quinta-feira, 27 de abril de 2017

UM ANJO NO TRÂNSITO



Foto resgatada na internet

 Mal amanhecia a segunda-feira e o cabo PM Jorge dos Santos Caldas já partia de sua casa, em São Gonçalo, ao quartel do 12º BPM, em Niterói. Saía feliz devido ao agradável labor que o aguardava: cuidar do trânsito em frente do Instituto Abel, na Avenida Roberto Silveira. Na verdade, passados apenas dois dias (sábado e domingo), ele sentia saudade das crianças. Muitas delas se lhe fizeram amigas ao longo de anos, com ele em frente do colégio em sua prazenteira tarefa de interromper o tráfego e atravessar em segurança aquela turminha em algazarra, porém sempre esperando sua ordem de travessia. Muitos colegiais ele os conhecera desde o jardim de infância, vira-os crescer e ingressar no primário, depois no ginásio, e no segundo grau.
Sim, por anos a fio o cabo Caldas, em frente do seu amado Instituto Abel, deixou-se ficar em agradável labuta. Amava o que fazia, era otimista em relação à vida e ao mundo. As crianças o chamavam de tio Caldas, o que o envaidecia deveras e aliciava totalmente seu coração.
Contava ele, o cabo Caldas, 24 anos de idade. Negro, bonito, forte, excelente desportista, era constantemente requisitado por companheiros do quartel e do bairro onde morava, – o Desvio de Dona Zizinha, – para as disputas do futebol de campo e de salão. Sem embargo, era um craque.
Com quase 1,85m de altura e músculos de atleta dedicado, Caldas se apresentava ao serviço invariavelmente garboso. De sua farda, sempre impecável, a mãe, Dona Clara, cuidava com zelo. Ninguém no quartel se uniformizava tão elegantemente como o cabo Caldas, tudo muito natural e espontâneo. E assim ele se destacava entre os pares, dos quais recebia especial carinho.
Sua alegre presença contagiava colegas e superiores hierárquicos. Era exemplo de PM que um dia ficaria gravado naquele quartel para sempre. Não pensem precipitadamente que jogar ao passado esta história signifique que nosso herói não mais existe. Não! Nada disso! Ele existe, sim, porém agora mais velho, aposentado, e com seus filhos seguindo, em terceira geração, a mesma carreira abraçada por ele e por seu velho pai. Mas a história desse PM especial, membro de um exército de anjos fardados, aconteceu pelos idos de 1989.
 ***
 Mais um dia de serviço, e lá estava ele, o cabo PM Caldas, em movimentos precisos, a orientar o trânsito na Avenida Roberto Silveira. As crianças adoravam cada gesto dele, todos regulamentares, porém executados com arte e amor. Ficava ele com o peito em sentido longitudinal, braços abertos formando uma espécie de cruz. Nesta hora paravam todos os veículos nas duas pistas de rolamento para garantir a travessia segura das crianças. Ou então ele esticava o braço direito no sentido vertical, a apontar o céu com a mão espalmada, e tocava o apito impedindo o trânsito em todas as direções: era a ambulância a socorrer alguém, ou os velozes bombeiros a salvarem alguma vida. Neste momento o cabo PM Caldas era sublime, projetava aos olhos de todos que por ali transitavam a sua imagem de perfeito cumpridor do dever policial militar. Diziam até que o apito do cabo Caldas substituía os relógios nas imediações do Instituto Abel, de tão preciso ao cortar o ar em horários de travessia dos escolares nos inícios e fins de jornada.
– Querida, vou engolir meu café, já estou atrasado! – comentava o morador do prédio em frente do colégio ao verificar seu relógio marcando sete horas.
– Calma, meu marido! Seu relógio está adiantado! O cabo Caldas ainda não deu o apito das sete. Ele sempre o faz às sete em ponto.
– Mãe, vou atrasar na entrada do colégio! Cadê a minha meia? – gritava o menino lá do quarto.
– Calma, filho! Faltam dez minutos para o cabo Caldas apitar. Você vai chegar na hora certa.
Assim era o cabo Caldas, nunca se ausentava, jamais apitava adiantado ou atrasado. Quando ele tocava o apito nos horários de passagem das crianças, as pessoas ajustavam os ponteiros de seus relógios. O apito era mais confiável que a Rádio Relógio.
Sim, caro leitor, o miliciano era rigoroso na profissão, mas seu coração melava-se deveras diante dos pequeninos alunos do Colégio Abel. E as crianças não deixavam de lhe sorrir e dedicar palavras carinhosas: “Bom dia, tio Caldas!”, “Boa tarde, tio Caldas!”, “Até amanhã, tio Caldas!” Ele respondia nomeando cada criança que por ele passava na pressa de seus passinhos felizes. Sim, guardava na memória todos os nomes, ali não havia estranhos, eram todas as crianças pedacinhos de vida que se integravam à sua preocupação cotidiana: “Bom dia, Felipe!”, “Boa tarde, André!”, “Bom dia, Daiana!”, Boa tarde Débora!”, ia ele devolvendo os cumprimentos, às vezes acrescidos de alguma mensagem aos pais: “Fernanda, dê um abraço no seu pai”, dizia o PM sorrindo às crianças. Assim era, efetivamente e afetivamente, o cabo Caldas, mestre no controle do trânsito e no trato gentil das crianças em frente do Instituto Abel.
Os motoristas, parados ao volante dos carros a esperar a travessia da turma, adoravam a interação entre o alegre PM e a petizada. Também o cumprimentavam com igual carinho. Na verdade, muitos daqueles motoristas tinham seus filhos estudando no Abel. E com o transcorrer dos anos, todos, adultos e crianças, viam no cabo Caldas um membro da família, um inigualável anjo da guarda. Muitos receberam o carinho do miliciano quando ainda cursavam séries mais adiantadas; e agora viam seus filhos dependendo do cabo Caldas para a travessia segura da movimentada Avenida Roberto Silveira.
Com efeito, chovesse ou fizesse sol lá estava o miliciano sempre com um sorriso alegre destinado às crianças e aos responsáveis. Mas, e quando ele sentia a falta de alguma daquelas preciosidades?... Ficava agitado, ia à secretaria do colégio para saber por que a criança faltara à aula, se estava doente, e logo partia às casas de muitas delas ou telefonava aos pais. E quantas vezes as crianças exigiam a presença dele em seus lares, quando acometidas de alguma doença?
Certa vez, Daiana pegou uma forte gripe. Os pais dela muito preocupados, pois a menina nada comia. O cabo Caldas foi visitá-la. Ela morava no bairro de Icaraí, num lindíssimo apartamento. Quando o cabo Caldas chegou, os olhinhos dela brilharam de alegria. E lá ficou o miliciano, como autêntico anjo da guarda, prosando com a linda menina. Contava ela oito anos quando isto ocorreu. Os pais ficaram pasmados, pois, logo que chegou, o cabo Caldas pediu para dar a ela a comida na boca. Ela comeu de raspar o prato. Os pais e a tia, que sempre a levavam ao colégio, observavam da porta aquele enorme PM segurando a colher, com a menininha comendo alegremente. E até quis se levantar da cama enquanto o seu amigo miliciano a aconselhava:
– Daiana, amanhã eu venho ver você de novo, mas só se você comer tudo e tomar os remédios na hora certa. Está bem?...
– Está bem, mas você vem me dar comida na boca?
– Venho, na hora do jantar; mas você me promete que vai comer tudo? E os remédios?...
– Pode deixar, eu faço tudo direitinho!
– Bem, então dá um beijo no titio. Amanhã eu volto pra ver você.
Na saída, Marli, tia de Daiana, acompanhou o cabo Caldas até a porta. Era uma linda mulher, loura como a sobrinha. Seus olhos brilhantemente verdes pareciam esmeraldas a luzir num rosto emoldurado por vasta cabeleira caindo-lhe aos ombros. Não era nem alta nem baixa. “Boa altura, muito linda”, pensava o PM ao caminhar em direção ao local onde estacionara seu fusquinha: “Não é farinha pro meu prato. Muita areia pro meu caminhão. Mulher rica e bonita. Deve ter namorado. Mas nunca a vi com ninguém. Bem, chega de pensar bobagem, Caldas! Sossega o seu facho!”, ia ele cogitando de si para si, tentando afastar aqueles mirabolantes pensamentos. Mas, que nada! Ele não parava de pensar em Marli, até concluindo por sua conta que os olhos dela brilhavam mais na sua presença...
Muito comum, também, era ele ser abordado ou chamado pelas crianças à beira da calçada para lhes ouvir lamentos em razão de uma ou outra nota ruim, ou compartilhar alegrias geradas por boas notas.
Era tão intenso o amor por seu trabalho que às vezes, no quartel, os superiores com ele brincavam ameaçando-o tirar da frente do colégio. Ele quase morria de susto; afinal, ele sempre acreditava nas pessoas, tudo para ele soava sério. Mas logo desfaziam a brincadeira e ele retomava seu inesgotável bom humor.
E lá ia Caldas mais uma vez ao serviço. Dava gosto de vê-lo sair do quartel, imponente em sua farda bem cuidada e sempre no rigor da hora. Não se podia atrasar, era o acerto do relógio de muitos, ele sabia disso. E gostava de se ver reconhecido. Fazia-lhe bem ouvir as pessoas elogiando-o e enaltecendo a PMERJ por sua causa. E, de certa maneira, muitos dos companheiros o procuravam imitar nos gestos e na postura.
Engraçado era quando se via o cabo Caldas abaixado a conversar com os miudinhos na beira da calçada. Ele ficava de cócoras, e colocava o rosto na altura dos semblantes de pureza das inúmeras crianças que o solicitavam a uma conversa rápida. Era engraçado, sim, aquele negro enorme encolhido ao máximo diante dos pequeninos. Com Daiana ele sempre fazia isso porque ela nunca deixava de lhe querer dar um beijo na chegada e na saída. Era um amor de dar gosto. E tia Marli, de pé, sorria, feliz. Mas quando o cabo Caldas a mirava, ruborizavam-se as maçãs do seu belo rosto. Era o amor que chegava, tímido e envergonhado, entre ambos. Porém, não tinham pressa; seus corações sabiam esperar o momento sublime da explosão.
– Tio Caldas, vou fazer nove anos no domingo. Quero que você venha a minha festa. Vai ser lá no prédio. Se não vier fico triste! – clamava Daiana, toda contente.
– Claro, minha querida! Eu irei sem falta. Pode contar que lá estarei a cantar parabéns pra você – respondia o cabo Caldas, novamente abaixado a ouvir a menina.
Isso acontecera numa segunda-feira, logo na chegada de Daiana ao colégio. Terminada sua tarefa, o cabo Caldas tornou ao quartel. Fora mais um dia de extenuante trabalho, porém ele nada sentia, possuía saúde de ferro, era atleta. Chegou ao quartel, banhou-se, recolheu a farda usada para a lavagem carinhosa da mãe, pegou o fusquinha e partiu para a sua casa, em São Gonçalo, no bairro do Desvio de Dona Zizinha. Estava particularmente feliz. Sentira no olhar de Marli algo mais, um brilho diferente. Mas permanecia na dúvida. Afinal, ela era loura, bonita e rica, e ele, negro, PM e morador de subúrbio. “Devo afastar esses pensamentos”, cogitava, de si para si ignorando a mítica do fardamento militar que ostentava em orgulho...
Naquela noite, o cabo Caldas foi jogar futebol de salão no Clube Mauá. Suou feito um danado, correu como ninguém. Parecia desabafar do peito o amor que lhe chegara forte, fazendo seu coração disparar.
Já em casa, colocou um bom filme no videocassete e se distraiu um pouco. Mas, no seu íntimo, o coração palpitava diferente. Pensava no dia seguinte. Veria Marli logo cedo, estava ansioso. E pensava: “É fácil controlar o trânsito, mas como é difícil controlar o coração!” Mas de manhã lá estava o cabo Caldas em sua rotina de atravessar as crianças e a acertar os relógios dos transeuntes. E ainda um dava jeito de cumprimentar os motoristas que lhe acenavam.
Vez em quando vinha um carro oficial com a alta patente militar sentada no banco de trás, produzindo um espetáculo à parte a continência garbosa que o cabo Caldas lhe fazia. Era prazer, mesmo, o que ele sentia ao cumprimentar o general comandante da 2ª Brigada de Infantaria do Exército, ou o coronel comandante do Terceiro Regimento de Infantaria, ou o seu comandante, do 12º batalhão da PMERJ, onde servia desde que ingressara na corporação. Tudo para ele era prazer; nada ele fazia a contragosto, amava a profissão.
Era-lhe trabalhoso controlar o trânsito na chegada e na saída das crianças. As mamães e os papais vinham com seus carros e nem sempre tinham como e onde parar. Nesta hora, a fila dupla em ambos os lados da rua era inevitável. E lá estava o cabo Caldas administrando o rebuliço de crianças cruzando a rua sob seu olhar atento, enquanto os carros paravam, uns atrás dos outros, a pegar e deixar as crianças na porta do colégio.
Às vezes alguns motoristas passantes reclamavam, mas o cabo Caldas, paciente e simpático, soltava sua pérola: “Meu amigo, minha amiga, amanhã seus filhos e filhas, ou seus netos e netas poderão estar aqui a estudar. Serei paciente, mas as crianças pra mim valem mais que tudo. Não pensem nos transtornos e nos carros em filas duplas. Pensem nas crianças!”
Não havia quem não sucumbisse aos argumentos do cabo Caldas. Ele sempre vencia ao fim e ao cabo. Primeiro, as crianças, depois, as crianças, e depois, aí sim... as crianças. Na verdade, coisa alguma lhe importava tanto. E, de certa maneira, importava-lhe também os adultos, ou melhor, uma adulta, ela, que deixava seu coração disparado: Marli! E pensava no aniversário de Daiana. Torcia para chegar o domingo...
Quarta-feira, mais um dia de trabalho, e lá estava Daiana com sua bela tia, chegando, ambas faceiras, ao colégio. O cabo Caldas, quando as via, até seu apito tocava mais forte. Dava para ouvir o som lá no Campo de São Bento ou nas cercanias mais distantes do colégio. Soprava forte, como um pássaro a cantar, emplumado, de olho na futura companheira de ninho...
Na entrada e na saída as duas se postavam para o cabo Caldas arriar o seu corpanzil diante da menininha para beijá-la e receber em troca deliciosos ósculos da criaturinha que por ele demonstrava muito amor. E ele sempre lhe via os cadernos, os desenhos do dia e as notas sempre destacadas, recompensando-a com elogios sinceros. Era puro amor de um pelo outro, e a tia Marli assistindo, feliz, àquela cena rotineira.
Ao final da tarde, depois de encerrar seu agradável labor, partia Caldas picando o passo na reta da rua a caminho do 12º BPM. Ia pela Avenida Roberto Silveira, que na época ainda era Estácio de Sá, rompia a Marquês de Paraná até chegar ao quartel, na Avenida Jansen de Mello, na verdade a mesma rua, apenas cortada em pedaços a homenagear diversas personalidades. E ia ele cumprimentando e sendo cumprimentado por todos, parando às vezes a dar atenção aos transeuntes que com ele puxavam prosas no caminho. Sim, caro leitor, quase toda a cidade parava para ver o cabo Caldas passar sempre esbanjando simpatia no trato com os niteroienses.
Por volta das seis horas, ao entardecer, ele finalmente chegou ao quartel. Como sempre, tomou banho, recolheu o fardamento usado, pegou o fusquinha e partiu cantarolando a Canção do PM. Ele gostava tanto da canção que até já ensinara a letra e a música a muitos alunos do Instituto Abel. Os professores e as professoras de música do colégio prestigiavam o amigo miliciano e ensinavam a bela canção às crianças. E o cabo Caldas felicitava-se, intimamente, ao ouvir das salas de aula o som familiar da canção mais cantada por todos os seus companheiros PMs. Sim, caro leitor, dava-lhe muita felicidade ouvir as crianças cantando o seu hino no colégio Abel, e ele sentia que merecia a singela homenagem dos colegiais e professores.
Carro já aquecido, enfiou-se o cabo Caldas pela Avenida do Contorno, ouvindo música, quando viu passar um veículo em alta velocidade. Pelo retrovisor, o experimentado cabo percebera que a rodagem do carro estava acima da permitida. Aquilo o incomodara, o que o fez fitar com atenção seus ocupantes... e cair em estupor, pois vira no carro quatro homens mal-encarados e uma menina que ele conhecia muito bem: Daiana. Dois pares de olhos se cruzaram na velocidade, e nada mais precisava ser dito entre ambos. Muitas vezes aqueles olhinhos olharam dentro dos seus na alegria e na doença.
Era um sequestro, conclusão acertada do cabo Caldas, agora outro homem, não mais o simpático PM a sorrir para as crianças e a cuidar de todos com respeito e carinho. Agora despertara nele o senso do perigo contra a vida de Daiana. E, logo, logo, a rádio interrompeu a programação confirmando o sequestro. Porém, quis o destino que se cruzassem o carro dos bandidos e o fusquinha do anjo da guarda da menina sequestrada. E, com frieza profissional, Caldas foi acompanhando o veículo, mantendo-se em distância segura.
Os bandidos seguiram pela Niterói-Manilha até a entrada do bairro de Nova Cidade, ingressando em São Gonçalo por aquele caminho. Caldas perseguia-os prudentemente, aproveitando o lusco-fusco do anoitecer para não dar aos sequestradores nenhuma chance de percebê-lo. O outro carro era um Santana. Na estrada, não fora tão fácil seguir os bandidos; mas quando eles tomaram o caminho de São Gonçalo Caldas pôde se aproximar sem lhes despertar a atenção.
Houve um momento em que ele ficou lado a lado com os sequestradores, ambos parados num semáforo da via principal, rumo a Alcântara. Neste momento, Daiana olhou para ele, assustada. E ele, sem que os dois marmanjos o percebessem, piscou-lhe o olho. Deu seu recado à menina, que ia assustada entre dois facínoras no banco traseiro do Santana. Mas, por precaução, Caldas retardou seu fusquinha. Ele sabia que sozinho não poderia salvar a menina. Mas, se conseguisse seguir os bandidos até o cativeiro, teria como pedir ajuda.
O Santana seguiu por dentro da Estrada do Colubandê, em direção à rodovia RJ-101 e ao bairro do Coelho. Caldas estava no seu ambiente, conhecia cada caminho. E seguia cautelosamente os sequestradores. Quem o visse não diria que era o mesmo cabo Caldas. Sim, era outro, frio, calculista, preocupado – um experimentado profissional de polícia. A menina corria perigo e dele dependia. Ele não podia de modo algum falhar.
Assim foi em frente, como um caçador seguindo o rasto da caça, até que viu o Santana dobrar à direita, subir uma colina e parar em frente de uma casa em rua erma e escura. Ele ultrapassou a rua e desceu. Coseu-se no muro da esquina e espiou os bandidos descerem e retirarem a menina, logo ingressando na casa. Não havia mais dúvida: era ali o cativeiro; mas poderia ser provisório... Ele então agiu rapidamente: foi ao primeiro orelhão e ligou para o quartel pedindo o telefone da Divisão Antissequestro. E solicitou ao tenente oficial-de-dia para se antecipar na ligação que faria à DAS, de modo que os policiais civis já soubessem não se tratar de trote.
Rapidamente, Caldas relatou ao tenente o ocorrido, e este lhe informou que todos os quartéis e delegacias já sabiam do sequestro e que faria imediatamente o que ele pedira. Cinco minutos e Caldas já falava com o delegado chefe da equipe de plantão da DAS, marcando encontro com eles no 7º batalhão da PM, em Alcântara. E para lá imediatamente rumou.
Os policiais civis da DAS vieram em helicóptero especial para voo noturno, descendo no campo de futebol do batalhão. Embaixo, já os esperavam diversas viaturas da PMERJ e da polícia civil. O cabo Caldas também aguardava, ansioso, a chegada daqueles policiais treinados em resgate de sequestrados, uma das mais complexas tarefas policiais que dependem de árduo treinamento e acumulada experiência.
No gabinete do comandante do batalhão Caldas relatou ao delegado, em detalhes, tudo o que até ali fizera, recebendo os cumprimentos da autoridade policial por sua perspicácia em seguir os bandidos. Contudo, pediu-lhe que fosse junto com a equipe, no helicóptero, para indicar, do ar, a localização exata do cativeiro. A equipe desceria na corda e ganharia o chão, sem dar tempo aos bandidos de reagirem enquanto as viaturas abordassem o local por terra. O helicóptero, de cima, observaria o deslocamento das viaturas, até que todo o quarteirão estivesse cercado.
Assim foi feito, numa rápida operação que não deu tempo aos bandidos de partirem em fuga com a menina. O cerco foi dramático. Os bandidos se plantaram no interior da casa, sem chance de escapulir. Mas ficaram com Daiana de refém, ameaçando matá-la caso a polícia invadisse o local. Na verdade, estavam com medo de serem mortos, por mais que o delegado oferecesse garantia de que nada lhes ocorreria. E foi nessa hora, dramática hora, que se acertou a troca da menina por um policial. E ninguém conseguiu evitar que o voluntário fosse o cabo Caldas. As razões dele eram fortes demais, todos sabiam. Ele entrou na casa; os bandidos estavam assustados...
Depois de muito diálogo os facínoras libertaram a menina, que saiu e foi logo protegida pelos corpos dos policiais civis, que a resgataram. Ficou então o cabo Caldas refém dos bandidos e ameaçado por suas armas. Mesmo assim o valente miliciano tentava convencê-los a se entregar.  Mas o dedo amedrontado do meliante disparou um tiro na coxa do cabo Caldas, que tombou com o impacto, que se seguiu de muitos tiros, mas agora era dos valorosos policiais civis que invadiram o cativeiro e resgataram o heroico PM. Ao final, perderam a contenda os bandidos: todos feridos e presos.
Caldas saiu desfalecido pela excessiva perda de sangue, com suspeita de ter sido atingido na artéria femoral. Corria risco de vida. Foi rapidamente colocado no helicóptero e a máquina partiu em velocidade ao Hospital da PMERJ, em Niterói. Chegaram rápido, desceram no pátio interno do hospital. Caldas foi levado direto à cirurgia. Foram muitas horas de trabalho incessante dos médicos e enfermeiros, que pediam sangue para transfusão.
Por essa hora, o 12º batalhão estava em polvorosa, e o aviso da necessidade de sangue do tipo “O positivo” correu os rádios das viaturas. Foi impressionante, mas muito impressionante, o que em seguida ocorreu: todas as viaturas de Niterói e São Gonçalo partiram ao mesmo tempo para o hospital, os PMs contra o tempo para doar sangue ao companheiro ferido.
Ali, caro leitor, ficou provado definitivamente o amor dos colegas pelo cabo Caldas. E foi assim que o sangue jorrou nas veias do heroico cabo que salvara a menina Daiana; foi assim que o sangue dos PMs, naquele dia, se fosse colhido de todos os voluntários, daria para abastecer os hospitais das cidades de Niterói e São Gonçalo; foi assim a demonstração de amor dos PMs pelo anjo da guarda das crianças do Instituto Abel!
Caldas foi salvo com o sangue de muitos colegas. Mas ficou ainda três dias no Centro de Tratamento Intensivo. Do lado de fora, o hospital se apinhava de gente, de pais de alunos e professores do Instituto Abel. Sim, eram muitas as crianças, junto dos pais, orando pelo restabelecimento do herói. Na Capela do Instituto Abel, todos estavam em vigília, três dias de vigília e orações, até que veio a notícia tranquilizadora: Caldas estava fora de perigo. No quarto dia, lá estava ele na suíte do comandante-geral com honras de herói. E recebeu a família, a mãe Dona Clara e seu pai, o velho PM Caldas, que, diante do filho, livre da morte, chorou; no mesmo momento entraram na suíte Daiana, seus pais e Marli.
O abraço, que abraço! Foi lindo o encontro do cabo Caldas com a menina Daiana. Abraçados, esquecidos do resto do mundo, choraram juntos. E Caldas finalmente fitou Marli, e nada pôde evitar: Marli a ele se abraçou e declarou:
– Oh, meu amor! Graças a Deus, você está salvo! Oh, como eu amo você!
– Oh, querida! Valeu a pena quase morrer para vencermos a timidez. Amo você também, e você sabe disso!
Não mais precisaram falar. Dali em diante a alegria tomou o coração de todos os que assistiam às mútuas declarações. Daiana refulgia em felicidade. Seus olhinhos faiscavam de alegria, ela abraçada à tia querida e ao tio Caldas, que sempre fora tio antes mesmo deste desfecho feliz. E os pais de Daiana, em total alegria, felicitavam e abraçavam o casal. Caldas, se antes já representava para eles um anjo da guarda, agora seria membro da família. E assim foi o dia, com muitas visitas e felicitações. Até já se falava nos corredores que Caldas seria promovido por seu gesto heroico.
A recuperação foi lenta. O tiro havia afetado o fêmur, próximo do joelho, com certo prejuízo às articulações da perna. Talvez não houvesse a reforma, mas era certo que Caldas não poderia retornar ao labor de cuidar das crianças no lugar onde ele atravessou para lá e para cá milhares delas. Ali estava a sua alma, o seu coração. E ele ficou deveras triste quando recebeu a notícia. Mas foi acalentado e confortado por Marli, que não mais saiu do seu lado. Um mês depois, Caldas recebeu alta hospitalar. Saiu ainda de muleta a sustentar seu corpanzil. Sentia-se num misto de feliz e triste. De um lado, salvara a pequena Daiana, por quem daria a vida. De outro, por saber que não mais poderia exercitar a profissão. Mas ele se conformava com a primeira ideia de que o desfecho do que houvera poderia ter sido trágico.
Com o pensamento dividido, foi levado até a sua casa, onde permaneceu por mais duas semanas junto à família, agora aumentada pela presença constante de Marli, Daiana e dos pais dela. Foi quando recebeu a visita do seu comandante com a notícia de que fora promovido a sargento por bravura. Caldas se emocionou ao se saber sargento. O velho PM Caldas também vibrou com o sucesso do filho. E o comandante comunicou que ele seria homenageado por toda a tropa do 12º batalhão ao receber as divisas, em dia e hora que lhe foram comunicados.
 ***
Chegara o dia da homenagem. Caldas colocou fardamento novo que providenciara para o grande momento. Já sabia que viriam o Comandante-Geral e outras altas autoridades, como o General comandante da 2ª Brigada de Infantaria dentre diversas outras autoridades civis, militares e eclesiásticas. Afinal, o Instituto Abel era e ainda é um dos mais importantes e conceituados colégios da Irmandade Católica de Niterói. “Será que meu coração vai aguentar?”, pensava Caldas de si para si, enquanto se arrumava, ajudado por Marli, ambos ostentando nos anulares direitos a famosa argola do amor.
– Amor, será que vou aguentar a emoção?...
– Claro, amor! Este será um bom treino para a emoção do nosso casamento – divertiu-se Marli com o nervosismo do seu amado PM.
Nesse clima de animação e felicidade partiram do Desvio de Dona Zizinha para o quartel. Na saída de casa, os vizinhos aplaudiam o emocionado cabo PM. Alguns lhe davam tapinhas nas costas e lhe dedicavam efusivos parabéns.
Chegou ao 12º BPM em quinze minutos. O carro que lhe fora buscar adentrou o portão principal. Caldas se assustou quando viu a multidão de professores e pais de alunos do Instituto Abel, famílias de PMs, Banda de Música, a tropa perfilada, o palanque lotado de generais, almirantes, brigadeiros, delegados e coronéis. E o Governador do Estado!...
“Meu Deus! Isto não pode ser festa pra homenagear cabo de polícia!”, assim ele exclamava no seu íntimo ao ver tudo aquilo. Mas foi em frente, agarrado aos braços da mãe e da noiva. E logo viu Daiana, que para ele acorreu quebrando o protocolo. Pronto, a primeira emoção, pois é certo que nosso herói não segurou o choro quando se abraçou àquele pequenino ser que tanto amava. Mas logo se recompôs e ocupou o seu lugar de destaque diante da tropa que formava no campo de futebol.
E começou a grande homenagem, que se iniciou com a leitura solene da Ordem do Dia do comandante elogiando o feito do cabo Jorge dos Santos Caldas, agora terceiro-sargento por bravura. Finda a leitura, veio o próprio Governador colocar-lhe nos braços as divisas.
Caldas fremia o corpo como se seus nervos fossem varas verdes a trepidarem ante o vento forte. Agora era sargento. Mas lá estava, aguentando firme a emoção, quando o orador oficial da cerimônia anunciou o canto da Canção do PM. Bastou, porém, o anúncio, para que Caldas deixasse rolar as primeiras lágrimas de emoção. Era o seu hino predileto, que ele também cantava em incontida emoção. Mas quando a banda deu os primeiros acordes ingressando no momento inicial do canto, houve a surpresa maior: a tropa não cantou. Esperou... E o ar se encheu do som de vozes infantis entoando a Canção do Policial Militar... Caldas olhou para trás em espanto ao ver milhares de alunos do Instituto Abel uniformizadas em gala e cantando para ele a Canção da PM.
Que momento esplendoroso! Não houve quem conseguisse travar as lágrimas ao ver as crianças entoando a bela Canção da PM. A tropa chorava, o Governador chorava, todos pranteavam em felicidade e emoção. Caldas, coitado, teve de ser amparado por Marli e Daiana. Ele caminhou em direção às suas amadas crianças, pelas quais daria a vida e para as quais dedicara durante anos um trabalho de profundo amor. Olhou para tudo aquilo e fitou o céu brilhante a homenageá-lo. E agradeceu ao Único que lhe poderia proporcionar aquela inesquecível homenagem: Deus!...
Essa é a história do Cabo Jorge dos Santos Caldas... E tenho certeza, prezado leitor, de que você já viu algum PM do trânsito acariciando crianças na porta de algum colégio de sua cidade. Ele faz isso por amor, porque, dentro da farda que usa, nem sempre bonita, há um chefe de família, há um pai de muitas crianças, há um amigo, há uma criança no seu coração. Por isso é que as crianças entendem melhor os PMs...

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