Para João Gusmão, estimado e inesquecível
amigo, português de nascimento, proprietário da Fazenda Itapoam, em Papucaia,
Cachoeira de Macacu-RJ, já falecido.
Ainda de madrugada, e quase ao amanhecer de um dia
qualquer da semana, Pedro lá estava a colocar na picadeira o capim por ele
preparado na véspera. Esta era a primeira rotina de mais um dia na fazenda, que
sempre se encerrava com o corte do capim para o seguinte. Depois de picar o
alimento do gado e da cavalhada, e de lhes servir com um carinho somente visto
naqueles que amam animais, Pedro partia à execução da tarefa que mais lhe
aprazia: treinar os garanhões, e, particularmente, tratar do seu próprio cavalo,
um animal castanho-escuro com manchas brancas que ele carinhosamente batizara
como Valente.
Nada no mundo era mais importante para Pedro que seu
cavalo Valente. Ele trocara o animal, ainda potrilho, por um sabiá-laranjeira
de canto trinta e oito que caíra de um ninho e ele o criara desde filhote. Na
época da troca, que se deu no lugarejo de Papucaia, muitos acharam que Pedro
fizera um mau negócio. Não viram que seu olhar antes penetrara os olhos do
potrilho e lhe alcançara a alma, enquanto os olhos do cavalinho igualmente
espetaram o coração de Pedro, que era considerado um dos melhores cavaleiros da
localidade. Foi amor à primeira vista.
Valente cresceu em meio aos cavalos da raça campolina e
do gado girolanda da fazenda Itapoan, onde Pedro também era um faz-tudo.
Durante o dia, depois de colocar o gado a pastar, Pedro se iniciava no
treinamento de andadura dos belos cavalos do patrão, cada qual mais premiado.
Pedro adorava aqueles animais de linhagem especial e porte majestoso, além de
valiosos. Mas, apesar do valor material daqueles cavalos, Pedro não seria capaz
de trocar Valente por nenhum deles. E sem que ninguém o percebesse, Pedro
treinava Valente do mesmo modo que fazia com os cavalos de raça pura. E ainda o
exercitava em saltos ornamentais, vocação natural do cavalo, que pulava
córregos e cercas com impressionante facilidade.
Aos domingos, depois de tratar da cavalhada e da
boiada, Pedro se iniciava a cuidar de Valente. Primeiro lhe dava banho e o
escovava em capricho. Depois o encilhava com a precisão de profundo conhecedor
da profissão. Ao final, valia a pena apreciar aquele garanhão que nada devia
aos campeões da fazenda. E lá ia Pedro para o lugarejo participar duma boa
cavaqueada e tomar pinga com os amigos.
Pedro era casado com Maria e pai de Gabriel, um garoto
de dois anos. A família vivia na Fazenda Itapoam, numa boa casa cedida pelo
patrão, João, também padrinho do menino. Pedro tinha no patrão um grande amigo.
Ali estava a trabalhar havia muitos anos, na verdade desde que ocupara o lugar
do seu pai, já falecido. Ficaram ele e a mãe, mas nada mudara na rotina do
trato dos animais, eis que Pedro antes aprendera o ofício com seu velho pai.
João e Pedro vinham de longe numa amizade consolidada
ali mesmo naquele pedaço de terra, com ambos desfrutando dos prazeres da
infância entre os animais, os pássaros, a floresta, os campos verdejantes e as
cachoeiras. E entre eles surgira um profundo sentimento de união que venceria o
tempo.
Pedro tinha tudo para ser feliz, e de fato era-o. A
vida lhe transcorria às mil maravilhas. Ele externava seu íntimo contentamento
na roda de amigos enquanto prosava sobre seu assunto predileto: cavalos. E lá
estava Valente, obediente, garboso, à sombra de uma árvore frondosa, enquanto
Pedro contava suas vantagens e também ouvia iguais gabolices de seus
companheiros.
Todos ali exerciam a mesma tarefa cotidiana, mas,
sobretudo, gostavam mesmo era de cavalos. Era-lhes gratificante a
responsabilidade de tratar de animais cujos preços nem entendiam direito, eis
que os patrões os situavam em dólares. Mas para eles o que valia era o cavalo,
e, mais que qualquer dinheiro, valia o amor que nutriam pelos animais.
Havia, sim, é certo que havia muita discussão a
respeito de qual cavalo era o melhor. Uns defendiam o pampa e o quarto de
milha; outros, o manga-larga marchador, e mais outros, o campolina, e ainda
mais outros, o puro-sangue inglês, mas todos amavam indistintamente os cavalos.
Pedro, entretanto, não resistia à tentação de enaltecer Valente, que lá estava
à vista de todos. E recebia de volta as galhofadas dos amigos, o que o deixava
deveras chateado. Então ele bebia mais pinga e a discussão acalorava, até que
suas pernas começavam a bambear em anúncio da hora de retornar à fazenda.
Pedro, mesmo tocado pela pinga, não se preocupava com a
volta. Valente conhecia o caminho e o levava são e salvo até a fazenda e à porta
de sua casa. Era um cavalo amigo, que Pedro não trocava por nada no mundo, nem
pelo mais caro cavalo. Valente era filho, e irmão, e pai, e par constante de
Pedro, a ponto de a mulher dele às vezes se enciumar. Mas ele a acalmava:
– Maria, eu tenho três amores no mundo: você, Gabriel e
Valente – mentia, porque sua verdadeira vontade era a de citar Valente em
primeiro lugar.
Maria também fingia aceitar as explicações de Pedro,
até porque ele era ótimo marido, exceto aos domingos porque não abdicava de compartilhar
com os amigos da pinga e da prosa sobre cavalos.
O tempo passou e alcançou a semana da festa de
Papucaia, na Fundação Rural Vale do Macacu. Em meio a diversas modalidades de
concursos entre animais estava incluída a prova de hipismo, cujo prêmio ao
vencedor era um carro zero-quilômetro. E Pedro, como quem não quer nada,
registrou-se como concorrente em nome da Fazenda Itapoam. Na hora de apontar o
nome e a raça do cavalo, disse que não poderia fazê-lo, posto haver muitos
cavalos na fazenda e somente o patrão poderia escolher o animal. Não houve
dificuldade, eis que a tradição da fazenda valia como referencial de
credibilidade, além do próprio conceito de Pedro, que todos conheciam de berço,
ele sempre montando campeões da fazenda nos torneios de andadura.
O evento tinha de tudo, desde rodeios até apresentação
de artistas famosos. Era uma semana inteira de festa, que se repetia todos os
anos. Mas naquele ano de 1991 havia algo mais, uma surpresa a acontecer: a
prova de hipismo. Para participar vieram cavalos de muitos pontos do país,
enchendo um pavilhão de baias que, se somados em dinheiro os cavalos ali
acolhidos, representavam muitos milhares, quiçá milhões de dólares.
A prova era no último dia da festa, na parte da tarde,
quando após seriam distribuídos os prêmios de todos os concursos da semana. A
expectativa era grande. A pista de hipismo estava simplesmente linda à espera
dos campeões, até que veio a disputa. E entrou Pedro com Valente, causando
estrondoso clamor de protesto a presença daquele cavalo encilhado à moda
nordestina, com enfeites incompatíveis com o padrão dos demais cavalos, todos
eles paramentados no melhor e mais luxuoso estilo.
Formou-se a primeira confusão, logo seguida de outra,
que era a definição da raça de Valente, que para muitos não passava dum
pé-duro. Enganaram-se todos, até mesmo Pedro, que se surpreendeu quando o
veterinário assegurou que Valente era puro exemplar de cavalo crioulo,
originário dos pampas argentinos, animal de trabalho, porém em nada impedido de
saltar.
A exigência era a pureza da raça, e, quanto a
isso, não haveria de haver mais dúvida, o atestado do veterinário não permitia
contestação, para surpresa dos mais afamados cavaleiros e proprietários da
região. E os reclamantes, afetados, tiveram de engolir os espalhafatosos
paramentos de Valente, pois não havia escritos regulamentares que os
proibissem.
Em meio a toda essa confusão, o que mais alegrava Pedro era a reação de João em sua
defesa. Não fosse ele a exigir a decisão dum especialista, Valente seria levado
ao descarte sem que Pedro o pudesse evitar. Mas seu compadre, patrão e amigo
tomou a frente da questão e fez valer o prestígio da Fazenda Itapoam e dele
próprio, um campeão de todos os anos com seus cavalos da raça campolina, para
alegria do peão que amava cavalos e amava Valente, seu cavalo crioulo e não
mais pé-duro.
E veio a prova e a confirmação da qualidade do
cavaleiro Pedro e do cavalo Valente. A cada salto as exclamações estouravam
entre a imensa torcida, muito mais depois da confusão que atraiu a atenção de
todas as gentes. Pois lá estavam os cavaleiros, roceiros e peões torcendo por
Pedro e Valente. Também estava Maria, na beira da cerca, com Gabriel ao colo.
Pedro não deixava de olhar para ela e de lhe piscar os olhos a cada salto que
dava, enquanto preparava o cavalo para o seguinte. Preparava não é bem verdade,
porque Valente se lhe antecipava na missão como se raciocinasse. Era, com
efeito, um cavalo especial, este, o garanhão crioulo, que levou Pedro à vitória
retumbante destronando campeões de todo o Brasil.
Na hora da premiação a alegria contagiava os presentes.
Esperavam o principal momento: a entrega do carro a Pedro. Todos vibravam, até
que Pedro foi chamado. E lá foi ele, com seu campeão, para receber as honras de
uma vitória que não estava na conta de ninguém, exceto na de Pedro e de
Valente, que ia em bela andadura ao lado do amigo, com o peito estufado e o
pescoço esticado em pose de artista famoso. Cá entre nós, parecia que sorria no
canto da boca na hora em que recebeu a coroa de campeão, enquanto Pedro recebia
as chaves do carro.
E, como naquele primeiro dia em que o peão e o potrilho
se cruzaram, Pedro olhou dentro dos olhos de Valente, e este espetou seus olhos
nos de Pedro, penetrando ambos, e simultaneamente, as almas de um e do outro,
fundindo-se ambas numa só: homem e cavalo.

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