quinta-feira, 20 de abril de 2017

PINTADO DA VILA DA PENHA




 Mesa de canto, malandro tristonho, sentado no bar, o Bar de Bacanas da Vila da Penha. Cerveja na mesa, a alma sofrida, total solidão. Camisa vermelha, boné na cabeça, tombado de lado. A calça é de linho, um vinco perfeito, a perna cruzada, o copo na mão. Sapato alinhado, em branco e marrom, completa o estilo do malandro Pintado.
Pensando na vida, retorno ao passado, pensando Pintado, enquanto ele espera o conjunto tocar. É noite de sábado, seu bar preferido, um bar de seresta, raparigas distintas, amigos de fé, no palco ele canta, canções prediletas, agradando aos presentes, ele canta boleros e sambas-canções.
Mas Pintado está triste, o peito doído, lembranças na mente, silêncio na voz, um choro de espírito, ferido na alma e no seu coração...


O conjunto começa, em acordes perfeitos, os pares dançando, os passos treinados, enfeites nos trajes, mulheres bonitas enfeitam o salão. Dançando amanhecem, manhã de domingo, malandros prezados, não dormem tão cedo, à noite acordados, mantendo a cultura, dos tempos da Lapa, da Lapa vadia, outrora cantada em lindas canções.
Pintado é malandro, do tipo incansável, tem pose distinta, sujeito alinhado. Mas pensa em Marina, morena Marina, as lágrimas lhe descem, nos cantos dos olhos, com ele pensando, voltando ao passado...
Domingo é descanso, da noite virada. Segunda é batente, da roupa surrada, mas muito cuidada. Assim ele vai, seguindo ao trabalho.
No pé da estação, que fica na Penha, não muito distante, da Vila da Penha, Pintado arrumado, espera o vagão. Trabalha no centro, vendendo bilhetes, em loja instalada, saída de barca, atendendo ao povão.
Segunda até sexta, a rotina de sempre, o trem apertado, passagem mais cara, e lá vai Pintado, postado de pé, ao sabor do balanço, no vagão predileto, primeiro vagão, malandro arrumado, com fé no Divino e superstição.
Aparece um lugar, do lado que estava. Ele senta depressa, prestando atenção, parada certeira, em outra estação.
E embarca a donzela: morena bonita, cabelos nos ombros, os olhos brilhantes, um corpo perfeito, idade de trinta, mais nova que ele, chegando aos quarenta.
Pintado é solteiro, malandro boêmio, encanta-se todo e oferece o lugar. Marina agradece, olhando nos olhos, Pintado estremece, pintou emoção, balanço do trem no seu coração.
O trem continua, vencendo a distância, Pintado encostado, de olho na moça, mantém o olhar, com todo respeito, mostrando finura e total discrição.
E segue o casal, trocando piscadas, pensando em manter alguma união. É arte da vida, amor verdadeiro, mais forte que ambos.
No ponto final, Barão de Mauá, o povo correndo, já meio atrasado. Pintado é malandro, vai na dianteira, espera na porta a morena faceira.
Dali fica vendo a moça bonita, seus passos medidos, no alto do salto, a bolsa na mão. A roupa é bem simples, cuidada em detalhes, formando um conjunto de grande beleza.
“Ela é um colírio!”, Pintado pensando, espera a passagem, para o galanteio: “Terei eu sucesso?”, dizia pra si. Chegado o momento, palavra ensaiada, Pintado então fala:
– Bom-dia, princesa! Permite um aparte?
– Bom-dia, pois não?
– Meu nome é Pintado, trabalho no Centro; gostei dos seus modos; você é solteira?
– Eu sou, sim, senhor. Marina é meu nome. Trabalho também, na loja de frios, no número vinte da Rua Ouvidor.
– Permite o abuso de acompanhá-la?
– Permito, é prazer! Eu muito gostei do seu modo elegante, difícil hoje em dia!
– Marina, obrigado! Pensei numa coisa: eu ando no trem, horário de sempre, por que não te vejo?
– Não moro na Penha. Passeio, apenas, na casa da mana, Maria do Carmo. Clarisse, afilhada, é a filha que tem. Por isso eu estou andando de trem.
– Sou homem de sorte, guardei o lugar, no trem pra você. Permite um convite, com todo respeito?
– É claro que sim! Não sou de aceitar, mas abro exceção. Você me provou merecer atenção, por seu jeito fino e educação.
– Frequento um lugar, na Vila da Penha, o Bar de Bacanas, lugar bem distinto, com música ao vivo e animação. Gostaria de ir?
– É certo que sim! Com que roupa eu vou?
– Você é bonita. A roupa é detalhe. É lugar de destaque, beleza é que vale.
  Então está bem, aceito o convite, mas como faremos?
– Vou até sua casa, eu faço questão. Eu não tenho carro, mas chego de táxi, um belo carrão. Você mora onde?
– É em Bonsucesso, na Rua dos Patos, em casa de esquina, de número sete. Mas fico esperando, na casa da mana, no bairro da Penha é fácil chegar. Eis aqui o papel indicando o lugar. Você sabe onde é?
– Sei tudo da Penha, recanto querido. Chegarei nove horas, no dia de sábado. Eu chego arrumado, no ponto da hora, você vai gostar!
– Está combinado, me vou despedindo, senão me atraso.
– Meu caso é o mesmo, vou indo também. Então, até sábado?
– Com toda certeza!
 



Saíram depressa, os dois atrasados, sem muito problema, conceito mui grande, patrões de primeira, bom tempo de casa.
Pintado chegou, vendia bilhetes, primeiro freguês pediu um pedaço, com fé no leão; freguês estrilou, distraído Pintado, passou-lhe errado, uma fé no veado. Sem graça, Pintado, desculpas pediu, pensando mui longe na bela Marina, morena Marina.
 Com ela não teve reclamo nenhum. Pensava, porém, no que vestiria, no fim de semana. E já decidira, com sua poupança, gastar dela um pouco, em roupa da moda, pra ocasião.
 


No dia seguinte, os dois deram sorte...
Primeiro vagão, assim combinados, o trem no horário, os dois conversando, sabendo em detalhes, dos modos de vida. Pintado vibrava, era linda a morena, além de educada, falava serena.
Falava na irmã, casada há seis anos, a filha, afilhada, de nome Clarisse, marido Ricardo, corretor de imóveis, pessoa boníssima, cunhado querido.
Pintado contava da vida que tinha: trabalho pra casa, o bar da esquina, amigos de sempre, trocando em miúdos, assuntos do dia. A vida era simples, sem muito problema, a casa era própria, herdada dos pais, no mesmo lugar, nascera e vivera, na casa de vila da Vila da Penha.
Conversa rolava, rodavam as rodas, o trem apressado, caminho do Centro, Barão de Mauá. Abraço afetivo, o clima esquentando, o tempo escorria, o dia chegava.
Era já sexta-feira, os dois animados, correndo pra loja, à cata de roupa, estréia prevista no dia seguinte. Pintado, ansioso, na Praça Mauá, na loja de sempre: olhou os bonés, escolha difícil, com muitos modelos à disposição. Pegou o azul, passou pelo verde, foi ao amarelo, parou no vermelho. Olhou no espelho, vendedor esperando, botou na cabeça, tombou para o lado, soltou um sorriso, de satisfação, mandou reservar.
Vestiu a camisa, de seda, bem pura, a manga comprida, vermelha na cor, mandou reservar. Partiu para a calça, em linho, branquinha, botões nos seus bolsos, mediu no espelho, gostou de montão, mandou reservar. E foi aos sapatos, modelo de sempre, o bico afinado, em branco e marrom, mandou reservar. Com meias, a dúvida, se brancas ou vermelhas, separou cada par, decisão pra depois, mandou reservar.
Somou a despesa, pagou a entrada, dividiu em seis vezes, abraçou o amigo, saiu apressado, voltou ao trabalho, pediu um bom vale, patrão estranhou, amigo fiel, não deixou de pagar.
No mesmo horário, Marina buscava, em loja da moda, a roupa bonita, pensando estrear. Comprou um vestido, vermelho, bonito, decote discreto, cintura apertada, a saia colada, colada nas coxas, com rendas bonitas, abrindo em godê.
Comprou os sapatos, de salto afinado, altura ideal, bonito de ver. Pagou a entrada, dividiu em seis vezes, pegou o embrulho, voltou ao trabalho.
Seis horas da tarde, as lojas fechando, o trem apertado, os dois retornando, sem vista um do outro, pensando no sábado, no Bar de Bacanas, encontro marcado. Dormiram agitados, pensando um no outro, acordaram cansados, dormiram de novo, o sono da tarde, o tempo passando, correndo pra noite.
Mas antes ainda, às quatro da tarde, Marina partiu ao salão de beleza. Cuidou da aparência: as unhas dos pés, as unhas das mãos, vermelhas, bem vivas, esmalte importado, cabelos cuidados, revoltos em mechas, encaracolados.
Pintado, também, dirigiu-se ao barbeiro, um corte em capricho, a barba rapada, a moça bem hábil, cuidando das unhas, aparando as arestas.
 

Às sete da noite, os dois no banheiro, um banho de espuma, depois o perfume, detrás da orelha, no colo e no pulso. Como se combinassem, cada um no seu bairro, tirando das caixas, as roupas bonitas, de ocasião. Às oito da noite, os dois ansiosos, à espera do tempo das nove da noite.
Pintado no táxi, um novo carrão, ar-refrigerado, bonito de fato, partiu apressado, bateu no endereço.
Marina esperando, irmã curiosa, Ricardo, bem tímido, sem olho na rua.
O táxi parou, igual carruagem, Pintado desceu, encantou-se bastante, Marina em beleza, tão deslumbrante.
Maria do Carmo, irmã curiosa, esticava o olhar, pra ver o malandro, malandro Pintado. Gostou do que viu: homem forte, cuidado, futebol bem jogado, domingo de sol, em campo de várzea da Vila da Penha.
As pernas em músculos, a barriga uma tábua, os ombros bem largos, os braços bem fortes, um belo exemplar. Pensou em Ricardo, as pernas bem finas, barriga pra fora, o peito pra dentro, um tipo baixinho, bebedor de cerveja, mas um bonachão.
Maria do Carmo ficou com vergonha da comparação. Amava o marido, gostava da vida, dos tempos de outrora. E tinha Clarisse, a bela menina, vendendo saúde, família bonita. Desculpou-se consigo, de si para si, feliz com Marina, irmã predileta, em sua conquista.
O carro levou o casal afinado, conversa mui franca, um papo animado. Seguiram destino: o Bar de Bacanas, na Vila da Penha, o ponto de encontro de malandros saudosos, expulsos da Lapa, mantendo a cultura dos antecedentes.
Desceram em estilo, Pintado na frente, correndo pra porta, abrindo-a depressa, pegando Marina, morena Marina, adentrou o ambiente. Causaram estupor, malandros presentes, mulheres bem lindas olhando contentes.
Amigo Pintado, a flecha no peito, Cupido assanhando, um final feliz ao solteiro insistente. Marina, a princesa, deslumbre em beleza, sorriso bem franco, agradou na chegada. A mesa esperava, no canto de sempre, toalha alinhada, cinzeiro no meio, era mesa cativa do malandro Pintado.
 


Um samba de breque, conjunto tocava. Dançavam casais, em passos treinados, os homens, distintos, malandros de fato, o baile seguia, em animação.
Pintado pegou nas mãos de Marina; com pose de rei, conduziu a morena, ao centro da pista, e mostrou sua graça.
Marina esperta na dança também. Não perdia um só passo, rodava bonita, causando suspiros, despertando atenção.
Com todo respeito, na mão de Pintado, o lenço de linho evitava o suor, na mão da princesa: fineza malandra dos tempos distantes, dos sambas de breque e das gafieiras, dos tempos da Lapa, da Lapa vadia e das capoeiras.
Chegara o momento, sabia Pintado. Marina alheia aos desdobramentos...
Chamado no palco, Pintado encantou: cantou um bolero, dedicado com gosto à sua Marina...
 

Surpresa, Marina, com a qualidade. Agora sabia o porquê da cativa, da mesa de canto, no canto do bar, no Bar de Bacanas, da Vila da Penha: Pintado era artista, o dono da noite, cantava, afinado, boleros e sambas, e dava o recado com sambas-canções, tirados do peito, em muita emoção. Ali mais ainda, em razão de Marina, morena Marina, a sua paixão.
Não passou muito tempo, casório pintou. Igreja lotada, com os convidados. Pintado, de fraque, Marina, bonita, vestida de branco, de véu e grinalda, sorria feliz, com a união.
Clarisse, a criança, levava nas mãos, o par de alianças...
O padre esperando, celebra inspirado, aquele conúbio, com lindo sermão...

 
Saíram, felizes, Pintado e Marina, marido e mulher, morando no bairro, na casa de vila, da Vila da Penha.
O tempo seguia seu rumo normal, casal bem contente, Pintado cantando e dançando aos sábados, no Bar de Bacanas, da Vila da Penha, com sua Marina, morena Marina..
Ao trabalho iam ambos, os dois sempre juntos, partindo no trem, horário de sempre, chegando ao trabalho, voltando no trem, ao lar do casal, na casa de vila, da Vila da Penha.
Um dia, porém, Pintado faltou, estava de folga, o trem não pegou.
Despediu-se Marina, Pintado em casa, beijando na boca de sua amada. Marina partiu, pra não mais voltar. O trem decidiu do trilho sair, em velocidade, no chão duro tombou. Marina, coitada, não pôde evitar a morte chegar. Surpresas da vida, final não previsto, em hora e lugar.
Pintado queria, coitado, queria, partir para sempre com sua Marina. O seu desconsolo, em perder a amada, causava tristeza, amigos presentes, no triste velório, Marina sem vida, beleza no rosto, a alma no Céu.
Pintado ficou, a vida partida, parou de cantar, no Bar de Bacanas...
Passou muito tempo, trancado na casa, na casa de vila, da Vila da Penha...
Mas eis que num sábado, na mesa cativa, surgira Pintado, sozinho no mundo, na mesa de canto, o copo na mão, boné na cabeça, tombado de lado. Chorando, sozinho, lembrava Marina, morena Marina, Marina morena, o seu grande amor.



Não passou muito tempo, saudade apertando, Pintado, bonito, ficou definhado. Perdeu a saúde, morreu de propósito, partiu em tristeza... Mas teve a surpresa, no mundo de Deus: um Bar de Bacanas, na Vila do Céu, Marina bonita, Marina morena, sorriso mui lindo, esperando por ele.
Pintado estacou, em deslumbramento. Pegou-a nas mãos, partiu para a pista, no centro do baile, bailando feliz, com sua Marina, morena Marina, juntinhos pra sempre, na graça de Deus!...




(Homenagem a Marina, minha afilhada querida, e a Pintado, amigo do amigo e compadre Jorge da Silva, ambos criados em Olaria e frequentadores do Ponto de Encontro, bar de seresta situado na Vila da Penha, ainda lugar de malandro considerado e em pleno funcionamento. Vila do Céu é expressão poética em obra literária – CONTO PREMIADO – do Coronel PM, Professor, Escritor e craque em seresta Jorge da Silva, intitulado Ester da Vila do Céu.)


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