Vou
contar a história de Raimundo Nonato Pelejão, cearense, 41 anos de idade,
solteiro sem ser adamado, baixinho sem ser anão, forte sem ser atleta, branco, de
olhos castanhos, sem ser bonito, e de sotaque carregado por ser nordestino.
Porém, começo avançado no tempo e narrando sobre sua nova atividade de
investigador por conta própria. Policial civil aposentado por ato de serviço em
virtude dum tiro de pistola 45
mm que levou de um companheiro seu, no morro do Palácio,
no bairro do Ingá, em Niterói, quando realizava uma blitz contra traficantes,
passou então a se dedicar à atividade de detetive particular. No início as
coisas não lhe foram fáceis, mas ele trazia como trunfo sua boa fama: algumas
vezes, em passado recente, seu nome fora até badalado nos jornais como
excelente tira.
Pelejão
destacara-se como policial honesto; ele cria na investigação como a melhor arma
contra o crime; mas vivia sendo alvo de remoques por parte dos colegas, e até
de hostilidade por alguns que, na profissão, costumavam descambar para ações
pouco recomendáveis. Inclusive o tiro de que fora alvo nunca lhe parecera
acidente... Foi assim: ele subiu o morro do Palácio com dois colegas a tentar
prender um traficante. Era noite. Havia informação segura sobre o paradeiro do
bandido... Não tão segura assim, nada nem ninguém eles encontraram. Pelejão não
entendeu; desceu então o morro com um dos policiais, enquanto o outro
permanecia no alto a pretexto de bolinar uma assanhada periguete que casualmente
passava.
Pelejão,
apesar de não aprovar o comportamento do colega, não interferiu. Ficou no pé do
morro, ele e o colega, esperando que o libidinoso, ainda às voltas com a
periguete, descesse também. Foi aí que lhe veio a desagradável surpresa: no
escuro, o retardatário veio atirando em sua direção como se o estivesse
confundindo com algum marginal. Um tiro atingiu-lhe o ombro direito e o
arremessou a dois metros de distância. Além do assombro, veio-lhe a dor, e ele
gritou para o agressor se identificando. Teve chance, isso ele até teve, de
revidar. Se o fizesse decerto atingiria aquele que momentaneamente o
confundira. Será mesmo que o confundira?...
Eis
a grande dúvida que ficou cabriolando na mente atônita de Pelejão, enquanto ele
era levado na viatura policial para o hospital, porém desconfiado dos colegas,
posto que lhes ia sugerindo adentrar o nosocômio como “vítima de tiroteio com
bandidos”. Na realidade, ele estava com medo de ser assassinado de caminho
pelos dois miseráveis que estavam mais preocupados em não assumir o ônus do
erro do que socorrer o colega. Pelejão se sentiu literalmente acompanhado por
bandidos. Viu-se como “bola da vez” a ser chutada para o escanteio do além.
O
tempo passou e o tiro, que imobilizara definitivamente a articulação do braço
direito de Pelejão, acabou afastando-o do serviço ativo. Mas antes disso, – e
usando de muita perspicácia, – ele foi reunindo provas de que seus colegas não
passavam de facínoras disfarçados de policiais. Certo dia, Pelejão deu-lhes o
troco: um flagrante de extorsão em ambos quando tentavam tomar dinheiro de um
casal de turistas. Dali em diante foi como se alguém estivesse puxando um fio
da meada, pois era crime atrás de crime, com diversas vítimas denunciando um
carrossel de extorsões e outros delitos atribuídos à dupla. Pelejão foi à
aposentadoria, sim; em compensação, seus agressores foram dar com os costados
no xilindró e perderam a carteira de polícia. Ambos demitidos!
Eis
como começou a bem-sucedida carreira de detetive particular de Pelejão, sua
verdadeira realização profissional, porque na polícia, onde supostamente
deveria investigar, ele só participava de blitze de colete enfeitado e
policiava de viatura pintada em preto e branco. Enfim, não se dedicava à
investigação criminal, geralmente reduzida a imperfeitas inferências de
depoimentos acostados a inquéritos policiais excessivamente burocratizados, do
que ele próprio reclamava.
Na
atividade particular, porém, Pelejão pôde exercitar sua habilidade de
investigador primoroso. Dependia, é verdade que dependia de clientela, o que
restringia o seu labor aos assuntos que lhe surgissem à frente. A publicidade
nos classificados dos jornais era o meio pelo qual Pelejão arrebanhava
clientes. Mas, com o tempo, o nosso herói começou a angariar fama de bom
investigador, e verdadeiramente era-o, eis que se mantinha atualizado e
dispunha de avançada tecnologia, investimento que lhe dava considerável retorno
financeiro, dinheiro, porém, que logo lhe saía das algibeiras para a aquisição
de novas parafernálias.
Foram
muitos os pequenos furtos deslindados por meio da simples coleta de impressões
digitais dos suspeitos. Com efeito, Pelejão fizera curso de perito criminal, no
qual aprendera outras técnicas de investigação, tais como: fotografias
especiais e revelação de filmes e fotos, noções de balística, de medicina legal
etc. Enfim, sabia tudo que fosse útil a um bom investigador e possuía
apetrechos tecnológicos de toda ordem. O faro policial, porém, vinha-lhe da
vocação, esta que diferencia o verdadeiro tira da pessoa comum ou do policial
enganador. Por aí há muitos...
Pelejão
domava facilmente a rebelde informática e suas inúmeras surpresas
desagradáveis, como a de a maquininha fazer sumir, em passe de mágica, um texto
nascido de hercúleo esforço. Foi o que aconteceu com esta história aqui
reeditada em involuntário teste de memória... Mas a informática era um poderoso
instrumento por ele largamente utilizado. Em resumo, Pelejão era o que se
poderia designar como referência de excelência em sua nova profissão.
Além
de todas essas qualidades mascaradas por admirável simpleza, Pelejão vendia
audácia, resolução, obstinação e perseverança; enfim, era teimoso feito mula,
apesar de aparentemente dócil, sereno e até carinhoso. Tinha coragem, sim,
muita coragem, e sabia se defender muito bem. Somente no caso da defesa pessoal
é que ficara limitado em razão do tiro na omoplata. De resto, ele era um
exemplo de detetive particular.
Certo
dia estava ele em seu escritório quando recebeu a visita dum cidadão francês,
de seus setenta anos no mais ou no menos, porém gozando de privilegiada saúde.
Não era à toa que o francês esbanjava disposição física: marinheiro, já rodara
o mundo velejando sob os auspícios de uma empresa canadense especializada em
velas para barcos, saveiros e assemelhados. Chamava-se, como todo bom francês,
Jean-Jacques Garnier.
O
francês viajava testando novos modelos de velas e mandando relatórios
periódicos para a empresa. Sem dúvida, um emprego que lhe permitia infinita
liberdade. Liberdade, diga-se de passagem, em todos os sentidos, até
confundindo-a com libertinagem, posto que em muitos lugares o danado trepava e
fazia filhos. Com a primeira mulher, francesa, que ficara para trás em sua
aventuresca vida de marujo de luxo, tivera quatro: três homens e uma mulher,
todos adultos e espalhados mundo afora: um vivendo no Chile e gerenciando
grande empresa multinacional; outro ganhando a vida como professor, em Boston;
mais outro, renomado pintor, em Londres, especializado em retratar pessoas
famosas e ricas; e, por fim, uma filha médica, nascida em Paris, de onde nunca
saíra.
O
francês mantinha contato com os filhos e a filha via internet e telefone. O
veleiro era a sua casa, mas seu ganho lhe permitia desfrutar de conforto também
em terra firme. Na verdade, conforto acrescido de mulheres diferentes e de
problemas, eis que ele se casava com cada uma que conhecia, amava e enxertava.
Exatamente assim o garanhão alienígena fez com uma linda negra da Costa do
Marfim que falava francês e um dialeto que só ela entendia.
Enquanto o francês ia contando sua história,
Pelejão buscava entender a razão da inusitada presença, no seu escritório, dum
estrangeiro arrastando um português de difícil discernimento. Sim, Pelejão
esforçava-se para compreender cada palavra ou frase do provável cliente, este
que lhe custava a esclarecer o que realmente pretendia... Passou bom tempo, até
que, a pouco e pouco, – e juntando os fragmentos daquela truncada comunicação,
– o detetive finalmente alcançou o interesse do francês: uma investigação de
adultério na Bahia. E assim ele ficou sabendo que sua boa fama de investigador
vencera as fronteiras do Rio de Janeiro.
O
fato a ser investigado parecia-lhe simples: a mulher, africana, esposa do
francês, que com ele viera residir em Salvador numa bela casa, o estava
traindo, e ele, o francês, não sabia com que amante. Mas tudo começara depois
que ela própria, a africana, descobrira também estar sendo traída pelo francês.
Tivesse ela barba, o mais apropriado seria afirmar que o francês a estava
traindo “na sua barba”, eis que ele arranjara sem cuidados uma namorada baiana:
negra, linda e jovem, chamada Betânia.
O
francês era levado da breca e a idade não lhe parecia pesar nadinha. Aparentava
ser bem mais novo, tendo a pele ociosamente bronzeada e os cabelos pintados em
acaju, mas de tal modo que não fora possível ao detetive saber, de imediato, se
a cor era ou não artificial. Pelejão ia cada vez mais enfiando seu curioso
nariz na história, na medida em que o animado francês lhe narrava a tal traição
que queria confirmar e documentar para fins judiciais de guarda de mais quatro
filhos já providenciados em coito com a bela e tempestuosa africana.
Sim,
sim, o francês nutria pela africana um amor à sua dele moda; porém dela, da
africana, morria de medo. E ela, enraivecida, o estava traindo por puro ciúme,
assim ele queria crer... Cabia a Pelejão desvendar tudo isso, mas lá na Bahia,
lugar distante no qual ele nunca pisara, enfim um desafio ao tirocínio e ao
espírito aventureiro do detetive, que logo o aceitou, resoluto, principalmente
quando percebeu que não havia limite de gastos.
Pelejão,
bom se diga por amor à verdade, era um mestre em disfarces, capaz de estar na
areia da praia vendendo coco e depois trabalhando de garçom num restaurante de
luxo. Era eclético a ponto de se disfarçar como velhote de manhã e ser um jovem
transviado à tarde. Sabia ser mendigo e milionário, feio e bonito, gordo e
magro, mais alto, menos alto, porém sempre perfeito. Tudo aprendera com
transformistas que procurara e contratara para lhe ensinar truques de mudança
de imagem. O resto era talento dele mesmo, o que lhe fora deveras útil em
Salvador e no tumultuado desenrolar da inusitada investigação de adultério que
teve de tudo, como vocês saberão...
O
francês estava temporariamente residindo no veleiro. Não mais se arriscava a
dormir com a endiabrada africana. Isto facilitava seus encontros amorosos com
Betânia, mas, em compensação, não lhe permitia monitorar a esposa adulterina,
que nos bons tempos ele carinhosamente chamava de Guga, e continuava a ela
assim se referir, apesar da raiva e do ciúme doentio que o consumiam.
Tudo
era novidade para Pelejão, tudo mesmo, inclusive viajar pela primeira vez de
avião. Mas lá foi ele travando o medo enorme que guardava dentro de si, com a
dignidade e a valentia que devem caracterizar um bom detetive particular.
Dissimular que se tratava de marinheiro de primeira viagem não lhe foi difícil,
porque detetive que se preza deve ser caradura. E ele era-o com sobras de
talento.
A
chegada de Pelejão ao Aeroporto Luiz Eduardo Magalhães deu-se sem transtornos,
às sete e meia da noite. E já o esperava o francês, sempre agitado e alegre,
apesar vivenciar o problema pessoal dos chifres plantados em sua cabeça. Mas
não aparentava qualquer preocupação em ser corno. Como já dito, sua necessidade
era restrita ao fato de ele pretender garantir na justiça a guarda dos filhos.
Por isso buscava provar a infidelidade da esposa, que era, em resumo, a missão
de Pelejão, este que chegou reclamando de enjoo e correu direto ao banheiro do
aeroporto. Não dava mais para encenar disposição naquele momento em que seu
organismo capitulava mercê da estupenda ânsia de vômito que ele vinha adiando
no interior da aeronave. Era, sim, um marinheiro de primeira viagem...
Do
aeroporto, Pelejão se dirigiu a um hotel no Farol da Barra, em frente do mar,
de quatro estrelas. Chegou carregando um aparato de assustar: a pequena mala
com mudas de roupa e outras duas, enormes, contendo a parafernália eletrônica
que pretendia colocar em uso no decorrer das investigações. Estava preparado
para cumprir qualquer tarefa, inclusive de espionagem, algo que fazia com
maestria, como se fosse agente de inteligência de altíssimo nível. Ele não
comentava, porém jamais deixara de ler as histórias de Brigite Monfort, a mais
famosa espiã da CIA que deslumbrara o mundo com sua beleza e eficiência em
vencer espiões inimigos.
Pelejão
acreditava que a imaginação precisava ser aguçada de todas as formas. Por isso
se dedicava à leitura de aventuras de investigação e espionagem, tendo Agatha
Christie como musa inspiradora e Sherlock Homes como ídolo. Estava no sangue
sua vocação para investigar. Nada ele olhava como pessoa comum. Sempre via no
fato algo mais, estranho, ou suspeito, a merecer atenção especial, algo que
dependia de ser farejado com a malícia de um policial. Era como se fosse um
médico que olha seu semelhante e vê somente doenças. Em suma, um sério
candidato à loucura...
A
noite da chegada foi de arrumação e descanso. Para o dia seguinte ele já
traçara o seu roteiro. Primeiro conheceria os lugares de residência do francês,
da africana Guga e de Betânia. Depois iria à cidade, especialmente aos locais
de interesse da investigação. Em vez de pontos turísticos, visitaria delegacias
policiais, pontos de táxi, ruas e bairros, hospitais, hotéis, motéis etc.
Sentiu também vontade de saber por onde andava João Ubaldo, isto ele sentiu,
porém travou seu ímpeto de fã incondicional do escritor e se voltou ao único
objetivo: o cliente francês e seus chifrudos problemas. No fim de contas, o
escritor ficava mesmo é de papo pro ar em Itaparica ou poderia estar no Leblon,
no Bar Bracarense, bebericando com amigos.
Pelejão
sabia que precisaria seguir a africana, de modo que planejou alugar um táxi com
motorista fixo, de preferência alguém que soubesse circular com desenvoltura na
cidade, que conhecesse pessoas e bem dominasse os itinerários da investigação
que faria. O próprio motorista serviria de informante e, quem sabe, até de
auxiliar? Seria, é claro, bem remunerado. Pensou em tudo e dormiu... Acordou,
tomou banho, fez a higiene; desceu, tomou café e ficou aguardando o francês,
que lhe mostraria a cidade. Pediu ao anfitrião que requisitasse um táxi, em vez
de saírem em carro particular. Assim o fizeram e, de caminho, foram
conversando, logo descambando o assunto para o misticismo baiano.
Confessou
o francês que já apelara para consultas espirituais várias, mas não lograra
sucesso. Entretanto, gastara bom dinheiro. Pelejão achou graça e se lembrou de
alguns policiais do Rio de Janeiro que também gostavam de investigar apelando
às entidades espíritas. Alguns chegavam a utilizar copos d’água para, através
deles, concluírem que tal ou qual pessoa cometera algum crime. Mas, ao mesmo
tempo, ficou sério quando lembrou alguns casos, “espiritualmente investigados”,
que geraram denúncia e processo como se os réus estivessem respondendo ao
“juízo final” em vez da justiça terrena, tudo porque os tais policiais ligados
ao além eram apaniguados de altas autoridades do ramo jurídico e político.
“Será que aqui na Bahia policiais também utilizam a investigação espírita para
chegar a fatos concretos?”, indagava de si para si Pelejão, até achando que, se
tal prática funcionasse, não haveria crime misterioso e sem autoria naquela
exótica cidade brasileira afeita às umbandas, quimbandas e candomblés...
Pelejão
foi trazido de volta à realidade pelo francês, absorto que estava em suas
alienações, como se tivesse “pegado um espírito”... Mas logo se refez e tornou
à vida real ao chegar na praia da ***, defronte da casa em que morava a
africana Guga com os quatro filhos do casal, todos do sexo masculino. Naquele
horário, o francês sabia que ela não estaria em casa, era tempo de levar as
crianças ao colégio. E nem sempre retornava. Ficava com o amante em algum lugar
até a saída das crianças. Desta maneira, Pelejão pôde observar detalhadamente o
lugar e a casa, até que indagou do francês:
–
É possível a gente entrar?
–
Claro! Tenho as chaves, bolas! Venho aqui constantemente, mas com a Guga
ausente. Não me arrisco ficar na presença dela. Está uma fera. Sente-se
diminuída como mulher... Mas está me traindo também... Dá pra entender uma
coisa dessas? – lamentou-se Jean.
–
É lógico que sim, Jean! – devolveu Pelejão. – Você sabe que já peguei muitos
casos de adultério em que ambos traíam e tinham ciúme doentio um do outro. Coisas
de doido, mesmo. Por isso eu entendo... Aliás, não entendo nem pretendo
entender coisas do coração, pois nelas não há lógica – completou o detetive.
Pelejão
entrou na casa e foi direto observar como poderia grampear o telefone, seu
primeiro passo para deslindar quem era o tal amante da africana, além de
naturalmente gravar-lhes as conversas. E viu na garagem, por onde entrava o
fio, o lugar ideal para montar um grampo, de modo que ele se pudesse colocar
postado do lado de fora, escondido no mato, ouvindo e gravando as conversações.
Depois indagou do francês se conhecia alguém da casa vizinha, e ele disse que
não. Sobrou então ao detetive apenas o terreno baldio que, por sorte, havia ao
lado da casa. Ainda bem que estava coberto de mato espesso, o que permitiu a
Pelejão camuflar e proteger a parafernália que ali ficaria gravando as ligações
da africana para o amante, e vice-versa, mas com ele de prontidão trocando as
fitas. Havia, porém, um problema: e se Guga falasse em dialeto?...
–
Jean, como você faz pra entender a fala de Guga? – indagou Pelejão.
–
Muito simples, ela fala francês; a terra dela já foi colônia de França – disse
Jean.
E
diria Sherlock Homes: “Elementar, meu caro Watson...” Mas continuava o atento
detetive em necessidade de traduzir as fitas que porventura contivessem algum
dialeto africano utilizado por Guga, e sem depender do francês, uma questão de
honra profissional. No fim de contas, ele era a solução, e o francês, o
problema, e não o contrário. Foi quando lhe veio a ideia de ir ao Mercado
Modelo com o fim de pesquisar sobre um possível intérprete. De mão em mão, ou
melhor, de conversa em conversa, ou, melhor ainda, de trocado em trocado que
teve de desembolsar de caminho, Pelejão finalmente localizou um africano da
Costa do Marfim há muito tempo radicado em Salvador. Acertou com ele os
detalhes de pagamento por fita traduzida. Restava-lhe, agora, esperar as fitas
rodarem gravando os telefonemas de Guga para quem quer que fosse. E se ela se
comunicasse em francês, ora o corno traduziria direto!...
Escondido
no mato, e dali não arredando pé nem mesmo para suprir suas necessidades
fisiológicas, que eram feitas num buraco que ele ia cobrindo de terra na medida
em que o utilizava, Pelejão ficou escutando telefonemas e trocando as fitas que
se completavam. Comida, só sanduíche; bebida, só a água que levara em cantil.
Era impressionante o senso profissional de Pelejão, acrescido de admirável
resistência às intempéries, útil consequência do árduo treinamento militar a que
se submetera na Escola de Paraquedismo do Exército.
Ao
final do terceiro dia de escuta e troca de fitas, – que, enquanto isso, eram
traduzidas pelo africano contratado quando Guga falava em dialeto, – todos os
indícios se foram acumulando e apontando detalhes da infidelidade da africana
em meio a uma falação sem sentido, coisas típicas de mulheres às quais sobra
tempo para conversar e circular com amantes enquanto os maridos trabalham ou
também as traem. Contudo, lá estava devidamente identificado o tão procurado
amante. Era outro francês, chefe de cozinha de um famoso hotel da cidade. Como
diria o velho ditado popular seguido à risca pela
fogosa e bela africana: “Como é bom o meu francês!”
Com
efeito, era um patrício de Jean, de nome também Jean (Jean-Paul Contreau), que
na Bahia estava há anos radicado. E valia a pena ouvir as conversas dos amantes
nas fitas gravadas, com aqueles suspiros e ais que remexiam com a vida entre as
pernas. Nem mesmo Jean-Jacques, o corno, travou a excitação ao ouvir sua mulher
gemer ao telefone sonorizado como um autêntico sexofone (não confundam com
saxofone, o instrumento!). Mas tudo lembra boca...
Estava
comprovada a traição, porém pouco como prova. Daí é que, já sabendo em que
circunstâncias o casal adúltero se encontrava, Pelejão partiu para a segunda
fase do seu plano, enquanto o francês ia até Campinas, à UNICAMP, para
contratar os serviços de degravação daquela universidade cujo conceito de
excelência percorria o mundo e qualquer laudo ali produzido era aceito como
prova em qualquer país. Mas faltava muito a ser feito, como já dissemos, o que
não desanimou o persistente detetive particular. Demais, agora ele conhecia em
detalhes como e onde o casal se encontrava. Assim, meteu mãos à obra:
disfarçou-se de carregador de malas e penetrou como discretíssimo agente de
espionagem no Hotel***. O hotel era de cinco estrelas; portanto, não confundam
as estrelas do hotel com estes três asteriscos, que visam apenas a proteger-lhe
o nome e evitar algum processo de danos morais e materiais por denunciá-lo aqui
como local de encontros amorosos.
Ora
bem, Pelejão sabia qual era a suíte predileta dos amantes, eis que subornara a
recepcionista, esta que também lhe arranjara o uniforme. Na suíte, então, ele
montou seu aparato de gravação de som e imagem através de microscópicas câmeras
e minúsculos microfones que transmitiam os dados captados para outro aparato
instalado no interior de um carro estacionado em frente do hotel.
Nem
se há de descrever as cenas concentradas nas fitas de vídeo e os ais e ais
daquele fogoso casal de estrangeiros. Agora, sim, Pelejão conseguira a prova
cabal do adultério, até dando por encerrado o seu trabalho. Mas o corno parecia
que queria montar uma loja pornô, eis que pediu a Pelejão que se mantivesse
gravando mais fitas, enquanto ele as acumulava, e via-as, e revia-as, e
ouvia-as como se estivesse gostando muito de observar Guga gemendo debaixo do
outro. Ele chegou até mesmo a confessar que assistia a tudo junto de Betânia,
com ambos atingindo orgasmos sensacionais. Mas Pelejão não estava gostando
muito daquela perversão, que, para ele, mais parecia comportamento típico de
francês depravado. Entretanto, o dinheiro que estava ganhando por dia, além de
todas as despesas pagas, valia qualquer sacrifício e servia para facilmente
convencê-lo a continuar investigando, agora buscando fotos externas dos
amantes.
Já
se sabia que o casal somente se encontrava às quartas-feiras, dias da semana em
que o cozinheiro francês tinha folga no Hotel***. Isto facilitou a Pelejão o
acompanhamento dos encontros, geralmente a partir da chegada dela ao hotel.
Pelejão tinha certeza de que o francês só levava a africana àquele endereço e à
mesma suíte: é que o chef recebia expressivo desconto, dado pelo proprietário,
que acalentava a esperança de que um dia o conceituado chefe de cozinha ali
trabalhasse.
Quem
passava todas essas informações a Pelejão era a recepcionista, de nome
Clarimunda, bela mulher que surge nesta história por seus méritos e por receber
boa grana para auxiliar o detetive em sua tarefa de espionagem. Acabou nos
braços de Pelejão, que, no fim de contas, também não era de ferro... Sim, com
tanta sacanagem a ver e a ouvir, Pelejão acabou por sugerir a Clarimunda um
pagamento extra para ela ajudá-lo a decifrar e catalogar todo o material
probatório do adultério. Daí pra cama foi um pulo.
A
par das inúmeras transas do francês com Betânia, e de Pelejão com Clarimunda,
todas consequentes da motivação em assistir às não menos fogosas trepadas entre
Jean-Paul, o cozinheiro, e Guga, a africana, as investigações continuaram, com
Pelejão no seu táxi seguindo o carro do casal; ou então oculto entre as
folhagens do Hotel*** para
fotografar o casal descendo do carro e adentrando o ninho de amor proibido...
Até que houve o contratempo: um dia, ao desembarcar, Guga viu Pelejão a
fotografá-la. Partiu em sua direção, não como mulher comum, desesperada, mas verdadeira
bugra: bufava e espumava como touro bravio, olhos avermelhados e veias
intumescidas à explosão. Era animal, não era humana, a nativa que despia o seu
lado civilizado e voltava às remotas origens...
Nunca
Pelejão correra com tanto ardor. Sentiu mais medo do que quando recebera aquele
tiro e fora conduzido ao hospital como provável “bola da vez” de seus próprios
colegas. Agora se achava em perigo maior: se a africana o pegasse, certamente
arrancaria bom pedaço do seu pescoço a dentadas e o engoliria como se fosse
manjar...
Pelejão,
aflito, batia os pés na bunda rua abaixo e acima, buscando desesperadamente
chegar à delegacia policial. E nervosamente pensava enquanto se improvisava
como velocista olímpico, a africana cosida ferozmente em seus calcanhares:
“Ainda bem que pesquisei antes os locais, ai meu Deus, ajude-me!...”
No
horizonte, como que atendendo às súplicas de Pelejão ao Todo-Poderoso,
surgiu-lhe a dependência policial, na qual ele se enfiou como um tufão, quase
que levando uma saraivada de balas dos espantados policiais que lá estavam.
Mas, por sorte, ele foi reconhecido em razão do anterior contato que fizera e
de sua identificação para algum pedido de auxílio. E ali estava ele,
espavorido, enquanto a africana era travada na porta por quatro musculosos
policiais, que, mesmo assim, tiveram grande dificuldade em contê-la.
Superado
o susto, Pelejão e mais dois policiais partiram ao hotel e detiveram Jean-Paul,
o cozinheiro, ainda na porta aguardando o desfecho da louca corrida de Guga
atrás do detetive improvisado em fotógrafo. O francês, atônito, não opôs resistência.
Na delegacia, confirmou ser realmente amante de Guga... Estava provado o
adultério, agora não faltava mais nada a não ser registrar em cartório toda a
papelada e demais materiais probatórios, para depois levá-los à Costa do Marfim
e anular o conúbio do francês (do corno, para não confundi-lo com o cozinheiro)
com a africana. Mas o desfecho da história foi outro, e insolitamente feliz...
A
bem da verdade, tendo alcançado seu objetivo de provar a infidelidade da
esposa, Jean-Jacques Garnier concluiu com ela que ambos cometeram a mesma
falta. Em vista disso, decidiram que dali por diante poderiam encontrar um modo
pacífico de convivência, ela transando com o chef, amante dela, e ele se
deliciando da baiana, amante dele, porém ambos retomando normalmente a vida
conjugal com o fim de garantir a boa criação dos filhos. E formalizaram um
pacto: todas as transas com seus amantes seriam filmadas, e as fitas entre eles
trocadas, para que ficassem assistindo suas próprias e infiéis libidinagens,
delas tirando proveito e lhes redobrando a motivação sexual. Deu tudo em nada
ao final, o que para o renomeado detetive pouco importava. Afinal, fora vultoso
o pagamento que recebera...
Assim
Pelejão encerrou mais um excelente trabalho de investigação que lhe rendeu bela
recompensa. Também lhe sobrou a eficiente Clarimunda, que aceitou ser sua
parceira e esposa, vindo com ele para o Rio de Janeiro. Ao corno francês, na
realidade, só interessava manter o casamento adulterino e a guarda dos filhos,
para depois, no futuro, espalhá-los pelo mundo, como já o fizera com os do seu
primeiro casamento. E Pelejão teve a cautela de não deixar o francês
aproximar-se de Clarimunda. “Seguro morreu de velho”, pensava, sentado ao lado
dela, no avião, com destino à Cidade Maravilhosa. E, para não perder o hábito, ao
aterrar no Aeroporto do Galeão o destemido detetive desceu e correu direto ao
banheiro...


Nenhum comentário:
Postar um comentário