quinta-feira, 11 de maio de 2017

FILHO PRÓDIGO



“Sim, voltei a Deus. Sou o filho pródigo... A nostalgia do céu me dominou... Há, afinal de tudo, uma centelha divina em cada alma humana.” (Heine, Op. Cit. Os Santos que Abalaram o Mundo, René Fulöp-Miller, 1953)


Anoitecia no bairro de Vila Valqueire, Zona Norte do Rio de Janeiro. Na Rua das Rosas, a família Feixe acomodava-se em torno da mesa de jantar. Retangular e pequena era a mesa, à sua volta quatro cadeiras. Numa cabeceira, o major Feixe; noutra, a esposa Glória, tendo ao seu lado a filha Soninha, de 16 anos de idade; na outra lateral, a cadeira vazia, o lugar de Paulinho.
Era sexta-feira, em março de 1988, mais um dia de apreensão para o major Felisberto de Sá Feixe. Fazia três anos que ele passara a ter com o filho uma difícil relação. Estava o major recuperado de gravíssima doença, e, segundo seu entendimento, a cura se havia dado por vontade divina. Por isso ingressara no mundo cristão: tornara-se evangélico.
Na época da doença, já desanimado, o major Feixe contou com o apoio espiritual do sargento Enéias, pastor evangélico que com ele servia no 17º BPM, na Ilha do Governador. A partir desta ajuda, associada ao incessante tratamento quimioterápico, o oficial ficou plenamente restabelecido. E passou a frequentar o culto aos domingos com a esposa e a filha. Já Paulinho não acompanhava a família, tornara-se um desgarrado.
Sim, havia a tristeza naquela casa da Vila Valqueire. O jantar não tinha o gosto dos tempos em que a família sempre se assentava completa. O major, depois de proclamar uma oração, passou a comer em silêncio. Sua mulher também nada falava. Soninha quebrou o silêncio:
– Pai, não estou gostando de ver o mano do jeito que tá, não! Ele anda com os piores garotos do bairro e costuma frequentar lugares ruins. Tem ido ao Jardim América pra ver os pegas...
– Sei disso, filha! Não sei mais que fazer!... Ele já se sente dono do nariz e está começando a me desrespeitar. Não quero ser duro com ele além do que sou. Mas vejo que não há outra forma de controlá-lo. Vou ter com ele uma séria conversa, pode deixar. E você, filha, como está lá no colégio?...
– Sem problemas, pai. Estou passando por média. O senhor tem de pensar mais no Paulinho. Meus colegas estão dizendo que ele está aprontando muito...
– Eu sei, filha, eu sei! Você não se lembra da vergonha que eu passei lá no nono batalhão no ano passado?
– Poxa, pai! Então não me lembro?
– É, mas eu vinha avisando a seu pai pra ir mais devagar. Que devia apurar a história antes de ir reclamar no quartel! – atalhou Glória, ingressando na conversa.
– Eu sei, Glória, você tem razão, mas como eu poderia imaginar aquilo?... – reagiu o major.
Sim, não poderia imaginar o que ouviria o major Feixe quando foi ao nono batalhão exigir que o comandante acabasse com pegas de carros e motos em Vila Valqueire. Lá chegou “cheio de razão” a reclamar dos incômodos dos pegas nas ruas do bairro, culminando por sugerir ao seu colega que prendesse os baderneiros. O comandante era um tenente-coronel seu colega de turma. Chamava-se Marcos. Ele ouviu o major com total compreensão e depois falou:
– Feixe, meu pessoal acionou uma repressão aos pegas de Vila Valqueire há duas semanas. Mas os PMs tiveram lá um problema que necessitou até da minha interferência. Eu não lhe queria falar sobre isso; na verdade, esperava uma oportunidade mais apropriada. Mas já que você veio reclamar, quero-lhe dizer que o primeiro a ser preso foi Paulinho. Ele liderava a baderna dirigindo sem habilitação o carro de um colega dele. Mais ainda, foi o primeiro a dar um cavalo de pau em frente dos PMs. Foi preso, e você já deve imaginar o que ele fez...
– Ah, estou imaginando... Deve ter usado o meu nome...
– Não, Feixe! Usou o meu! Disse ser meu sobrinho e mandou que os PMs me ligassem para confirmar.
– Essa não! Que sem-vergonha! Desta vez ele não escapa de levar um tranco!
– Não é por aí, amigo! Veja bem, seu filho está com dezoito anos; e, pelo que sei, vive afastado de você. Eu mandei o serviço secreto apurar o que ele anda aprontando pra depois ter uma conversa com você.
– Poxa, Marcos! Como é isso? Não estou sabendo que a coisa está tão grave!...
– É verdade! Eu até me surpreendi quando soube que muitas vezes ele teve problemas com alguns meus comandados. Você sabe como aqui é difícil, você reside na área. Por isso os PMs vinham relevando com medo de mim e de você... Todos sabem que somos amigos. Mas agora acho que é hora de você olhar o comportamento dele mais de perto.
– Você tem alguma informação de que ele esteja envolvido com droga? – indagou o major Feixe.
– Infelizmente tenho. Não sei detalhes, mas é bom você ver isso...
– Obrigado amigo! Peço desculpas também. Confesso que estou arrasado.
– Que nada, Feixe! São coisas da idade. É só você conversar com ele e talvez prendê-lo um pouco mais em casa. É a companhia de más pessoas que traz esses problemas.
– Tudo bem, amigo!... Mas gostaria de contar com você. Quando ele aprontar alguma, peça aos PMs para conduzi-lo ao batalhão e me avisar. É uma forma de imprensá-lo.
O major Feixe se retirou com a cabeça em turbilhão. Sabia que teria dificuldade de controlar o filho. Agora as coisas se começavam a clarear. O problema era tóxico... E sentia-se culpado. De repente pensou que sua insistência em querer que Paulinho seguisse a carreira militar talvez fosse o cerne de tudo. “Vou conversar com ele pra readquirir sua confiança”, cogitava enquanto se dirigia a sua casa.
– Meu filho! Vamos ao seu quarto; quero falar com você.
– Pô, pai! Agora não! Tô ligadão no filme! Depois a gente troca uma ideia! – retruca Paulinho sem dar importância ao apelo do pai.
– Não, Paulinho! É agora! – exaspera-se o major desligando a tevê.
– Que houve pai? Tá nervoso por nada, pô!
– Por nada? Chega de papo e vamos ao seu quarto! Você sabe muito bem por que estou nervoso! – concluiu o major, caminhando ao quarto do filho e sendo por ele seguido.
– Pô, pai, que tá havendo?
– Olha só, filho! Sei de tudo que você anda aprontando, do seu envolvimento com drogas e com pegas. Também estou ciente de seus problemas com os PMs. Quero começar lhe dizendo uma coisa: você não será mais acoitado por mim. Dei-lhe todas as oportunidades, dei-lhe carinho, e só me afastei de você nesses últimos anos porque lutava por minha vida. Mas você se degenerou. O que você tem a me dizer?
– Ah, pai, não tenho nada pra dizer, não. Já sou homem feito, e você não percebe!... Vou fazer o seguinte, não quero brigar com você, vou pra casa da vovó. Vou morar com ela.
– Não é assim, não! Não pense que serei descartado com tanta facilidade...
– Pai, tô indo pra dezenove anos. Agora faço o que quiser. Vou mesmo pra a casa da vovó! – desafia Paulinho.
– Veja lá o que você vai fazer por aí!...
– Sei me cuidar, pai!...
Não sabia. Três semanas depois ele foi preso portando droga. O major, pressionado pela esposa, foi à delegacia, lá encontrando o filho cabisbaixo e apavorado:
– Pai, me tira daqui! Por favor, me tira daqui!
– Tá vendo só, filho! Eu avisei que sua vida não vai terminar bem! Vou ver o que faço, mas você vai voltar pra casa, tá certo?
– Tá certo, pai! Eu volto! Mas, me tira daqui...
O major providenciou advogado, que agiu rápido e retirou Paulinho da cadeia. Ele fora autuado somente por uso de drogas e responderia a processo em liberdade. O delegado, considerando os pedidos do major e do comandante do batalhão, colocou Paulinho isolado dos demais presos enquanto aguardava a soltura pelo Juiz, o que de fato aconteceu.
Durante dois meses Paulinho se comportou exemplarmente, quase não saía de casa. Mas numa sexta-feira Paulinho se ausentou antes do pai chegar e só retornou ao alvorecer do sábado.
– Paulinho, que houve? – indagou-lhe o major, irritado com a escapulida do filho.
– Pô, pai, nada demais! Fui ao baile no Clube Helênico. Tinha lá um PM do seu batalhão na segurança. Eu disse que era seu filho e ele me botou pra dentro de graça. E falou que o senhor é legal. O senhor pode conferir! – defendeu-se Paulinho.
– Quem é esse PM?
– Ele me disse que o seu nome de guerra é Santos. É um negro alto, de bigode. É muito legal. Pô, pai! Eu não fiz nada demais, não!
– É, não fez, mas saiu sem eu saber. Vou lhe avisar uma coisa: se você parar em delegacia de novo não vou fazer mais nada! Você já me fez passar a maior vergonha do mundo diante dos PMs e do delegado.
– Pode deixar, pai; vou ficar na minha; pode deixar...
Em chegando ao quartel, na segunda-feira, a primeira coisa que o major fez foi mandar vir à sua presença o PM Santos.
– Pronto chefe! Mandou me chamar?
– Sim, Santos. Preciso que você me fale a verdade. Estou enfrentando graves problemas com meu filho. Ele arribou de casa na sexta-feira e só chegou de madrugada. Disse que estava no Helênico e que você o colocou pra dentro. É verdade?
– É verdade, chefe. Ele chegou lá por volta de meia-noite com três colegas. Eu os coloquei pra dentro e ainda tomei uma cerveja com eles.
– Você conhece os garotos que estavam com ele?
– Não, chefe! Eu nunca os vi lá no Helênico.
– Sabe a hora que Paulinho saiu de lá?
– Não sei não, chefe. Fiquei com eles só meia hora.
– Tudo bem, Santos. Obrigado...
O major passou o resto do dia preocupado. Sabia que o filho o havia enganado. Não lhe contara a verdade. Era certo que ele saíra do clube bem antes da hora que chegara a sua casa. “Pra onde teria ido?”, pensava. E assim, com pressentimentos ruins, levou arrastado o expediente, e, ao seu término, partiu direto para casa. Paulinho não estava.
– Glória, onde está Paulinho?
– Ele disse que ia ao colégio, Felisberto. Saiu às quatro da tarde dizendo que passaria na casa de um colega pra botar a matéria em dia. Eu falei pra ele esperar você e ele me fez a maior grosseria. Ele está muito estranho, vive me pressionando pra pegar dinheiro. Está uma barra aguentar ele na sua ausência. Estou muito preocupada! – disparou a mulher visivelmente irritada.
– É, tá difícil controlar esse garoto. Não sei mais que fazer. Não posso bater nele. É homem feito. Vou conversar com ele quando chegar do colégio.
Não conversou. À meia-noite o major sucumbiu-se ao sono. No dia seguinte partiu ao quartel com o filho ainda dormindo, já sabendo que ele ficaria na cama no mínimo até o meio-dia, como de costume. Esperou e telefonou.
– Paulinho, quero conversar com você quando eu chegar.
– Que foi, pai?
– Não vou falar por telefone, não. Você me aguarde!
– Tudo bem, pai... Mas, posso ir ao colégio?
– Eu chego a tempo. A conversa é rápida.
– Tá legal, pai!
Parecia que o azar ficara de plantão naquele dia: surgiu uma emergência e o major não pôde sair antes das oito horas. Ligou para o filho às sete mandando-o ir ao colégio e somente entrou em casa às dez da noite. Cansado, banhou-se, jantou e dormiu. Mais uma vez a conversa ficou adiada, até se perdendo a oportunidade de levá-la a cabo devido ao desencontro entre pai e filho. Demais, Paulinho sempre arranjava um meio de se desvencilhar do pai inventando desculpas. Quando chegou a sexta-feira, Paulinho saiu e não voltou. E veio o sábado, o domingo, e nada de Paulinho. O major, já desesperado, acionou a polícia, os hospitais, os parentes, porém sem lograr êxito. Nesse desespero, anoiteceu, até que tilintou o telefone.
– Alô!
– Pai?
– Ah, filho, onde você se meteu? Você é um irresponsável! Não aguento mais você!...
– Pô, pai, vai me deixar falar?
– Fale!
– Não vou mais voltar pra casa, não! Tô de saco cheio!
– Tá maluco, filho? Venha pra casa agora!
– Não dá pra conversar com você! Vou desligar...
Foi o que Paulinho fez; bateu com o telefone na cara do pai. Na segunda-feira, amuado, o major cumpria sua rotina de deslocamento da Vila Valqueire à Ilha do Governador. Perdera a batalha na criação do único filho. Sentia-se culpado. Não tinha dúvida de que Paulinho estava além do que imaginara no seu envolvimento com drogas. E no quartel sua certeza se fortaleceu diante dos argumentos do PM Santos.
– Chefe, posso falar com o senhor? – indagou-lhe o PM, abordando-o na chegada.
– Pois não, Santos! Vamos até a minha sala.
– Chefe, não tenho notícia muito boa pro senhor. Aqueles três garotos que estavam com seu filho lá no Helênico são traficantes do morro do Milho. São do CV. Eles patrocinam pegas em Realengo e fazem a segurança enquanto os vapores vendem droga. O pega é na área do 14º BPM. Por isso o colega que faz segurança comigo no Helênico reconheceu-os. Ele serve no 14º BPM; é da radiopatrulha do setor onde ocorrem os pegas. O senhor já ouviu falar neles?
– Já ouvi, Santos. Eu soube que lá geralmente vão mais de cinco mil assistentes. Dizem que os participantes são violentos, e que às vezes nem dá pra polícia reprimir esses pegas.
– Isso mesmo, chefe, é daí pra pior! E seu filho já foi visto armado de AR-15. Acho, chefe, que seu filho tá metido em barra pesada!
– Meu Deus! Não sei mais que fazer! É difícil, Santos, é difícil...
– Bem, chefe, o senhor é muito bacana. Acho que isso tem ajudado seu filho a se livrar de algumas frias. Mas vamos ver... Se o senhor precisar do amigo aqui, pode contar. Gosto do senhor e entendo o seu drama... O senhor pode ter certeza de que seu problema é também enfrentado por muitos dos nossos. O senhor não tem ideia de como há companheiros que são impelidos pelo dever profissional a combater os criminosos tendo os próprios filhos agindo criminosamente, e, às vezes, cometendo crimes mais graves. É um drama à parte em nossa profissão, que ocorre com uma frequência maior do que o senhor possa supor.
Era o que faltava para arrasar o major Feixe. Agora ele sabia, – com todas as letras, – que seu filho era bandido. Passou um dia péssimo e nem chegou ao final do expediente. Começou a se sentir mal e pediu ao comandante para se ausentar mais cedo. Foi direto para casa.
– Glória, nosso filho está perdido!...
– Ai, Senhor Deus! Que vamos fazer? – exasperou-se Glória.
– Mãe, que houve? – alarmou-se Sônia, correndo de encontro à mãe.
– Calma! Vou explicar o que está acontecendo!
E comentou, em detalhes, a conversa que tivera com o PM Santos. Na hora do jantar, o major clamou:
– Senhor, sei que fui salvo da morte para enfrentar esta provação. Mas a minha fé jamais será abalada. Ajude-me, Senhor, a suportar mais este sofrimento!...
A família Feixe, depois da oração, fez o repasto em silêncio. Enquanto isso, em Realengo, os carros começavam a chegar ao local da emulação. Como por encanto a plateia ia aumentando. Aparecia gente de todo os lados, centenas de adolescentes posicionando-se no caminho das peripécias automobilísticas dos endiabrados motoristas, a maioria sem habilitação. Reuniram-se em silêncio, mas logo a agitação tomou conta do ambiente. E entre os assistentes já circulavam os vapores do tráfico com mochilas recheadas de papelotes de cocaína e trouxinhas de maconha. E lá estavam os “soldados” com suas armas ameaçadoras. Um deles era Paulinho, que ostentava um AR-15. Era ele e mais cinco...
A ilegal competição começou em delírio, estimulada pela droga consumida a granel. Mas às duas horas da manhã surgiu uma viatura da Polícia Civil com dois detetives, que foram direto ao local onde alguns carros estavam aguardando para iniciar suas diabruras. Inadvertidos, os policiais foram rendidos e desarmados pelos traficantes. Ficaram então com as mãos na cabeça, os fuzis apontados para suas atônitas caras, aguardando, nervosos, o passo seguinte dos traficantes. E foi exatamente Paulinho quem lhes ordenou que se ajoelhassem e eles assim o fizeram. De súbito, sem qualquer aviso, Paulinho disparou o AR-15 matando-os instantaneamente. A partir daí, correria total; o povo, em pânico, rapidamente desapareceu das ruas. Restaram o vazio, o silêncio, e os corpos estendidos no chão.
Logo o noticiário entrava nos lares reportando a brutalidade da cena: dois policiais civis dilacerados, enquanto seus colegas, revoltados, cuidavam do local do nefasto crime. Até então a imprensa não divulgara nada além do que todos sabiam: foram covardemente assassinados por traficantes. Em casa, o major Feixe, a mulher e a filha dormiam, mas logo de manhã fervilhava o noticiário, e o major, estuporado, assistia à cena de sangue repetida em reconstituição de desenho animado.
O sábado transcorreu nervoso na cidade. A polícia não divulgava nada sobre os suspeitos. Parecia até então que não havia testemunhas. O silêncio continuou até domingo, quando então as primeiras informações sobre os matadores começaram a surgir, dentre os quais um chamado Paulinho, exatamente o que havia matado os detetives. Em sua casa, o major estremeceu. Sônia, a sua filha, chorosa, no canto da sala, falou:
– Pai, só pode ter sido Paulinho. Ele sempre participou daquele pega...
O major nada falava, nem a sua mulher, que lavava louça na cozinha prendendo o choro. Neste momento tilintou o telefone. O major atendeu:
– Alô!
– Alô! É o major?
– Sim. Quem fala?
– PM Santos. Chefe, o senhor tá acompanhando o noticiário?
– Estou. Por quê? – indagou o major, aguardando a resposta, porém já sabendo qual seria.
– Meu chefe, desculpe-me, mas foi seu filho.
Não havia mais dúvida. E não passou muito tempo para a imprensa entupir a rua em frente à casa do major. Ele se mantinha trancado com a família sem saber o que fazer. Mas acabou saindo, recebendo no atônito semblante aquele monte de câmeras e microfones, com todos os repórteres questionando-o. Muito nervoso, ele se explicava afirmando que seu filho havia abandonado a família. Assim atendeu aos ávidos repórteres e se trancou novamente. A imprensa acabou se retirando, ficando ele, a mulher e a filha em desespero absoluto. Foi horrível o domingo, pois o telefone não parava de tocar...
À noite, mesmo arrasada, a família se dirigiu à igreja em Marechal Hermes. Chegaram consternados, cabisbaixos, desanimados, envergonhados. Mas logo eles receberam o carinho dos fiéis, especialmente do sargento Eneias, que lhe destinou um belíssimo sermão, buscando em S. Lucas, 16, e na passagem do filho pródigo a inspiração:

“E disse: Um certo homem tinha dois filhos. E o mais moço deles disse ao pai: pai, dá-me parte da fazenda que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua, e ali desperdiçou a sua fazenda, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades. E foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada. E, tornando em si, disse: quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: pai, pequei contra o céu e perante ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus jornaleiros. E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. E o filho lhe disse: pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: trazei depressa o melhor vestido, e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés; e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; porque este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se. E o seu filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças. E, chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo. E ele lhe disse: veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou, e não queria entrar. E, saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os teus amigos; vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou a tua fazenda com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado. E ele lhe disse: filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas; mas era justo alegrar-mo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se.”

 Deste modo, o pastor encerrou o sermão. A família Feixe sentiu-se confortada. Mas ao retornarem a casa o major comentou com a esposa e a filha, ainda no carro:
– Meu Deus, que vou fazer agora com esse filho desgarrado?...
Glória e Soninha nada falavam. Somente choravam num momento difícil para os três. Assim chegaram, a rua vazia de gente, todos os vizinhos colados na tevê, onde o assunto palpitava em edições extraordinárias.
O resto da noite custou a passar. Na cama, nenhum dos três conseguiu conciliar o sono. Estavam tensos, com o casal ouvindo o choro da filha. A luz do sol brilhou vencendo a noite e amanheceu a segunda-feira. Logo alguns vizinhos vieram apoiar a família Feixe. E o telefone anunciou o comandante do major avisando que por lá passaria, e que ele, o major, deveria esperá-lo. Quem atendeu foi Soninha, apressada, talvez pensando que fosse o irmão.
Não demorou muito chegou o coronel Sérgio, tendo com o major uma conversa confortadora. Todos gostavam do major Feixe, inclusive seu comandante, que o dispensou de ir ao quartel. Mas na terça-feira o major partiu ao trabalho. Estava ainda perplexo, sabia que dificilmente o filho sairia vivo da enrascada. Decerto não se entregaria à polícia. Seu coração de pai doía deveras, ele não duvidava de que perdera o filho: “Criei um monstro, meu Deus!”
No quartel, os oficiais e praças fizeram questão de lhe externar solidariedade. Alentava-o a ideia de que ele não era uma pessoa ruim, muito menos para o filho, a quem sempre tratara com carinho. Tinha a certeza de que tudo ocorrera por culpa das drogas e não lhe saíam da memória as imagens da tevê com a reconstituição do bárbaro assassinato, sabendo que o personagem atirando nos detetives era o seu filho. Enchia-se de indignação. No fim de contas, tinha consciência de que dera a Paulinho tudo o que um pai extremoso deveria dar a um filho.
A semana escorreu tortuosa: a esposa chorava num canto e a filha, noutro, enquanto o major, em silêncio, mal suportava a terrível dor a lacerar-lhe o coração e a alma. Contudo, não deixou de orar ao jantar, pedindo a Deus forças para a família suportar o inesperado infortúnio. Assim levaram os dias seguintes, até que amanheceu a sexta-feira, sem que eles tivessem notícia de Paulinho a não ser as veiculadas pela imprensa, com a polícia vasculhando o morro do Milho à procura dele. Mas, por volta das sete horas da manhã, o major já saindo, o telefone tocou, correndo Soninha a atendê-lo. O major e a esposa logo perceberam que ela conversava com Paulinho.
– Filha! Que foi que ele disse? Diga-me logo, diga! – exasperou-se o major.
– Calma, pai! Vou falar! Ele está na casa da vovó, em Quintino. Chegou de madrugada e me pediu pra arranjar dinheiro pra ele fugir. Pediu pra não falar nada com vocês.
– Ora, filha, você sabe que ele deve pagar pelo que fez. Vou denunciá-lo à polícia. Ele não tinha o direito de tirar a vida de ninguém!
– Mas, Felisberto, ele pode ser morto! – desesperou-se Glória.
– Não tem jeito, Glória! Se eu não fizer isto nunca mais terei paz. Ele não tinha o direito de destruir tantas famílias. Ele deve pagar por isso!
E foi o que o major fez: ligou para o seu comandante e pediu-lhe que acionasse a polícia ao endereço da avó de Paulinho, no bairro de Quintino. O coronel Sérgio prontificou-se a agir imediatamente, como de fato fez. Terminada a ligação, o major partiu rapidamente em seu carro para a casa de sua mãe, onde Paulinho se encontrava aguardando a irmã. Quando lá chegou, a casa já estava cercada por inúmeros policiais civis e militares. A área estava isolada, com Paulinho desfechando tiros contra os policiais. Nesta hora, o major se identificou, mas sem saber o que fazer para ajudar. Distraído, não viu Soninha chegar exatamente no momento em que o tiroteio reiniciava. E ela, em desespero, partiu em direção à casa da avó furando o cerco da polícia. Entrou no fogo cruzado e recebeu um tiro no coração disparado pelo próprio irmão.
Soninha tombou sem vida; o major correu em sua direção e a ela se abraçou misturando lágrimas ao sangue da filha. Foi quando Paulinho tornou a si e viu a irmã morta pelo tiro que ele mesmo desferira. A cena do pai abraçado à irmã prostrou-o sem ação. Foi preso sem resistência, sendo levado pelos policiais. Ao passar, olhou para a irmã e o pai em estupor. Matara a irmã que adorava!
O major não resistiu e desmaiou. Foi levado ao hospital da PMERJ. Glória, ao saber do ocorrido, também teve de ser hospitalizada. A tragédia abalou a cidade. Na PMERJ, os colegas e subordinados do major lamentavam a perda trágica. O coronel Sérgio tomou a frente das providências de liberação do corpo de Soninha e do sepultamento. Somente à noite o major e a esposa chegaram ao velório. E ao depararem com a dura realidade entraram ambos em incontrolável pranto. Mas lá estava o Pastor Eneias pedindo a Deus força para casal, ele e muitos fiéis da igreja em orações ininterruptas até a hora da descida do corpo à sepultura. Muitos PMs foram abraçar o amigo. Todos choravam a terrível perda.
A noite do sábado passou em claro, com parentes e amigos naquela casa de Vila Valqueire afundada em infortúnio, o major e a esposa, como dois autômatos, abraçados e silentes. Sofrimento maior seria impossível imaginar. Assim o domingo veio chegando, pesado e vagaroso... Mas o major chamou a esposa e lhe disse que iria ao culto, em sua igreja, convidando-a também a acompanhá-lo. Ela aceitou.
Na igreja de Marechal Hermes os fiéis iam chegando, até que em pouco tempo não havia mais lugar no templo. Muitos haviam comparecido ao sepultamento de Soninha e estavam ainda abalados. Neste clima de consternação o pastor iniciou a sua fala. E pedia aos presentes que com ele orassem pelo casal Feixe. Neste momento o major e sua esposa surgiram, e houve o silêncio, quando então o pastor os anunciou e os instou a que recebessem as graças das orações. O major pediu o microfone e disse com a voz embargada:
– Meus irmãos! Primeiro eu lhes quero agradecer por todo o apoio que venho recebendo. Não tenho dúvida de que o Senhor Deus poupou-me a vida para enfrentar a provação de ver minha filha assassinada pelo próprio irmão. Estou sofrendo muito, mas eu e Glória temos a convicção de que Deus é nosso único refúgio. Espero que este sentimento que se expande em meu coração nos sirva de alento a todos nós e aumente a nossa fé. Irmãos, eu creio que Deus não quis deixar Soninha assistir ao destino triste do irmão. Preferiu levá-la e aplicou em Paulinho a pior punição. Além de preso, ele ficará carregando dentro de si o remorso. Quero-lhes pedir que orem por ele. Obrigado. Fiquem na paz do Senhor.
A fala do major foi da mais pura emoção. Ele dera uma demonstração de fé contagiando a todos. E muito ainda o faria pois decidira passar à reserva para dedicar o seu tempo a cuidar do resgate e da recuperação de drogados. O ano de 1988 marcou a tragédia e o início da dedicação do casal Feixe na recuperação de jovens viciados. Na prisão, tempos depois, Paulinho se convertera ao evangelho e já recebia a visita dos pais, orando os três por Soninha e por todos os necessitados de conforto. Dez anos se passaram, e a força da fé reaproximara a família, com Paulinho perdoado pelos pais. Talvez cumprisse mais alguns anos de prisão. Quis o destino, porém, que ele não conhecesse a liberdade: morreu de infarto ao completar doze anos de prisão. Mas tivera tempo de se arrepender do que de ruim fizera, e assim, e mais uma vez, Deus escreveu o certo por linhas tortas...

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