contra eles próprios, o açodado delegado e seus policiais, um grave problema, posto os milicianos retornaram e “provaram” com testemunhos contundentes que desde a bem-sucedida operação na empresa de vigilância haviam decidido descansar no sítio. E imediatamente ingressaram com processos e mais processos contra o delegado, e quase que também contra o capitão. Mas o capitão lhes sugeriu um acordo, o que eles astutamente aceitaram. Quanto ao delegado, este ficou todo enrolado diante do Ministério Público, tendo de explicar quem teria assassinado tantos bandidos na favela Pato Donald, já que da última vez, na realidade, lá somente havia os policiais que ele pessoalmente comandava. O resto era tudo fade, pura fantasia... Que fria!...

Diante dos últimos acontecimentos, Vargas se reuniu com Lessa, Calixto, Sérpio e Capistrano, tomando uma irreversível decisão: nunca mais praticariam qualquer crime do lado de fora. Estavam ricos e nada mais lhes restava a não ser a separação. Inclusive deliberaram que deveriam se articular para que cada um fosse servir em unidades diferentes, de preferência na guarda do quartel, por exemplo, que era em escala fixa e rotina inflexível. A partir daí deixariam suas mulheres ou parentes à frente da empresa, com apenas o contador apresentando relatórios mensais a cada um.

O tempo mais uma vez passou batido e o quinteto caiu no esquecimento geral da tropa, do lado de dentro, e dos favelados e bandidos que muito aterrorizou do lado de fora. E foram à velhice tranquila, cada qual fazendo o que bem o quisesse, desde que não incluísse a prática de crimes sob qualquer pretexto. Todos os litígios com seus empregados ou com quaisquer outros eram sempre levados aos tribunais, tudo dentro dos mais sagrados parâmetros legais. Mas quanto ao impertinente delegado, ele acabou réu em processo de múltiplo homicídio por conta da frustrada tentativa de prender em flagrante os anônimos assassinos de tiras que infernizaram sua vida profissional, e que agora, fingindo-se de infortunadas vítimas, infernizavam sua vida pessoal...

Assim os endiabrados patameiros, que o destino um dia reuniu, estão até hoje rindo à toa e desfrutando de suas fortunas acumuladas ao longo de muitas “mineradas” bem-sucedidas, numa cidade cuja sociedade insiste em confundir Bem com Mal, volta e meia invertendo e subvertendo a ordem natural desses fatores, ou seja, punindo inocentes e privilegiando culpados, ou por incompetência ou má-fé. E o sargento Vargas, logo que se aposentou, tornou com a família à terra natal, onde já adquirira muitas propriedades em nome de parentes. Assim ele finalmente pôde ressuscitar sua tão amada peixeira, porém não mais para matar gente, e sim para ceifar os cabritos tenros que ainda hoje devora depois de assados. São muitos, os caprinos de sua excelente criação, a melhor da terra para onde ele, o sargento Vargas, nordestino cabra-de-peia, voltou e se tornou a pessoa mais importante do lugar. Voltou, sim, e ostenta sua inseparável pulseira de prata, seu talismã, que chocalha como a cascavel pronta ao bote e lembra os seus tempos de miliciano, que sofreu e fez sofrer, mas que, enfim, ainda vive no bem-bom. Hoje ele é o mais autêntico coronel do sertão nordestino, exemplo vivo de que o próprio sistema faz com que o crime muita vez compense.

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Família Nordestina

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