quinta-feira, 20 de abril de 2017

MEMÓRIAS DE UM POLÍTICO



UM
 

Um cubículo apertado é o lugar onde cumpro sentença judicial. Aqui me sobra tempo para movimentar meus neurônios em incontáveis cambalhotas, eis que estou preso há dois anos de mais dez de tranca dura que me ainda faltam. Poderia, sim, estar a reclamar, a me sentir infortunado, a me fingir um coitadinho, a derramar lágrimas no papel, a lamentar o azar, dentre outros apelos emocionais, mas não o farei. Mereço aqui ficar, por conta da minha própria distração, como você perceberá adiante.
A penitenciária é um ótimo lugar, não para todos os que aqui obrigatoriamente residem, mas para aqueles que dispõem de algum vil metal para gastar. É o meu caso. Sim, amigo, não pense que existem celas individuais a acolher todos os companheiros de infortúnio. Há as galerias de cubículos para os mais aquinhoados e os espaços coletivos onde está o grosso da massa carcerária. Vivem mal, os coitadinhos, amontoados uns por cima ou por baixo dos outros. Alguns têm até de se revezar, ficando de pé, para que outros possam deitar e dormir no chão gelado. Que pena!
Tenho pena deles, sim; confesso-lhe, porém, que nada posso fazer. Se as dignas autoridades públicas quisessem, até daria para minorar-lhes o sofrimento, bastando colocar uns beliches nas galerias acomodando os pobres-diabos verticalmente. Pelo menos teriam como dormir melhor. Mas parece que falta dinheiro nos cofres governamentais... Bem, chega de pensar em desgraça alheia. Devo agora me apresentar, para que eu não lhe fique parecendo um sinistro personagem de Agatha Christie: chamo-me Estelio da Silva Natário, em imperativa temporada na Penitenciária Barreira Filho. Nada demais fiz, apenas uns ingênuos chequinhos sem fundos aqui, outros ali, alguns mais acolá. Mas, para que o estimado leitor não pense que lhe começo mentindo, devo dizer que também tentei atravessar uns processinhos de aposentadoria na previdência social. Nada demais, exceto por um detalhezinho bobo: as viúvas não existiam e os defuntos nunca foram enterrados. Mas acredite piamente em mim, caro leitor, que me começa a conhecer agora, foram apenas uns casinhos de nada, pouquíssimos, talvez uns seiscentos, só para descolar uns trocadinhos extras. Até hoje não entendo como tudo deu errado, como bola de neve a rolar morro abaixo e caindo pesada em minha pobríssima cabeça. Logo eu, um fenomenal craque da vigarice, um gênio da trapaçaria, o mais falaz de todos os golpistas vivos, vendo aqui o sol nascer quadrado com tantos otários me esperando lá fora. Dói-me pensar nisto, dói-me deveras...
Creia-me, prezadíssimo leitor, fiz uns arranjos documentais da mais alta categoria. Como estava na proa da armação, caprichei ainda mais na feitura das certidões, na montagem das identidades, na falsificação de carteiras de trabalho, carimbos de banco e coisas do gênero. Não sei mesmo como tudo veio à tona. Fui preso por uma coisinha de nada e me surgiram muitas outras broncas a complicar minha doce vida. Por isso cá estou, puxando doze anos de tranca dura em somatório de penas e mais penas.
O caríssimo leitor deve estar pensando com os seus botões: “Que caradura! que safado! que desonesto! que sem-vergonha!” Está certo, sim, está certo, amigo e prezado parceiro, que aí está interessado no que lhe vou contar. Mas creia-me, não sou de todo ruim. Tenho meus rasgos de honestidade, particularmente comigo mesmo. Por exemplo, nunca dei cheque sem fundos contra mim... Vou falar só para você, que já considero meu camarada de fé: possuo uma conta com muita grana num banco. Sou o titular, mas neste aspecto particular a Dona Justa dançou, pois tive o cuidado de abri-la mediante o uso de nome falso. Lá sou outro, mas quem a movimenta sou eu. Lá não sou o Estelio da Silva Natário, sou o... Ih, não lhe devo dizer, senão acabo nas mãos da Dona Justa de novo.
Eu movimento a conta e mais ninguém. Sempre em segredo. E foi a minha sorte. No início, eu cá me virava apenas com os dividendos desta sagrada conta, quando o nosso amado Brasil vivia em inflação galopante. E nem precisava mais que isso, que tempo bom! Como se faturava de juros e correção monetária! Nunca depositei nesta conta cheque sem fundos ou tentei enganar o gerente com alguma retirada sem a devida cobertura. Estaria golpeando a mim mesmo, o que, cá pra nós, não teria nenhuma graça. Hoje gozo de elevado conceito no banco, que somente me conhece por elegante assinatura que aponho aos cheques e aos certificados de depósito. E muitos depósitos tenho feito. Tenho hoje mais numerário que antes.
Sim, tenho hoje mais que antes da minha prisão... O amigo deve estar sem entender nadinha. Como posso ter mais que antes, se estou trancafiado há dois anos? Calma! calma! Vou explicar sem delongas. Nem eu mesmo sabia que o melhor lugar para realizar minha prodigiosa arte fosse a cadeia. Nunca havia enfrentado a tranca. Confesso-lhe, amicíssimo leitor, que aqui cheguei apavorado; imaginava a cadeia amarga como o fel. Uns diziam que me fariam a mocinha do xerife; outros me assustavam em relação aos guardas. Que nada! Os guardas são anjos! Maravilhosos anjos da guarda!... Não tão gratuitamente, é óbvio, pois há algumas benesses pecuniárias que explicam as mesuras com que sou tratado. Você verá, caro leitor, que seria uma grande injustiça de minha parte se eu criticasse o sistema carcerário. Pois afirmo logo, e sinceramente enfático, que o sistema carcerário é ótimo!
Repito que o sistema carcerário é ótimo. E não tem nenhuma culpa de aqui me receber por doze longos anos. Eu, sim, é que me deixei ficar na mira da Dona Justa por condenável desatenção, ou por fazer algo que é imperdoável no meu artístico mister: confiei na patroa. Veja só, amantíssimo leitor, como é que eu poderia confiar em alguém, se vivia de explorar a boa-fé alheia? Como me pude deixar, logo eu, ter boa-fé com alguém que não fora eu mesmo? Inexplicável! incrível! imperdoável!... Mereço o castigo, severamente, confesso-lhe!
Mereço o castigo, sim. Não por masoquismo, mas por me sentir na necessidade de reparar meus erros. E não me venha, meu especialíssimo leitor, me entender mal no que lhe quero dizer. Não pense que me estou admitindo regenerar. Não, um bom vigarista nunca se regenera. Dir-lhe-ia mais claro que me refiro aos meus próprios erros profissionais, como cautela, para nunca mais cometê-los.
É verdade. Um simples deslize me trancou aqui, um excesso de confiança. Veja só, meu amigo, eu estava numa loja adquirindo uns eletrônicos quando recebi a inesperada voz de prisão. Um policial fora avisado por um astuto gerente depois de ele, o gerente, conferir a falsidade do meu cartão de crédito. Dizendo melhor, não a falsidade, mas o nada que ele representava, culpa da ex-patroa Raimunda. Culpa dela, sim, somente dela, que mexera em minhas algibeiras atrás de um vil metal e me trocara um cartão que derrubara por outro, desmagnetizado, este que me enrolou a vida. Eu o desmagnetizara para preenchê-lo com novos caracteres. Passaria por qualquer checagem das lojas. Mas, em branco... descobriram tudo e dancei legal.
Não pude saber se a ex-patroa me botou na fria de propósito. Nunca mais me visitou ou mandou qualquer recado ou resposta aos meus apelos. Simplesmente abandonou-me no dia em que fui preso. Tudo bem, valeu o casamento enquanto durou! E, também, ela já não estava lá essas coisas: caidinha, caidinha... ela estava. Foi-se com tudo o que existia na casa, – ou o que pensava existir, – além dos bens em seu nome, que tudo vendeu. Acho que tornou à terra natal – o Nordeste. Que Deus a tenha! Que seja feliz, como cá estou!
Pior é a dúvida, não de infidelidade conjugal. Falo das broncas que pipocaram junto e após a prisão, aquelas que comentei e que engrossaram a sentença da Dona Justa. Tudo bem, bom cabrito não berra!... Mas berro, sim! Berro de felicidade, prezadíssimo leitor. Sou feliz, muito feliz! A vida na cadeia tem seus inconvenientes, decerto, principalmente a falta de liberdade. Mas tudo é regiamente compensado por vantagens que eu até então desconhecia e que só existem aqui. Considere, entretanto, que tudo depende do poder aquisitivo do cidadão sentenciado. Aqui sou elite, dou ordens que são imediatamente cumpridas. Mando e desmando na administração. Custa-me um bom trocado, mas vale a pena, especialmente porque ganho mais aqui do que ganhava lá fora...
“Como?”, perguntar-me-ia o leitor. Dir-lhe-ei como. Pra começar, estou rodeado dos melhores e maiores criminosos, grande quantidade deles, a necessitar dos meus excelentes préstimos profissionais. Eis a primeira vantagem: aqui a polícia não atrapalha, não me vem prender em flagrante de coisa nenhuma. E tenho tudo que preciso para produzir a minha arte. Disponho de toda a matéria-prima para montar uma conta bancária, um cartão magnético, um DARJ e quejando. Trabalho com calma e precisão. Produzo o melhor material de vigarice da praça. No fim de contas, disponho de todo o tempo que preciso.
A procura é enorme. Pagam o que cobro, e cobro bem. Não reclamam, pois o serviço é de primeiríssima qualidade. Também dou consultas durante a visita, geralmente aos domingos, e sou o mais visitado da cadeia. Tenho até uma secretária a atender a clientela. Bom... não é bem secretária, mas, secretário, cuja atividade externa antes de matar o amante era a de cabeleireiro. Digamos que ele (a) seja um adamado, que tenha mais pronunciado o seu lado feminino. Sim, sim, caro leitor, ele (a) é sim! Há necessidade de lhe clarear mais?
Nem médico terá mais cliente que eu, pois são compridas as filas de pessoas encaminhadas pelos demais companheiros de infortúnio. Eles ganham um percentual do serviço vendido. Atendo a todos, sou uma necessidade insuperável por outros meios. É fácil entender: como os assaltantes irão cumprir os seus misteres, se estão em cana? Como os traficantes irão traficar, se estão em cana? E, generalizando, como os criminosos irão praticar seus crimes, se estão em cana? Viu só, caro leitor? Comigo aqui, mesmo em cana eles ganham seus trocados sem riscos. E eu vou tocando a vida e engordando minha boiada lá no banco sem perigos.
Sem perigos, disse-lhe logo antes, mas não tanto assim. Tenho de me arquear a algumas regras antigas do lugar. Uma delas, – a mais importante, – é a de cumprir com fidelidade o seguro de tranca e vida. A cadeia não pertence ao diretor nem aos guardas. A cadeia é de Zé do Cerol, preso antigo, vinte homicídios lá fora e cinco aqui dentro. É o xerife! O homem que manda e desmanda! Quando cheguei, fui logo a ele apresentado. E o danado me ditou as regras, que obedeço com exatidão. Em resumo, tudo o que produzo lhe dá o direito a 30%, nem mais nem menos. Pago sem reclamar. Com ele não quero problema nem muito papo. Aliás, ele não gosta de firulas, não. O bicho é perigoso, é besta-fera. Melhor deixá-lo sossegado.
Mas quero contar ao amicíssimo a minha vida, uma doce vida, sem dúvida. Lá fora vivi de esperteza pura, de golpes de mestre dos quais me orgulho. Sou um craque em enganar os otários, um ás da trapaçaria. Sinto prazer nisso, como o pintor que produz a obra-prima. Cada artimanha é para mim obra de arte, e cada nova vigarice, um raríssimo prazer. Vou narrar um golpe que dei em São Paulo, e o ilustre leitor há de concordar que sou um artista da maior qualidade.
Certa vez, viajei do Rio de Janeiro à capital paulistana. Comprei as passagens com cartão de crédito falsificado, sem qualquer problema a não ser para o ricaço lá do Sul... Também reservei hotel de cinco estrelas por telefone, tudo em nome de um empresário carioca de conta gorda no banco. E pedi ao hotel uma limusine para me pegar no Aeroporto de Congonhas. Nunca gostei de dar golpe em pobre, mas também não admitia pagar nem mesmo o táxi. Pagar é sinal de imperdoável fraqueza na profissão. Presenteie sempre, mas não dê dinheiro nunca, a não ser para comprar um favor, como é o meu caso atual. Contudo, se der algum dinheiro, por menor valor que seja, valorize... valorize... valorize... e o pouco muito valerá.
Cheguei ao hotel com pompas de imperador. Subi à suíte presidencial, onde me aguardava uma equipe exclusiva de atendimento. Enchi-lhes os olhos cobiçosos com a notícia de que ao final da estada receberiam a melhor gorjeta da vida. Os bugalhos deles faiscavam, mas eu não estava pensando em lhes dar algum prejuízo. Ah, não esclareci ao atento leitor: o vigarista só consegue sobreviver em meio à cobiça alheia. Em existindo a cobiça, tudo é deveras fácil.
Pedi champanhe Cristal, aquela especialíssima, que vem numa garrafa dourada como o ouro. Sorvi o líquido dos anjos e me entreguei aos braços de Morfeu, o filho do Sono e da Noite. Sim, sim, dormi feito um nababo, acordei com um café trazido na cama simplesmente majestoso e, finalmente, saí às compras. Que tratamento!... Fui na limusine, uma beleza! Motorista uniformizado, luvas brancas, gravata borboleta, boné e tudo mais que eu tinha direito, tudo meu e bem pago... na saída.
Nas lojas da cidade, comprei de tudo em matéria de roupa. E não deixei de adquirir algumas lembranças para presentear meus acólitos, incluindo-se o motorista, para quem logo destinei um relógio de primeira qualidade. Ele vibrou com o presente, assim como os demais.
Nos dias que se seguiram, me trataram ainda melhor. Resumindo, como a um rei. Saí ao cabo de uma semana. Paguei a conta, não sem novamente presentear meus amigos, evitando qualquer insinuação sobre dinheiro vivo. Não que me faltasse, mas, por uma questão de critério profissional, eu não desembolsava nada mesmo. A limusine me levou ao aeroporto e tornei ao Rio de Janeiro. Que surpresa deve ter tido o gerente! Tudo frio, nada pago. Talvez tenha perdido o emprego, talvez não. Mas uma coisa é certa: as arraias-miúdas adoraram os presentes. E devem até hoje torcer para que eu lá retorne, coisa impossível, especialmente agora... Hum!... Tenho um perfil socialista?
Sim, são muitos, muitos mesmo, os golpes de mestre que apliquei ao longo da minha vida de armações e trapaçarias. Mas tenho um orgulho, caro leitor: jamais me envolvi em qualquer outra transação criminosa que não fosse estelionato, nunca trafiquei, ou assaltei, ou matei, e muito menos prejudiquei algum pobre. Tenho, sim, um senso de responsabilidade social deveras apurado. De ricos e do governo nunca tive pena nenhuma. Dei-lhes golpes de toda ordem.
Bem, tantas histórias... Mas acho que o digno leitor deve estar desejando mesmo é conhecer melhor a cadeia, os meus anjos da guarda, etc. São boas pessoas, sim. Há os guardas Gabriel, Moisés, Thomé, Paulo e Pedro. Há de haver muitos outros, porém esses me são os mais chegados. Trabalham em minha galeria. São pessoas simples, do povo. Há também as enfermeiras, que trabalham em plantão de 24 horas. Duas são mais velhas, casadas e muito sérias. Ainda bem que somente duas, porque as demais, quatro delas, quando bem pagas são muito dadas com alguns presos... Eu, particularmente, gosto deveras da Maristela e da Glorinha, duas joias raríssimas.
Maristela é morena, raspando os 25 anos, corpo bem-feito e provocativa. Muito simpática, os presos a adoram. O mesmo ocorre com a Glorinha, loura esvoaçante, 24 anos e muitíssimo atraente. O corpo, um monumento. Ambas, Maristela e Glorinha, vêm sempre medir-me a pressão em horário especial durante o plantão. Que bocas!... Meus anjos da guarda cuidam de trazê-las à hora que lhes determino. Custa-me uns bons trocados, decerto, mas pode ter certeza, – meu já íntimo leitor, – de que vale a pena.
Ai de mim, se não fossem os guardas!... Ih, não me posso esquecer do meu amado diretor! Grande figura, o meu diretor, Dr. Onestinho Dureza, um paizão. Vaidoso, sem dúvida, e por isso está sempre a variar belos ternos, lindas gravatas italianas e sapatos de pelica. Que gosto apurado! Excepcional pessoa é o meu diretor, sempre afável, parece até político em campanha. Se depender dos presos e de mim, morre de velho no cargo...
– Oi, chefinho, atrapalho? – surge-me o guarda Gabriel interrompendo meus sacratíssimos devaneios.
– Não, meu amigo! É sempre bem-vindo ao meu lar. – Diga-me, Gabriel, como estão as coisas na cadeia?
– Uma tranquilidade, chefinho! Tem aí um pessoal querendo marcar consulta na próxima visita. Dá pra trazer alguns antes? É lógico que preciso dar um agrado ao supervisor, mas é coisa pouca...
– Tudo bem! Pode trazer quem quiser. Mas antes preciso que você leve uma encomenda minha ao Zé do Cerol. Diga-lhe que coloquei um acréscimo, com os meus respeitos.
– É pra já! E com os meus respeitos também! – concordou e se despediu o simpático guarda, enfiando num bolso a encomenda de Zé do Cerol e, no outro, a dele próprio, como de praxe.
Que seria dos anjos da guarda sem os seus bolsos?... Desculpe a interrupção do Gabriel, amigo leitor, mas foi providencial, porque me havia esquecido de falar nos supervisores. Boas praças, os supervisores, desde que lembrados. É lógico que não esqueço deles, que até já precisaram de apresentações a amigos meus para resolver pequenos problemas na previdência social. Recomendei-os, foram otimamente servidos e nada pagaram. Nunca se sabe o dia de amanhã...
A cadeia não é tão ruim, como você está percebendo. Permite-me inclusive umas distrações mais amiúde, como ver televisão e ouvir boa música. Não sei por que os guardas não permitem a entrada de computadores. Quero crer que a nova máquina ainda os assusta, pois eles, diferentemente de mim, não acompanham a evolução da tecnologia, até porque pensam somente em superar as dificuldades decorrentes de seus baixos salários.
Sim, amigo. Observo a tecnologia com redobrada atenção, minha dileta profissão o exige. Na vigarice de alto nível não há lugar para mentes curtas e improvisações. Veja só, meu indispensável leitor, sou obrigado a aqui estar gastando tinta e papel sem poder nem mesmo utilizar o Notebook que lá fora tenho. Não vale a pena contrariar os guardas, nem tanto eles, mas os desconfiados presos. Podem pensar que estou trazendo alguma arma e acabo mal. Não me arriscarei a tanto, vou de papel e tinta mesmo para lhe escrever minhas memórias. Por falar nisso, devo confessar que já é tarde. Darei agora uma paradinha. Boa-noite, então!...
Dormi o sono dos justos. O sol da manhã já penetra o pequeno buraco gradeado que chamam aqui de janela. Contudo, devo logo esclarecer que este sol me custou alguns trocados. Ou você está aí pensando que fora sorte minha ocupar uma cela voltada ao sol da manhã? Não, meu caro, nada de sorte, não! Bem, como você também deve ter inferido, não me posso expor aos rutilantes raios solares. Como entram quadriculados no cubículo, as sombras das grades marcar-me-iam o corpo, gradeando-o. Assim, ficaria preso em mim mesmo, o que, convenhamos, é punição assaz exagerada. Mas é bom ver o sol entrar sem pedir licença. Ele me desperta para a vida, traz o azul do firmamento para perto de mim e me sinto poético.
Sinto-me poético, devo repetir, mas um poeta sombrio e com ânsias de poesia trágica. Vou à janela e fito o céu, lindo. Mas embaixo tenho a vista completa do campo de futebol, dos colegas de infortúnio andando para lá e para cá num vaivém nervoso, sem sentido, perigoso. Como diz o velho ditado: “Mente ociosa é oficina do diabo!” É mesmo! Ali estão eles, às centenas, aproveitando-se um pouco da efêmera liberdade do banho de sol. E também de quando em quando tirando suas diferenças, pois volta e meia surge o sangue de algum desgraçado com o seu corpo caído e manchando o verde do gramado, ou pintando de vermelho o chão duro da trilha marcada por pés sistemáticos que vão e voltam ao mesmo lugar.
Não me sinto mais poético. No banho de sol não compareço. Prefiro gastar uns extras e pegar o meu particularmente. Há um bom lugar para isso, numa área proibida aos presos. Não a mim, é lógico; ou você acha que meu paizão diretor compra com dinheiro dele os ternos, as gravatas italianas e os sapato de pelica? E as belas camisas dos supervisores? Sim! sim! meu amigo, tenho o vício de presentear. Adoro acariciar com singelas lembranças os meus anjos da guarda, todos eles, sem distinção. E gozo, por isso, de algumas pequenas regalias que nem a periculosidade de Zé do Cerol resolvem. Com efeito, ele é matador, é bicho do mato! Então que fique na jaula, seu melhor lugar!
Ih! deixei escapar uma inconfidência. Acho que o leitor já percebeu que não engulo o facinoroso Zé do Cerol. E já deve também ter descoberto as razões que me levam a nutrir este arriscado sentimento. Sim, amigo, é que sou impelido pelas circunstâncias a lhe destinar 30% do que ganho. E ele controla cada consulta que dou, os presos contam-lhe tudo. Não posso marcar bobeira, mas não gosto de gastar assim; gosto é de presentear por prazer e sem pressões. Por isso Zé do Cerol irrita-me ao extremo.
Irrita-me deveras. Hei de um dia armar uma casa de caboclo para ele, falando em sua pobre linguagem. É, efetivamente, uma ideia poética, um dia ver o corpo dele avermelhando a grama. A cadeia precisa de um líder mais democrático, como eu, você não acha? Por isso não gosto de ir ao banho de sol, assim como raramente compareço ao refeitório. Porém, quando vou, procuro me sentar discreto e distante do perigo. Mas não posso evitar que Zé do Cerol me convoque à honra de sua mesa. Confesso-lhe que vou, porém cheio de pavor. Aquele nordestino assusta-me ao estupor. Eu, que sou um craque na dissimulação, tenho de colocar toda a minha falacíssima arte à disposição do meu autocontrole. O vagabundo, – perdão pelo excesso, – o vagabundo nem em sonho pode perceber a minha ira. Não sabe que um dia serei o líder, mas em outro estilo...
Como já reclamei, não engulo o paradoxo de dar propina a bandido. Ainda mais a um facínora sem imaginação que se impõe pelo terror. Dar um agrado a policiais é normal, é útil. Ganham mal, coitados, e merecem uma ajudazinha de quando em quando. Mas, pagar seguro de tranca e vida a vagabundo de merda, mísero pé de chinelo, não aceito mesmo. Faço-o, sim, porém não por muito tempo, minha inteligência há de vencê-lo um dia; não tão cedo, decerto, eis que tenho só dois anos de dez que ainda me faltam cumprir. E pressa é arma de otário, o que efetivamente não sou. Rogo ao paciente leitor que me desculpe pelo “vagabundo de merda”, mas não vou riscar do papel o impropério. Deixá-lo-ei, para reforçar minha indignação.
Ah, vamos nos acalmar e voltemos ao belo sol a entrar em minha confortável porém diminuta cela. Vem comigo ver-lhe as melhorias; no lugar daquele deprimente buraco no piso mandei adaptar um modelito italiano. Levanto a tampa estilizada e me surge a música animando-me à descontração. Na parede, instalei uma ducha com água quente e fria e um providencial chuveirinho que me evita as hemorroidas. Aqui, papel higiênico é jornal velho, o usual da maioria dos colegas de infortúnio, e às vezes até utilizado mais de uma vez, de ambos os lados. Não é o meu caso, que tenho sempre o mais fino dos papéis...
Veja a minha cama, articulada para tornar-se maior quando recebo as simpáticas visitas de Glorinha ou Maristela. A gradeada porta, nessas ocasiões, cobre-se com a cortina em rolo que está em cima, tão enrolada quanto eu. Mas é eletrônica, com todo respeito ao amantíssimo leitor, que talvez não goze em sua casa deste conforto, a não ser que seja um afortunado nas finanças ou que exerça a mesma profissão que eu. Se for rico, preciso da sua amizade, especialmente tendo acesso aos seus dados pessoais... Se for como eu, desculpe-me, não sou adivinho, aí é conversa entre irmãos de profissão.
E minha estante?... É bonita, sem dúvida! Há nela livros de Machado de Assis, meu ídolo, e mais Jorge Amado, Camilo Castelo Branco, José de Alencar e Adonias Filho. Gosto de outros, mas tenho de aprimorar meu lado técnico. Por isso é que coleciono obras sobre informática, economia, contabilidade bancária e outras que porventura me interessem profissionalmente. E há o som, – moderníssimo, – e a tevê, – a cores e com videocassete embutido, – tudo de primeira, últimos lançamentos. Na semana passada presenteei o supervisor-chefe com minhas aparelhagens mais antigas. Não tanto, pois eu as havia adquirido seis meses antes.
O guarda Raphael é, como eu, amante de boa música e filmes épicos. E cuida desses meus prazeres com muito zelo. Compra para mim os últimos lançamentos em CD e vídeo, que, depois de tornados cansativos, vão parar em sua coleção particular. Dou-lhe também uns trocados sempre com muito gosto. Ele merece! Como você pode notar, prezadíssimo leitor, é diferente daquela extorsão da qual sou vítima por parte do malévolo Zé do Cerol. Como pode um sujeito matar 25, e a maioria de peixeira? Não entendo, não gosto de violência. Sou um pacífico especialista em engodo, com muita honra. Minhas armas são a inteligência, a habilidade manual e a lábia, sem falar em meu penetrante olhar de convencimento direcionado às incautas mentes alheias. Pense comigo, caríssimo leitor, já abusando da nossa crescente intimidade, acha que mereço estar aqui?
Se concordou que não mereço, errou, meu amigo. Mereço, sim! E como! E já me teria trancado antes se soubesse que a cadeia é assim tão boa. Zé do Cerol é um risco, sem dúvida. Não obstante, seria pior lá fora, porque nada impede a um vigarista de ser assaltado por um desconhecido pivete e acabar com um jornal na cara e quatro velas em torno de si colocadas por uma contrita idosa. Sempre aparece uma quando morre alguém nas ruas. Surge do nada, como por encanto, com aquelas quatro velas, posiciona-as, acende-as, e reza ao corpo caído como se num altar estivesse. Bela senhora! O céu a acolherá!... O céu? Ih, esqueci-me totalmente do céu, que eu estava a admirar quando devaneei sem freios. Volto-me a ele, agora já perto do meio-dia. Hoje é domingo, dia de visita e de consultas em minha cela. A fila é grande lá fora. Vou começar a receber os clientes.
– Com licença, seu Estelio! Vim aqui pro senhor escrever uma carta à mãe, lá no Nordeste – apresentou-se, rogando, o primeiro da fila.
– Pois não, meu amigo! Fale-me rápido sobre sua mãe. Vou fazer uma linda carta pra ela.
– Numa boa, seu Estelio! Só não lhe posso pagar com dinheiro, mas tenho quarenta cigarros – sugeriu-me o animado cliente.
– Por que você está aqui? – perguntei-lhe.
– 121. Passei a peixeira no bucho dum filho da puta lá em São Cristóvão, na feira do Nordeste. O filho da puta me ofendeu, me chamou de veado. Semana antes, me chamou de corno. Não liguei. Me chamar de corno, não ligo, mas de veado, não! Se pudesse, até ao inferno eu ia pra matar o cabra de novo! – exasperou-se Damião. – Damião era o nome dele.
– Tudo bem, Damião! Fique calmo, que lhe vou caprichar no recado à sua mãe. Vamos poupá-la do sofrimento de saber que você está em cana. Vou colocar o endereço de minha caixa postal pra ela responder a você, como faço com os demais colegas de infortúnio.
– Puxa, obrigado! Quando precisar do amigo aqui, pode contar. Só pra duas pessoas na cadeia eu bato cabeça: o senhor e Zé do Cerol. Pra vocês dois, faço qualquer negócio...
Escrevo a carta já danado da vida. Você me entende, não é mesmo, caro leitor? Estava eu a pensar numa possibilidade, mas com esse nordestino, nem pensar!... Vou correr com a fila, para ver se pinta algum serviço externo. Esse negócio de receber em cigarros não me interessa muito, porém serve para presentear alguns colegas de infortúnio e assim ampliar minhas amizades e  – por que não dizer? – a minha liderança.
– Meu chefinho, hora do almoço. Aqui está o que o senhor me pediu pra trazer daquele restaurante italiano – apresentou-se o solícito guarda Pedro, de serviço neste domingo.
– Valeu o favor, prezado amigo! Tome lá uns trocados pra reforçar a receita do mês. Você é um grande amigo, um verdadeiro anjo da guarda – respondi-lhe, satisfeito.
Quer almoçar comigo, caro leitor? O prato é de primeira: arroz à piamontese, frango empanado e torta de maçã de sobremesa. E vinho italiano, que não sou de ferro e hoje é domingo. Deu-lhe um vazio no estômago? Então vamos almoçar, eu aqui, você aí. Depois curtirei uma ópera e descansarei um pouco. Afinal, é bíblico guardar os domingos, não é mesmo?
Noite de domingo, noite chata, dia de trabalho amanhã. Não para mim, que aqui estarei, em minha cela estilizada, mas para você, prezado leitor, que almejo esteja bem empregado. E lhe quero deixar uma sugestão: se o seu mister permite-nos alguma transação, não me tenha pejo em falar. Venha até aqui me visitar, que pode pintar um bom negócio entre nós. Se for realmente papa-fina, o negócio, até dispenso o pagamento da consulta. Sim, pois negócio só é bom quando o é para todo mundo, menos para o último da linha, que sempre perde. Afinal, alguém deve perder para um outro ganhar. É uma questão de princípio físico... E pode ter certeza de que aos parceiros não engano. Já há tolos demais no mundo. Por isso, dá para lhe garantir a mais absoluta honestidade.
Você trabalha em banco? Aí tem boas perspectivas. Você trabalha no DETRAN? Puxa! Dá para armar cento e setenta e um milhões de diabos! Você trabalha na previdência? Ih, nem me fale! Se você é deste ramo, vamos juntos armar trezentos e quarenta e dois milhões de diabos. Ah, o amigo trabalha em seguradora?... Nossa! que campo! que maravilha! Viu, como podemos ser bons parceiros?
Não trabalho sem parceiros. Sem eles, nada sou, nada posso. Há muitos disponíveis, mas depende de algumas qualidades, como, por exemplo, inteligência, ambição e vontade de vencer na vida sem forcejar muito o físico. Depende mesmo, na verdade, é de falta de vergonha na cara e de indiferença quanto aos prejuízos alheios, desde que os alheios sejam ricos. Negócio com pobre dá azar, não é bom para o exercício dinâmico, coerente e lucrativo da nobre profissão de vigarista. O bom vigarista há de ser um refinado, um cavalheiro em todos os sentidos. Vigarista maltrapilho não leva bom futuro. Boa aparência é a alma de um bem-sucedido negócio. Está em dúvida, dúvida cruel? Eu lhe vou clarear mais a filosofia do bom vigarista, caríssimo leitor...
O bom vigarista, explicar-lhe-ei com maior clareza, posto você já ser merecedor de minha confiança, o bom vigarista visa sempre ao olho-grande alheio. A vítima deve ficar impressionada logo ao primeiro contato. Por causa disso, é fundamental o uso de boas roupas e joias caras. Aconselho um Rolex no pulso e um cordão de ouro no pescoço, que não só impressione pela beleza, mas também por um peso que desperte a cobiça do incauto a sua frente. Um anel de brilhante é de bom alvitre usar. A aparência é tudo na vida de um competente finório. Unhas tratadas, cabelos aparados, barba rapada, bom perfume, tudo isto compõe a imagem do vigarista refinado. É com esta imagem de rico inocente que o vigarista desperta a cobiça do alheio que sempre almeja o lucro fácil; é assim que se atrai o seu olho-grande e se lhe embacia o raciocínio. Pode ter certeza, meu amigo, de que a cobiça cega!
Cega, a cobiça... e como cega. Sem ela contagiando o espírito do alheio, é-nos impossível aplicar-lhe um bom golpe. É na cegueira que ele perde para você. Por exemplo, se você escolhe comprar uns eletrônicos com cartão falso, chegue indiferente, fique apreciando os modelos mais caros, porém como se não desejasse nada além disso; mas chegue enfeitado, como lhe sugeri. E ele virá, não o vendedor, mas o dono da loja, doido para lucrar o diabo nas suas costas. Não lhe dê muita atenção; deixe-o falar, humilhado, oferecendo-lhe os produtos; peça explicações altamente abalizadas... Entendeu agora os livros técnicos em minha estante? Sim, meu confidente amigo, sim, sim, é por este caminho que a presa vem em direção à armadilha, como o roedor caminha à morte atraído pelos olhos penetrantes do anfíbio.
Imponente. Seja também imponente, e o dono vender-lhe-á até as calças sem lhe conferir o cartão.  Depois mandará os carregadores colocarem os produtos direto na mala de seu carro, – há de ser um Mercedes-Benz, – e ele, o ambicioso, gozará da satisfação de ter-lhe dado o maior golpe do mundo. Deliciar-se-á da suposição de que você, do alto de sua magnânima riqueza, não estará nem aí para os preços exorbitantes dos produtos. E você não estará nem aí, mesmo. No fim de contas, nada será pago. A cobiça... a ganância... a ambição... o olho-grande, eis a síntese filosófica da vigarice. Ó vigarice! Venhas a mim a tua inspiração! Que belas-artes se encerram em ti!
Caro leitor, veja só no que dá não ter um bom programa domingo à noite, especialmente quando o seu time perde de tarde. Não há opção de lazer. Sugiro-lhe, pois, a leitura de um bom romance. Mas não se esqueça da patroa ao lado. Traga-a a seus pés e faça-lhe cafunés indiretos, do tipo esfregar pé no pé ou acariciar-lhe os cabelos no auge dos suspiros provocados pela boa leitura. Nesta hora, não leia o Adonias Filho. Escolha um autor mais romântico, como Joaquim Manoel de Macedo ou José de Alencar. Mas, em termos de lascívia, melhor seria João Ubaldo Ribeiro.
Não perca nunca o romantismo e esteja sempre a estimular o tesão. É conselho de amigo experiente. Você sabia que um conceituado vigarista nunca briga com a patroa? Dei-lhe o meu próprio exemplo. Não pense que não me doeu ser abruptamente abandonado. Mas já pensou, se a Raimunda resolvesse falar tudo o que sabe de mim?... Ainda bem que somente preferiu encher suas algibeiras com parte dos meus ganhos e se escafeder mundo afora. Sim, na sua cobiça, – sempre a salvadora cobiça, – ela se foi, crente de me haver deixado duro. Graças! Muitas graças à cobiça!
Não dispense o seu lado sentimental, caro amigo. Pode ser que seu domingo termine com uma bela cena de amor e sexo, algo sublime. Se você tem amante, o conselho vale ainda mais. Deixe-a para segunda-feira, porque patroa nenhuma espera um toque convidando-a ao sexo nesse dia. Cansa-se do descanso do fim de semana e está satisfeita com a véspera. Mas só tenha amante se você é mesmo bom de cama. Não se engane com a sua capacidade de desfrutar do melhor prazer do mundo só por mera vaidade ou artificial estatística. Ó noite de domingo! Como você despertou meu lado poético! Vou chamar meu anjo da guarda feminil, clamarei pela Glorinha, que está hoje de plantão. Vou medir minha pressão...
Segunda-feira é marasmo na cadeia, dia de ociosidade, oficina do diabo. Os presos, ainda sob os efeitos das visitas íntimas da véspera, não raciocinam bem. Alguns estão enlevados. Tiveram a sorte de curtir suas esposas, noivas, amantes e namoradas em dias bons. Outros, porém, se demonstram nervosos, eis que deram de cara com a vermelhidão daqueles dias de suas companheiras. Não desço ao pátio nem ao campo de futebol de jeito nenhum às segundas-feiras, nem mesmo quando o maldito Zé do Cerol me manda ordem para tal fim. Fico doente, invento desculpas, mas não desço mesmo. Já imaginou, caro leitor, se a cara-metade da fera estivera avermelhada na véspera?
Não saio da cela às segundas-feiras nem para o banho de sol particular, porque pode desbarrancar minha mentirosa alegação de doença. Caio em contradição. Um bom vigarista nunca cairá em contradição. Será sempre incisivo e autêntico. Deverá sempre olhar no fundo do olho do alheio. Isto inspira maior confiança, particularmente porque funciona a máxima de que os fingidos não encaram as pessoas de frente. Portanto, olhar de frente afasta a desconfiança. Faço isto com maestria. Só me dei mal com o policial que me prendeu. Ele não me olhou, não me deu a chance de convencê-lo de que sou uma pessoa da mais alta confiabilidade. Mas me jogou aqui, coitado, talvez pensando ter encerrado minha carreira. Nunca imaginará que a reiniciou em grande estilo, exceto pelo risco representado por Zé do Cerol; tudo aqui seria perfeito sem o Zé do Cerol... Ora bolas! Sempre o tal do Zé do Cerol a me perturbar a paz!
– Chefinho, Zé do Cerol tá pedindo sua presença na cela dele. Parece zangado! – disse o guarda Paulo, deixando-me nervoso. – Será que o endiabrado estaria a adivinhar meus pensamentos?
– Obrigado, grande amigo. Tome uns trocados pra reforçar a receita da semana. Tudo bem com a patroa? – perguntei-lhe, muito mais para me livrar do meu próprio medo.
– Puxa, chefinho! Não sei o que seria de mim sem a sua ajuda. O salário que recebo mal dá pro aluguel. Este complemento salva a pátria lá em casa. Vou comprar um vestido novo pra filhona. Tá bonita! Qualquer dia trago ela aqui pro senhor ver...
– Vamos combinar, meu amigo. Você sabe que o tenho em alta conta. Traga-a aqui, pra eu conhecer essa preciosidade. Agora vou atender ao meu líder Zé do Cerol.
Saí da cela e fui ter com ele muito amedrontado. Não sou de valentia. Meu negócio, como já lhe disse e não me canso de repetir, é a astúcia na boa paz.
– Sente-se aí! – determinou-me Zé do Cerol com cara de poucos amigos.
– Que mandas, meu líder? – respondi-lhe, cauteloso.
– Tô com um problema sério. E quero que você resolva o caso.
– Mande-me as ordens, meu amigo!
– A parada é a seguinte: o Dr. Onestinho Dureza veio aqui falar comigo que a cadeia vai receber visita importante. Parece que é uma comissão de políticos, negócio aí de direitos humanos. Vamos dar uma geral na casa e fazer um torneio de futebol. Vai ser mês que vem. Temos um bom tempo pra arrumar as coisas. Já separei o pessoal da pintura. Você entra com a tinta. Quero a cadeia toda branquinha, nada de cor de veado, não. Tinta a óleo e tinta plástica, tá certo?
– Você falou, está falado! – assenti sem muito poder ocultar minha insatisfação. – E acho que foi pior, porque ele acrescentou:
– Você também vai comprar as redes, as bolas, os uniformes pra dez times, os apitos, e pagar a grama nova do campo.
– Tudo isso? – indaguei-lhe, já apavorado.
– É, tudo isso, mas consegui com o diretor pra você sair e se virar. Você não vai sozinho, que não posso correr risco. Fininho vai com você. Sei lá, se você resolve fugir. Se tentar, meu chapa, o estoque vai furar o seu bucho. Eu mesmo vou lá fora pegar você. Saio sempre, quando quero! – bufou o bandido, estimulado por sua intrínseca agressividade.
– Calma, meu líder! Fugir não está nos meus planos. Você sabe melhor que eu que aqui faturo mais. E podendo sair facilita tudo. Rapidinho, em três dias, coloco o caso resolvido. A grama eu pago, da esmeralda, vai ficar bonito o campo. O resto mando pra outro endereço. Depois, é só pegar. Puxa, amigo! Você é um líder dos melhores, mesmo! Que plano bem bolado! – acrescentei, animado em saber que não desembolsaria nada. – E ainda teria a chance de cheirar a liberdade, apesar do meu convencimento de que ali estava bem mais interessante a minha vida. E meu único estorvo estava ali na minha frente...
– Tudo bem! Chega de papo-furado! Volte pro seu lugar! Qualquer novidade, chamo você! – encerrou, grosseiro como sempre, o perigoso Zé do Cerol.
– Tudo certo! Mas queria aproveitar e sugerir umas mudanças pra minorar o desconforto da rapaziada! – arrisquei.
– Fica tudo como tá! Não muda nada aqui!
Tornei à cela num misto de satisfeito e enfezado. Receber ordens daquele matador me enojava, afrontava minha magnitude profissional. Compensei-me um pouco devido à oportunidade de sair a dar uns golpes, a relembrar os velhos tempos. Mas confesso, amigo leitor, – com as minhas escusas por lhe deixar um pouco esquecido em meio às novidades surgidas, – confesso que fiquei mais raivoso que satisfeito. Não engolia a ideia de, com a minha superior inteligência, ser preterido por um estúpido daquele. Mas extremamente perigoso...
Perigoso e esperto, porque controlava o diretor sem precisar dar gravatas italianas e sapatos de pelica, o que eu regularmente me obrigava a fazer. E imaginei: “A liberdade abrindo suas asas e me acolhendo como um pintinho recém-nascido do ovo. Dois longos anos sem ver as ruas, as lojas, o que teria mudado?” Sim, amigo leitor, uma saída funcionaria em mim como o rompimento de uma barragem a partir do primeiro escapamento da água represada. Depois disso pensado, esqueci a raiva e me entreguei ao contentamento; fiquei feliz da vida, mesmo. Uma saída, a primeira saída, tomando-me o espírito no seu todo. Havia esquecido o mundo de fora, a própria liberdade e seu inefável valor. Todavia, bastou-me que surgisse como possibilidade para que nela eu pensasse como probabilidade, e depois como absoluta certeza de novos e alvissareiros momentos. Ó doce liberdade, venha a mim seu maravilhoso gosto! Ó doce liberdade, “abre as asas sobre nós”!
Novos e alvissareiros momentos, leitor amigo, pois me cabia demonstrar ao paizão diretor minha competência. Não preciso lhe dizer que nunca retornaria sem algumas coleções de última moda de gravatas italianas, ternos, camisas e sapatos finos. Demais, resgataria alguns contatos com os mestres da vigarice, especialmente aqueles que estivessem cuidando de boas e rentáveis “laranjas” (não as frutas, mas as firmas em falência).
As “laranjas” merecem uma explicação mais amiúde ao meu já conivente leitor, que continua atento ao que lhe digo, e com toda a franqueza lhe digo: quando uma determinada empresa está a falir, surge comprando-a o “laranjeiro” (que nada mais é que um vigarista com identidade e demais documentos falsos). E antes de a firma explodir na praça, o qualificado finório compra tudo o que tem direito, abarrota a falida com bens e mais bens, sempre os mais preciosos, em seguida enche os caminhões e leva tudo para outro endereço. Depois, fecha o espaço vazio e joga a chave fora. Uma beleza! Não concorda?
Sim, meu amigo, uma beleza de golpe. Dei muitos desses golpes antes de me ingressar na vida de apenado. Penso nesses meus diletos colegas com carinho. Ser-me-ão úteis neste novo momento de trapaças que pretendo encetar com fins profundos. Sim, meu caro leitor, com fins profundos, resumidos na ideia que me começa a atordoar: tornar-me o líder da cadeia. Que fazer com Zé do Cerol? Verei, depois, o que fazer...
Saio hoje pela porta da frente a caminho da liberdade vigiada. Ora bem, terei de dar uma pausa na história para trabalhar a nobre missão que me foi determinada. Peço ao amigo reiteradas desculpas; prometo-lhe, porém, contar tudo na volta, assim como lhe clarear o meu plano seguinte. Como eu dizia, saio hoje pela porta da frente, eu e o Fininho, um sujeito nada simpático.
– Olha aí, meu chapa! Ai de você, se pensar em ralar peito na fuga! – ameaçou-me.
– Que nada, amigo! Fique tranquilo! Nós vamos ter de andar muito pra resolver tudo a tempo, conforme determinou o nosso líder. Só quero que você não me atrapalhe, principalmente quando eu for conversar com alguns parceiros, está bem? – retorqui-lhe com autoridade, para testá-lo em sua obstinação e inteligência. Ou melhor, em sua imbecilidade.
– Tudo bem! Sei disso, mas vou ficar do lado de fora, na beira da porta. Não tente me deixar longe, não! Pra mim, isso é suspeito, tá legal? – falou Fininho.
– Sem problema!
Saímos, pegamos a rua e iniciei as armações. Fui a diversos lugares, fiz contatos vários. Cá pra nós, caro leitor, resolvi tudo no primeiro dia. Mas não deixei Fininho perceber nada, muito menos o principal: não retornaria com ele à cadeia. Zé do Cerol começara a perder para mim a primeira batalha ao indicar alguém de sua confiança para me ameaçar.
Fininho, segundo a minha percepção, não representava perigo somente cá fora, mas também lá dentro. Assim pensando, preocupado, aproximei-me de um matador a soldo indicado por um grande amigo do meu ramo. E lá se foi Fininho a cumprir sua escolta imaginando ser o meu interlocutor um vigarista como eu. Não o era. E Fininho nem teve tempo de reagir. Foi apagado e ali ficou, inerte para sempre, por conta de um bom pagamento à vista. Virou comida de peixes e siris...
É, prezado leitor, disse-lhe no início que nunca matara. Mas a vida encarcerada já me dera a primeira e inesquecível lição: “A morrer eu, morra o meu avô, que é mais velho!” Digo-lhe isto de coração aberto, mas não o disse a Zé do Cerol ao tornar à cadeia e me dirigir a sua cela para relatar o ocorrido do lado de fora:
– Meu líder, acho que você escolheu mal meu acompanhante. Dormimos num hotel e me surpreendi, hoje, ao sair. Fininho se ausentou e não mais voltou. Esperei o dia inteiro e ele não apareceu. Por isso resolvi voltar sem ele. Não sei se ele foi visitar alguém...
– Esquisito, esquisito... E eu, que sempre levei fé nele... É melhor aquele puto não voltar, porque tava com ordem de não sair de perto de você. Num gostei, não! Mas depois resolvo isso. Como foi tudo? – indagou-me o irritado bandido.
– Melhor do que você possa pensar. Amanhã os produtos começam a chegar, sem falta. Vêm umas roupas e uns sapatos pra você, presente deste amigo. Também lhe trouxe aqui um relógio. Espero que goste.
– Pô! Bonito! Gostei. Marcou um ponto comigo. Mas Fininho tá fornicado quando voltar!
Não voltaria nunca, não é mesmo, caro leitor? Peço desculpas ao amigo, mas, como já lhe disse, “A morrer eu, morra o meu avô, que é mais velho!” Fininho por essas horas deve estar rodeado por trinta milhões de diabos a cobrar-lhe os crimes de morte e a burrice. Eles, Fininho e Zé do Cerol, não perceberam o que é um verdadeiro vigarista. Não pensaram que um bom vigarista não mata, mas nada o impede que mande matar. Bem, chega desse negócio de matança. Fico nervoso. Vamos ao que mais gosto, na calma de sempre.
Ao que mais gosto... Armei o diabo do lado de fora. Além das encomendas determinadas, ainda comprei muitos presentes para os meus colegas de infortúnio. E mais fiz, com a providencial ajuda do meu anjo da guarda Thomé. Ele me fornecera antes os endereços de todos os presos e seus respectivos artigos penais. Escolhi os 121 e os 157, de preferência, além de outros nos quais eu já percebera uma certa periculosidade e resoluta independência em relação ao mando tirano de Zé do Cerol.
Deixei tudo acertado com um colega de profissão, lá de fora, para quem eu sempre providenciava farto material de trabalho. Na semana seguinte, cada escolhido receberia em sua casa os presentes, belos presentes: eletrodomésticos, brinquedos para as crianças, gêneros alimentícios e quejando, tudo com os meus efusivos cumprimentos e o pedido de segredo. Sim, segredo foi o mel que deixei no ar. Caso o mantivessem, continuariam a receber em casa mais presentes. Esperei o resultado...
Na visita que se sucedeu aos agrados familiares, lá da minha cela eu notava os olhares de gratidão das patroas dos colegas de infortúnio. Observei as crianças, e nenhuma estava com os brinquedos novos nas mãos. Os colegas de infortúnio me apontavam discretamente às suas esposas e assemelhadas. Elas, agradecidas, me faziam aquele simbólico gesto do polegar para cima, um recado de gratidão e a confirmação de que gostariam de continuar com as mordomias. Com efeito, meu prezadíssimo leitor, ninguém resiste a um bom agrado, quanto mais quem nada tem. Que domingo! que felicidade! que maravilha!... Só me faltava esperar a noite para me deliciar com a Maristela. Era dela, o plantão. Que boca!
Enquanto isso, fui atender à fila de consultas. Nunca esteve tão grande, meu animadíssimo leitor. Confesse-me aqui, só para mim, e como se o fizesse a um padre, e bem baixinho, sem que ninguém a sua volta perceba: já sou seu ídolo, não sou? Mas não quero que você me afague como um fã incondicional, pelo menos por enquanto... Vamos esperar um pouco mais o desenlace da história. Não obstante, não nego meu otimismo com o futuro. O céu nunca esteve tão azul neste domingo. Não há uma só nuvem, nem mesmo os belos algodões a formar figuras fantásticas no infinito. Tudo está efetivamente azul, em contraste com o branco da cadeia... Ih, ainda não lhe falei? Oh, me desculpe!
Na mesma semana o mutirão, diretamente comandado por Zé do Cerol, colocou a cadeia um brinco, tudo reluzindo de novo. E o líder não resistiu em me agradecer pela lembrança dos azulejos e materiais sanitários. Os banheiros pareciam muito mais os de um hotel de cinco estrelas. E na maior desfaçatez, – mesmo com o risco de contrariar a fera nordestina, – entupi as galerias com beliches. O número certo, uma cama para cada companheiro de infortúnio. Era-me questão de honra!... Chega mais aqui, bem pertinho de mim, caro leitor, tenho um lado socialista, não tenho? Sou bonzinho, não sou? Dou pra política?... Ó saudades! Ó felicidade no infortúnio! Que lembranças agradáveis me retornavam a mim daqueles tempos de São Paulo, das limusines e da luxúria dos ambientes que eu frequentava! Doces lembranças, que me embalaram todo o dia. E nunca recebi tantos agradecimentos e pedidos de remédio e emprego. Fui anotando e prometendo, igual a político em campanha eleitoral. Quer saber, caro leitor? Sim, sim, comecei a pegar um gostinho por política.
O campo de futebol já estava com o novo gramado (grama esmeralda, colocada num só dia, em placas de metro quadrado). O sol fazia reluzir o verde, projetando de volta os raios solares rebatidos nas gotas d’água da irrigação permanente. As raízes, ao cabo de três dias, começaram a se firmar no solo, este que antes recebera os necessários adubos químicos. Não os esqueci; pedi a um dileto amigo “laranjeiro” uma boa quantidade naquela primeira saída. O restante, pedi por celular, agora liberado pelo diretor, entusiasmado diretor, que recebeu muitos presentes meus naqueles dias, inclusive o mais moderno celular da praça. É lógico que este comprei com o meu dinheiro, retirado da minha gordíssima conta bancária. E eu, prezado leitor? Acha que me esqueceria de mim mesmo? Preciso lhe dizer como ficou agora a minha cela? Sim, é preciso, tanto que o farei por símbolo: “* * * * *” Entendeu?... Não?... Ora, o amigo não sabe o significado de cinco estrelas?
Três semanas se passaram desde que saí e voltei, e Fininho saiu para nunca mais voltar. A cadeia era outra: salão de jogos com mesas e mais mesas de sinuca ocupando o lugar da carpintaria, depois de uma eleição entre os presos, que preferiram o lazer ao trabalho; cozinha industrial estilizada; camas, colchões, travesseiros, lençóis e toalhas de banho e de rosto, tudo novo e farto. Uns amigos “laranjeiros” compraram o que eu lhes pedira em troca da montagem de alguns cartões magnéticos para eles. Eia! eia!... Quem visse a cadeia dois dias antes da visita das autoridades dos direitos humanos não imaginaria ser ali um lugar de prisão de condenados.
Enquanto a penitenciária fervilhava em melhorias, eu lá estava, – em minha confortável cela e ajudado por Bete, – a montar a pauta de reivindicações. Bete?... Ih, esqueci de lhe dizer o nome da (o) minha (meu) amável secretária (o): Raimundo Felagem (nome masculino) e Bete (nome de guerra). Sim, volteava como um pássaro em coloridos mil, a minha secretária Bete (prefiro assim). E também lhe dei um banho de loja que ela nunca pensara na vida receber. E não me esqueci de lhe providenciar muitos artigos finos para ela presentear o seu namorado, um colega de infortúnio da galeria B (ela diz que o “B” é de Bete).
Domingo de sol. Finalmente a visita das autoridades. A imprensa fazendo a cobertura. Tudo arrumado: palanque; banda de música; guardas em uniformes reluzindo de novo e ainda com o cheiro da loja lesada; gramado verdinho, brilhante e marcado com o pó de cálcio; juízes e bandeirinhas no luto brilhante de seus uniformes já viciados desde a origem; os filhos dos presos uniformizados de gandula; os times perfilados em belíssimas cores; as carnes e complementos perfumando o ar; barris e mais barris de chope, além de refrigerantes, arrumados no local dos comes e bebes; bandeirolas marcando as quinas do campo e outras enfeitando o ambiente; enfim, uma bela festa! E é óbvio que as autoridades ficaram regadas a bastantes vinhos franceses e garrafas e mais garrafas de uísque...
O diretor, meu grande diretor, recebia efusivos cumprimentos das deslumbradas autoridades. A comissão de direitos humanos extasiava-se com aquele ambiente de total felicidade alcoólica. As famílias dos colegas de infortúnio, todas bem-vestidas com as roupas que eu lhes providenciara numa outra “laranja”, vibravam em contentamento. E os discursos? Que lindos discursos! Falei em nome dos presos, elogiando a administração, os guardas, as sogras, os cachorros, os passarinhos e tudo mais, como sói funcionar o discurso de um perfeito e compenetrado vigarista ou de um salafrário político...
O torneio começou. Não saía um só lance violento. Foi um estupendo espetáculo futebolístico, especialmente pela presença de muitos ex-craques de futebol que não se deram bem na profissão e tiveram de apelar para o crime. Cada jogo era mais emocionante que o outro. Término, premiações e churrascada à vontade. As autoridades comiam e bebiam gulosamente, satisfeitas e sem indagar em hora nenhuma como o meu diretor conseguira proporcionar tudo aquilo. Não estavam nem aí para quem pintou a zebra, queriam mesmo era o resto da tinta! E me arrisco a dizer que talvez estivesse rolando umas cafungadas no ambiente...
Eu observava principalmente Zé do Cerol, passado como ele só em sua incontornável estupidez. Não estava somente passado, mas fulo mesmo! Sem ocultar, fitava-me com um ódio tão intenso que suas pupilas faiscavam. Eu fingia não notar, mas só via aqueles olhos de besta-fera assassina alfinetados sobre mim. Ele percebeu, finalmente, que perdera o controle da massa carcerária. Sua estrela de xerife embaciara-se, ofuscara-se, turvara-se diante do meu rutilante brilho no ambiente festivo. Sim, sim, caríssimo leitor, é o que você está pensando, talvez mais eufórico que eu por estar longe de Zé do Cerol e do perigo: eu já conquistara a liderança absoluta, definitiva e incontestável da cadeia.
Cumprimentos, eu os recebia de todos. Depois do paizão diretor, – que também me destinou um efusivo abraço, – o mais festejado era eu. Os guardas se desmanchavam em gentilezas para comigo. Era chefinho pra lá, chefinho pra cá, uma beleza. Confesso-lhe, prezado leitor, senti-me um lídimo el-rei. Glorinha e Maristela, enciumadas, ameaçavam-se mutuamente numa acirrada disputa de preferência por mim. Fui estar com elas e as acalmei dizendo-lhes que as amava indistintamente. Ficaram felizes e abraçadinhas. E assim foi seguindo a festança até o final, inolvidável festança, quando as assombradas autoridades se despediram do diretor... e de mim. Sim, vieram a mim, certamente me vendo como um indispensável cabo eleitoral no futuro. E me prometeram voltar para um papo mais fechado, o que logo lhes concedi. O Dr. Onestinho Dureza, bonachão como ele só, se aproximou novamente de mim, abraçando-me:
– Não se esqueça deste seu amigo!
Não me esqueceria, é lógico, do homem que me recebeu com honras de primeiro-ministro de Estado. Também não me olvidaria nunca dos meus anjos da guarda e de minhas prediletas enfermeiras Glorinha e Maristela, e muito menos ainda dos amados supervisores, quando ganhasse a liberdade. Não a desejava tanto assim, creia-me, mas sabia que me chegaria o dia de abandonar aquele barco. E, no fundo, queria isso. Atormentava-me a figura misteriosa, endiabrada e assassina de Zé do Cerol, minha principal e única preocupação...
Justificada preocupação, sim, pois lá estava ele, – já caindo o crepúsculo e surgindo as estrelas em meio ao lusco-fusco, – lá estava ele no centro do campo de futebol. Confabulava com mais cinco, entre os quais Damião. Esfriei a espinha ao pensar no Damião. Quantas cartas bonitas escrevi para a mãe dele, com ele sempre me demonstrando sincera gratidão, mas externando absoluta lealdade a Zé do Cerol... E lá estava ele, o amigo Damião, junto com o endiabrado nordestino e os outros no centro do campo. E não olhavam para ninguém, só confabulavam... confabulavam... confabulavam... Recolhi-me à cela, tranquei-a por dentro e me cerquei de cuidados. Pressentia no meu íntimo um fim trágico, um estoque no meu bucho, um piparote em minha doce vida e babau! Oh, querido leitor, que medo!
Silêncio. Muito silêncio durante a noite, eu rolando sem sono na cama macia e pensando em minha vida além-túmulo. Será que haveria? O terror me tomava todo; as pernas me tremiam como varas verdes; as unhas, eu as roia sem parar; na janela eu não chegava, de tão aterrado que estava. Assim me deixei ficar, até que amanheceu a segunda-feira. Meu corpo, cansado de se debater em nervosa insônia, não se conseguia nem mesmo levantar da cama. A cabeça pensava e as pernas a desobedeciam. Sentei-me, com a mente medrosa prendendo meu traseiro ao luxuoso catre, não me querendo chegar à grade que dava vistas ao campo de futebol com o fim de ver se os terríveis interlocutores ainda lá estavam. Mas as pernas, abençoadas pernas, culminaram por me levar até lá, mesmo com a minha atemorizada mente recusando. E vi, finalmente vi um corpo ensanguentado no centro do campo! Forcejei minhas vistas cansadas para melhor fitar a cena e crer no que realmente via: o inanimado Zé do Cerol, a mancha de sangue da morte na marca central da saída da bola. Sim, era ele, o terrível Zé do Cerol, que parecia a bola a iniciar o jogo. Sim, sim, meu amigo leitor, era ele, a bola da vez!
A bola da vez. Assim decidiram meus colegas de infortúnio ao recusar-lhe a ordem de me matar naquela noite. A maldita ordem, o despeitado dera-a. Mas fora cumprida contra ele, assim preferiram os cinco, liderados por Damião, o primeiro a me surgir ao longe acenando com o polegar para o céu; e logo os demais, no mesmo gesto positivo, deram-me o alento da vitória sobre o famigerado bandido, que por aquela hora já estava abraçado ao Belzebu e dando esporro em Fininho lá no inferno. E mais outros, e outros, e outros acorreram silenciosamente ao centro do campo, me olhando e sinalizando-me com o polegar para cima. Que alívio! Sou o líder da cadeia por unanimidade!... Devo encerrar, aqui, caro leitor?...
Não, não, devo-me ir mais longe no tempo, porque, passados dez anos, muita coisa mudou em minha vida. Não que me tenha regenerado e abandonado a profissão de vigarista. Apenas mudei de lado (será?)... Para encurtar a história, tive a pena reduzida em razão de gestões do meu amado diretor, fui à luta, ingressei na política e agora sou um ilustre deputado. E pretendo ser prefeito de minha cidade natal. Ao presídio vou sempre, a visitar meus colegas de infortúnio. O diretor lá continua, – ad aeternum, – se depender do prestígio que gozo na política. E é bem grande. Os anjos da guarda são todos meus assessores. Ganham bem, e estão satisfeitos da vida. Me continuam a chamar... não mais de chefinho, mas de chefão. Glorinha e Maristela moram comigo em duas suítes de minha bela cobertura. E são minhas assessoras na Câmara Federal. A Bete é minha chefe de gabinete. Ah, essas três... que bocas!
Meu anjo Damião já está solto (devido ao meu prestígio, é claro). Responde por minha segurança pessoal juntamente com aqueles outros quatro companheiros de infortúnio que me livraram do malévolo nordestino. Eu já os havia conquistado através dos presentes que enviara às suas patroas e filhos. Ah, já sei! Você, caro leitor, deve estar doido para saber que comissão presido na Câmara Federal. Que você acha? Sim! Acertou! É a Comissão de Orçamento. Mas, como sou um craque na vigarice, você também deve ter concluído que muita vez ganhei na loteria. Sou um homem de sorte! Graças a Deus! Deus me ajudou!...
Deus me ajudou!... Ah, a última notícia antes de nos despedirmos, contando com o seu voto e a sua ajuda nas próximas eleições: criei um nome parlamentar mais sucinto, com o fim de facilitar a milionária propaganda que farei no pleito que se avizinha. Tirei fora o “da Silva”, muito comum e incompatível com o meu novo momento de sucesso e fortuna. Agora sou conhecido apenas como Estelio Natário, que todos naturalmente pronunciam como “Dr. Estelionatário”. E tenha certeza, amicíssimo leitor, nunca serei um anão do orçamento, posto que tenho 1,80m de altura. Quando muito poderei ser um gigante, pois aquele em cujo território vivemos há muito já está adormecido!

DOIS


Cá estou de volta para prosseguir na narrativa de minha doce vida, prezadíssimo leitor, que permanece ombreado comigo como se ambos estivéssemos num trajeto de um trem pelas sendas das falcatruas, trapaçarias, mutretas e demais artifícios com vistas a engrupir terceiros, é lógico que viajando com passagens falsas. Sim, sou eu, o ex-deputado Estelio Natário. Você, precipitado, já deve estar imaginando que me tenham cassado o mandato parlamentar em Brasília por algum problema de fraude orçamentária. Se assim pensou, enganou-se, meu amigo, enganou-se. Não tive problemas na política, mas boas, boníssimas soluções.
Lembra-se, meu queridíssimo, que lhe confidenciei sobre o meu sonho de ser prefeito do meu torrão natal? Pois bem, é o que atualmente sou: prefeito da cidade de Montões Milionários, aqui em Trapaça do Nordeste, berço que me acolheu no nascimento e terra onde cresci comendo calango e sopa de cacto, lugar de muita fome e de milhares e milhares de nordestinos e nordestinas que nascem como coelhos e morrem antes deles. Aqui conheci a Raimunda ainda criança, barrigudinha, cabeça grande, e com ela depois me casei. Lembra-se da ex-patroa que me enrolou a vida trocando um cartão de crédito quente (cheio de dados frios) por outro frio (vazio de dados quentes)?
Devo-lhe confessar, porém, que tive necessidade de mudar alguns conceitos socialistas que trazia comigo enraizados. Um deles, que muitas vezes propalei, dizia respeito aos pobres. Pode ter certeza, amabilíssimo leitor, de que encontrei um meio inédito de ganhar algum numerário extra incluindo a nova ideia de que nada demais seria tirar um pouquinho de muitos em vez de muito de poucos. Para falar a mais pura verdade, meu caríssimo, não sou mais socialista como gostaria de eternamente sê-lo. Mesmo assim, permaneço até hoje resistente à ideia de tirar dos pobres; porém, que mal haveria em usá-los como se fossem uma magérrima boiada, com eu mesmo engordando-a e depois dividindo a gordura com eles? Nenhum, ora, nenhum! E foi o que fiz!...
Vícios do poder, meu amigo, vícios do poder... Você entenderá melhor quando eu lhe fizer concluir comigo, dando-me também razão, que tirar do governo, assim, na cara-de-pau, às vezes não se nos afigura tão fácil. Como você sabe, nunca tive pena do governo. Sim, meu amigo, mas nesta nova fase de político detive-me ante ao imponderável fato de que são muitos os espertalhões a tirar do governo, uma concorrência desleal até. E eu, que pensava ser o melhor de todos os trapaceiros, me deparei com outros colegas políticos que me impressionaram com as suas superiores habilidades em trapacear. Lá em Brasília, senti-me, na verdade, como um pintinho molhado em dia de frio e chuva nesta roda de falacíssimos representantes do povo brasileiro...
Também passei a enfrentar a esquivança do poviléu, o que me atrapalhou sobremodo o exercício da minha profissão original, quase que a anulou. Em qualquer lugar que me apresentasse, o fato de ser um conhecido parlamentar me punha no foco das desconfianças imediatas, dos narizes torcidos, das bocas trincadas e daquelas estriladas de sempre, que me pareciam assim como um bloco de concreto fixado em minha cabeça pelo poviléu reclamante. Chato, mesmo, é o poviléu a chiar sempre e sempre das mesmas coisas, e os políticos também sempre e sempre se desculparem com as mesmas versões decoradas. Já percebeu, caro leitor, que a culpa é sempre e sempre do passado, e as promessas sempre e sempre futuras? Fui por isso obrigado a deixar de lado aquela indispensável imponência da antiga profissão, assumindo a dura realidade de que agora somente me viam como um possível e simpático ladrão do poviléu... Eu lhe disse ladrão do poviléu?
Sim, meu amigo, e não foi outra a saída que encontrei para continuar a sobreviver folgadamente, ou seja admitir que um pequeno prejuízo ao poviléu carente não lhe faria mal algum, desde que ambos, eu e o meu poviléu, saíssemos ganhando ao cabo de tudo. Parece-nos, – agora me referindo a mim e a você, caríssimo leitor, – em princípio parece-nos uma equação intransponível, não é mesmo? Ora, meu prezado, que já me conhece tão bem, não me queira subestimar a inteligência logo agora. Quantas provas de tirocínio já lhe dei? E de bondade?
Não, não, meu amigo, não perdi minha rara competência e a expansiva e natural bondade, creia piamente nisso. Muita coisa fiz em favor do poviléu lá no Congresso Nacional. Muita verba aprovei para a realização de obras de profundo significado social. É a mais pura e cristalina verdade que as obras eram feitas gerando formidáveis frentes de trabalho e milhares de empregos para os sofridos pobres e consequentemente as vultosas propinas para mim. Imagine comigo, prezadíssimo leitor, que seria dos pobres do Nordeste se lá voltasse a chover?
Sim, sim, meu caríssimo. Deus é bom! Deus ajuda! Ele sabe que, se lá fizer cair muita água, não mais os políticos poderão pleitear em favor das frentes de trabalho e das obras de construção de açudes a esperar a chuva que não vem, uma esperança que se renova e que mantém os pobres unidos e rezando na sobrevivência mínima. Já imaginaram um pobre sem esperança? Não, não, não dá para conceber um absurdo desse, eis que a esperança é o maior alento do poviléu. E são muitos nesta terrível situação, meu caríssimo eleitor. Representam eles, os paupérrimos, a absoluta maioria dos brasileiros vivos, mais de 80% de pobres-diabos esperando, – e rezando com fervor, – por dias melhores que nunca virão, porém convictos de que serão salvos, porque somente aos pobres é dado o direito ao Reino dos Céus. Ideologia, meu amigo, ideologia... São milhões e milhões de pobres e conformados esperando as graças dos Céus, enquanto que são apenas milhares de ricos e remediados vivenciando cá mesmo na terra a felicidade da abastança e incentivando os miseráveis a abraçarem aquela ideologia religiosa: “Rezem! rezem! rezem!... Que serão salvos!” Ou, ainda: “Empobreçam! empobreçam! empobreçam!... Que estarão mais próximos da libertação do espírito!”
Sei o que você aí pensou, e logo confesso que sim, que estou entre os ricos, não especificamente eu, mas aquele outro “eu” que continua engordando deveras no banco. Fica o conselho de amigo, caro leitor: mantenha vivo um segundo “eu” em sua vida de primeira pessoa. Como? Ora, basta procurar um bom especialista, como eu nos meus bons tempos. É certo, porém, que você gastará alguns trocados, mas não se preocupe, posto não serão os seus, porém aqueles que você também conquistou com trapaças. Viu? Você estará gastando apenas uma parcela dos lucros retirados dos alheios. Sim, meu estimadíssimo, retirados deles. Pense sempre assim: primeiro em você, depois no seu “eu”, e, no máximo, em nós ambos, pois, afinal, não somos já amigos?... As segundas e terceiras pessoas são os alheios, aqueles que receberão os golpes da vigarice. Deles, não tenha dó!
Como já lhe confessei, em razão da absoluta confiança que lhe deposito, estou supermilionário, sou quase dono do banco, pois juntei muito, muito mesmo, Deus me ajudou deveras lá na Comissão de Orçamento. Houve tempo de eu ter em casa tantos milhões de dólares que até me embaraçavam a vida. Parecia que o mundo financeiro, com os seus maravilhosos cifrões, desabara sobre a minha pobre cabeça. Mas foi por pouco tempo, eis que logo aprendi a enviar remessas ao exterior com a providencial ajuda do Banco Central. Que invenção estupenda a tal conta CC5! Ih, acho que lhe dei um nó, não é mesmo?
Não se preocupe. Se um dia você precisar de uma conta CC5, é sinal de que você venceu de fato na vida, ou honestamente ou sem fazer força, ou então conseguiu se integrar ao altíssimo nível do tráfico de drogas. Espero, porém, que você não se meta nisso, não que não se possa eventualmente financiar essas atividades criminosas, porque o lucro é certo e astronômico e você não tem culpa de existir no mundo globalizado tão estupendo negócio.
Eu lhe pergunto, amicíssimo, como pode sobreviver um bom político sem o apoio dos prezados traficantes? Impossível! Por isso, se você, como eu, pensar em fazer carreira política, não desdenhe os amigos do tráfico. Afinal, são eles os donos dos votos comunitários, que representam a absoluta maioria. Prefiro, entretanto, que você continue apenas meu leitor. Não desejo tê-lo como um concorrente na política; todavia, se o destino assim traçar-lhe o rumo da vida, creio que meus conselhos lhe serão úteis um dia.
Devo agora contar como cheguei a prefeito de minha querida Montões Milionários, e por quanto e como anda hoje minha boa-vida. Como você já deve ter notado, resolvi reiniciar minha carreira pública de um degrau mais baixo. O poviléu gosta disso, quando você anuncia que quer começar por baixo até chegar em Brasília. Comigo, porém, fui obrigado pelas circunstâncias a partir diretamente para o Planalto Central, diante da ótima oportunidade que me surgiu de ganhar na mutreta a eleição de deputado federal. Vou contar rápido, de modo que você, prezadíssimo leitor, não fique aí com esse estranho vácuo em seu pensamento.
Sim, meu amigo, nunca imaginei ser tão fácil pisar naqueles tapetes azuis do Congresso Nacional. Comecei com uma razoável base eleitoral na própria cadeia, entre os presos e os servidores públicos penitenciários. Lancei um slogan simples: “Com Estelio Natário em Brasília, o sistema carcerário terá vez!” Bonito, não?... Mas não foi bem isso que me fez o mais votado nas eleições, o cacife que me garantiu a presidência daquela importante e lucrativa comissão. Surpreendi o meio político com uma estupenda votação à grega... Não me entendeu? Explicarei, explicarei. Como você sabe, a Grécia é o berço da democracia. Ó doce Grécia! Que desçam em mim os espíritos de Péricles e Sócrates. E, se sobrar espaço no meu corpo, que venha também o de Platão! Estou filósofo, não estou? O poviléu gosta, caro amigo, o poviléu gosta de frases de efeito, de clichês bem postos, você não acha? Ou você está entre os que igualmente gostam? Ah, não tenho razão? Nunca ouviu falar em passividade intelectual, o caminho mais curto para se lograr alcançar o autismo social e político?
Ora, caríssimo, passe a observar os que aí estão, os políticos, há anos ganhando eleições só com discursos defendendo a cidadania, costeando o alambrado da farsa e do sofisma. Que seria a cidadania, afinal? Confesso-lhe que não sei. Pois, tanto faz ser político de esquerda ou de direita que o papo-furado é o mesmo, é literalmente furado. Estão certos, sem dúvida, porque esse silogismo erístico sempre funciona, e assim eles estão sempre a faturar a vitória nas eleições. Não deixe, por conseguinte, de colocar a cidadania como o centro nevrálgico do seu discurso. O resto em volta pode ser qualquer blablablá, eis que a maioria dos eleitores não pesca patavina de nada, mesmo.
Por favor, não pense que odeio o poviléu. Amo-o, amo-o do jeito que ele é. Já imaginou, amicíssimo leitor, se o nosso poviléu fosse como o povo norte-americano, que só pensa naquela maldita inflação, de quatro a sete por cento ao ano, e isto durante anos e anos? Que coisa retilínea! Que falta de imaginação! Eles, os cidadãos norte-americanos, não discutem democracia e cidadania, posto já as têm; não discutem a fome, posto não a tem. E não é somente lá essa chatice. Na França é igual, assim como no Canadá, na Inglaterra, na Suíça, no Japão, etecétera.
Que chato! Mas aqui, graças a Deus, não é assim! Cá nós temos ou não temos tudo isso e mais alguma coisa para discutir. Cá nós temos os salvadores da pátria, que lá não podem eles pleitear sê-los, eis que suas pátrias já estão a salvo. Lá eles não têm governantes distribuindo altíssimas verbas publicitárias aos jornais para que exaltem seus “feitos”, enquanto o poviléu morre de fome ou está com os pés nas valas poluídas.
É, meu caro, não dá para suportarmos a falsa democracia daqueles malfadados países. É certo que são ricos, sim; mas, e daí? Nós somos pobres, mas pobres com muito orgulho. Somos pobres, sim, mas eles, em compensação, irão ao inferno, ao passo que nós estaremos no Reino dos Céus. Boa, boníssima mesmo é a nossa vida, não a deles. Eles não têm mais por que ter esperança, eis que já possuem tudo, riqueza, saúde, democracia, etc. Aqui a cidadania é discurso permanente, a pobreza um desafio, a democracia um sonho a ser um dia materializado, e não se sabe quando, uma vantagem que eles seguramente não têm.
Estava falando da amada Grécia quando divaguei prolixo. Perdão, amantíssimo leitor, é mania que peguei como sarna impertinente no Congresso Nacional. Foi lá que aprendi a caprichar nos discursos estereotipados. Sem dúvida, o poviléu adora discursos estereotipados e palavras de ordem. Por isso é que todos os meus colegas assim o fazem, e eu não quis ser diferente deles. Mas, voltando agora – em definitivo, prometo solenemente, erística à parte – voltando agora à Grécia, de lá veio a inspiração e a solução para eu ser o mais votado nas eleições.
Com efeito, querido leitor, com efeito. No meu ramo de negócio me surgiu uma grandiosa amiga, de nacionalidade grega, cuidando com inolvidável competência do esquema de compra de votos. Impressionante sua habilidade em circular nesses para mim desconhecidos e insondáveis caminhos da vigarice eleitoral. Na verdade, como eu agia em outros campos da lucrativa atividade de golpear a cobiça alheia, nunca me liguei à seara política. Mas a candidatura me trouxe a grega, através de um grande companheiro de trapaças que me a apresentou num restaurante de luxo. Curiosamente, o seu nome era de origem francesa, uma verdadeira cidadã do mundo. Chamava-se Bureaucratie Corruption. E ela disse:
– Meu caríssimo, sei que você é dos nossos. Por isso, farei uma jogada especial para você, e por um preço bem menor, do tipo solidariedade entre artistas do mesmo ramo.
– Puxa, minha amiga! Estamos iniciando o nosso relacionamento e já gostei de você no primeiro instante. Que devo fazer para ganhar a eleição?
– Bem, em primeiro lugar, devo-lhe avisar para não gastar dinheiro com cabos eleitorais. Eles são, como nós, espertíssimos. Vendem-se para muitos, e depois trabalham para quem o dono do lugar determinar...
– Mas, quem é esse dono do lugar? – indaguei, sem entendê-la bem.
– Geralmente os traficantes, que por aí chamam de donos do morro, ou donos da favela. E não adianta contestá-los, eis que é lá que estão os votos.
– Mas, esta história de dono do morro é verdadeira? – disse-lhe eu. – Não acredito muito nisso, não! – concluí.
– Como não, meu amigo? Esta história de dono do morro é tão verdade, que até o Kid Morengueira, no passado, já falava nele em suas músicas! – brincou a simpaticíssima grega se declarando fã do cantor.
– Mas, que devo fazer? – perguntei.
– Simples, meu amigo. Nada de gastar com cabos eleitorais. Você vai é espalhar bastante propaganda visual. Seu nome tem de aparecer em tudo quanto é lugar. Dê preferência ao outdoor, eis que divulga bastante a pessoa do candidato. Tire uma boa foto e dê um belo sorriso, que é de bom alvitre num candidato ganhador. O poviléu não gosta de carranca. Prefere ser enganado pelos mais simpáticos.
– Eu sei, minha amiga. Afinal, a simpatia faz parte da nossa tática, aquela do olho no olho. Mas a foto deve ser colorida, penso eu. Fica mais atraente, não é mesmo?
– Sim, caro amigo, sim! E não deixe de retocá-la, para ficar a impressão de que você é ainda mais jovem e belo. Eleitor não gosta de cara feia. Coloque uma fisionomia que lembre a sua, mas que também insinue a do Rock Hudson.
– Sim, tudo isso eu faço. Que mais?
– Bem, é fundamental que você compre no partido um tempo de televisão. Isto é fácil. Quem controla a distribuição é geralmente o presidente do partido. Se ele não for candidato, ainda melhor, porque não estará preocupado com a incômoda concorrência. Se puder, compre o tempo todo. Não economize nisso! – exclamou a grega, dando mostras de conhecer bem o assunto.
– Pode deixar! Farei isso. Mas como vencer as eleições sem gastar com cabos eleitorais?
– Isto é comigo. Você não ganhará as eleições no seu transcurso imediato; será depois, na hora de contar os votos. Você tem de aguentar firme! Não se pode espantar se surgir voto em lugar que você nem sabe existir. Aliás, aconselho o amigo a fazer uma viagem pelo Estado. Leve uma namorada, curta e conheça os Municípios. Assim ficará mais fácil agradecer depois, citando os detalhes dos lugares. Pois nós vamos espalhar votos em tudo quanto é canto do território estadual.
– Mas, espere aí! Não seria bem mais fácil concentrar? Não facilitaria a contagem pelos escrutinadores, que você certamente irá corromper? – indaguei à grega, cada vez mais curioso.
– Que isso, amigo! Nós estamos na era da informática! Basta apertar um botãozinho e tudo se resolve.
– Hum, você vai inserir um programa paralelo para criar os votos?
– Criar, não! Tirar de um para outro. E temos os brancos e nulos, que podem ser somados. Por isso é que temos de espalhar os votos. Como você sabe, funcionará aquele dito popular: “De grão em grão, a galinha enche o papo.”
– Hum, começo a entender... Mas, de que modo você fará isso?
– E quem disse que serei eu? Ora, meu amigo, eles farão isso! Eu somente pagarei, metade antes, metade depois. Sabe qual vantagem nós temos? Dir-lhe-ei: poucos entendem do riscado, e ninguém costuma ganhar pedido de recontagem de votos em recursos judiciais. Este é o grande trunfo. Como são muitos os que ganham, mas não levam, chovem recursos e mais recursos. Para julgá-los gastam-se anos e já estamos em tempo de novas eleições. Por isso, de nada adiantam as choradeiras; são choradeiras de perdedores. Na verdade, de ganhadores, mas que não convencem, porque soam como discursos de perdedores.
– Puxa! Está feito, minha amiga. Já vi que não importam os meios, mas o fim é que efetivamente importa. Ha! ha! ha! ha!...
Caro leitor, zombaria à parte, foi assim que ganhei as eleições. Mas você não deve estar entendendo como pude ganhá-las num Estado e depois ser prefeito de uma cidade em outro. Ora, que elementar! Isso é que mais os políticos fazem: trocar de domicílio eleitoral.
Você sabia que há senador lá do cafundó de judas que mora em Copacabana? Sabia que há prefeitos de cidades interioranas que lá somente vão para disputar e ganhar eleições, mantendo a sua (dele, prefeito) fazenda lá e a sua (dele, prefeito) cobertura cá? Espere aí, amigo leitor (e eleitor), não posso crer que você seja tão ingênuo assim. Bem, não importa. Eu precisava explicar esses detalhes para poder contar como ganhei as eleições em Montes Milionários, mesmo não indo lá por anos e anos, talvez mais de trinta seguidos. E você verá como foi simples.
Simples, disse eu, mas não tão barato. Porém, como já lhe confessei, depois que Deus me ajudou o dinheiro me sobrava tanto que eu não mais sabia que fazer dele e com ele. Assim, comecei a construir um império em Montes Milionários. De início, levantei um hotel três estrelas, mas com pose de cinco. No último andar, mandei caprichar uma cobertura com ar-refrigerado central, piscinas quente e fria, saunas a vapor e seca, além de outras mordomias indispensáveis ao ser delicado que sou. Também comprei as melhores fazendas da região, além de muitas glebas de terras improdutivas, tudo, é lógico, em nome do “eu” que me reservo a não declinar por razões que já lhe expliquei muito antes.
Os principais estabelecimentos comerciais da cidade, comprei-os todos. Desta maneira construí um monopólio para nenhum político que se preza botar defeito. Na verdade, apenas imitei alguns experimentados colegas parlamentares. Por fim, mandei para lá, como testa de ferro, a Bete, ou melhor, o Raimundo Felagem, o (a) meu (minha) chefe de gabinete. Ora, você sabe quem! E com ela foi junto minha equipe de confiança, meus anjos da guarda, com a principal recomendação: aumentar o salário de todo mundo, além de contratar novos empregados e preencher os empregos somente com os filhos e outros parentes das melhores lideranças locais.
Ademais, providenciei a instalação de um sistema de rádio, tevê e jornal contratando os melhores profissionais existentes na região. As devidas concessões, eu as consegui facilmente em Brasília trocando-as por alguns votos a favor do governo. E não parei aí, pois também mandei construir um portentoso Centro Social, não sem antes comprar hospitais e clínicas particulares para fechá-los. Reaproveitei, então, todos os profissionais de saúde, ainda aumentando-lhes os salários. Tudo feito e funcionando, e confesso, amigo leitor, não gastei nem 10% dos juros da grana que “eu” possuía no banco. E você já deve ter percebido que mandei abrir uma bela agência bancária na cidade, de modo que todo o dinheiro em circulação voltasse às minhas mãos. Resumo da ópera: fiz uma nova cidade dentro da outra e monopolizei as duas.
Tudo feito, disse antes. E parti ao passo seguinte, agora através de iniciativas locais promovidas por minha amiga Bete (prefiro assim). Cada estabelecimento, ou era denominado Estelio ou Natário. Você andava para lá e dava de cara com o Mercado Estelio, andava para cá e se defrontava com o Centro Social Natário. Ficou assim: ou o poviléu ia ao cinema Estelio ou ao estádio de futebol Natário. Os times de futebol eram dois: o Estelio Futebol Clube e o Natário Atlético Clube. E deixei passar um ano, até ter a certeza de que o poviléu de Montões Milionários não saberia pronunciar nada além de Estelio, ou Natário, ou ambos. Enfim, só conheciam o Dr. Estelio Natário.
Eleições! Chegara a hora. Eu já providenciara a fixação do meu domicílio eleitoral dentro do prazo legal. E me lancei candidato, indicando três maneiras de votar: Estelio Natário, ou Estelio, ou Natário. Como no jogo do bicho, cerquei os votos por todos os lados e, finalmente, tornei à terra natal, com a Bete anunciando que eu era o seu candidato. Festas e mais festas, eu com Glorinha e Maristela me acompanhando e anotando os compromissos na agenda. Que bocas!
E tome festa, com a presença constante dos melhores artistas nacionais, que ficaram encantados com o hotel da cidade. A Bete esvoaçava como um beija-flor e perfumava mais que a França inteira. Em cada comício, o locutor oficial, – famoso em todo o Brasil, – fazia os discursos e enaltecia o meu nome como o melhor prefeito que a cidade teria. A Bete então surgia dizendo ao poviléu que, se eu não ganhasse, ela venderia tudo e iria embora. O poviléu se assustava com a ideia e gritava alucinadamente o meu nome. Então eu surgia, acenando e recebendo arrebatados aplausos. E dizia, impoluto: “Obrigado, meu povo!”.
Somente isto, para não estragar. Em seguida descia do palanque e danava a dar autógrafos, até mesmo enciumando os artistas, que ficavam sem graça e batendo palmas para mim, o verdadeiro e único artista presente. Senti-me assaz envaidecido. Cheguei até em pensar declarar que tudo daria para aquele poviléu tão simpático e receptivo quanto esfomeado, mas logo reagi aos maus pensamentos e me mantive fiel à filosófica e conveniente síntese: “Obrigado, meu povo!”
Todo aquele entusiasmo popular inibiu os concorrentes locais, que de tão envergonhados vestiram uma saia justa e nem saíram de casa. Humildemente, porém, fui visitando-os, um a um, e animando-os a apoiar minha vencedora candidatura, sempre fitando-os dentro dos olhos. De cada casa que eu saía deixava atrás um verdadeiro amigo, acima de quaisquer ideologias. Custou-me uns trocados extras, decerto, mas valeu a pena, porque, no dia seguinte, os candidatos retiraram suas candidaturas e foram os que mais defenderam o meu nome no sufrágio que se avizinhava.
Ganhei as eleições com um resultado surpreendente: 100% dos votos, sem que houvesse um só branco ou nulo. Bem, na verdade ocorreram alguns, mas a minha experiência, – repassada pela velha amiga Bureaucratie Corruption (a grega do meu coração, já deportada, eis que flagrada pela Dona Justa armando suas trapaças numa eleição seguinte), – a minha experiência me garantiu a neutralização dessas decepções na contagem. Não sem gastar uns trocados, é óbvio. Por isso obtive a unanimidade eleitoral, feito único no país e que repercutiu em Brasília, ao extremo de muitos políticos de renome sugerirem publicamente minha indicação a ministro. Recusei, mas com a cautela de anunciar que, sem Brasília e as verbas federais, nada poderia fazer pelo meu amado povo de Montões Milionários.
Tomei posse logo anunciando um programa de distribuição de terras aos sem-terra. Por que você acha que comprei aquelas glebas improdutivas lá atrás? Fizemos a primeira reforma agrária local. As terras foram distribuídas junto com a promessa de construção de casas populares e açudes em frentes de trabalho, é lógico que com polpudas verbas federais que eu garantira antes, no orçamento. Deus me ajudou!...
Com a legitimidade que eu angariara nas urnas, logo veio o governador dando-me tudo o que eu exigia, em nome do poviléu, é lógico. Tratava-o bem, lembrando-me daqueles lojistas ambiciosos que no passado eu golpeara. Ó cobiça! Lá estava a cobiça eleitoral a aflorar indecentemente nos brilhantes olhinhos do governante estadual, que costeava o alambrado do meu curral eleitoral, e eu imediatamente lhe garantindo apoio nas próximas. Exigi-lhe, porém, mil e uma coisas: um hospital estadual de grande porte; a pavimentação de estradas; a construção de conjuntos populares; enfim, melhorias nunca sonhadas por aqueles conterrâneos de Montões Milionários. Assim fui engordando a manada pública e extraindo a minha parte da gordura, como de praxe, enquanto o poviléu engordava nos empregos que naturalmente surgiam. Viu, como todos, ao final, saíram ganhando?
Passado um ano, a cidade ficou tão linda que sugeri à Câmara trocar o seu nome para Montões Biliardários, sendo a moção aprovada por maioria absoluta. É lógico, meu esquecido leitor, – com quem agora me penitencio por olvidá-lo em momentos de sincera empolgação, – é lógico que tudo isso me custava alguns trocados, mas apenas a mínima parte dos lucros desta nova empreitada política. Na verdade, todas as tendências ideológicas tornaram-se uma, resumida na mágica palavra: “Grana!”
Não me faltava mais nada, pensava eu, até que me surgiu a inesperada visita de um norte-americano vindo de Las Vegas especialmente para dialogar comigo. A fama de Montões Biliardários chegara aos EUA, assim como o meu prestígio nacional se tornara inevitavelmente internacional. Pediam-me que intercedesse e liderasse uma campanha pela liberação geral da jogata no Brasil, o que aceitei de imediato, mas com o compromisso assinado de a minha cidade ser a primeira a abrir seus cassinos. Assinaram sem pestanejar, e não deu outra: o jogo passou a correr solto no território nacional, com Montões Biliardários surgindo como pioneira na histórica inauguração de monumentais casas de jogos.
Você deve estar aí imaginando em qual lugar a esplendorosa cidade da jogatina foi instalada. Afirmo logo: em minha fazenda, o local mais aprazível da cidade. Mas não a vendi. Associei-me a eles através daquele “eu” do qual você já está íntimo. Bem, amigo leitor, creio que é hora de encerrar esta parte da minha doce história de vida, mais uma vez me escusando pelo entusiasmo. Você já deve ter percebido que aqueles golpes do passado foram sepultados definitivamente. Hoje resido em Las Vegas e só venho a Montões Biliardários a passeio e para ganhar eleições. E fico feliz ao ver tremeluzindo em luzes multicolores o letreiro do maior cassino de todos: ESTELIONATÁRIO CASSINS.
Lindo nome, não? Devo-lhe, porém, confessar que a mesma paixão que continuo a cultuar por Glorinha, Maristela e Bete (Que bocas!), a mesma paixão mantenho pela vida pública, enfim, pela política. E não descarto a ideia de me candidatar a governador nas próximas, especialmente porque o poviléu de minha terra natal deixou de ser pobre sem que eu precisasse ser honesto. Eis aí, meu caríssimo leitor, eis aí surgindo a síntese de uma nova ideologia política que muito eu ainda desenvolveria no futuro. E que fazer, se Deus insiste em continuar a me ajudar... Sim, sim, sim, meu caríssimo leitor, mais uma vez Deus me ajudou!... Por isso, devo cumprir a minha sina. Um dia serei governador de Trapaça do Nordeste. E, quem sabe, até algo mais?...

TRÊS


Nunca Trapaça do Nordeste viu tanta festa, as melhores festas, com os mais renomados artistas nacionais e internacionais, inclusive o Frank Sinatra em carne e osso, que veio gratuitamente colaborar em minha campanha. E a propaganda eleitoral? Que qualidade! que apresentação!... Sim, meu amigo, sim, sim, cá estou, alguns anos depois, candidato a governador. Não lhe havia prometido? Confesso a você, somente a você: agora não mais política por dinheiro, mas pelo social... pois enchi tanto minhas algibeiras que meu colesterol financeiro disparou! Vou explicar tudo como se no presente estivéssemos, para lhe dar mais gosto. E não se peje! Faça de conta que somos uma só pessoa a curtir esta candidatura e a retumbante vitória que conquistei. Os demais, como já lhe orientei, são os alheios, são os “tu, ele, vós, eles”.
Meu ímpeto sexual diminuiu consideravelmente. Hoje tenho mais tempo a filosofar que antes. Glorinha e Maristela estão mais calmas, cada qual carregando, além das joias caras e das gordas contas bancárias, os nossos rebentos, um garotinho da Glorinha e uma garotinha da Maristela. Os meus anjos da guarda eu os dispensei de volta, todos muito ricos. Agora estão a curtir a vida com suas famílias. Eles merecem! A Bete não larga do meu pé, mas agora permiti-lhe que arranjasse um namorado. Está perdidamente apaixonada por seu garotão. E eu, com a gordura financeira que tenho, resolvi finalmente dar ao poviléu algo de mim.
Não lhe preciso dizer que a cidade de Montões Biliardários tem o prefeito que apoio. Ali me lancei candidato a governador em faraônica festa, com o meu querido poviléu não mais comendo calangos e sopas de cacto. Todos se alimentam, hoje, de caviar russo e bebem água mineral Perrier, dentre outras finas iguarias que podem agora consumir. Estão de fato felizes com as doces vidas que lhes dei, sem a mínima necessidade de alguém ser honesto. E veja só, caro leitor, ai daquele que aqui me ousar chamar de ladrão. Morre na hora, com as vísceras expostas, devido a um belo corte de peixeira dado por algum fã ardoroso.
Comecei pelos acordos com políticos de todas as tendências ideológicas, como daquela outra feita, já com eles admitindo ser a minha ideologia, – a da grana para todos, sem prejuízo do poviléu, – uma das mais eficientes que nunca jamais ocorrera em qualquer ponto do meu amado Brasil. O exemplo de Montões Biliardários passou a ser assunto nas universidades e escolas, nos botequins e puteiros, desde os mais elegantes (os da minha cidade) aos mais rasteiros (do resto do Brasil). Eu governador, segundo a soberana vontade do poviléu de Trapaça do Nordeste, seria a única solução. E me lancei à luta, com o apoio de todos os partidos e bases ideológicas, como sempre tendo antes visitado as lideranças e gastado aqueles trocados de praxe, a garantia do meu sucesso permanente.
Admito que quase desisti da candidatura em determinado andar da carruagem. É que, sem concorrência, não demandei muito esforço intelectual para vencer equações. Tudo vinha em minhas mãos como a água correndo invariavelmente ao mar. Mas fui em frente, fazendo acordos e mais acordos, sem discriminar quaisquer categorias. Em verdade, estacionei-me num belo escritório eleitoral, na capital, ocupando um edifício de dez andares que mandei construir somente com este fim. E passei a acolher as comitivas como se fosse um el-rei recebendo-as no passado. Vinha de tudo, desde banqueiros de bancos a banqueiros de bicho e traficantes internacionais e nacionais de droga. A todos, sem preconceito, destinava especial atenção e lhes prometia um mundo mais dourado que o próprio ouro. Mas, apesar de tudo transcorrer maravilhosamente bem, por via das dúvidas mandei trazer da Grécia minha amiga Bureaucratie Corruption, não sem antes encetar gestões com vistas a sua tranquila entrada no país. Não podia correr o risco de me deparar a mim com votos brancos e nulos. A ela destinei o andar logo abaixo do que ocupava sozinho e assessorado, como sempre, por Maristela, Glorinha e Bete. Seriam secretárias de Estado, decerto seriam... Que bocas!
As rádios, os jornais e as redes de televisão de Trapaça do Nordeste (todas minhas) só falavam no fenômeno político Dr. Estelionatário, candidato único e vencedor garantido por 100% do eleitorado, conforme as pesquisas. Também meus, os institutos de pesquisa, é claro. De fora, chegavam verdadeiras comitivas de cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, psicólogos sociais e outros loucos que perdem tempo em pesquisar o Brasil, alguns vindos até do exterior e todos ávidos em estudar o sensacional político que despontava como um futuro presidente da República. Apenas uma ideia... que vinha vindo por conta da vaidade que me tomava todo. Sim, sim, meu prezado leitor, não me posso negar que acalentava isso, no fundo do meu mais aprofundado íntimo.
E me vieram as eleições e a estrondosa vitória. Foram cinco dias de festa, com todos os Trios Elétricos baianos contratados a animar um poviléu feliz por primeira vez e maravilhado com o promissor futuro. Transformaria o meu torrão estadual numa extensão  aprimorada de Montões Biliardários, uma questão de honra. Mas, animação à parte, eu sabia que precisaria de muita gordura a engordurar a manada para me garantir a próxima campanha, que sem dúvida seria a de presidente...
Assim, em pleno deleite da vitória, já pus mãos-à-obra e passei a governar ao estilo de sempre, provando que o importante não era ser honesto, mas dividir minha desonestidade com o poviléu. E dei logo o histórico exemplo, que mais tarde certamente entraria nos livros escolares de História do Brasil: paguei a dívida de Trapaça do Nordeste com a União em dinheiro vivo e do meu próprio bolso. Ou melhor, com uma pequena parcela do dinheiro que estava depositado na conta daquele meu “eu” que você tanto aprecia. E empolgado, certo de que o meu prestígio político me tornara imune à Dona Justa, – em outras palavras, impune, – finalmente desnudei meu mais importante mistério, desvelei publicamente meu secretíssimo “eu”. No fim de contas, não mais havia que temer. E é bom que se diga que, zerada a dívida de Trapaça do Nordeste, a União premiou o caso inédito e abriu a burra e derramou dez vezes mais numerário nas contas estaduais. E assim o meu “eu” foi igualmente recompensado em dobro... ou em triplo, não me ocorre agora lembrar com exatidão.
Montei então o secretariado: Maristela, secretária de Saúde; Glorinha, secretária de Ação Social; Bete, secretária de Assuntos Intermediários. E a grande surpresa: nomeei o meu amado diretor, o Dr. Onestinho Dureza, como secretário de Justiça. E você, meu prezadíssimo leitor, aí pensando que eu me esquecera dele. Nunca! Ainda mais depois de ele me tratar como a um filho e rogar-me com aquela sua marcante frase: “Não se esqueça deste seu amigo!” Ora, caríssimo leitor, e quem você acha que convidei para a Secretaria de Segurança? Sim, o Damião, aquele que me salvou do pestinha do Zé do Cerol. Quem seria eu, hoje, que seria de mim, hoje, se não fosse o Damião? Oh, um mero punhado de ossos esquecidos em cova rasa lá nos cafundós do Estado do Rio de Janeiro!
Três anos depois, quem fosse ao Estado de Trapaça do Nordeste teria a impressão de estar desembarcando em outro país. Uns o comparavam ao Principado de Mônaco; outros o situavam como a Vegas brasileira, tamanha era a jogatina, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Ocorreu que, de repente, não havia mais turismo interno e externo em território brasileiro que não desaguasse primeiro em Trapaça do Nordeste.
Se o prezado leitor sobrevoasse o Estado, à noite, veria as luzes rutilando nos rincões mais longínquos como colares de brilhantes iluminando aquelas terras nordestinas. De dia, era o verde das plantações e dos pastos, as florestas renascidas, os lagos artificiais, os hotéis maravilhosos, os cassinos em praticamente todas as cidades, as casas de diversão e circos e mais circos. Sim, meu amigo, sobrevoasse você o meu torrão, – e poderia ser num dos meus inúmeros aviões particulares, – você não pensaria estar no Brasil.
Montões Biliardários já entrava em cogitação de ser a nova capital do país. Fui contra, porque sabia que um dia eu colocaria Brasília no seu importante lugar. Mas Brasília esvaziou-se, assim como o Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras e sul-americanas. Dava pena. Ninguém queria outra coisa que não fosse o Estado de Trapaça do Nordeste e a histórica Montões Biliardários. E o poviléu brasileiro começou a me exigir a candidatura a presidente. Eu fazia doce... mas não queria outra coisa, até que, reunidos em Brasília, todos os presidentes de partidos políticos, tanto das esquerdas radicais como das direitas extremadas e do meio anfibológico, todos, sem exceção, e de braços dados, me impingiram à decisão histórica e ao gesto patriótico de ser o candidato único a presidente da República. Também os instei a conhecer Trapaça do Nordeste, não sem antes, com a minha experiência, acertar as distribuições dos ministérios e das verbas entre eles. Saíram contentes, os olhinhos brilhando em incontida cobiça. E foram ao meu Estado e sentiram, logo na chegada, a força do meu eu político. Quando aterraram no aeroporto da capital de Trapaça do Nordeste se espantaram em verificar ser ele o mais moderno de toda a América Latina.
E a recepção? Sim, meu amigo, aquela fileira de moças em trajes sumários, de colares floridos no pescoço, dançando o hula-hula, remexendo as lindas barriguinhas e convidando-os ao prazer. Para cada membro da comitiva havia três moças a acariciá-lo, literalmente. E todos vibraram! vibraram! vibraram! E não saíram sem antes jogar no meu cassino, ganhando verdadeiras fortunas. Retornaram a Brasília com os sacos vazios e as algibeiras cheias. Os sacos? Sim, meu amigos, aqueles que você aí imaginou.
Presidência da República! Ó doce missão a me chamar, como a sereia chamou um dia a Ulisses! E lá fui eu, em campanha, no estilo festivo de sempre, e com um slogan que foi direto ao espírito do eleitor: “Estelionatário na cabeça!” E outros, que pegaram como a mosca ao mel: “Estelionatário, um desonesto a serviço do povo!”, “O importante não é ser honesto, mas produtivo!”, “Desonestidade, sinônimo de felicidade!”, “O crime compensa!”, “O Comando Vermelho não existe!”, “Nas favelas do Rio de Janeiro não há bandidos armados, é tudo invenção da direita!”, “É melhor um desonesto assumido do que um desonesto dissimulado!”, “Assuma a desonestidade e seja feliz!”
Não deu outra: com a propaganda e o meu discurso de sempre (“Obrigado, meu povo!”), e com a inestimável ajuda da amiga Bureaucratie Corruption, obtive retumbante vitória. E comecei a montar os ministérios, três meses antes, em alto estilo. Enquanto isso, o povo me aclamava por todo o Brasil. Até os índios, enfiados lá nos cafundós da Amazônia, clamavam por mim aos gritos e ao som dos tambores festivos: “Estelio! Pam, pam, pam... Estelio! Pam, pam, pam... Estelio! Pam, pam, pam... Natário! Tum, tum, tum... Natário! Tum, tum, tum... Natário! Tum, tum, tum...” Sim, sim, parecia um novo canto de guerra das tribos unidas em torno de mim. Que maravilha!
Cheguei a Brasília em caravana de muitos aviões fretados, tudo já com pagamento antecipado na conta presidencial e abatidos os devidos 10%. E com a minha autoridade presidencial inevitável, determinei à Força Aérea que mandasse todos os aviões a Trapaça do Nordeste, com o fim de trazer meus conterrâneos à festa da posse. Menos a Bete, coitada, que caiu doente, manchas pelo corpo e fraqueza geral. Eu estava triste. Tudo levava a crer que contraíra aquela maldita doença da despreocupação com o uso da camisinha. No fundo, estava também preocupado comigo. Sim, meu amigo, aquela exclamação, que tanto aqui repeti, a ela também se referia: “Que boca!” Mas fui em frente, cumprir meu destino histórico. Sentia-me o mais importante líder político já surgido no Brasil em todos os tempos. E fui, nos braços do poviléu eufórico, à faixa presidencial. Que entusiasmo! que empolgação! que civismo!... Foi assim, meu leitor e eleitor, juro que foi assim!
À noite eu já empossava o meu ministério, o melhor de todos até então articulados. Mas não abri mão de trazer de Trapaça do Nordeste alguns nomes de minha confiança. Empossei Glorinha na Saúde, Maristela na Previdência (Ó bons tempos de processinhos na previdência!), Damião no Ministério da Defesa, Dr. Onestinho Dureza na Justiça e a Bete, mesmo adoentada, na Casa Civil. Os demais ministérios, deixei-os por conta dos partidos que me apoiaram, exceto a Casa Militar da Presidência. Aqui enfrentei forte resistência, mas me impus com autoridade. Empossei no cargo o cabo Ceguinho, da milícia do Rio de Janeiro. Sabem por quê? Ora, ele estava de plantão no alto da guarita quando Damião passou a peixeira no Zé do Cerol. Seria uma testemunha perigosa contra os meus amigos, se antes não me procurasse e dissesse que “nada viu”. Sim, meu amigo, ele segurou a barra nos depoimentos perante a Dona Justa e nunca entregou ninguém. Para mim, era o melhor militar brasileiro vivo. Daí, recompensei-o.
Comecei a governar sem dar muita bola aos militares. Nem eles a mim. Ficavam distantes e hostis, assistindo a tudo de camarote e mal-encarados. Não fiz por menos, comecei a cortar-lhes as regalias e a diminuir-lhes os salários, deixando-os fulos da vida. Mas eu nem aí estava para eles. Meu negócio era tocar o Brasil, assumindo a desonestidade com franqueza. O poviléu sentia firmeza no meu estilo. E as pessoas comentavam: “Agora, sim, sabemos que os desonestos são efetivamente desonestos! Não como antes, que se diziam honestos e enriqueciam desonestamente, e nossas vidas nada melhoravam!” Sim, meu leitor, o poviléu estava feliz, mas durou pouco a felicidade...
Acordei de manhã ao toque bravio da corneta, minha suíte presidencial invadida por carrancudos militares, fui deposto. Saí algemado e já trajando um pijama listrado, meu predileto, em preto e branco, listras horizontais. Puseram-me num avião e fui recolhido à Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói. Apelei aos amigos fardados que me pusessem na Penitenciária Barreira Filho, mas não houve jeito. Eles não me fitavam nos olhos, neutralizando-me no que sempre tive de melhor: o meu charme.
Ficou feia a coisa e fui levado a julgamento. Tive sim, confesso-lhe, a ampla defesa. E usei do direito de eu mesmo me defender, uma curta fala, que se resumiu à frase: “A ser trancado, que o seja também comigo todo povo brasileiro!” Os carrancudos entreolhavam-se, espantados. E me fitaram a mim no fundo dos meus olhos. Logo percebi que concordavam com o que eu dissera. E aceitaram a minha sugestão, meu amigo...
Agora estou trancado, aqui, na Fortaleza de Santa Cruz. Todos os demais foram perdoados, exceto eu e o Cabo Ceguinho, também condenado e trancafiado somente pelo terrível crime de ser um PM. E não somente isto, mas cumprindo pena no pior pavilhão de Carandiru. Eu mesmo me espantei do rigor. Não sabia que ser PM é pior que ser bandido. Puxa! Coitadinho!...
Como já lhe disse, e repito, cá estou, trancado na Fortaleza de Santa Cruz. Ninguém me olha de frente. Do lado de fora há uma recomendação em mural (aquele de papel pardo, que militar adora desenhar em pincel atômico) com os dizeres: “Não olhe e não fale com ele! É perigoso olhando e falando!” Tudo bem. Deixaram-me falar no julgamento, e foi o bastante para convencê-los: entregaram o poder ao novo presidente militar (tão eufemismo de ditador quanto dianho o é de diabo...) com a recomendação de que ele fizesse em torno do Brasil um muro de envergonhar a Muralha da China em imponência arquitetônica, uma verdadeira obra de arte (com hífen mesmo, eta língua complicada!). E a construíram, portentosa e recortando todo o território nacional em seus continentais limites. Ninguém entrava, ninguém saía.
Na entrada da baía de Guanabara elevaram um portal monumental, uma curva em concreto como se fosse uma ponte altíssima. Embaixo implantaram uns terríveis portões gradeados e com diversas aberturas eletronicamente controladas nas chegadas e saídas dos navios. Entrar e sair do país, só por este imponente pórtico. E nele, em letras garrafais, – forjadas no bronze e circundadas em neon para leitura noturna, – escreveram: XADREZ.
Sim, meu amigo, aqui estamos, eu e você, presos no Brasil, que virou um grande xilindró. Meu espaço é apenas menor que o seu. E não tenho tristeza por isso. Sou um criminoso conformado. Só lamento mesmo a morte da Bete e de não ter tido tempo de colocar em prática o último anúncio presidencial que fiz: prender os honestos. Assim faria a melhor justiça que já se viu em Brasil, sem medo de errar, porque é certo que em meio daqueles que se dizem honestos estão os mais requintados criminosos...
Empolguei-me com a minha ideologia e me tornei, sem perceber, um desastrado sectário de minha própria ideia. Dei-me mal, na verdade, porque, naquela minha empolgação de pagar as dívidas de Trapaça do Nordeste com o meu dinheiro depositado na conta do meu segundo “eu”, acabei descortinando o mistério que guardava a sete chaves e durante toda a minha vida. Fiz mal em abandonar meus princípios básicos da vigarice. Tive um rasgo único de honestidade e dancei legal. Mas, na verdade, não saí perdendo por ser vigarista e descarado ladrão do poviléu; dancei mesmo porque resolvi morder gratuitamente os calcanhares dos milicos para agradar as esquerdas festivas e ostentar aquele meu lado socialista. Dei-me mal nesta decisão, e mais uma vez por culpa da vaidade.
Tudo bem, como já lhe disse e agora repito: “Bom cabrito não berra!” Também, já estou velho e doente. E não devo reclamar da sorte, posto ter vivido a vida como um nababo, e na única tranca dura que enfrentei amoleci-a ao ponto que bem entendi. Agora, novamente em cana, pelo menos sei que o poviléu de Trapaça do Nordeste e de Montões Biliardários de mim recebeu o melhor. Mas, caro leitor, de quem me despeço em lágrimas desta vez sinceras, devo-lhe confessar que a construção da muralha brasileira acabou gerando empregos em todo o país. Grande obra! Mas li aqui, num jornal antigo esquecido no chão do pátio onde tomo o meu banho de sol, uma notícia dizendo que na licitação correu um percentual de 20%. Puxa!?!... Neste novo surto de honestidade pátria que me encarcerou tão rigorosamente a propina fora inflacionada de 10% para 20%. Boa ideia, esta Muralha do Brasil a prender todo mundo!...





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