quarta-feira, 19 de abril de 2017

TEMPOS DO BONDE




Vocês sabiam que os bondes conversavam com as pessoas?... É verdade, conversavam, e muito mais eles faziam, como aqui todos saberão, crendo que falo a mais cristalina verdade. Pois bem, vamos então à história dos bondes viajando neles como se fossem máquinas do tempo e retrogradando ao primeiro lustro da década de sessenta. No Rio de Janeiro, em 1962, houve até viagem de despedida quando os bondes saíram de circulação. Em Niterói e São Gonçalo, poucos anos depois, o bonde simplesmente desapareceu sem aviso e sem adeus. Que pena!...
Desde que iniciou sua aventura de correr os trilhos, cravados no chão por suadas mãos humanas, o bonde integrou-se ao cotidiano dos gonçalenses tal como o ar do qual dependemos para respirar. Com efeito, não seria possível a vida sem o bonde, assim pensávamos, até que um dia ele sumiu das ruas. Ficaram, porém, as lembranças, doces lembranças de quando o bonde vivia em plenitude.
Vou falar muito do bonde, e não me envergonha dizer: “Que saudade eu tenho do meu amigo bonde!”
São Gonçalo é minha terra, meu nascedouro, e é lá no meu torrão, no alto duma colina, que está a Igreja de Santa Catarina, padroeira do bairro que leva o seu nome. Ela é festejada em 25 de novembro, dia em que o povo sobe e desce as escadarias levando e trazendo fé. Também próximo ao outeiro da amada Santa, num imenso terreno hoje ocupado por frias construções, havia o parque de diversões, e, nele, à noite, aconteciam os namoros adolescentes.
Nos fins de semana, o futebol de várzea e os clássicos amadores ocupavam as atenções, e da salutar rivalidade geravam os bate-papos nas rodas de pessoas que esperavam o quique da bola nos campos mais estilizados. Eram muitos, esses campos. Hoje não mais existem.
No Desvio de Dona Zizinha, contíguo ao bairro de Santa Catarina, localizava-se a sede do Colodino Atlético Clube, também chamado de Desvio de Dona Zizinha Atlético Clube (DDZAC), uma das melhores agremiações futebolísticas de São Gonçalo. Os bairros são ainda hoje cortados pela Rua Getúlio Vargas, por onde também passava o bonde.
Sim, lá estão os bairros, porém modificados pelo cenário desalentador das favelas que substituíram o verde dos morros e pelo tráfico de drogas – desgraça a mais que se somou à miséria aumentada. Já naquela época, porém, o Colodino Atlético Clube não guardava características de comunidade fechada. Por isso recebia bem os atletas de todos os lugares e tinha em sua sede o principal local de divertimento: animados bailes, serestas e carnaval. Os bairros ainda existem, o clube sumiu, mas, tal qual o bonde, as agremiações dos bairros (Colodino Atlético Clube e Esporte Clube Peixoto) deixaram sua história na nostalgia de um tempo que a ambos só não venceu porque aqui estamos a resgatá-la.

 
                                                   COLODINO ATLÉTICO CLUBE

ESPORTE CLUBE PEIXOTO

Bons tempos!...


Nos bailes – maravilhosos – meninas e rapazes dançavam ao som de boleros e sambas-canções. Os Românticos de Cuba eram o conjunto que mais se tocava nas vitrolas. Os casais dançavam de rostos colados, e muitos namoros aconteciam. E o carnaval? Sim, a roda de foliões girando, moças à esquerda, rapazes à direita, fitavam-se ao cruzar constante dos olhos no pequeno salão do Colodino Atlético Clube. Assim iam e vinham, bailando ao som de marchinhas, até que o Cupido os flechasse. Muitos saíram casados daqueles bailes, Santa Catarina é testemunha das benções que deu aos conúbios nascidos de olhares trocados nos pula-pulas carnavalescos.


Enquanto isso, do lado de fora do clube o carnaval explodia em sons, luzes e alegria. Grupos de pierrôs, índios, colombinas, ciganas e palhaços enchiam as ruas iluminadas por festões e enfeitadas por caprichada decoração. Confetes, serpentinas e lança-perfumes completavam a festa na rua principal. De rodas, o único que passava era o bonde, e lá vinha ele, felicíssimo, com seus amigos foliões na maior algazarra. E muitos desciam ali mesmo, engrossando os blocos que deslizavam de um ponto a outro do trecho interditado, enquanto o bonde gingava num balanço de sambista experimentado. Belo festejo, aquele, sem brigas nem confusão, as famílias participando, crianças no colo, sem medo da multidão!


No resto do ano, o futebol gerava os demais focos de entretenimento, assim como o twist, o rock and roll. O romantismo de Elvis Presley e de outros cancioneiros alienígenas estimulavam os jovens ao deleite, porém sem maior importância que os Beatles e a Jovem Guarda. Era também época das mímicas. Muitos jovens imitavam cantores e conjuntos musicais de sucesso. As calças bocas de sino e os cabelos compridos completavam o visual daquela geração adolescente.
Ainda havia as danças de quadrilha que animavam festas juninas. Como eram lindas! Treinávamos durante meses no quintal da casa de João Paraquett, patrono do Esporte Clube Peixoto, situada na Travessa do mesmo nome, no bairro do Engenho Pequeno, contíguo aos de Santa Catarina e Desvio de Dona Zizinha, para apresentações e disputas de troféus. Sim, e as danças revezavam-se nas diversas festas desses bairros, com os grupos visitando-se entre si e evoluindo em beleza, para deslumbramento dos assistentes. E muitos dos casais improvisados para o “casamento na roça” culminavam oficializando-o diante da padroeira de todos: Santa Catarina.
Mas junto a essas agradáveis lembranças – e voltando ao Desvio de Dona Zizinha – vêm-nos fortemente à memória os amados bondes. Nas paralelas de ferro, lá vinham eles transportando gentes que deles dependiam. Havia o Elétrico e o Reboque, os nomes já os definiam: o primeiro puxava a energia pelo chifre encostado no fio aéreo por onde passava. O segundo, menor, era como a carroça que depende de animais para puxá-la, assim como os próprios bondes num passado mais distante também deles dependiam.


O Reboque agarrava-se ao Elétrico com mãos firmes e ajudava a levar mais povo ao trabalho, à escola e ao lazer. Transporte seguro e barato, o bonde seguia no trilho e na poeira, principalmente em São Gonçalo. Niterói, antiga capital, bem menos. A fronteira entre as cidades era o fim da poeira impertinente a sujar uniformes de crianças e adolescentes, a manchar a maquiagem das moças bonitas que iam ao trabalho, ou a deixar a sua marca na camisa dos trabalhadores e na farda dos militares. Mas nada disso quebrava o encantamento do bonde. O bonde era sagrado!
Eu morava no Engenho Pequeno, o bairro que guarda as costas do outeiro que acolhe a Igreja de Santa Catarina. E todos os dias, invariavelmente, minhas ágeis pernas me levavam ao Desvio de Dona Zizinha, onde um bonde esperava o que ia ou o que voltava. Ali eu me acomodava no meu amigo bonde e seguia rumo à escola ou ao trabalho, dependendo da época, anterior ou posterior, mas por longo tempo.
O bonde era um mundo especial, palco de dramas e tragédias, cenário de lances felizes e infelizes, de amores e desamores, de alegrias e tristezas. Era local também de estudos e debates, e o bonde respeitava cada caso.
É verdade! O bonde não era indiferente, – saibam vocês, – o bonde não era indiferente às pessoas que carregava. Era como a mãe levando seus muitos bebês no útero, que eram os bancos, e os demais filhotes nas mãos, que eram os estribos.
O bonde era amigo e irmão, era pai e mãe, era avô e avó, era tia e tio, enfim, era tudo! E tanto fazia qual bonde, todos indistintamente se empenhavam em confortar e alegrar as pessoas. O bonde era como se fosse um pedaço de nós, passageiros, ele era sempre um leal confidente e nos inspirava a todos nós a mais sincera confiança.
Durante muitos anos fui e voltei no bonde. Conhecia todos os motorneiros e cobradores, homens antigos, bem mais velhos que a maioria dos passageiros. Parecia que não se aposentavam para não deixar o bonde na orfandade; porque ninguém amava o bonde mais que eles, que vinham de longe no tempo e no bonde. Eram seus porta-vozes. Dos passageiros, resolviam os problemas mais simples, deixando para o bonde os casos mais complicados.
Sim, era comum alguém conversar com o bonde e apresentar complexos problemas a serem resolvidos. Os cobradores intentavam o primeiro passo da solução. Não tendo sucesso, na demorada espera do desvio vinha então o motorneiro, sempre paciente, para atender ao aflito. Mas quando todos falhavam o próprio bonde falava com a pessoa numa voz somente por ela ouvida e entendida. A voz saía de qualquer ponto da carcaça e soava macia, afetuosa. E logo se podia verificar o resultado no alegre semblante do antes angustiado. Era o diálogo entre ser humano e bonde, este que ainda conseguia atender a muitos ao mesmo tempo. Sim, ele tinha o miraculoso poder de se comunicar simultaneamente, sem que quaisquer dos interlocutores o percebessem. Era um anjo de rodas, saibam vocês e podem piamente crer nisso!
Muitas vezes eu mesmo conversei com o bonde. Em épocas e idades diferentes, juro que fiz isso! E dava certo, sempre saí com uma bela solução ao problema apresentado. Sim, garanto a todos, juro que posso garantir, o bonde possuía cultura secular e a compartilhava em humildade com os passageiros! Trazia no ferro, no metal e na madeira o conhecimento. Por onde o ferro, o metal e a madeira antes passaram, observando e sendo observados, transformando e sendo transformados, acumularam cultura, guardaram em si a sabedoria do mundo e dos tempos remotos. Com efeito, ali estavam, no bonde, séculos de sabedoria à disposição dos passageiros, pois ele, o prodigioso bonde, não fazia questão de raça, credo ou posição social.
Muitos daqueles bondes inclusive trilharam por lugares mais nobres carregando doutores e outros letrados. Todas as conversas científicas e literárias havidas no bonde ficaram registradas em sua carcaça. Não somente as conversas, – é bem verdade, – porque bastava entrar nas mãos de alguém um livro e o bonde em segundos absorvia cada letra da história contada ou do ensinamento nele contido.
Afirmo convicto – podem crer piamente em mim! –, que o bonde era um perfeito democrata; tratava igualitariamente pobres e ricos, brancos e negros, cultos e analfabetos, muitos dos quais aprenderam a ler em aulas ministradas pelo próprio bonde enquanto iam ao trabalho ou dele voltavam, mesmo que cansados e a sono solto. Sim, até dormindo, porque o bonde conseguia penetrar o sonho dos passageiros e lhes encaixar na mente seus ensinamentos.
O bonde também receitava, tanto receita de remédio como de bolo. Sim, receitava pratos deliciosos e curava doenças. Mas era diálogo somente entre o doente e o bonde. Quantos doentes eu vi, na quietude do trajeto, conversando baixinho com o bonde. Iam somente para externar suas dores físicas e receber alguma sábia orientação. Depois voltavam, curados e alegres, alisando o bonde com um carinho que só ambos entendiam. Eu conseguia ver e perceber tudo isso, o bonde me permitia isso porque sabia que um dia eu estaria a narrar suas maravilhosas façanhas.
Muitas receitas do bonde surgiam nos folhetos de propaganda que ficavam à vista dos amigos passageiros: Óleo de Fígado de Bacalhau, Pomada Minâncora, Biotônico Fontoura, Pílula de Vida de Dr. Ross e outros remédios naturais. Esses o bonde indicava como bons medicamentos, tanto que ainda estão por aí curando gentes... Se não tivessem qualidade comprovada, nem pensar entrar no bonde. Sim, não havia controle de qualidade mais rigoroso que o do bonde, eu vi muitas vezes isso, juro que vi! Assim como observei várias domésticas anotando receitas de pratos finos dentro do bonde...
Sim, o bonde sabia de tudo, e não sabia de tudo um pouco, sabia de tudo um muito, muito mesmo! Vocês podem até não crer no que afirmo, mas tenho testemunhas, milhares delas – homens e mulheres –, que poderiam aqui dizer: “Curei-me graças ao bonde!” Ou ainda afirmar a mulher, contente, que salvara seu casamento segurando o marido pelo estômago e pela milagrosa culinária que lhe fora ensinada pelo bonde.
Lembra-me uma vez em que eu ia sentado no Reboque a caminho do Colégio Nilo Peçanha. Morava eu no Engenho Pequeno, como já disse, e partia diariamente ao colégio no meu amado bonde. Eu estava preocupado com algumas equações matemáticas que não conseguira deslindar em meus estudos particulares. Por isso fui tentando solucioná-las de caminho, mas tudo infrutífero. Eis, porém, que o balaústre de metal colado ao meu ouvido direito me começou a ensinar os meandros daqueles intrincados exercícios, clareando-me a mente como num passe de mágica. Quando ao colégio cheguei, já dominava todos os pontos da prova. Granjeei uma nota dez graças ao meu amigo bonde.
Com efeito, devo confessar – e é verdade o que aqui confesso! –, meu amigo bonde a mim nunca me faltou, nem mesmo quando eu não guardava nos bolsos os trocados da passagem. Muito pobre, às vezes não tinha como pagá-la. Mas lá estava o bonde me esperando respeitosamente, mesmo sabendo que eu viajaria de graça. Fazia assim com muitos, não só comigo, posso lhes jurar sem temor!
Os passageiros do bonde eram inúmeros e variados – em idade, estado civil, condição social, beleza, silêncio, algazarra etc. Assim eram os amigos do bonde, muitos deles a receberem o carinho constante dos motorneiros e cobradores. E estes não deveriam ser chamados de cobradores, porque, na verdade, davam mais que cobravam. Formavam a pequena tripulação, e com ela o bonde conversava num dialeto que ninguém entendia.
Certa vez, sentou-se ao meu lado um moço cabisbaixo e silente. Deixava-se quedar, coitado, em profunda amargura. Mas logo lhe veio o cobrador a cavaquear carinhosamente. Ele há dias viajava de graça, não tinha dinheiro, desempregado ficara, corria a praça em busca de novo emprego. Todos no bonde sabiam do seu drama. Então o compreensivo cobrador lhe falou:
– Meu amigo! No próximo ponto você se irá sentar no Elétrico, em lugar que já lhe reservei...
– Está certo, senhor. Confesso ao senhor que estou envergonhado; tanto tempo sem conseguir trabalho... A patroa está esperando o primeiro filho, sou casado de pouco. Sou bom carpinteiro, mas não tenho tido sorte.
– Não fale assim, meu rapaz! Confie no amigo bonde!
No ponto seguinte, o desalentado trabalhador obedeceu ao sinal do cobrador e se foi sentar no local indicado. Ao seu lado sentava-se um cidadão simpático e bem vestido. E o cobrador falou ao cidadão:
– Meu amigo, este é Paulo, excelente marceneiro. Sei que nosso bonde goza da sua afeição. Por isso lhe peço, em nome do bonde, que empregue Paulo em sua fábrica de móveis.
– Ora, meu prezado, você nem imagina como o bonde já me ajudou! A gente não comenta porque há os que não creem. Mas está atendido! Ele começará hoje mesmo! E ganhará mais do que ganhava no seu último emprego!
Isto eu vi acontecer, juro que vi, e mais de uma vez! Também vi pessoas tristes reencontrando suas caras-metades e a alegria de viver nas viagens de bonde; ficavam tão contentes que resolviam comemorar seus casamentos durante o trajeto, em festejos cujos convidados de honra eram os passageiros, sempre deslavados torcedores por um bom desfecho amoroso.
E os batizados? Oh, muitos deles foram festejados no bonde, os padres participando e o povo rezando! E as Aves-Marias no bonde? Sem dúvida, um espetáculo à parte, os sinos da igreja de Santa Catarina repicando na hora sagrada e o bonde, parado no Desvio de Dona Zizinha, guardava respeitoso silêncio enquanto o povo rezava fervorosamente ao som do rádio que tocava a balada da Ave-Maria.
Inenarrável, simplesmente inenarrável a grandiosidade daquele momento de fé! E os que estavam no bonde, como muitas vezes fora o meu caso, sentiam a presença dos Anjos. Sim, os Anjos lá permaneciam como se assim prestassem uma homenagem ao bonde, ou quiçá por ser o bonde um Anjo materializado por obra divinal.
Muitas amizades também se forjaram na velocidade das rodas de ferro rodando sobre os riscos metálicos cravados no chão. Conversas corriam junto com as rodas, em dias e dias, em noites e noites, em madrugadas e madrugadas – de sol a chuva e de chuva a sol.
Pessoas estranhas iam aos poucos aprofundando amizades sinceras, e o bonde disso muito gostava. Em momentos, prestava tão acentuada atenção que fazia desaparecer o barulho do atrito das rodas nos trilhos só para ouvir as conversas. Sim, meus amigos, o bonde era participativo. Muitos o chamavam de “Bonde da Felicidade”; outros, de “Bonde do Povo”. Merecido! Sem dúvida, merecido! Mas já vi o bonde muito zangado, juro mesmo que vi. E lhes vou aqui contar...


Foi no “Encruzo da Maricá”, denominação estranha, sim, porém mui apropriada, eis que era local onde os trilhos do bonde cruzavam com os do trem. Ali o bonde parava e pacientemente aguardava a passagem do pesado desafeto, enquanto recebia daquela minhoca comprida e barulhenta gozações do tipo: “Como vai, anão?”, “Cabeça sem corpo!”, “Chifre de veado!”, “Sacode as cadeiras, morena!”
É verdade! Assim dizia o trem, dentre outras irritantes provocações!... No caso da penúltima e da última, pondo em dúvida sua masculinidade, o bonde chiava feito touro bravio, ciscando as rodas como se estivesse em arena espanhola. Disparava até a estrídula campainha para provar que era macho, apesar do curioso gingado que tinha... Com todo respeito ao amigo bonde, às vezes ele exagerava no meneio, quase que rebolado. Mas dizia que era ginga de sambista. Eu acreditava! Sempre acreditei no meu amigo bonde!
Ainda do trem, os passageiros faziam coro às gozações e encenavam caretas e mais caretas, apesar de não ouvirem o que o trem dizia ao bonde. Os passageiros do bonde retrucavam plantando-lhes boas bananas, firmando todos, simultaneamente, as palmas das mãos esquerdas às dobras internas de seus braços direitos, mão direita fechada, naquele clássico gesto em resposta aos injustos maus-tratos. Ou com os braços trocados, o que dava no mesmo.
O bonde, educado, geralmente não respondia às provocações, exceto no caso daquelas duas sublinhadas. Aí ele saía mesmo do sério!... Mas afora estas, mantinha-se empertigado, altivo, queixo em pé e ar de superioridade. Mas no seu íntimo incomodava-se com as constantes galhofas, ainda acrescidas do fato de que ele sempre se obrigava a dar passagem ao desafeto, dono da prioridade de trânsito em cidades e titular absoluto da “Cruz de Santo André”. Entristecia-se, também, porque preferia ter boa amizade com o trem, o que, porém, lhe parecia impossível.
Assim foi acontecendo, até que num determinado dia estava ele, como sempre, esperando o trem passar. Mas, quando surgiu, o trem portou-se humildemente como nunca fora. Na passagem, cumprimentou o bonde e se desculpou pelos maus-tratos passados. O bonde nada entendeu, mas não demorou muito para saber a razão da brusca mudança: a Veneranda Santa Catarina, lá do alto do morro, disse ao bonde que ameaçara o trem de lhe quebrar os eixos e mandá-lo à sucata se ele insistisse nas impertinentes mangações. O bonde, emocionado, agradeceu à Veneranda Santa, riu-se da milagrosa solução e lá foi ele, contente de fato, gingando à esquerda e à direita, conduzindo seus queridos passageiros. Na parada seguinte, a minha, lá me estava a ficar esperando o amigo bonde. E ele, feliz da vida, contou-me o que houvera antes. Juro que sim! Juro que ele me contou a mim a providencial interferência da padroeira do bairro que lhe viera em socorro!
E mais você, estimado leitor, saberá aqui: o querido bonde, demais de tantos favores que prestava à população em seu cotidiano, ainda arranjava jeito de se tornar deus alado do amor. Sou testemunha porque comigo assim aconteceu. Antes, porém, devo-lhe narrar que vi muitos namoros no bonde. Sim, o bonde acolhia casais para troca de juras de amor. Eles iam e voltavam, o destino era o bonde, e a origem também. De onde estiverem, mesmo que desmontados, os bancos do bonde podem confirmar o que agora lhe digo.
Sim, eram corações afeiçoados em carinhos mil, vi muitos casais assim no bonde. Ali, naquele bonde, que tinha alma e vida, vi garbosos militares flertando com normalistas; eu, mais novo de idade, juro que vi!... Nos bancos do bonde, vi muitos jovens fardados de verde-oliva ciscando em torno das meninas e iniciando relacionamentos; vi depois alianças indicando noivados e casamentos; e vi casais com seus rebentos dentro do bonde, com suas vidas ao bonde ligadas, e ele seguia feliz nos seus trilhos por unir casais em eterna felicidade, tal como ele próprio era unido aos trilhos.


O bonde andava sempre multicolorido. No sol ou na chuva, sua imagem não mudava. Na chuva, os estribos esvaziavam-se, as pessoas se recolhiam em seu interior. Mas a imagem era de beleza, imagem de povo feliz. E lá ia o bonde, meneando-se à esquerda e à direita em harmoniosos movimentos. Dos bancos, os passageiros ficavam à altura das janelas das casas ao longo dos trilhos. Das janelas, muitas e muitos esperavam a passagem do bonde. Flertavam com determinados passageiros ou passageiras de quando em quando, iniciando-se intenso vaivém de flechas do Cupido enquanto o bonde deslizava serenamente.
Existisse máquina especial, eu fotografaria tudo que via, e todos igualmente veriam as flechas cruzando-se do bonde às janelas e das janelas ao bonde. Eram setas certeiras do Cupido, pois neste instante o bonde nele se transformava. E não foram poucas as casas em que vi casais olhando o bonde passar, casais que antes trocaram flechadas e foram alvejados no coração. Também vi, tempos depois, as janelas dos casarios cheias de rebentos nascidos de conúbios por obra e graça do bonde. Sim, afirmo e reafirmo que o bonde era um incorrigível romântico, pois foi assim que me chegou a mim a vez da primeira paixão, claro que surgida no bonde, ajudando-me a despertar para a adolescência.
Estava eu distraído quando surgiu a voz na coluna onde eu me recostara a viajar, sentado no Elétrico, mais ou menos próximo do coração do bonde. E ele me disse baixinho: “Filho, já observou a menina no banco de trás?” Sobressaltei-me com o aviso e fitei a menina, linda, de quatorze anos, no mais ou no menos, vestida em uniforme do Colégio Floriano Peixoto, que ficava a meio caminho do meu amado Colégio Nilo Peçanha.


O uniforme dela era feito de saia azul-marinho, em plissê; nos pés, suas meias brancas se destacavam em contraste com os sapatos pretos; a blusa era alva como a neve. No bolso único da blusa realçava-se o escudo do seu colégio.
O meu uniforme ostentava um lindo azul-celeste. A calça, nesta cor, levava um longitudinal friso branco de um centímetro cobrindo as costuras externas. A camisa, do tipo indiano, com quatro bolsos, era de linho branco como as nuvens do céu. Belo uniforme, sem dúvida! Na cabeça, eu ostentava o garboso boné tipo canoa, também em azul-celeste, enfeitado com filetes brancos nas dobras.
Sentia-me orgulhoso por envergar aquele majestoso vestuário escolar, que ela, a menina, estava a admirar. Foi assim que cruzei o olhar com aqueles olhos verdes como esmeraldas plantados num rosto angelical. Ah, os cabelos! Lindamente negros eram os cabelos dela, tais como seus olhos, que me fitavam candidamente.
– Olá! Tudo bem? – cumprimentei-a em timidez.
– Olá! Como é seu nome? – respondeu e indagou-me, faceira.
– Carlos Eduardo. E você, como se chama?
– Meu nome é Paula. Moro no Desvio de Dona Zizinha.
– É mesmo? Não sabia que você morava no meu bairro...
– No nosso bairro. Eu nasci ali...
– Você costuma ir ao parque aos domingos?...
– Às vezes, quando alguma colega me convida. Mas costumo mesmo é passear no bairro. Ou então vou à pracinha do Zé Garoto.
– Também vou à pracinha, mas não me lembro de tê-la visto. Vai lá no próximo domingo? – indaguei, querendo aprofundar a relação.
– Não sei...
– E se eu convidasse você pra tomar um sorvete na pracinha, você aceitaria? – perguntei, entre animado e ansioso.
– Acho que sim. Mas tenho de perguntar à mãe e ver se alguma colega pode ir comigo.
– Então fica combinado. Espero você no domingo às sete da noite...
A prosa foi tão animada que logo o bonde alcançou o Barreto, bairro onde Paula saltou para ir ao Colégio Floriano Peixoto. Ah, como era bonita! Fiquei sobremodo assanhado e agradeci ao meu amigo bonde, com quem eu me comunicava em pensamento.
– “Poxa, amigo bonde! É meu primeiro encontro! Nunca tive namorada. Vai dar certo?”
– “Não se preocupe, amiguinho; está na hora de você conhecer garotas, conversar com elas, até que um dia a flecha do Cupido lhe atinja o coração. O amor começa cedo. Pode ser ela a eleita. O fato é que ela gostou de você. Há muito tempo observa seus modos e demonstra estar interessada. E é bonita, não é?”
– “É linda!”
E lá fui eu, empolgado com a conquista, até chegar à parada do Colégio Nilo Peçanha, no Largo do Barradas, em Niterói. Pensava na rivalidade entre os dois colégios, tanto nos jogos escolares como nos desfiles de Sete de Setembro. Os colégios eram mais ou menos vizinhos e alguns professores, os mesmos. Eles estimulavam entre os estudantes de lá e de cá acirradas disputas de notas nas disciplinas que ministravam. Meu professor de Geografia, Osvaldo Gonçalves de Souza, dizia sempre que os alunos do Floriano Peixoto, pupilos de um colega dele de magistério, conquistavam notas melhores que nós. Aquilo nos mexia com os brios e estudávamos a mais e mais para ouvir do professor o contrário. Não adiantava. Ele sempre mantinha o discurso de que lá no Floriano Peixoto os alunos eram melhores, e que nós deveríamos estudar com afinco para superá-los. Meu companheiro de futebol Luiz Carlos Paraquett estudava no Floriano Peixoto. Quando juntos, comentei sobre as insinuações do mestre:
– Caramba, Luiz Carlos! Vocês, lá no Floriano Peixoto, estão sempre na dianteira das notas em Geografia. Por mais que nós estudemos para melhorá-las, o professor Osvaldo sempre afirma que vocês tiram notas melhores.
– Ué? Nosso professor diz o contrário...
– Quê?... Ah, que espertalhões! Quer dizer que eles fingem pra nos colocar estudando mais?
– É o que parece! – respondeu Luiz Carlos já achando graça do assunto.
– E agora? Será que vale a pena desmascará-los? – indaguei do amigo.
– Acho que não. O motivo é justo; há muitos colegas que só vão pra frente na base do empurrão. Vamos fechar a taramela e deixar tudo como está! – encerrou Luiz Carlos, com quem concordei, porém achando curioso o artifício do professor Osvaldo para colocar seus alunos a estudar com mais interesse.
Inesquecível mestre, o professor Osvaldo!... Suas aulas eram maravilhosas! Já naquela época ele usava muitas cores de giz a desenhar no quadro-negro seus mapas como verdadeiras obras-primas para, através deles, nos ensinar Geografia. Dava até pena depois apagá-los. E aos alunos ele dedicava carinho especial. Gostava de lhes colocar apelidos. A mim me chamava “Maneco-Pé-de-Chumbo”; a outro, afetuosamente o designava como “Chico-da-Porteira”, e assim por diante.
Apresentava-se sempre alinhado e bem-humorado, e ninguém faltava às suas belas apresentações. Não era somente uma aula, a dele, mas obra de arte que ele desenvolvia como genuíno artista. Creio que o maravilhoso mestre Osvaldo – irmão da professora Maria José de Souza Cid, nossa diretora – representou para minha geração toda a maviosidade do mestre. Isso eu vi e senti em meu coração adolescente e aqui solenemente juro!
E os desfiles escolares? Que maravilha! Que orgulho desfilar com aquele lindíssimo uniforme azul-celeste e branco! Imaginem a cena: milhares de alunos e alunas – dentre as quais minha irmã mais velha – perfilados em desfile no Dia da Pátria. Nosso colégio era na Zona Norte, em bairro proletário, mas não perdia em beleza e entusiasmo para nenhuma agremiação da Zona Sul quando pisávamos na Avenida Amaral Peixoto. Respeitavam, sim, o Nilo Peçanha, e os aplausos do povo estimulavam sobremaneira o garbo dos alunos.
A banda do colégio dava um show de evolução. De longe – juro que era assim! –, de longe só se viam aquelas listras brancas indo e voltando no passo marcial de um orgulhoso estabelecimento de ensino. Deixávamos na avenida a marca do orgulho máximo em envergar tão lindo uniforme. E quem mais se deleitava com o entusiasmo do Nilo Peçanha era a professora Maria José de Souza Cid.
Garanto que não há um só ex-aluno que não guarde na memória a imagem daquela mestra maravilhosa, com seus lindos cabelos brancos e coração tão amoroso que não se conseguia esconder atrás do seu austero semblante. Ele, o coração, sempre tomava a frente e transbordava toda a doçura de sua dona querida. A professora Maria José de Souza Cid era o Nilo Peçanha e o Nilo Peçanha era ela. Sem ela, o colégio não existiria. Com ela, o Nilo Peçanha era um só coração batendo forte por suas cores em azul de um céu brilhante e pintado por umas nuvens brancas que desciam ao chão só para reverenciá-lo. Quem teve a chance de lá estudar nunca o esquecerá, como também eu jamais o esquecerei!

Que saudade! E lá estava o bonde, participando da euforia cívica. Sim! Sim!... Íamos todos apinhados no bonde, que ficava no seu vaivém especial conduzindo os alunos ao desfile. O bonde era fã do Nilo Peçanha, conhecia todos os alunos do dia a dia das idas e vindas das casas ao colégio e do colégio às casas. Nós amávamos o bonde e o bonde nos amava. E ele, o bonde, vestia-se também de azul-celeste e branco neste dia em que honrávamos a pátria!...


Domingo, finalmente o domingo. No bonde, fui à pracinha do Zé Garoto. Eram sete horas da noite quando desembarquei, num misto de nervoso e animado. E lá estava Paula, vestida em roupa que realçava ainda mais sua deslumbrante beleza. De longe, eu juro que vi uma boneca de cristal em fascinante e arrebatadora imagem! Confesso que meu coração palpitava além da imaginação. Meu primeiro encontro, minha primeira namorada, haveria o meu primeiro beijo?...
– Olá, Paula! Tudo bem?
– Olá, Carlos Eduardo! Esta é Joana. Ela foi a minha salvação. A mãe não me deixaria vir sem ela.
– Legal! Prazer, Joana!...
– O prazer é meu! Agora vou ver minhas amigas. Não demoro porque a mãe da Paula marcou retorno às nove e meia.
– Tudo bem, Joana! E você, Paula, não quer tomar um sorvete?
– Quero sim! Depois vamos nos sentar pra conversar, está bem? – respondeu-me sugerindo em indagação a linda menina.
Tudo transcorria otimamente. O papo se desenvolvia em total descontração, a intimidade aumentando, discreta, serena, mas aumentando, até que nos fitamos mutuamente, já enlevados e desejosos de romper a primeira barreira. E surgiu o encantamento e o beijo, demorado beijo, meu, o primeiro; dela, o primeiro... Ó Paula, doce menina que me balançara o coração agora disparado!... E veio o sangue na face de ambos; descolamo-nos, envergonhados; ficamos silentes, fitando o chão, providencial chão que nos acolheu naquele momento de mútua timidez.
Procurei quebrar o embaraço mudando de assunto:
– Poxa, Paula! Você nem sabe como foi o jogo de hoje entre o Colodino e o Peixotinho...
– Conte-me, Carlos, conte-me! Eu soube que foi muito bom. Minhas colegas assistiram e me contaram. Eu soube que você fez um belo gol.
– Fiz, sim! Joguei muito bem. Ainda pensei que você apareceria para ver o jogo.
– Não pude. Fiquei me aprontando para vir aqui. Notou a minha roupa nova?
– Linda! Muito linda! Quem fez?
– A mãe e eu. Gosto de costurar aos domingos, de fazer eu mesma meus vestidos. A mãe me ajuda, é ótima costureira. Ela não sabe de você. Acha que sou muito nova pra namorar.
– Ih!... E se descobrir?...
– Nem sei! Mas podemos nos encontrar no bonde. Tenho de ser discreta porque meu pai é muito bravo. É boa pessoa, mas é antiquado. Ele diz que só poderei namorar depois de formada. E tem meu irmão...
Foi só falar na assombração e ela surgiu na nossa frente em formato masculino: o irmão. Grandão, com cara de zangado, surgiu já ameaçando a menina no estrídulo da voz:
– Namorando, hein? Vou contar ao pai!
– Espere! Não é nada disso! Somos amigos apenas! – rebati na hora, tentando amenizar, porém sem muita chance, pois eu e Paula estávamos com as mãos entrelaçadas.
– Não quero conversa! – retrucou o grandão, deixando-me com repelões nos nervos.   – “Que abusado!” – pensei. – E logo lembrei o meu ídolo Machado de Assis dizendo em algum ponto de sua vasta obra, que mais ou menos reproduzo em rápido intertexto: “Quando Deus constrói uma igreja, vem o Diabo e planta uma capela ao lado.”
Enquanto pensava nisso, já irritado, Paula batia suas pernas assustadas em direção à parada do bonde, nem mesmo se despedindo de mim. Coitada, perdeu o controle e saiu em prantos. Não resisti à tentação da “capela” e dei um safanão no irmão dela, que saiu fuzilando de raiva: “Vou contar ao pai! Vou contar ao pai!”
Acabou-se o que nem começara. No dia seguinte, no bonde, Paula nem levantou os olhos para mim. Postou-se cabisbaixa no seu banco. Também não consegui fitá-la. Não sei se o irmão comentou sobre a sacudida que lhe dei. Acho que ela não viu, mas seu comportamento me deixava claro que o romance terminara. Perguntei ao bonde que fazer, e ele me respondeu: “Não há jeito de consertar; melhor esquecer.”
Tudo bem!... Pelo menos senti o gostinho de me ver preferido por uma bela moça. Isto depois me ajudaria a minimizar minha exagerada timidez. O querido bonde, porém, percebia meu desalento, por mim minimizado em pensamentos outros, mas que não funcionavam. Por vontade, mesmo, o que eu gostaria era continuar meu namoro com Paula. “Ah, deixa pra lá! A vida continua!”, assim fui pensando durante o resto do percurso e nos dias seguintes, até que o tempo cuidou de curar a ferida de minha frustrada paixão adolescente...
Certa vez, salvei uma vida no bonde, graças ao seu aviso oportuno. Com o bonde lotado, lá vinha eu no Reboque, no retorno da escola, de pé e ocupando o estribo, mãos firmes no balaústre. No Barreto, um aluno do Floriano Peixoto ocupou o estribo do Elétrico. Eu já o conhecia de vista e não gostava do que ele fazia – uma perigosa brincadeira com o bonde em movimento: pular do Elétrico e retomar a posição no Reboque, saltando de um estribo e subindo no outro, após prender as mãos no balaústre, isto bem próximo de mim.
Ele era useiro e vezeiro nesta perigosa traquinagem, não obedecendo aos conselhos dos mais velhos ao longo do percurso. E eu observava o traquina quando ele saltou mais uma vez do Elétrico, o bonde correndo, e pegou no balaústre do Reboque, deixando o corpo perigosamente inclinado no ar enquanto se aprumava. De súbito, o bonde gritou: “Olha o caminhão!” Sim, lá estava o caminhão, parado, a carroçaria insidiosamente à espera da cabeça do garoto no caminho do impacto inevitável. A pancada teria sido mortal se eu não tivesse dado um rápido passo no estribo e bruscamente puxado o corpo do menino para dentro do bonde no momento da cruza dele com a carroçaria do caminhão. Ele só percebeu depois, as pupilas arregaladas, lívido e sem palavras. Nunca mais repetiu a maluquice.


O bonde conhecia várias histórias e desde muito longe no tempo. Sabia em miúdo sobre as transformações havidas no Brasil e no mundo, contava-me casos e mais casos, desfilando as cenas em minha mente como se eu estivesse diante de uma tela de cinema.
Aprendi muito com o bonde e seus anônimos passageiros, com quem conversava durante milhares de viagens que fiz, ou indo ao colégio e dele voltando ou nos meus vaivéns do trabalho ao lar. Minhas melhores cavaqueadas, porém, eram com o bonde. Falávamos sobre resultados dos jogos dos fins de semana, falávamos das farras, das novas namoradas, de tudo, num bate-papo mais íntimo, de coração para coração.
Tenho saudade de todos os bondes que transportavam o povo para lá e para cá em São Gonçalo e Niterói. Que fim eles levaram?... Não sei. Apenas sei que um discutível progresso trouxe-nos os ônibus, os apertos e passagens mais caras. Sim, retiraram os bondes para ampliar as vias por onde eles, os amados bondes, passavam. Os trilhos estão no mesmo lugar, sepultados por uma fina camada de asfalto.
Nas cidades que antes acolhiam os bondes agora rodam ônibus barulhentos, fumegantes e sem poesia. Por isso hoje há somente transporte apertado, desconfortável, e desenfreada poluição. E não me venham com essa de que ônibus andam mais rápidos que bondes, que significam progresso etc. Talvez nas estradas pudessem até apelar para esta ideia, mas seria outra brutal mentira! Que ônibus andaria na velocidade do trem-bala?... Que é, afinal, um trem-bala? Ora, ora, um bonde mais comprido e moderno, com chifre, trilhos e tudo mais que se refere à extinta família do bonde.
Andei num trem-bala em julho de 1989, percorrendo uma distância de 500 quilômetros, de Tokio a Kyoto, em duas horas apenas. E lhes afirmo: o desempenho do trem-bala é mais sereno que voo de avião. Não há turbulência nem poluição e sobra segurança.


E os metrôs subterrâneos e de superfície? Sim, em lugar dos antigos bondes poderiam ter sido instalados esses modernos trens elétricos de transporte de massa. Mas, não! Inventaram em má hora os ônibus e seus donos ávidos por riqueza. Daí as passagens caríssimas e o povo que se dane!...
Digam-me, prezados leitores e leitoras: há alguma poesia nos ônibus além dos assaltos dentro deles? Não houvesse a tragédia urbana de hoje, mesmo assim para conseguir poetar sobre ônibus talvez devêssemos ressuscitar os maiores poetas brasileiros: ou Casemiro de Abreu ou Olavo Bilac ou Gonçalves Dias, por exemplo. Mas é certo que eles se recusariam a poetar sobre ônibus. Acabariam poetando sobre os bondes indo ao passado de seus tempos. E certamente diriam: “Ó amados bondes, jamais os esquecerei!”







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