sábado, 29 de abril de 2017

AVENTURAS DO DETETIVE PELEJÃO I - TRAIÇÃO À BAIANA





Vou contar a história de Raimundo Nonato Pelejão, cearense, 41 anos de idade, solteiro sem ser adamado, baixinho sem ser anão, forte sem ser atleta, branco, de olhos castanhos, sem ser bonito, e de sotaque carregado por ser nordestino. Porém, começo avançado no tempo e narrando sobre sua nova atividade de investigador por conta própria. Policial civil aposentado por ato de serviço em virtude dum tiro de pistola 45 mm que levou de um companheiro seu, no morro do Palácio, no bairro do Ingá, em Niterói, quando realizava uma blitz contra traficantes, passou então a se dedicar à atividade de detetive particular. No início as coisas não lhe foram fáceis, mas ele trazia como trunfo sua boa fama: algumas vezes, em passado recente, seu nome fora até badalado nos jornais como excelente tira.

Pelejão destacara-se como policial honesto; ele cria na investigação como a melhor arma contra o crime; mas vivia sendo alvo de remoques por parte dos colegas, e até de hostilidade por alguns que, na profissão, costumavam descambar para ações pouco recomendáveis. Inclusive o tiro de que fora alvo nunca lhe parecera acidente... Foi assim: ele subiu o morro do Palácio com dois colegas a tentar prender um traficante. Era noite. Havia informação segura sobre o paradeiro do bandido... Não tão segura assim, nada nem ninguém eles encontraram. Pelejão não entendeu; desceu então o morro com um dos policiais, enquanto o outro permanecia no alto a pretexto de bolinar uma assanhada periguete que casualmente passava.

Pelejão, apesar de não aprovar o comportamento do colega, não interferiu. Ficou no pé do morro, ele e o colega, esperando que o libidinoso, ainda às voltas com a periguete, descesse também. Foi aí que lhe veio a desagradável surpresa: no escuro, o retardatário veio atirando em sua direção como se o estivesse confundindo com algum marginal. Um tiro atingiu-lhe o ombro direito e o arremessou a dois metros de distância. Além do assombro, veio-lhe a dor, e ele gritou para o agressor se identificando. Teve chance, isso ele até teve, de revidar. Se o fizesse decerto atingiria aquele que momentaneamente o confundira. Será mesmo que o confundira?...

Eis a grande dúvida que ficou cabriolando na mente atônita de Pelejão, enquanto ele era levado na viatura policial para o hospital, porém desconfiado dos colegas, posto que lhes ia sugerindo adentrar o nosocômio como “vítima de tiroteio com bandidos”. Na realidade, ele estava com medo de ser assassinado de caminho pelos dois miseráveis que estavam mais preocupados em não assumir o ônus do erro do que socorrer o colega. Pelejão se sentiu literalmente acompanhado por bandidos. Viu-se como “bola da vez” a ser chutada para o escanteio do além.

O tempo passou e o tiro, que imobilizara definitivamente a articulação do braço direito de Pelejão, acabou afastando-o do serviço ativo. Mas antes disso, – e usando de muita perspicácia, – ele foi reunindo provas de que seus colegas não passavam de facínoras disfarçados de policiais. Certo dia, Pelejão deu-lhes o troco: um flagrante de extorsão em ambos quando tentavam tomar dinheiro de um casal de turistas. Dali em diante foi como se alguém estivesse puxando um fio da meada, pois era crime atrás de crime, com diversas vítimas denunciando um carrossel de extorsões e outros delitos atribuídos à dupla. Pelejão foi à aposentadoria, sim; em compensação, seus agressores foram dar com os costados no xilindró e perderam a carteira de polícia. Ambos demitidos!

Eis como começou a bem-sucedida carreira de detetive particular de Pelejão, sua verdadeira realização profissional, porque na polícia, onde supostamente deveria investigar, ele só participava de blitze de colete enfeitado e policiava de viatura pintada em preto e branco. Enfim, não se dedicava à investigação criminal, geralmente reduzida a imperfeitas inferências de depoimentos acostados a inquéritos policiais excessivamente burocratizados, do que ele próprio reclamava.

Na atividade particular, porém, Pelejão pôde exercitar sua habilidade de investigador primoroso. Dependia, é verdade que dependia de clientela, o que restringia o seu labor aos assuntos que lhe surgissem à frente. A publicidade nos classificados dos jornais era o meio pelo qual Pelejão arrebanhava clientes. Mas, com o tempo, o nosso herói começou a angariar fama de bom investigador, e verdadeiramente era-o, eis que se mantinha atualizado e dispunha de avançada tecnologia, investimento que lhe dava considerável retorno financeiro, dinheiro, porém, que logo lhe saía das algibeiras para a aquisição de novas parafernálias.

Foram muitos os pequenos furtos deslindados por meio da simples coleta de impressões digitais dos suspeitos. Com efeito, Pelejão fizera curso de perito criminal, no qual aprendera outras técnicas de investigação, tais como: fotografias especiais e revelação de filmes e fotos, noções de balística, de medicina legal etc. Enfim, sabia tudo que fosse útil a um bom investigador e possuía apetrechos tecnológicos de toda ordem. O faro policial, porém, vinha-lhe da vocação, esta que diferencia o verdadeiro tira da pessoa comum ou do policial enganador. Por aí há muitos...

Pelejão domava facilmente a rebelde informática e suas inúmeras surpresas desagradáveis, como a de a maquininha fazer sumir, em passe de mágica, um texto nascido de hercúleo esforço. Foi o que aconteceu com esta história aqui reeditada em involuntário teste de memória... Mas a informática era um poderoso instrumento por ele largamente utilizado. Em resumo, Pelejão era o que se poderia designar como referência de excelência em sua nova profissão.

Além de todas essas qualidades mascaradas por admirável simpleza, Pelejão vendia audácia, resolução, obstinação e perseverança; enfim, era teimoso feito mula, apesar de aparentemente dócil, sereno e até carinhoso. Tinha coragem, sim, muita coragem, e sabia se defender muito bem. Somente no caso da defesa pessoal é que ficara limitado em razão do tiro na omoplata. De resto, ele era um exemplo de detetive particular.

Certo dia estava ele em seu escritório quando recebeu a visita dum cidadão francês, de seus setenta anos no mais ou no menos, porém gozando de privilegiada saúde. Não era à toa que o francês esbanjava disposição física: marinheiro, já rodara o mundo velejando sob os auspícios de uma empresa canadense especializada em velas para barcos, saveiros e assemelhados. Chamava-se, como todo bom francês, Jean-Jacques Garnier.

O francês viajava testando novos modelos de velas e mandando relatórios periódicos para a empresa. Sem dúvida, um emprego que lhe permitia infinita liberdade. Liberdade, diga-se de passagem, em todos os sentidos, até confundindo-a com libertinagem, posto que em muitos lugares o danado trepava e fazia filhos. Com a primeira mulher, francesa, que ficara para trás em sua aventuresca vida de marujo de luxo, tivera quatro: três homens e uma mulher, todos adultos e espalhados mundo afora: um vivendo no Chile e gerenciando grande empresa multinacional; outro ganhando a vida como professor, em Boston; mais outro, renomado pintor, em Londres, especializado em retratar pessoas famosas e ricas; e, por fim, uma filha médica, nascida em Paris, de onde nunca saíra.

O francês mantinha contato com os filhos e a filha via internet e telefone. O veleiro era a sua casa, mas seu ganho lhe permitia desfrutar de conforto também em terra firme. Na verdade, conforto acrescido de mulheres diferentes e de problemas, eis que ele se casava com cada uma que conhecia, amava e enxertava. Exatamente assim o garanhão alienígena fez com uma linda negra da Costa do Marfim que falava francês e um dialeto que só ela entendia.

Enquanto o francês ia contando sua história, Pelejão buscava entender a razão da inusitada presença, no seu escritório, dum estrangeiro arrastando um português de difícil discernimento. Sim, Pelejão esforçava-se para compreender cada palavra ou frase do provável cliente, este que lhe custava a esclarecer o que realmente pretendia... Passou bom tempo, até que, a pouco e pouco, – e juntando os fragmentos daquela truncada comunicação, – o detetive finalmente alcançou o interesse do francês: uma investigação de adultério na Bahia. E assim ele ficou sabendo que sua boa fama de investigador vencera as fronteiras do Rio de Janeiro.

O fato a ser investigado parecia-lhe simples: a mulher, africana, esposa do francês, que com ele viera residir em Salvador numa bela casa, o estava traindo, e ele, o francês, não sabia com que amante. Mas tudo começara depois que ela própria, a africana, descobrira também estar sendo traída pelo francês. Tivesse ela barba, o mais apropriado seria afirmar que o francês a estava traindo “na sua barba”, eis que ele arranjara sem cuidados uma namorada baiana: negra, linda e jovem, chamada Betânia.

O francês era levado da breca e a idade não lhe parecia pesar nadinha. Aparentava ser bem mais novo, tendo a pele ociosamente bronzeada e os cabelos pintados em acaju, mas de tal modo que não fora possível ao detetive saber, de imediato, se a cor era ou não artificial. Pelejão ia cada vez mais enfiando seu curioso nariz na história, na medida em que o animado francês lhe narrava a tal traição que queria confirmar e documentar para fins judiciais de guarda de mais quatro filhos já providenciados em coito com a bela e tempestuosa africana.

Sim, sim, o francês nutria pela africana um amor à sua dele moda; porém dela, da africana, morria de medo. E ela, enraivecida, o estava traindo por puro ciúme, assim ele queria crer... Cabia a Pelejão desvendar tudo isso, mas lá na Bahia, lugar distante no qual ele nunca pisara, enfim um desafio ao tirocínio e ao espírito aventureiro do detetive, que logo o aceitou, resoluto, principalmente quando percebeu que não havia limite de gastos.

Pelejão, bom se diga por amor à verdade, era um mestre em disfarces, capaz de estar na areia da praia vendendo coco e depois trabalhando de garçom num restaurante de luxo. Era eclético a ponto de se disfarçar como velhote de manhã e ser um jovem transviado à tarde. Sabia ser mendigo e milionário, feio e bonito, gordo e magro, mais alto, menos alto, porém sempre perfeito. Tudo aprendera com transformistas que procurara e contratara para lhe ensinar truques de mudança de imagem. O resto era talento dele mesmo, o que lhe fora deveras útil em Salvador e no tumultuado desenrolar da inusitada investigação de adultério que teve de tudo, como vocês saberão...





O francês estava temporariamente residindo no veleiro. Não mais se arriscava a dormir com a endiabrada africana. Isto facilitava seus encontros amorosos com Betânia, mas, em compensação, não lhe permitia monitorar a esposa adulterina, que nos bons tempos ele carinhosamente chamava de Guga, e continuava a ela assim se referir, apesar da raiva e do ciúme doentio que o consumiam.

Tudo era novidade para Pelejão, tudo mesmo, inclusive viajar pela primeira vez de avião. Mas lá foi ele travando o medo enorme que guardava dentro de si, com a dignidade e a valentia que devem caracterizar um bom detetive particular. Dissimular que se tratava de marinheiro de primeira viagem não lhe foi difícil, porque detetive que se preza deve ser caradura. E ele era-o com sobras de talento.

A chegada de Pelejão ao Aeroporto Luiz Eduardo Magalhães deu-se sem transtornos, às sete e meia da noite. E já o esperava o francês, sempre agitado e alegre, apesar vivenciar o problema pessoal dos chifres plantados em sua cabeça. Mas não aparentava qualquer preocupação em ser corno. Como já dito, sua necessidade era restrita ao fato de ele pretender garantir na justiça a guarda dos filhos. Por isso buscava provar a infidelidade da esposa, que era, em resumo, a missão de Pelejão, este que chegou reclamando de enjoo e correu direto ao banheiro do aeroporto. Não dava mais para encenar disposição naquele momento em que seu organismo capitulava mercê da estupenda ânsia de vômito que ele vinha adiando no interior da aeronave. Era, sim, um marinheiro de primeira viagem...

Do aeroporto, Pelejão se dirigiu a um hotel no Farol da Barra, em frente do mar, de quatro estrelas. Chegou carregando um aparato de assustar: a pequena mala com mudas de roupa e outras duas, enormes, contendo a parafernália eletrônica que pretendia colocar em uso no decorrer das investigações. Estava preparado para cumprir qualquer tarefa, inclusive de espionagem, algo que fazia com maestria, como se fosse agente de inteligência de altíssimo nível. Ele não comentava, porém jamais deixara de ler as histórias de Brigite Monfort, a mais famosa espiã da CIA que deslumbrara o mundo com sua beleza e eficiência em vencer espiões inimigos.

Pelejão acreditava que a imaginação precisava ser aguçada de todas as formas. Por isso se dedicava à leitura de aventuras de investigação e espionagem, tendo Agatha Christie como musa inspiradora e Sherlock Homes como ídolo. Estava no sangue sua vocação para investigar. Nada ele olhava como pessoa comum. Sempre via no fato algo mais, estranho, ou suspeito, a merecer atenção especial, algo que dependia de ser farejado com a malícia de um policial. Era como se fosse um médico que olha seu semelhante e vê somente doenças. Em suma, um sério candidato à loucura...

A noite da chegada foi de arrumação e descanso. Para o dia seguinte ele já traçara o seu roteiro. Primeiro conheceria os lugares de residência do francês, da africana Guga e de Betânia. Depois iria à cidade, especialmente aos locais de interesse da investigação. Em vez de pontos turísticos, visitaria delegacias policiais, pontos de táxi, ruas e bairros, hospitais, hotéis, motéis etc. Sentiu também vontade de saber por onde andava João Ubaldo, isto ele sentiu, porém travou seu ímpeto de fã incondicional do escritor e se voltou ao único objetivo: o cliente francês e seus chifrudos problemas. No fim de contas, o escritor ficava mesmo é de papo pro ar em Itaparica ou poderia estar no Leblon, no Bar Bracarense, bebericando com amigos.

Pelejão sabia que precisaria seguir a africana, de modo que planejou alugar um táxi com motorista fixo, de preferência alguém que soubesse circular com desenvoltura na cidade, que conhecesse pessoas e bem dominasse os itinerários da investigação que faria. O próprio motorista serviria de informante e, quem sabe, até de auxiliar? Seria, é claro, bem remunerado. Pensou em tudo e dormiu... Acordou, tomou banho, fez a higiene; desceu, tomou café e ficou aguardando o francês, que lhe mostraria a cidade. Pediu ao anfitrião que requisitasse um táxi, em vez de saírem em carro particular. Assim o fizeram e, de caminho, foram conversando, logo descambando o assunto para o misticismo baiano.

Confessou o francês que já apelara para consultas espirituais várias, mas não lograra sucesso. Entretanto, gastara bom dinheiro. Pelejão achou graça e se lembrou de alguns policiais do Rio de Janeiro que também gostavam de investigar apelando às entidades espíritas. Alguns chegavam a utilizar copos d’água para, através deles, concluírem que tal ou qual pessoa cometera algum crime. Mas, ao mesmo tempo, ficou sério quando lembrou alguns casos, “espiritualmente investigados”, que geraram denúncia e processo como se os réus estivessem respondendo ao “juízo final” em vez da justiça terrena, tudo porque os tais policiais ligados ao além eram apaniguados de altas autoridades do ramo jurídico e político. “Será que aqui na Bahia policiais também utilizam a investigação espírita para chegar a fatos concretos?”, indagava de si para si Pelejão, até achando que, se tal prática funcionasse, não haveria crime misterioso e sem autoria naquela exótica cidade brasileira afeita às umbandas, quimbandas e candomblés...

Pelejão foi trazido de volta à realidade pelo francês, absorto que estava em suas alienações, como se tivesse “pegado um espírito”... Mas logo se refez e tornou à vida real ao chegar na praia da ***, defronte da casa em que morava a africana Guga com os quatro filhos do casal, todos do sexo masculino. Naquele horário, o francês sabia que ela não estaria em casa, era tempo de levar as crianças ao colégio. E nem sempre retornava. Ficava com o amante em algum lugar até a saída das crianças. Desta maneira, Pelejão pôde observar detalhadamente o lugar e a casa, até que indagou do francês:

– É possível a gente entrar?

– Claro! Tenho as chaves, bolas! Venho aqui constantemente, mas com a Guga ausente. Não me arrisco ficar na presença dela. Está uma fera. Sente-se diminuída como mulher... Mas está me traindo também... Dá pra entender uma coisa dessas? – lamentou-se Jean.

– É lógico que sim, Jean! – devolveu Pelejão. – Você sabe que já peguei muitos casos de adultério em que ambos traíam e tinham ciúme doentio um do outro. Coisas de doido, mesmo. Por isso eu entendo... Aliás, não entendo nem pretendo entender coisas do coração, pois nelas não há lógica – completou o detetive.

Pelejão entrou na casa e foi direto observar como poderia grampear o telefone, seu primeiro passo para deslindar quem era o tal amante da africana, além de naturalmente gravar-lhes as conversas. E viu na garagem, por onde entrava o fio, o lugar ideal para montar um grampo, de modo que ele se pudesse colocar postado do lado de fora, escondido no mato, ouvindo e gravando as conversações. Depois indagou do francês se conhecia alguém da casa vizinha, e ele disse que não. Sobrou então ao detetive apenas o terreno baldio que, por sorte, havia ao lado da casa. Ainda bem que estava coberto de mato espesso, o que permitiu a Pelejão camuflar e proteger a parafernália que ali ficaria gravando as ligações da africana para o amante, e vice-versa, mas com ele de prontidão trocando as fitas. Havia, porém, um problema: e se Guga falasse em dialeto?...

– Jean, como você faz pra entender a fala de Guga? – indagou Pelejão.

– Muito simples, ela fala francês; a terra dela já foi colônia de França – disse Jean.

E diria Sherlock Homes: “Elementar, meu caro Watson...” Mas continuava o atento detetive em necessidade de traduzir as fitas que porventura contivessem algum dialeto africano utilizado por Guga, e sem depender do francês, uma questão de honra profissional. No fim de contas, ele era a solução, e o francês, o problema, e não o contrário. Foi quando lhe veio a ideia de ir ao Mercado Modelo com o fim de pesquisar sobre um possível intérprete. De mão em mão, ou melhor, de conversa em conversa, ou, melhor ainda, de trocado em trocado que teve de desembolsar de caminho, Pelejão finalmente localizou um africano da Costa do Marfim há muito tempo radicado em Salvador. Acertou com ele os detalhes de pagamento por fita traduzida. Restava-lhe, agora, esperar as fitas rodarem gravando os telefonemas de Guga para quem quer que fosse. E se ela se comunicasse em francês, ora o corno traduziria direto!...

Escondido no mato, e dali não arredando pé nem mesmo para suprir suas necessidades fisiológicas, que eram feitas num buraco que ele ia cobrindo de terra na medida em que o utilizava, Pelejão ficou escutando telefonemas e trocando as fitas que se completavam. Comida, só sanduíche; bebida, só a água que levara em cantil. Era impressionante o senso profissional de Pelejão, acrescido de admirável resistência às intempéries, útil consequência do árduo treinamento militar a que se submetera na Escola de Paraquedismo do Exército.

Ao final do terceiro dia de escuta e troca de fitas, – que, enquanto isso, eram traduzidas pelo africano contratado quando Guga falava em dialeto, – todos os indícios se foram acumulando e apontando detalhes da infidelidade da africana em meio a uma falação sem sentido, coisas típicas de mulheres às quais sobra tempo para conversar e circular com amantes enquanto os maridos trabalham ou também as traem. Contudo, lá estava devidamente identificado o tão procurado amante. Era outro francês, chefe de cozinha de um famoso hotel da cidade. Como diria o velho ditado popular seguido à risca pela fogosa e bela africana: “Como é bom o meu francês!”

Com efeito, era um patrício de Jean, de nome também Jean (Jean-Paul Contreau), que na Bahia estava há anos radicado. E valia a pena ouvir as conversas dos amantes nas fitas gravadas, com aqueles suspiros e ais que remexiam com a vida entre as pernas. Nem mesmo Jean-Jacques, o corno, travou a excitação ao ouvir sua mulher gemer ao telefone sonorizado como um autêntico sexofone (não confundam com saxofone, o instrumento!). Mas tudo lembra boca...

Estava comprovada a traição, porém pouco como prova. Daí é que, já sabendo em que circunstâncias o casal adúltero se encontrava, Pelejão partiu para a segunda fase do seu plano, enquanto o francês ia até Campinas, à UNICAMP, para contratar os serviços de degravação daquela universidade cujo conceito de excelência percorria o mundo e qualquer laudo ali produzido era aceito como prova em qualquer país. Mas faltava muito a ser feito, como já dissemos, o que não desanimou o persistente detetive particular. Demais, agora ele conhecia em detalhes como e onde o casal se encontrava. Assim, meteu mãos à obra: disfarçou-se de carregador de malas e penetrou como discretíssimo agente de espionagem no Hotel***. O hotel era de cinco estrelas; portanto, não confundam as estrelas do hotel com estes três asteriscos, que visam apenas a proteger-lhe o nome e evitar algum processo de danos morais e materiais por denunciá-lo aqui como local de encontros amorosos.

Ora bem, Pelejão sabia qual era a suíte predileta dos amantes, eis que subornara a recepcionista, esta que também lhe arranjara o uniforme. Na suíte, então, ele montou seu aparato de gravação de som e imagem através de microscópicas câmeras e minúsculos microfones que transmitiam os dados captados para outro aparato instalado no interior de um carro estacionado em frente do hotel.

Nem se há de descrever as cenas concentradas nas fitas de vídeo e os ais e ais daquele fogoso casal de estrangeiros. Agora, sim, Pelejão conseguira a prova cabal do adultério, até dando por encerrado o seu trabalho. Mas o corno parecia que queria montar uma loja pornô, eis que pediu a Pelejão que se mantivesse gravando mais fitas, enquanto ele as acumulava, e via-as, e revia-as, e ouvia-as como se estivesse gostando muito de observar Guga gemendo debaixo do outro. Ele chegou até mesmo a confessar que assistia a tudo junto de Betânia, com ambos atingindo orgasmos sensacionais. Mas Pelejão não estava gostando muito daquela perversão, que, para ele, mais parecia comportamento típico de francês depravado. Entretanto, o dinheiro que estava ganhando por dia, além de todas as despesas pagas, valia qualquer sacrifício e servia para facilmente convencê-lo a continuar investigando, agora buscando fotos externas dos amantes.

Já se sabia que o casal somente se encontrava às quartas-feiras, dias da semana em que o cozinheiro francês tinha folga no Hotel***. Isto facilitou a Pelejão o acompanhamento dos encontros, geralmente a partir da chegada dela ao hotel. Pelejão tinha certeza de que o francês só levava a africana àquele endereço e à mesma suíte: é que o chef recebia expressivo desconto, dado pelo proprietário, que acalentava a esperança de que um dia o conceituado chefe de cozinha ali trabalhasse.

Quem passava todas essas informações a Pelejão era a recepcionista, de nome Clarimunda, bela mulher que surge nesta história por seus méritos e por receber boa grana para auxiliar o detetive em sua tarefa de espionagem. Acabou nos braços de Pelejão, que, no fim de contas, também não era de ferro... Sim, com tanta sacanagem a ver e a ouvir, Pelejão acabou por sugerir a Clarimunda um pagamento extra para ela ajudá-lo a decifrar e catalogar todo o material probatório do adultério. Daí pra cama foi um pulo.

A par das inúmeras transas do francês com Betânia, e de Pelejão com Clarimunda, todas consequentes da motivação em assistir às não menos fogosas trepadas entre Jean-Paul, o cozinheiro, e Guga, a africana, as investigações continuaram, com Pelejão no seu táxi seguindo o carro do casal; ou então oculto entre as folhagens do Hotel*** para fotografar o casal descendo do carro e adentrando o ninho de amor proibido... Até que houve o contratempo: um dia, ao desembarcar, Guga viu Pelejão a fotografá-la. Partiu em sua direção, não como mulher comum, desesperada, mas verdadeira bugra: bufava e espumava como touro bravio, olhos avermelhados e veias intumescidas à explosão. Era animal, não era humana, a nativa que despia o seu lado civilizado e voltava às remotas origens...

Nunca Pelejão correra com tanto ardor. Sentiu mais medo do que quando recebera aquele tiro e fora conduzido ao hospital como provável “bola da vez” de seus próprios colegas. Agora se achava em perigo maior: se a africana o pegasse, certamente arrancaria bom pedaço do seu pescoço a dentadas e o engoliria como se fosse manjar...

Pelejão, aflito, batia os pés na bunda rua abaixo e acima, buscando desesperadamente chegar à delegacia policial. E nervosamente pensava enquanto se improvisava como velocista olímpico, a africana cosida ferozmente em seus calcanhares: “Ainda bem que pesquisei antes os locais, ai meu Deus, ajude-me!...”

No horizonte, como que atendendo às súplicas de Pelejão ao Todo-Poderoso, surgiu-lhe a dependência policial, na qual ele se enfiou como um tufão, quase que levando uma saraivada de balas dos espantados policiais que lá estavam. Mas, por sorte, ele foi reconhecido em razão do anterior contato que fizera e de sua identificação para algum pedido de auxílio. E ali estava ele, espavorido, enquanto a africana era travada na porta por quatro musculosos policiais, que, mesmo assim, tiveram grande dificuldade em contê-la.

Superado o susto, Pelejão e mais dois policiais partiram ao hotel e detiveram Jean-Paul, o cozinheiro, ainda na porta aguardando o desfecho da louca corrida de Guga atrás do detetive improvisado em fotógrafo. O francês, atônito, não opôs resistência. Na delegacia, confirmou ser realmente amante de Guga... Estava provado o adultério, agora não faltava mais nada a não ser registrar em cartório toda a papelada e demais materiais probatórios, para depois levá-los à Costa do Marfim e anular o conúbio do francês (do corno, para não confundi-lo com o cozinheiro) com a africana. Mas o desfecho da história foi outro, e insolitamente feliz...

A bem da verdade, tendo alcançado seu objetivo de provar a infidelidade da esposa, Jean-Jacques Garnier concluiu com ela que ambos cometeram a mesma falta. Em vista disso, decidiram que dali por diante poderiam encontrar um modo pacífico de convivência, ela transando com o chef, amante dela, e ele se deliciando da baiana, amante dele, porém ambos retomando normalmente a vida conjugal com o fim de garantir a boa criação dos filhos. E formalizaram um pacto: todas as transas com seus amantes seriam filmadas, e as fitas entre eles trocadas, para que ficassem assistindo suas próprias e infiéis libidinagens, delas tirando proveito e lhes redobrando a motivação sexual. Deu tudo em nada ao final, o que para o renomeado detetive pouco importava. Afinal, fora vultoso o pagamento que recebera...

Assim Pelejão encerrou mais um excelente trabalho de investigação que lhe rendeu bela recompensa. Também lhe sobrou a eficiente Clarimunda, que aceitou ser sua parceira e esposa, vindo com ele para o Rio de Janeiro. Ao corno francês, na realidade, só interessava manter o casamento adulterino e a guarda dos filhos, para depois, no futuro, espalhá-los pelo mundo, como já o fizera com os do seu primeiro casamento. E Pelejão teve a cautela de não deixar o francês aproximar-se de Clarimunda. “Seguro morreu de velho”, pensava, sentado ao lado dela, no avião, com destino à Cidade Maravilhosa. E, para não perder o hábito, ao aterrar no Aeroporto do Galeão o destemido detetive desceu e correu direto ao banheiro...

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