As alcantiladas montanhas que nos tempos primevos
nasceram em Cachoeiras de Macacu, – e no topo delas se deixa ficar Nova
Friburgo, no Rio de Janeiro, para quem não conhece o lugar, – as alcantiladas
montanhas são testemunhas da história de Olu-Faísca. Também as inexpugnáveis
florestas e os inúmeros mananciais que nas montanhas se protegem da sanha
destruidora do homem, – e se derramam em rios e riachos cristalinos a
engrossarem o rio Macacu, – são testemunhas das histórias de Olu-Faísca, eterno
protetor daquele lugar mui verdejante. E os pássaros silvestres e outros bichos
que vivem felizes e protegidos naquelas serranias conhecem o valor de
Olu-Faísca. Tem sido assim por séculos, e que ninguém duvide!
E mais ainda podem afirmar com precisão as gentes roceiras
que ainda hoje vivem em torno da serra, no sopé de cada montanha que vai
subindo em busca de tocar os céus. Pois nos descampados dos vales todos
plantam, colhem, alimentam os animais e se alimentam. São gentes simples e
felizes, protegidas por Olu-Faísca, de quem se conhece muitas histórias
impressionantes. E nas rodas de prosa e cachaça do povoado não há quem não
conte e reconte as façanhas do misterioso personagem que também passaremos a
narrar sem tirar nem pôr...
Sim, Olu-Faísca, negro brilhoso como o azeviche, um
gigante, saiu do ventre de Obá-Feroz, esposa de Xangô, – negra linda, porém
terrível e assustadora quando quer assim se apresentar, – surgida na mata
virgem (dizem que filha dum magnífico Jequitibá que reina absoluto naquela
região florestosa). Sim, Olu-Faísca saiu, sim, do ventre de Obá-Feroz, que
habita as florestas montanhosas desde antes dos bichos-homens ali surgirem; e
ela, rainha da mata e das águas revoltas, toma conta de cachoeiras, rios,
riachos, peixes e animais. Ali é seu reino, verdejante lugar que se preserva
sob seu manto protetor. E ninguém duvida de que Obá-Feroz é a rainha daquelas
brenhas selvagens, lugar em que as gentes roceiras não ousam pisar nem cortar
uma árvore ou caçar animais ou poluir riachos. E ai de quem se arrisque a tal
proeza!...
É verdade! Não há ainda hoje quem se arrisque a ver de mais
perto a poderosa Obá-Feroz; e quando surge seu vulto no horizonte, quem o vê sai
em desabalada carreira. De noite então é maior o medo dela. Ninguém, nem em
sonho, admite dar de cara com a negra assombrosa que trinca nos dentes os
caçadores e lenhadores mais afoitos. E mal surge o lusco-fusco do anoitecer os
caminhos de chão se esvaziam de todas as gentes, sem exceção, que se recolhem
ao som de latidos nervosos dos cães. Dizem por lá que era por causa de
Obá-Feroz a passar correndo nos campos, atiçando-os na vigília contra caçadores
e lenhadores que não respeitam a mãe-natureza; mas estes, na verdade, desde
muito estão encolhidos de pavor, trancados em suas choupanas. É assim
Obá-Feroz, esposa de Xangô, e mãe de Olu-Faísca: linda e medonha!...
Obá-Feroz é real, não é visão, juram os lavradores e
guardadores de matas da exuberante região de cachoeiras e florestas que abraçam
o rio Macacu. E ali as histórias de Olu-Faísca passam primeiramente pelas
façanhas da mãe dele; e ambas, histórias e façanhas, vêm de longe no tempo, de
boca em boca, de ouvido em ouvido, de aumento em aumento, de mentiras em
mentiras, de verdades em verdades, e de muitas fantasias baralhadas com
realismos fantásticos, tudo surgindo e permanecendo no imaginário popular. Sim,
foi assim que Obá-Feroz e seu filho Olu-Faísca se tornaram lenda nas trilhas
das matas virgens de Cachoeiras de Macacu, onde até hoje dá medo matar bichos e
aves, sujar rios e cortar árvores. Ali é lugar sagrado de Obá-Feroz e
Olu-Faísca!
Um dia o negrinho Olu-Faísca surgiu à frente de outros
meninos que brincavam nos descampados das faldas da serra. Parecia bicho do mato,
olhos brilhosos e ferinos, pele negra de luzir ao sol e altura de gigante
africano. E o menino fitava a si próprio e aos outros, comparando-se com eles,
alguns pretos, como ele, e outros brancos, o que ele estranhou. Os garotos
correram a medo e depois o tentaram intimidar a pedradas; ele então se
enfureceu e urrou como bicho feroz apavorando os meninos, que dispararam em
correria desencontrada. Assim conheceram Olu-Faísca e contaram aos pais. E os
garotos nunca mais voltaram a brincar naquelas abas de montanhas onde um dia
viram o feroz Olu-Faísca.
Muito tempo passou, sim, os adultos concluindo que as
crianças inventaram a existência do garoto bicho do mato. Mas eis que num belo
dia a negra Obá-Feroz surgiu em pleno lugarejo levando nas mãos o filho
Olu-Faísca. Foi até a igreja, ao vigário, estacando na pia batismal, não sem
antes prestar reverência à imagem de Santa Joana D’Arc. Porém, enquanto cruzava
a rua principal, o chão tremeu e as pessoas se foram escondendo, temerosas. Em
muitos casos corriam levantando poeira e gritando que a legendária dupla
circulava pela primeira vez em Cachoeiras de Macacu. Mas nem tanto assim, pois
o resoluto padre já tivera muitos contatos com Obá-Feroz e com Olu-Faísca nas
brenhas aonde somente ele ia e levava o catecismo aos bichos do mato.
É verdade, ninguém ousava encarar Obá-Feroz e
Olu-Faísca. Daquela gente toda, só se viam pares de olhos assustados nas
frestas e frinchas das casas, mirando em espanto os selvagens vestidos em tiras
de embira de bananeira trançadas em perfeição. Pareciam, sim, dois autênticos
selvagens de África perdidos nas matas virgens cortadas pelo rio Macacu. E eram,
sim, de África, e também do mundo todo!
Tempos depois, saíram da igreja, mãe e filho, ambos
percorrendo o caminho de volta, até que penetraram nos capoeirões e
desapareceram nas montanhas inexpugnáveis. Somente depois de bom tempo é que
começaram a sair de seus esconderijos os temerosos roceiros, todos se reunindo
na porta da igreja e clamando ao vigário explicações sobre a inesperada
aparição. Mas o vigário, abespinhado pela impertinência do povoléu, ficou a
desfazer o mito que representava Obá-Feroz e seu filho sem pai, dizendo às
gentes humildes que tudo que Obá-Feroz queria era dar nome cristão ao filho, e
que ela era apenas uma mulher do mato e nada mais... Não logrou êxito, o
vigário foi obrigado a anunciar que dera a Olu-Faísca o nome Raphael. Mas isto
não mais adiantava, posto a negra ter saído da igreja anunciando aos gritos o
nome que ela própria dera ao filho e que todos já sabemos.
Difícil ficou ao vigário explicar quem seria o pai de
Olu-Faísca. De Obá-Feroz, diziam ser o grandioso Jequitibá, e ninguém falava de
Xangô... Sim, do homem dela nada se sabia: ninguém jamais a vira com qualquer outro
ser ou divindade naquelas paragens. Irritado, e sem argumento, o vigário gritou
que o garoto era filho do monstro do lago que ficava no fundo do abismo da mata
virgem, entre montanhas aonde ninguém se atrevia a ir. Depois, arrependido,
tentou desmentir o que antes dissera. Tarde demais, o povoléu, crente, saiu
espalhando aos ventos a notícia. Assim nasceu mais uma lenda: Olu-Faísca era
filho do monstro do lago.
Ah, o lago... Lá no lago da mata virgem, por causa da
lenda, nenhum roceiro ou lenhador ou mateiro realmente se arriscara a desbravar.
Sabiam dele por conversas nas rodas de fogueira. Porém, todos tinham certeza de
que lá morava o monstro-pai de Olu-Faísca, sinônimo de muito terror. Por isso, a curiosidade aumentava, especialmente
porque Obá-Feroz e Olu-Faísca não mais foram vistos; assim o mistério em torno
de ambos fazia florescer as histórias no imaginário popular. Eram e são lendas
indestrutíveis.
Os anos passaram rápido, tentando inutilmente vencer a
eternidade, até que um dia surgiu no lugarejo o negro Olu-Faísca, não mais o
menino de outrora, mas um gigante de dois metros de altura. Vinha vestido de
tanga de embira. Trazia sua lança de bambu e um facão esculpido em madeira
preso à cintura. Não eram armas comuns. A lança era enorme, retilínea, cuidada
como obra de arte. Quem a olhasse não se arriscaria a dizer que se tratava de
bambu, porque mais parecia ferro fundido, de ponta tão fina que era capaz de
cortar o ar. O facão, ninguém jamais vira igual: enorme e com dois gumes
afiadíssimos. Porém, a principal arma de Olu-Faísca estava em seus olhos, que
faiscavam em todas as direções, parecendo alcançar como dardos as gentes
medrosas e escondidas em tudo que era canto a fitá-lo de soslaio.
Olu-Faísca parecia um príncipe africano passeando em
seus domínios nos campos da África. Era selvagem, isto ele era, e parecia que
preservava sua cultura ancestral distante no lugar e no tempo; e como o fizera
sua mãe em épocas passadas, ele partiu ao vigário. E foi só Olu-Faísca
desaparecer no horizonte para todo o povoléu acorrer à igreja e ao vigário,
ficando este mais uma vez imprensado pela curiosidade geral. E disse que o
negro lhe viera avisar que Obá-Feroz partira para os campos da África e não mais
voltaria. Verdade! Ela não mais habitava este mundo. Por que o vigário foi
falar que Obá-Feroz morrera?... Ah, ninguém acreditou!...
Dali em diante, o povoléu passou a temer o espírito
dela, que via vagando pelos descampados em noites escuras e em meio às
tempestades. Muitos se benziam ao pronunciar-lhe o nome, e as lendas cresciam
sem parar, agora permeando o sobrenatural. Segundo o cavaquear do povoléu nas
rodas de fogueira e de pinga, ela agora era mais um dos orixás que habitavam a
floresta.
Assim, em meio à onda de histórias incríveis, ou
críveis, Olu-Faísca era lembrado entre homens, mulheres e crianças. Todos
ouviam e contavam os impressionantes feitos do gigante filho de Obá-Feroz,
muitos dos quais inventados na hora. Porém, virava tudo verdade na crença
daquelas gentes temerosas do negro que morava nas brenhas do rio Macacu, que
com suas águas agitadas cortava montanhas e despenhadeiros inexpugnáveis. Lá só
existiam a natureza selvagem e Olu-Faísca. E veio então a história mais
aterradora, até hoje passada de boca em boca, de ouvido em ouvido, de aumento
em aumento, entre aquelas gentes todas das beiradas do rio Macacu e algures: a
peleja mortal entre Olu-Faísca e o monstro do lago do abismo da mata virgem...
Sobre o monstro, diziam que somente ele vivia no fundo
escuro do lago, que ficava no fundo do penhasco. Nada mais havia no lago além
dele, que se alimentava de lama quente e de gente curiosa. Por isso, ninguém ia
lá, porque, se fosse, virava comida de monstro...
Pais, mães, avôs e avós ouviam e transmitiam aos filhos
e netos as histórias do monstro. E não havia quem chegasse à borda do penhasco
para olhar o lago. Na verdade, ninguém conhecia o lago, mas todos especulavam a
respeito dele. Uns diziam que era redondo, outros o juravam quadrado, e mais
outros o diziam pequeno, ou grande, mas ninguém se atrevia a negar-lhe existência,
ou a do monstro que nele morava. Certos disso, todos ficavam em medroso silêncio,
até que voltavam a contar as histórias de Olu-Faísca, sempre mentindo
estupendamente, até que acreditassem em suas próprias mentiras, quando então o
novo causo estaria consagrado como verdade, pois é certo que daquela roda de
gentes e de pinga ninguém jamais vira lago ou monstro algum.
E sobre o monstro?... Ah, aí é que inventavam mesmo, e
as histórias se espalhavam pelas asas dos ventos que cortavam aquelas paragens.
Eram muitas as cavaqueadas que se faziam em derredor de fogueiras a respeito do
monstro. Uns juravam que era um dragão enorme, como o que São Jorge matara com
sua lança miraculosa; outros o descreviam como enorme cobra de vinte e cinco
cabeças, cada qual com dois olhos que hipnotizavam as pessoas enquanto as
enormes bocas as devoravam. E dos cinquenta olhos brotavam faíscas mortais, que
torravam em brasa quaisquer bichos ou gentes curiosas. Sim, ninguém ousava ir
ao lago ver o monstro. Era loucura!...
Certa vez, porém, numa roda de prosa, sempre em volta
duma grande fogueira, com as gentes e as estrelas por testemunhas, a pinga rodando
a roda de boca em boca, Zé Mateiro danou a narrar a luta entre Olu-Faísca e o
monstro das vinte e cinco cabeças. Houve o silêncio. Todos ficaram atentos. Zé
Mateiro jamais falara nas rodas de pinga, e todos sabiam que ele era quem mais
se aproximava das brenhas onde morava Olu-Faísca.
Disse Zé Mateiro que ouvira da própria Obá-Feroz a
história da luta entre o filho dela e o monstro. Tudo acontecera em noite de
tempestade tenebrosa, a mata torcida e destorcida pelos ventos implacáveis, e o
aguaceiro caindo como se todas as comportas do céu estourassem ao mesmo tempo,
os raios faiscando em estrondos ensurdecedores, parecendo até o fim do mundo. E
em meio a este horror de manga-d’água é que Olu-Faísca foi ao abismo enfrentar
o monstro, este, que vomitava fogo e veneno e faiscavam seus cinquenta olhos
pra tudo que é lado, iluminando toda a orla do lago, algo magnífico de se ver,
se não fosse tão terrificante e mortal...
Não para Olu-Faísca, que logo começa a arremessar as suas
lanças de bambu tão afiadas nas pontas que zunem no ar em direção ao monstro,
cada lança encravando-se nos pescoços que sustentam suas vinte e cinco cabeças.
Vinte e cinco lanças zunindo no ar, como a lança de Ogum Cariri, vinte e cinco
pescoços por elas atravessados em precisão. E Olu-Faísca então pula no dorso do
monstro e agarra-se ao pescoço maior que sustenta os outros vinte e cinco mais
finos, já trespassados pelas lanças do guerreiro. E com um golpe de facão
apenas, decepa o grande pescoço do monstro, matando-o finalmente. Aquele
monstro jamais fora seu pai...
Sim, Zé Mateiro trouxe a notícia, que também disse
tê-la ouvido de Obá-Feroz: o pai de Olu-Faísca era Xangô, príncipe tribal em
África e foragido da escravidão. Ele, sim, fora morto pelo monstro do lago, daí
a vingança de Olu-Faísca, que em luta ferrenha mata o assassino do pai,
conforme contou Zé Mateiro sem mentir nem aumentar. E todos passaram a admirar
o negro Olu-Faísca, além de temê-lo, porque estavam cada vez mais convictos de
que Obá-Feroz, Xangô e Olu-Faísca formavam uma família de orixás protetores da
floresta e dos mananciais. Porque eram e são imortais!...
Sim, as gentes simples não deixaram de temer o filho de
Obá-Feroz e Xangô, porque Zé Mateiro jurou que toda vez, em dias e noites de
trovoada, o estrondo mais forte era o grito de guerra de Olu-Faísca cantando
vitória contra o monstro do lago do abismo, o assassino de Xangô: o seu pai. Impossível!
Xangô jamais fora assassinado a não ser na imaginação das pessoas daqueles
roçados. E por mais que corra o tempo e gerações se sucedam há sempre quem
afirme ter visto um negro correndo pelo descampado e penetrando nas brenhas das
cachoeiras do rio Macacu; e não há quem não acredite que o estrondo mais alto
da tempestade é o seu grito de vitória na luta contra o monstro do lago do
abismo. Sim, é o grito de Olu-Faísca, protegido de Ogum Cariri, deus guerreiro irmão
de Oxossi e de Exu, vencedor de batalhas. Saravá Ogum Cariri, filho de Oxalá nascido
nos campos de África! Porque ele veio para proteger os guardiões das matas
virgens, e dos homens, e dos bichos que moram nos vales e montanhas que abraçam
o rio Macacu e mais rios, florestas, homens e bichos do Brasil e de todo o
planeta. Saravá Orixás! Saravá Oxalá, Deus maior do Universo!


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