domingo, 30 de abril de 2017

CONTRADIÇÃO






Estou próximo dos 60, reformado depois de anos servindo à PMERJ, e não me posso garantir que minha saúde me leve muito longe. Enfim, vejo-me em hora de reflexão profunda, de olhar para trás, de fazer as contas do meu tempo, de confrontar o ativo com o passivo do que vivi e tentar justificar o que de lucro ou prejuízo me restou de uma existência que, a bem da verdade, fui obrigado a suportar em resignação. Mas não tenho a lamentar senão a contradição que me martela o pensamento desde que tive minha última conversa com José de Arimatéia.
Contudo, devo logo confessar que não tenho dentro de mim o sossego interior, o que até bem pouco tempo eu imaginava tê-lo alcançado pela graça de ter sido um cidadão zeloso, cumpridor intransigente dos meus deveres sociais, legais e familiares. Enfim, sou o que se poderia designar como homem de bem, o que não me impede de carregar comigo o paradoxo que José de Arimatéia me enfiou na cabeça como se fosse um golpe mortal. É uma longa história, minha e dele...
No final de 1963 o Brasil passava por períodos de incerteza alternados por frequentes conturbações. E eu, na flor da mocidade, - e enfrentando dificuldades em ingressar no mercado de trabalho, - decidi cerrar fileira na Polícia Militar, onde me enfiei como soldado raso. Mas havia casa, comida e salário, mesmo que irrisório, justificando minha adesão à farda. Era, sem sombra de dúvida, um emprego, apesar dos preconceitos que afloravam nas pessoas do povo, que viam o PM como pessoa de baixa estirpe. Tal como hoje...
Depois de formado no curso, arremedo de ensinamento policial misturado a treinamentos militares, que, no final, resultavam em pura confusão e numa espécie de ambiguidade funcional, fui lançado em escalas internas, até que, dois anos mais, a corporação recebeu o mister de policiar as ruas, – tarefa antes da Polícia Civil, que mantinha um ramo uniformizado patrulhando as vias e os logradouros públicos. Fui então designado patrulheiro, lotado no batalhão que ficara responsável pelo policiamento no Centro do Rio de Janeiro. Era o ano de 1965, o país vivenciava o regime militar que se iniciara no anterior...
Nesta época deparei com José de Arimatéia, perigoso assaltante de bancos. Ou melhor, não diria que deparei com ele, mas, sim, enfrentei-o em violenta escaramuça entre diversos policiais e uma quadrilha que acabara de assaltar um banco na Avenida Rio Branco e se via acuada no momento da escapada. Eu era um dos que interceptaram os facínora: o garboso PM Lima; e José de Arimatéia, claro, um dos assaltantes.
Por ordem do Destino, coube-me a aleatória tarefa de perseguir, a pé, trocando tiros no meio de apavorada multidão, exatamente o José de Arimatéia. Por sorte, aquele inconsequente tiroteio entre nós ambos não feriu ninguém, até que José de Arimatéia se viu acuado numa rua sem saída com a arma descarregada. Foi quando eu o abordei, a pistola apontada em sua direção, ficando ele totalmente à minha mercê. Assim me pude dele aproximar, até que nossas ofegantes respirações quase que se confundissem. Então eu o fitei dentro dos olhos, decerto pensando que veria dois bugalhos atemorizados. Mas, ao contrário, vi-me diante de um olhar altivo, até insolente, de quem não manifestava medo.
Minha primeira vontade, ao verificar o incabível desdém do bandido, foi a de eliminá-lo sumariamente. Naquele momento, perdido momento que se tornara exclusivamente nosso, senti ódio e percebi que nele aflorava o mesmo sentimento. Mas ali era eu o senhor da ação, minha arma pronta para nele desferir o tiro mortal. Entretanto, não o fiz. E no minuto que se seguiu o ódio se foi em mim amainando; também o dele; e houve, é verdade que houve certa ternura em seu olhar quando lhe determinei que se virasse para ser algemado com as mãos às costas. Ele obedeceu sem esboçar hostilidade, e logo chegaram outros policiais e o levaram para longe de mim. Mas ele ainda me fitou mais uma vez, aparentemente agradecido por eu ter-lhe poupado a vida. Retribuí-lhe com a mesma intensidade...
Fora um dia movimentadíssimo; porém, no seguinte é que seria para mim de inesperado espanto: li jornais que atribuíam aos bandidos o status de “guerrilheiros urbanos”, segundo eles próprios se autodenominavam, e também as autoridades assim o admitiam. Não entendi patavina nem me interessei pelos tais “fins políticos” de uma ação que, para mim, não passara de criminosa e quase que me fizera vítima fatal...
“Bolas, que diferença tem um balaço mortal, ideológico ou não?”, pensei irritado. Mas logo tal assunto me desocupou a mente, assim como se foi apagando da memória dos meus companheiros, todos atropelados por novos acontecimentos e pelos rigores de nossa militarizada profissão policial, ou de nossa profissão policial militarizada, que tanto faz como tanto fez, pois, no fim de contas, dá no mesmo anacronismo funcional. Era, com efeito, um trabalho movimentado do lado de fora e impertinente do lado de dentro de quartéis que vinham cristalizados em estupidez e ociosidade durante anos a fio, mas que, de repente, tiveram suas despreparadas tropas lançadas às ruas para fazer o que não sabiam, enquanto, atônitos, os superiores primavam por cobranças insensíveis, típicas de um militarismo discutível, como hoje, – e somente hoje, – percebo com clareza.



O tempo, sempre invencível, fez tudo cair no esquecimento, até que fui convocado a depor sobre o caso e vi pela segunda vez meu enternecido desafeto, ainda com um ar romanesco no semblante, como se ali estivesse cumprindo nobre missão, tanto quanto eu efetivamente entendia estar. Mas tudo era apenas uma questão de enfoque, pois, o que era missão para mim, para ele, decerto, significava apenas o “sistema” que ele resolvera resolutamente combater, posto ser assim que ele, embora réu, se comportava diante do juiz: como se também ali, mesmo agrilhoado, estivesse lutando contra o tal “sistema”. E até houve momentos em que os que o julgavam quase que esboçaram certa concordância com os seus dele dizeres, algo, porém, logo abafado pelo peso das formalidades oficiais.
Ele era efetivamente réu, mas seu olhar altivo pousado sobre mim fez-me sentir réu em lugar dele. Acho até que me ruborizei. Bem, depois eu soube de sua condenação em regime de reclusão e nunca mais tive notícia do meu inusitado e simpático desafeto.



Dediquei-me ao labor policial. Durante os anos seguintes contribuí valentemente para o trancafiamento de inúmeros bandidos, enquanto, desalentado, via muitos companheiros meus mortos ou feridos em escaramuças contra o crime, além de lamentar por outros expurgados da PMERJ pela porta dos fundos, ou porque pediam desligamento ou eram expulsos.
Também muitos outros eram trancafiados em enxovias disciplinares, inclusive eu, que igualmente amarguei algumas punições por besteiras. Mas fui aguentando firme, não podia sobreviver sem o emprego, até porque estava casado e pai de três filhos. Assim, a cada dia eu ficava mais agrilhoado a uma profissão perigosa, ganhando mal, sem chance sequer de pensar em me lançar num outro labor. Eu só sabia ser policial e nada mais. Por isso me fui mantendo e me cristalizando naquele mundo restrito e estupidificado, enquanto o tempo escorria diante de mim como se fosse um trem em velocidade. Na realidade, a minha vida se resumia ao trabalho e ao lar, e eventualmente a alguma segurança particular que empreendia em busca de uns míseros trocados. Enfim, vida extenuante, se é que era vida, porém honesta. E velozmente passageira...
Sim, era impressionante como o tempo voava e eu não o podia acompanhar nem com os olhos, de tão veloz o trem do meu tempo. Quando dei por mim, havia completado quase vinte e cinco anos de serviços prestados à corporação dentro de uma radiopatrulha, chovesse ou fizesse sol. Senti, de repente, um pânico interior; deu-me uma irresistível vontade de recuar; era hora de parar, assim refleti e conversei com a patroa, que imediatamente concordou comigo.
Enfiei então essa ideia na cabeça e fiquei cabriolando meus neurônios em busca da solução ideal. Enquanto isso, meu temor expandia-se sobremaneira. Não mais me havia como contornar a irresistível vontade de tentar chegar vivo à aposentadoria. Mas não ponderei sobre a maldade dos meus superiores...
Com efeito, não ponderei que poderia ser tratado como gado velho a ser permutado por algum mais novo. E foi o que me ocorreu, eis que me vi ocupando lugar num presídio de segurança máxima, a tomar conta de presidiários, enquanto um novato se deslocava ao meu antigo posto. Assim dei de cara com muitos bandidos que antes eu mesmo os prendera, alguns ainda hostis e ameaçadores, mas que logo se acalmaram em suas insinuações quando eu lhes ia alertando que apertaria a fiscalização sobre suas deles parentelas visitantes, e que toda ação pressupõe uma reação igual e contrária... E foi exatamente ali, naquele presídio, onde me lançaram em desacordo de minha vontade, que reencontrei José de Arimatéia...
Já vencido pela idade, e principalmente pela rudeza do cárcere, os cabelos grisalhos aflorando em impetuosidade, lá estava meu romântico desafeto em sua enxovia individual, que tinha todas as paredes recobertas por livros. Quando o fitei pela primeira vez, trancafiado naquele cubículo ainda diminuído por estantes e livros religiosamente enfileirados, espantou-me a cena. Novamente ele me impressionava, não tanto por seus cabelos brancos, os quais eu também carregava em grande quantidade, assunto que ocupou simultaneamente nossas divertidas primícias que festejaram o reencontro: nós ambos estávamos velhos.
Estranhei, em princípio, que José de Arimatéia ainda estivesse trancafiado, mas ele me esclareceu em poucas palavras que fora obrigado a se defender do ataque de dois presos que o tentaram violentar, algo comum em cadeia. E ele, reagindo, matou-os, o que lhe ampliara sobremodo a pena. Enfim, estava preso desde quando eu lhe colocara as algemas no seu último dia de liberdade. E foi essa “liberdade” que acabou sendo o foco principal das muitas cavaqueadas que encetamos durante horas e horas, dias e dias, noites e noites, meses e meses, anos e anos...
Com tempo de sobra, eu e José de Arimatéia nos viramos pelo avesso. Ele me relatou miudamente sua vida de encarcerado, enquanto eu lhe narrava minhas peripécias profissionais e pessoais. José de Arimatéia era universitário quase formado quando o prendi. Não fossem os crimes em que se viu obrigado pelas circunstâncias a cometer, estaria livre; mas não parecia se importar com nenhuma liberdade; na verdade, envolvera-se com os problemas sociais dos internos e colaborava vivamente com a massa carcerária, que o designava como “Divino Mestre”. Achei curiosa a designação, e ele não me soube esclarecer a origem, eis que surgira por iniciativa anônima de algum preso. Ele, contudo, não parecia valorizar o deferente tratamento.
Não pretendo aqui reproduzir os incontáveis diálogos que tivemos, eu e José de Arimatéia, mas, sim, gravar a síntese da veemente contradição que ele me enfiou no espírito, tendo como tema central a liberdade. Lembra-me que certa vez ele reagiu, sorrindo, quando manifestei lamento por vê-lo trancafiado durante tanto tempo. A primeira coisa que ele fez foi me indagar se durante as horas em que eu me mantinha na tarefa de cuidar da segurança do presídio, juntamente com os demais companheiros, eu me considerava livre. É lógico que lhe respondi que sim, apesar de com ele concordar que não se tratava de liberdade física, pois, afinal, eu estava com meu corpo tão trancafiado quanto o dele. Apenas havia no caso dele um cadeado a mais... Assim José de Arimatéia divertidamente convenceu-me de que a verdadeira liberdade era a do espírito, ou seja, a mesma que manteve acesa a chama interior de Nelson Mandela durante décadas passadas no cárcere.
Confesso que José de Arimatéia me foi descortinando algumas realidades que eu não entendia claramente. Por exemplo, certa vez ele me convenceu de que até a obrigatoriedade de sair do trabalho ao lar, de cuidar dos afazeres domésticos, incluindo-se, neste caso, o cumprimento da presença física ao lado da mulher, em vez de estar num bar bebericando, também era uma espécie de falta de liberdade, além de muita vez representar insuportável chatice. E, por mais que eu o contestasse, meu espírito mergulhava na dúvida e eu ia também me sentindo aprisionado. Mesmo assim, ainda reagia aos argumentos do terno desafeto, por esse tempo já amigo. Contudo, ele entrou a provar que mesmo preso era mais livre que eu...
Não parei tanto no tempo, devo-lhes aqui dizer. Entrei para a Polícia Militar quase analfabeto, mas com muito esforço consegui concluir o segundo grau em curso supletivo. Aliás, disse-o a José de Arimatéia sem lhe ocultar certo orgulho. E ele, entusiasmado, aplaudiu meu esforço, indagando-me, porém, se eu gostava de praticar habitualmente a leitura. Fui obrigado a admitir que nem mesmo de jornal, pois meu tempo era quase que totalmente dedicado ao trabalho ou ao sono. E nos intervalos, como a maioria dos brasileiros, uma novelinha sempre me caía bem... Divertindo-se com minhas respostas, ele acabou afirmando que, mesmo preso, sempre fora mais liberto que eu. Ah, aí eu estrilei! Não aceitei seus argumentos, mas não pude deixar de ouvi-los.
Depois de citar a clássica indagação de Michel Foucault em “Vigiar e Punir”: “Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”, e de se referir a Machado de Assis e seu conto “Ideias de Canário”, e sem perder seu picante senso de humor, José de Arimatéia explicou-me que muita vez viajou mundo fora: foi ao passado, veio ao presente, projetou-se ao futuro, saiu à liberdade, e voando com as asas da ficção ou da leitura técnica, filosófica ou científica fora muitas vezes às estrelas...
Daí estar a sua dele cela apinhada de obras literárias e de natureza técnica, científica, filosófica etc. Em resumo, um manancial de cultura. Ademais, ainda acrescentara ao seu cotidiano a leitura de jornais e revistas e o estudo de línguas estrangeiras. Se já era um quase universitário quando ali chegou, condenado, alcançara talvez uma espécie de doutorado ou mais... Deste modo, era absolutamente feliz, como Sócrates, o maior de todos os filósofos, demonstrara sê-lo ao preferir a morte em vez da vida indigna que lhe ofereciam para que negasse suas verdades. Sim, isto não me cabia contestar, especialmente porque eu nunca me sentira tão envergonhado da “liberdade” que me fora possível até então desfrutar.
Mais ainda se complicou a minha cabeça quando José de Arimatéia me provou que o fato de ele estar preso decorria de faltas que ele conscientemente praticara. Houvera, portanto, justiça, em seu caso particular. E no meu?... Quantas vezes eu fora injustamente punido por insensíveis superiores hierárquicos? Quantas vezes eu fora admoestado pela patroa por não conseguir prover a família dos meios necessários a uma sobrevivência digna, embora tenha sido honesto durante toda a minha vida?  Quantas vezes eu fui atingido em minha própria liberdade pelo tacanho militarismo que voluntariamente abracei?... Voluntariamente?... Exemplos?... Basta-me um: enfrentar dobra de serviço em razão de alguma inesperada ausência de companheiros ao serviço para me substituir. Sim, pois ali eu estava, já à disposição, apesar do cansaço consequente de estafante plantão de vinte e quatro horas. E quantas vezes fiquei detido em quartel por motivos fúteis, desfazendo programas familiares e ainda recebendo no peito o aborrecimento de mulher e filhos reclamando e afirmando que não entendiam nada daquilo? Enfim, que “liberdade” fora a minha?
Dei razão, sim, a José de Arimatéia. Penso, hoje, que me teria sido melhor a minha vida se naquele distante passado ele fosse eu, e eu, ele. Bolas!... Ele assaltou, mas por fidelidade aos seus ideais políticos. Por mais que tenha sido assalto vulgar, para ele fora ato de heroísmo em prol duma causa na qual ele cria. Não importa se ele estava certo ou errado segundo a ótica de terceiros. Importava-lhe tão-somente a ótica dele, ele era ele, não existia para servir a nada e ninguém além do seu ideal. Tudo o que ele fizera, segundo defendia, fora por um ideal mesmo que a meu ver absurdo. Por isso ele está fisicamente preso, mas permanece com o espírito livre, enquanto que eu, supostamente livre, vejo-me preso à dura realidade de que nada construí por minha própria iniciativa. Só recebi e cumpri ordens...
Em resumo, acomodei-me numa passividade que ocupou toda a minha existência. Fui e sou o verdadeiro presidiário. E não há como reagir, porque, depois de muito ler, concluí que José de Arimatéia não passa dum grande brincalhão, e sabe tanto quanto eu que fomos manipulados pelo mesmo poder de ontem e de hoje, este que se desdobra em vertentes gêmeas (econômica, política, religiosa, militar) para se adaptar às transformações sociais, porém jamais mudando de mãos. Sim, esse poder é o que paira sobre as coisas e as pessoas, manipulando-as, para assim atingir seus objetivos, que, enfim, se resumem aos interesses da elite. Por isso é que meu amigo José de Arimatéia está punido, e é por mim vigiado, muito embora eu também esteja tão vigiado e punido quanto ele. Enfim, somos apenas dois sonhadores que chegaram ao fim da vida perdendo para um único ente que realmente domina o planeta: O PODER.

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