O meu carro é um Audi
Uso roupa de estação
É tudo grife famosa
No pescoço, o meu
cordão
É de ouro bem pesado
Estou rico de montão.
De dia, controlo as
bocas
De noite rondo a
cidade
Em busca de diversão
O bolso cheio de grana
Pra pagar a extorsão.
Saio com ruiva e
morena
Sou malandro bem
maneiro
Mas em casa é a Pretinha
Dona do meu coração
É cabrocha de
responsa
De cama, forno e
fogão
Não liga nem quando
saio
Pra torcer pro meu
Mengão.
– Clarim, para com isso!...
Vai estudar! Vou queimar o seu traseiro com chinelada, hein!...
Eu agora me apresento
Segura aí, seu bobão!...
Tá pensando que sou
fera
Traficante de morrão?...
– Olha aí, Clarim!...
Tá maluco?
Sou nada disso,
babaca
Nem pense que sou
polícia...
Eu sou é funkeiro,
irmão!”
– Clarim, para de
besteira!... Num fica me dando susto, menino!
– Besteira não, mãe,
é arte! Você não espera eu terminar a composição, bolas!
– Que composição, que
nada! É falta do que fazer! Vai estudar, menino!
– Hum...
Que saco aturar a
velha
Que merda aturar o
mundo
Que saco não comer
nada
Que merda andar todo imundo!
– Ó Deus! Me dá
paciência pra aturar esse menino!
– Pô, mãe, você não
me entende mesmo, hein? Eu estudei. Já falei pra você que minha professora é
Clarinha, filha de Santinha, a maior piranha da favela?... Ela é legal, mas não
sabe ensinar direito. Com ela não vou aprender nadinha.
– Que isso, filho!
Ela é a menina mais importante da favela; é a professora e faz tudo
direitinho...
– É, mãe, mas estudou
na escola pública; lá, quase não tem aula. É greve, greve, greve...
Menina linda, formosa
Nascida de mãe
solteira
Já perdeu a
virgindade
Pro trafica Ratoeira.
– Ai, meu Deus! Esse
menino... Para com isso Clarim!
– Pô, mãe, tô
caprichando uns versos pra turma do rap...
– Você tá é me
enrolando. Fica cantando esquisito. Vai ganhar uma surra já, já!
– Calma, mãe!...
Que se dane o mundo
agora!
Eu vou estudar pra
quê?
Não saio desta
miséria
E do Morro do Dendê
Acordo levando tiro
Mergulho pra não
morrer
Eu vou é pegar no gol
Do Flamengo, tá
legal?
Então vou pegar fuzil
E cair no fumacê!
– Por favor, filho, para
com esse som maluco! Respeita meu evangelho! Assim vou enlouquecer...
– Pô, mãe, leva fé em
mim! É só música. Num tô nessa de bandidagem não, mãe!
– Como não, filho?
Você não faz nada, não me ajuda nem a lavar panela. Ah, filho, eu só tenho você
no mundo! Não me faça sofrer mais do que já sofro com essa miséria!...
– Tá legal, mãe! Vou
dar um tempo em casa. Mas não posso parar de fazer rap. É protesto de pobre e
preto, mãe. Deixa comigo, eu sei o que faço! Qualquer hora eu descolo uma grana
e você vai ver que meus versos vão tirar a gente do morro.
– Oh, filho!...
Tomara!...
Vem, ó mina, vem
comigo
Passear lá na
moitinha
Vem fazer dança do
ventre
E parir nossa filhinha
Depois a gente se
vira
Na marra e no coração
Se trabalho não
pintar
Eu pego no tresoitão.
– Ah, Clarim, não sei
mais o que fazer com você!...
Faço rap todo dia
Toda noite
Toda hora
Vejo a mina, aí eu paro
Rap, rap, rap, rap...
Do jeito que ela gosta
E me mando pra escola.
– Ah, indecente, agora
o chinelo vai cantar no seu lombo! Quer saber, Clarim? Acho que você tá
delirando. Só vive sonhando acordado! Esses quatorze anos... Ah, esses quatorze
anos!...
Eu me chamo
Clarimundo
Pra minha mãe sou Clarim
Pra mina eu sou amor
Pra vizinha eu sou
peste
Pro trafica sou
moleque
Pra polícia sou
pivete.
Não sei onde vou
parar
Com essa de tanto
nome
Quem muito tem, não
tem nada
Vou lançar um nome
artístico
Pra vencer meu
apelido
Vou me chamar
Marmelada.
Maria da Conceição,
mãe solteira, guardava uma satisfação íntima ao perceber a veia artística do
seu Clarim. Não sabia se um dia ele conseguiria vencer na arte e tinha medo de
vê-lo fora da escola. Ele, porém, tranquilizava-a dizendo que dependia de
estudo para desenvolver seus versos. Achava-os fracos, não tinha coragem de mostrá-los
aos artistas da favela dos quais era fã, embora se mantivesse distante deles e
desconhecido. Por enquanto, os poemas eram somente dele, não os compartilhava
com ninguém, exceto com a mãe, mas sempre debaixo de reclamações preocupadas.
Quero ver quem vai
ganhar
Essa briga de valente
De quatro que assim
se dizem
Três vão ter que dar
no pé
Se Pinga, se
Lambe-Sangue
Se Pará, se Garnizé.
Pinga tem corpo
fechado
Lambe-Sangue tem também
Pará é endiabrado
Garnizé, surfista de
trem
Os quatro têm língua
solta
Um dia serão assados
No microondas do
morro
Por mando do Funabem.
São ferrabrases,
assim dizem
Fanfarrões é o que
são
Uns otários sem
vintém
Nem arma usam na
cinta
Bom mesmo é quem
manda neles
O trafica Funabem
Que domina o morro
todo
Rechaça a polícia à
bala
Com ele não vem que
tem.
– Não me mata de
susto, menino! Já pensou o pessoal ouvindo essa doideira? Tá maluco, filho?...
– Que isso, mãe? Tô
produzindo arte e a senhora não manja, pô!
– Que arte? É tudo
nome de gente perigosa. Para com isso! Vou arriar o chinelo em você!...
– Tá bem, mãe. Vou
fazer música que você vai gostar...
O morro é muito
asseado
De crianças tão
limpinhas
Não tem doença nem
nada
Brinca sem risco de
bala
Joga bola no campinho
Faz teatro na escola
Ganha prêmio de
montão
Traz cesta básica pra
casa
É vida de campeão.
O Dendê é muito bom
É um morro sem
bandido
Nem tem vala negra
tem não
Tem luz em todas as
ruas
Tem o baile do
Bem-Bem
As meninas são
bonitas
Seus vestidos são de
grife
Os rapazes têm
emprego
E usam grife também.
Já foi tempo que
passou
Trafica mandar no
morro
Acabou nossa favela
E o morro do Dendê
É comunidade, moço!
Agora tudo mudou
A polícia é educada
Ocupou o nosso morro
Despachou o Fumacê.
Assim seguia Clarim
em seus devaneios, enquanto, até sem perceber, ia apurando a voz e um estilo
próprio de cantar rap. Mas não mostrava sua arte para ninguém além da mãe. Só
os ouvidos dela aturavam Clarim, mas agora ela estava mais calma, satisfeita com
a nova fase do seu menino, na verdade apenas fingindo pra alegrar a mãe. Mas
quando ela se ausentava, lá vinha Clarim com seu rap costumeiro...
Cachorro que desce
morro
Atrás de fêmea no cio
Distrai na
perseguição
Correndo sempre ao
léu
Recebe pneu de fusca
Enroscados na carcaça
Vira massa amassada
Queima, fede, fede
queima
E vai para o beleléu.
A mina muito
assanhada
A barriguinha de fora
É na dança da garrafa
No gingado vai ao
chão
O bumbum arrebitado
Vem por trás o
garanhão
O namorado reclama
E recebe bem na cara
Um tiro de tresoitão.
A turma, apavorada,
Puxa a mina em
desespero
O namorado no chão
A mina cai em
desgraça
Foi coquete em hora
errada
Matou o seu namorado
O garanhão era bicho
Gerente do Funabem
O garoto era otário
E se foi no seu
vai-vem.
Clarim era observador
dedicado. Nada lhe passava despercebido e tudo acabava em música, fosse alegria
ou tragédia. Assim foi crescendo, até que um dia teve a almejada chance de
mostrar seu primeiro rap para um cantor da favela que fazia sucesso no asfalto.
No morro
No sobe-e-desce
Conheci a minha mina
Foi amor de
bate-pronto
Transação de coração
Almas gêmeas se
encontrando
O início da paixão
No morro
O tempo é curto
Não tem passado ou
futuro
É o presente que
conta
Presente que é
passado
É passado que passou
A vida voa baixinho
Dura pouco como o dia
Quando se vê, acabou.
No morro
Não há casório
É pano junto e
barraco
É transa e barrigada
É prole que nasce
rápido
É morte que corre
atrás
É bala perdida,
irmão,
Que acha gente
inocente
Bandido, não acha,
não!
No morro
A vida é mui curta
A morte é curta
também
Vem rasante em
tiroteio
A polícia no bandido
O bandido na polícia
É tiro, é muita granada
É AR, é Rojão
É mundo que corre à
parte
Elite mandando em
tudo
Vendo de longe a
desgraça
É bruxa que anda à
solta
É gente desesperada!
No morro tem poesia?
Não tem nada, meu
irmão!
É de zinco o bangalô
É barraco iluminado
Pela lua muito perto
Jorrando seus raios
puros
Nas noites de ilusão
De uma vida danada!
No morro, o sonho é
vadio
O pesadelo é real
A fome contrai o
bucho
Que se contrai no
balaço
É morte da alma viva
É sofrer em solidão
É não pensar pra
viver
É comunidade, irmão!
É morro sem
formalismo
As regras são todas
próprias
Detestam reflexão
Isto é mais coisa de
rico
De bucho alimentado
Esticado de montão
Cheio de bóia
quentinha
Pronto pra reclamação.
O morro é falsa alegria
É generalização
Da tevê em audiência
Que dá força ao
vencedor
Que o talento sublinha
No meio da multidão
É destaque do herói
Pra parecer que a
fama
Pertence a todos,
irmãos
Do bom de bola ao
cantor
Que se salvou do
arrastão
Da bala perdida e da
fome
Da doença em
promoção.
No morro é tudo
emoção
É vai-volta de
criança
Muito pouco de ancião
É cemitério no alto
Da morte em
sofreguidão
Dos que militam no
crime
E que morrem de
montão
Levando consigo inocentes
Ceifados no arrastão.
Clarim finalmente
alcança a fama. Com seu rap mais extenso, vem logo o cantor do asfalto e compra-lhe
letra e música nascidas no morro. Tudo parido por Clarim, que no morro ficou
sem poder dizer a ninguém que era ele o autor do sucesso correndo em tudo que é
estação de rádio e tevê. Não podia chiar, assinara o papel abrindo mão dos
direitos de reprodução e divulgação de sua arte, que virou arte de asfalto. Mas
ele, mesmo assim, estava feliz. Ostentava com orgulho o troféu conquistado com
a sua criação: um par de tênis Rebook legítimo.
Isto... E nada mais... Que logo a polícia levou, quase que o arrancando dos
seus pés debaixo de pancada.
É claro que lhe tomou
o espírito uma tristeza profunda e a certeza de que pobre é pobre, favelado é
favelado, e assim sempre deve ser a relação da casa-grande com a senzala, ontem
e hoje. Clarim, no entanto, chegou a se empolgar ao sonhar com suas aparições
apoteóticas na tevê, lado a lado com o cantador do asfalto que lhe prometera
imagem de talentoso favelado. Apenas sonho, pois logo se lhe abateu a solidão
da realidade: mãe preocupada, colegas com muitos Rebook comprados com grana do tráfico.
Daí, Clarim, sem querer
mais ouvir a mãe, sucumbiu à cultura maior do ganho criminoso, porém sem saber
que lei do asfalto incidia sobre suas ações práticas e imediatas como novo
integrante da “firma” do Funabem. Mas sabia ele que, enquanto fosse menor,
teria as vantagens da lei, esta, que ele igualmente desconhecia em seus miúdos
e meandros. Só de uma coisa guardava certeza: viveria pouco, talvez, mas
desfrutaria dos prazeres do risco, teria os direitos autorais do crime
praticado, diferentemente daqueles que ele deveria ganhar e que jamais as suas
mãos de artista talentoso alcançara: os direitos autorais da arte que criou em
emoção.
É verdade, é mentira
É tudo pura ilusão
Da riqueza que não
vem
Do corpo que cai ao
chão
Da fama em foto
mortal
Publicada em jornal
De maior circulação
Fama ruim, de defunto
Com uma arma na mão.
O jornal também rodou
Uma foto de golaço
Que agora cobre o
rosto
De mais um desinfeliz
Em cena repetitiva
Tombado no mesmo chão
Mas Clarim não
desistia
Cantava assim, meu
irmão:
Eu fico aqui pra
morrer...
Aqui é o meu Dendê,
Daqui eu não saio,
não!

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