segunda-feira, 8 de maio de 2017

UM CAVALO ESPECIAL



Para João Gusmão, estimado e inesquecível amigo, português de nascimento, proprietário da Fazenda Itapoam, em Papucaia, Cachoeira de Macacu-RJ, já falecido.

Ainda de madrugada, e quase ao amanhecer de um dia qualquer da semana, Pedro lá estava a colocar na picadeira o capim por ele preparado na véspera. Esta era a primeira rotina de mais um dia na fazenda, que sempre se encerrava com o corte do capim para o seguinte. Depois de picar o alimento do gado e da cavalhada, e de lhes servir com um carinho somente visto naqueles que amam animais, Pedro partia à execução da tarefa que mais lhe aprazia: treinar os garanhões, e, particularmente, tratar do seu próprio cavalo, um animal castanho-escuro com manchas brancas que ele carinhosamente batizara como Valente.
Nada no mundo era mais importante para Pedro que seu cavalo Valente. Ele trocara o animal, ainda potrilho, por um sabiá-laranjeira de canto trinta e oito que caíra de um ninho e ele o criara desde filhote. Na época da troca, que se deu no lugarejo de Papucaia, muitos acharam que Pedro fizera um mau negócio. Não viram que seu olhar antes penetrara os olhos do potrilho e lhe alcançara a alma, enquanto os olhos do cavalinho igualmente espetaram o coração de Pedro, que era considerado um dos melhores cavaleiros da localidade. Foi amor à primeira vista.
Valente cresceu em meio aos cavalos da raça campolina e do gado girolanda da fazenda Itapoan, onde Pedro também era um faz-tudo. Durante o dia, depois de colocar o gado a pastar, Pedro se iniciava no treinamento de andadura dos belos cavalos do patrão, cada qual mais premiado. Pedro adorava aqueles animais de linhagem especial e porte majestoso, além de valiosos. Mas, apesar do valor material daqueles cavalos, Pedro não seria capaz de trocar Valente por nenhum deles. E sem que ninguém o percebesse, Pedro treinava Valente do mesmo modo que fazia com os cavalos de raça pura. E ainda o exercitava em saltos ornamentais, vocação natural do cavalo, que pulava córregos e cercas com impressionante facilidade.
Aos domingos, depois de tratar da cavalhada e da boiada, Pedro se iniciava a cuidar de Valente. Primeiro lhe dava banho e o escovava em capricho. Depois o encilhava com a precisão de profundo conhecedor da profissão. Ao final, valia a pena apreciar aquele garanhão que nada devia aos campeões da fazenda. E lá ia Pedro para o lugarejo participar duma boa cavaqueada e tomar pinga com os amigos.
Pedro era casado com Maria e pai de Gabriel, um garoto de dois anos. A família vivia na Fazenda Itapoam, numa boa casa cedida pelo patrão, João, também padrinho do menino. Pedro tinha no patrão um grande amigo. Ali estava a trabalhar havia muitos anos, na verdade desde que ocupara o lugar do seu pai, já falecido. Ficaram ele e a mãe, mas nada mudara na rotina do trato dos animais, eis que Pedro antes aprendera o ofício com seu velho pai.
João e Pedro vinham de longe numa amizade consolidada ali mesmo naquele pedaço de terra, com ambos desfrutando dos prazeres da infância entre os animais, os pássaros, a floresta, os campos verdejantes e as cachoeiras. E entre eles surgira um profundo sentimento de união que venceria o tempo.
Pedro tinha tudo para ser feliz, e de fato era-o. A vida lhe transcorria às mil maravilhas. Ele externava seu íntimo contentamento na roda de amigos enquanto prosava sobre seu assunto predileto: cavalos. E lá estava Valente, obediente, garboso, à sombra de uma árvore frondosa, enquanto Pedro contava suas vantagens e também ouvia iguais gabolices de seus companheiros.
Todos ali exerciam a mesma tarefa cotidiana, mas, sobretudo, gostavam mesmo era de cavalos. Era-lhes gratificante a responsabilidade de tratar de animais cujos preços nem entendiam direito, eis que os patrões os situavam em dólares. Mas para eles o que valia era o cavalo, e, mais que qualquer dinheiro, valia o amor que nutriam pelos animais.
Havia, sim, é certo que havia muita discussão a respeito de qual cavalo era o melhor. Uns defendiam o pampa e o quarto de milha; outros, o manga-larga marchador, e mais outros, o campolina, e ainda mais outros, o puro-sangue inglês, mas todos amavam indistintamente os cavalos. Pedro, entretanto, não resistia à tentação de enaltecer Valente, que lá estava à vista de todos. E recebia de volta as galhofadas dos amigos, o que o deixava deveras chateado. Então ele bebia mais pinga e a discussão acalorava, até que suas pernas começavam a bambear em anúncio da hora de retornar à fazenda.
Pedro, mesmo tocado pela pinga, não se preocupava com a volta. Valente conhecia o caminho e o levava são e salvo até a fazenda e à porta de sua casa. Era um cavalo amigo, que Pedro não trocava por nada no mundo, nem pelo mais caro cavalo. Valente era filho, e irmão, e pai, e par constante de Pedro, a ponto de a mulher dele às vezes se enciumar. Mas ele a acalmava:
– Maria, eu tenho três amores no mundo: você, Gabriel e Valente – mentia, porque sua verdadeira vontade era a de citar Valente em primeiro lugar.
Maria também fingia aceitar as explicações de Pedro, até porque ele era ótimo marido, exceto aos domingos porque não abdicava de compartilhar com os amigos da pinga e da prosa sobre cavalos.
O tempo passou e alcançou a semana da festa de Papucaia, na Fundação Rural Vale do Macacu. Em meio a diversas modalidades de concursos entre animais estava incluída a prova de hipismo, cujo prêmio ao vencedor era um carro zero-quilômetro. E Pedro, como quem não quer nada, registrou-se como concorrente em nome da Fazenda Itapoam. Na hora de apontar o nome e a raça do cavalo, disse que não poderia fazê-lo, posto haver muitos cavalos na fazenda e somente o patrão poderia escolher o animal. Não houve dificuldade, eis que a tradição da fazenda valia como referencial de credibilidade, além do próprio conceito de Pedro, que todos conheciam de berço, ele sempre montando campeões da fazenda nos torneios de andadura.
O evento tinha de tudo, desde rodeios até apresentação de artistas famosos. Era uma semana inteira de festa, que se repetia todos os anos. Mas naquele ano de 1991 havia algo mais, uma surpresa a acontecer: a prova de hipismo. Para participar vieram cavalos de muitos pontos do país, enchendo um pavilhão de baias que, se somados em dinheiro os cavalos ali acolhidos, representavam muitos milhares, quiçá milhões de dólares.
A prova era no último dia da festa, na parte da tarde, quando após seriam distribuídos os prêmios de todos os concursos da semana. A expectativa era grande. A pista de hipismo estava simplesmente linda à espera dos campeões, até que veio a disputa. E entrou Pedro com Valente, causando estrondoso clamor de protesto a presença daquele cavalo encilhado à moda nordestina, com enfeites incompatíveis com o padrão dos demais cavalos, todos eles paramentados no melhor e mais luxuoso estilo.
Formou-se a primeira confusão, logo seguida de outra, que era a definição da raça de Valente, que para muitos não passava dum pé-duro. Enganaram-se todos, até mesmo Pedro, que se surpreendeu quando o veterinário assegurou que Valente era puro exemplar de cavalo crioulo, originário dos pampas argentinos, animal de trabalho, porém em nada impedido de saltar.
A exigência era a pureza da raça, e, quanto a isso, não haveria de haver mais dúvida, o atestado do veterinário não permitia contestação, para surpresa dos mais afamados cavaleiros e proprietários da região. E os reclamantes, afetados, tiveram de engolir os espalhafatosos paramentos de Valente, pois não havia escritos regulamentares que os proibissem.
Em meio a toda essa confusão, o que mais alegrava Pedro era a reação de João em sua defesa. Não fosse ele a exigir a decisão dum especialista, Valente seria levado ao descarte sem que Pedro o pudesse evitar. Mas seu compadre, patrão e amigo tomou a frente da questão e fez valer o prestígio da Fazenda Itapoam e dele próprio, um campeão de todos os anos com seus cavalos da raça campolina, para alegria do peão que amava cavalos e amava Valente, seu cavalo crioulo e não mais pé-duro.
E veio a prova e a confirmação da qualidade do cavaleiro Pedro e do cavalo Valente. A cada salto as exclamações estouravam entre a imensa torcida, muito mais depois da confusão que atraiu a atenção de todas as gentes. Pois lá estavam os cavaleiros, roceiros e peões torcendo por Pedro e Valente. Também estava Maria, na beira da cerca, com Gabriel ao colo. Pedro não deixava de olhar para ela e de lhe piscar os olhos a cada salto que dava, enquanto preparava o cavalo para o seguinte. Preparava não é bem verdade, porque Valente se lhe antecipava na missão como se raciocinasse. Era, com efeito, um cavalo especial, este, o garanhão crioulo, que levou Pedro à vitória retumbante destronando campeões de todo o Brasil.
Na hora da premiação a alegria contagiava os presentes. Esperavam o principal momento: a entrega do carro a Pedro. Todos vibravam, até que Pedro foi chamado. E lá foi ele, com seu campeão, para receber as honras de uma vitória que não estava na conta de ninguém, exceto na de Pedro e de Valente, que ia em bela andadura ao lado do amigo, com o peito estufado e o pescoço esticado em pose de artista famoso. Cá entre nós, parecia que sorria no canto da boca na hora em que recebeu a coroa de campeão, enquanto Pedro recebia as chaves do carro.
E, como naquele primeiro dia em que o peão e o potrilho se cruzaram, Pedro olhou dentro dos olhos de Valente, e este espetou seus olhos nos de Pedro, penetrando ambos, e simultaneamente, as almas de um e do outro, fundindo-se ambas numa só: homem e cavalo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...