quinta-feira, 20 de abril de 2017

TALENTO FAVELADO







O meu carro é um Audi
Uso roupa de estação
É tudo grife famosa
No pescoço, o meu cordão
É de ouro bem pesado
Estou rico de montão.

De dia, controlo as bocas
De noite rondo a cidade
Em busca de diversão
O bolso cheio de grana
Pra pagar a extorsão.

Saio com ruiva e morena
Sou malandro bem maneiro
Mas em casa é a Pretinha
Dona do meu coração
É cabrocha de responsa
De cama, forno e fogão
Não liga nem quando saio
Pra torcer pro meu Mengão.

– Clarim, para com isso!... Vai estudar! Vou queimar o seu traseiro com chinelada, hein!...

Eu agora me apresento
Segura aí, seu bobão!...
Tá pensando que sou fera
Traficante de morrão?...

– Olha aí, Clarim!... Tá maluco?

Sou nada disso, babaca
Nem pense que sou polícia...
Eu sou é funkeiro, irmão!”

– Clarim, para de besteira!... Num fica me dando susto, menino!
– Besteira não, mãe, é arte! Você não espera eu terminar a composição, bolas!
– Que composição, que nada! É falta do que fazer! Vai estudar, menino!
– Hum...

Que saco aturar a velha
Que merda aturar o mundo
Que saco não comer nada
Que merda andar todo imundo!

– Ó Deus! Me dá paciência pra aturar esse menino!
– Pô, mãe, você não me entende mesmo, hein? Eu estudei. Já falei pra você que minha professora é Clarinha, filha de Santinha, a maior piranha da favela?... Ela é legal, mas não sabe ensinar direito. Com ela não vou aprender nadinha.
– Que isso, filho! Ela é a menina mais importante da favela; é a professora e faz tudo direitinho...
– É, mãe, mas estudou na escola pública; lá, quase não tem aula. É greve, greve, greve...

Menina linda, formosa
Nascida de mãe solteira
Já perdeu a virgindade
Pro trafica Ratoeira.

– Ai, meu Deus! Esse menino... Para com isso Clarim!
– Pô, mãe, tô caprichando uns versos pra turma do rap...
– Você tá é me enrolando. Fica cantando esquisito. Vai ganhar uma surra já, já!
– Calma, mãe!...

Que se dane o mundo agora!
Eu vou estudar pra quê?
Não saio desta miséria
E do Morro do Dendê
Acordo levando tiro
Mergulho pra não morrer
Eu vou é pegar no gol
Do Flamengo, tá legal?
Então vou pegar fuzil
E cair no fumacê!

– Por favor, filho, para com esse som maluco! Respeita meu evangelho! Assim vou enlouquecer...
– Pô, mãe, leva fé em mim! É só música. Num tô nessa de bandidagem não, mãe!
– Como não, filho? Você não faz nada, não me ajuda nem a lavar panela. Ah, filho, eu só tenho você no mundo! Não me faça sofrer mais do que já sofro com essa miséria!...
– Tá legal, mãe! Vou dar um tempo em casa. Mas não posso parar de fazer rap. É protesto de pobre e preto, mãe. Deixa comigo, eu sei o que faço! Qualquer hora eu descolo uma grana e você vai ver que meus versos vão tirar a gente do morro.
– Oh, filho!... Tomara!...

Vem, ó mina, vem comigo
Passear lá na moitinha
Vem fazer dança do ventre
E parir nossa filhinha
Depois a gente se vira
Na marra e no coração
Se trabalho não pintar
Eu pego no tresoitão.

– Ah, Clarim, não sei mais o que fazer com você!...

Faço rap todo dia
Toda noite
Toda hora
Vejo a mina, aí eu paro
Rap, rap, rap, rap...
Do jeito que ela gosta
E me mando pra escola.

– Ah, indecente, agora o chinelo vai cantar no seu lombo! Quer saber, Clarim? Acho que você tá delirando. Só vive sonhando acordado! Esses quatorze anos... Ah, esses quatorze anos!...

Eu me chamo Clarimundo
Pra minha mãe sou Clarim
Pra mina eu sou amor
Pra vizinha eu sou peste
Pro trafica sou moleque
Pra polícia sou pivete.
Não sei onde vou parar
Com essa de tanto nome
Quem muito tem, não tem nada
Vou lançar um nome artístico
Pra vencer meu apelido
Vou me chamar Marmelada.

Maria da Conceição, mãe solteira, guardava uma satisfação íntima ao perceber a veia artística do seu Clarim. Não sabia se um dia ele conseguiria vencer na arte e tinha medo de vê-lo fora da escola. Ele, porém, tranquilizava-a dizendo que dependia de estudo para desenvolver seus versos. Achava-os fracos, não tinha coragem de mostrá-los aos artistas da favela dos quais era fã, embora se mantivesse distante deles e desconhecido. Por enquanto, os poemas eram somente dele, não os compartilhava com ninguém, exceto com a mãe, mas sempre debaixo de reclamações preocupadas.

Quero ver quem vai ganhar
Essa briga de valente
De quatro que assim se dizem
Três vão ter que dar no pé
Se Pinga, se Lambe-Sangue
Se Pará, se Garnizé.

Pinga tem corpo fechado
Lambe-Sangue tem também
Pará é endiabrado
Garnizé, surfista de trem
Os quatro têm língua solta
Um dia serão assados
No microondas do morro
Por mando do Funabem.

São ferrabrases, assim dizem
Fanfarrões é o que são
Uns otários sem vintém
Nem arma usam na cinta
Bom mesmo é quem manda neles
O trafica Funabem
Que domina o morro todo
Rechaça a polícia à bala
Com ele não vem que tem.

– Não me mata de susto, menino! Já pensou o pessoal ouvindo essa doideira? Tá maluco, filho?...
– Que isso, mãe? Tô produzindo arte e a senhora não manja, pô!
– Que arte? É tudo nome de gente perigosa. Para com isso! Vou arriar o chinelo em você!...
– Tá bem, mãe. Vou fazer música que você vai gostar...

O morro é muito asseado
De crianças tão limpinhas
Não tem doença nem nada
Brinca sem risco de bala
Joga bola no campinho
Faz teatro na escola
Ganha prêmio de montão
Traz cesta básica pra casa
É vida de campeão.

O Dendê é muito bom
É um morro sem bandido
Nem tem vala negra tem não
Tem luz em todas as ruas
Tem o baile do Bem-Bem
As meninas são bonitas
Seus vestidos são de grife
Os rapazes têm emprego
E usam grife também.

Já foi tempo que passou
Trafica mandar no morro
Acabou nossa favela
E o morro do Dendê
É comunidade, moço!
Agora tudo mudou
A polícia é educada
Ocupou o nosso morro
Despachou o Fumacê.

Assim seguia Clarim em seus devaneios, enquanto, até sem perceber, ia apurando a voz e um estilo próprio de cantar rap. Mas não mostrava sua arte para ninguém além da mãe. Só os ouvidos dela aturavam Clarim, mas agora ela estava mais calma, satisfeita com a nova fase do seu menino, na verdade apenas fingindo pra alegrar a mãe. Mas quando ela se ausentava, lá vinha Clarim com seu rap costumeiro...

Cachorro que desce morro
Atrás de fêmea no cio
Distrai na perseguição
Correndo sempre ao léu
Recebe pneu de fusca
Enroscados na carcaça
Vira massa amassada
Queima, fede, fede queima
E vai para o beleléu.

A mina muito assanhada
A barriguinha de fora
É na dança da garrafa
No gingado vai ao chão
O bumbum arrebitado
Vem por trás o garanhão
O namorado reclama
E recebe bem na cara
Um tiro de tresoitão.

A turma, apavorada,
Puxa a mina em desespero
O namorado no chão
A mina cai em desgraça
Foi coquete em hora errada
Matou o seu namorado
O garanhão era bicho
Gerente do Funabem
O garoto era otário
E se foi no seu vai-vem.

Clarim era observador dedicado. Nada lhe passava despercebido e tudo acabava em música, fosse alegria ou tragédia. Assim foi crescendo, até que um dia teve a almejada chance de mostrar seu primeiro rap para um cantor da favela que fazia sucesso no asfalto.

No morro
No sobe-e-desce
Conheci a minha mina
Foi amor de bate-pronto
Transação de coração
Almas gêmeas se encontrando
O início da paixão

No morro
O tempo é curto
Não tem passado ou futuro
É o presente que conta
Presente que é passado
É passado que passou
A vida voa baixinho
Dura pouco como o dia
Quando se vê, acabou.

No morro
Não há casório
É pano junto e barraco
É transa e barrigada
É prole que nasce rápido
É morte que corre atrás
É bala perdida, irmão,
Que acha gente inocente
Bandido, não acha, não!

No morro
A vida é mui curta
A morte é curta também
Vem rasante em tiroteio
A polícia no bandido
O bandido na polícia
É tiro, é muita granada
É AR, é Rojão
É mundo que corre à parte
Elite mandando em tudo
Vendo de longe a desgraça
É bruxa que anda à solta
É gente desesperada!

No morro tem poesia?
Não tem nada, meu irmão!
É de zinco o bangalô
É barraco iluminado
Pela lua muito perto
Jorrando seus raios puros
Nas noites de ilusão
De uma vida danada!

No morro, o sonho é vadio
 O pesadelo é real
A fome contrai o bucho
Que se contrai no balaço
É morte da alma viva
É sofrer em solidão
É não pensar pra viver
É comunidade, irmão!

É morro sem formalismo
As regras são todas próprias
Detestam reflexão
Isto é mais coisa de rico
De bucho alimentado
Esticado de montão
Cheio de bóia quentinha
Pronto pra reclamação.

O morro é falsa alegria
É generalização
Da tevê em audiência
Que dá força ao vencedor
Que o talento sublinha
No meio da multidão
É destaque do herói
Pra parecer que a fama
Pertence a todos, irmãos
Do bom de bola ao cantor
Que se salvou do arrastão
Da bala perdida e da fome
Da doença em promoção.

No morro é tudo emoção
É vai-volta de criança
Muito pouco de ancião
É cemitério no alto
Da morte em sofreguidão
Dos que militam no crime
E que morrem de montão
Levando consigo inocentes
Ceifados no arrastão.

Clarim finalmente alcança a fama. Com seu rap mais extenso, vem logo o cantor do asfalto e compra-lhe letra e música nascidas no morro. Tudo parido por Clarim, que no morro ficou sem poder dizer a ninguém que era ele o autor do sucesso correndo em tudo que é estação de rádio e tevê. Não podia chiar, assinara o papel abrindo mão dos direitos de reprodução e divulgação de sua arte, que virou arte de asfalto. Mas ele, mesmo assim, estava feliz. Ostentava com orgulho o troféu conquistado com a sua criação: um par de tênis Rebook legítimo. Isto... E nada mais... Que logo a polícia levou, quase que o arrancando dos seus pés debaixo de pancada.
É claro que lhe tomou o espírito uma tristeza profunda e a certeza de que pobre é pobre, favelado é favelado, e assim sempre deve ser a relação da casa-grande com a senzala, ontem e hoje. Clarim, no entanto, chegou a se empolgar ao sonhar com suas aparições apoteóticas na tevê, lado a lado com o cantador do asfalto que lhe prometera imagem de talentoso favelado. Apenas sonho, pois logo se lhe abateu a solidão da realidade: mãe preocupada, colegas com muitos Rebook comprados com grana do tráfico.
Daí, Clarim, sem querer mais ouvir a mãe, sucumbiu à cultura maior do ganho criminoso, porém sem saber que lei do asfalto incidia sobre suas ações práticas e imediatas como novo integrante da “firma” do Funabem. Mas sabia ele que, enquanto fosse menor, teria as vantagens da lei, esta, que ele igualmente desconhecia em seus miúdos e meandros. Só de uma coisa guardava certeza: viveria pouco, talvez, mas desfrutaria dos prazeres do risco, teria os direitos autorais do crime praticado, diferentemente daqueles que ele deveria ganhar e que jamais as suas mãos de artista talentoso alcançara: os direitos autorais da arte que criou em emoção.

É verdade, é mentira
É tudo pura ilusão
Da riqueza que não vem
Do corpo que cai ao chão
Da fama em foto mortal
Publicada em jornal
De maior circulação
Fama ruim, de defunto
Com uma arma na mão.

O jornal também rodou
Uma foto de golaço
Que agora cobre o rosto
De mais um desinfeliz
Em cena repetitiva
Tombado no mesmo chão
Mas Clarim não desistia
Cantava assim, meu irmão:
Eu fico aqui pra morrer...
Aqui é o meu Dendê,
Daqui eu não saio, não!


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