domingo, 30 de abril de 2017

SÁBADO DE CARNAVAL


“Para que o acontecimento mais banal se torne uma aventura, é necessário e suficiente que o narremos.” (Jean-Paul Sartre)



Tudo aconteceu num sábado, no ano de 1987. No 12º Batalhão da Polícia Militar, em Niterói/RJ, a troca de serviço estava ocorrendo às oito da manhã. A agitação era intensa, com centenas de PMs circulando ou entrando e saindo de pequenas formaturas espalhadas pelo quartel, todos verificando armas, viaturas e demais apetrechos destinados ao serviço de policiamento ostensivo nas ruas da cidade, em algaravia típica de feira livre. Mas por trás do aparente caos o que predominava era a militarismo enquadrando todos. Demais, sabia-se que as ruas estariam movimentadas. Não era dia normal, era um sábado de carnaval.

Bem, para a polícia, os dias nunca são normais. Há dias menos ou mais agitados, ou dramáticos, ou trágicos, nunca normais, porque não há ordem sem a desordem acompanhando-a de perto. Ordem e desordem andam de braços dados, correm paralelas no ambiente social, assim como andam próximos o feio e o bonito, o alto e o baixo, o gordo e o magro, ou seja, os inúmeros contrastes que enfeitam ou enfeiam a vida. Nem tanto assim em lugares bucólicos do interior, onde as horas escorrem pesadas e espaçosas, num marasmo que somente o suporta quem lá vive. Lá, o feio tem mais tempo de ser feio e o bonito demora-se bonito, e ambos podem ser mais acuradamente observados. Aqui falamos de cidade grande, vibrante, rápida, populosa, problemática, complexa, quase absurda.

Segundo bulícios efervescentes no quartel, a sexta-feira já fora suficientemente agitada, garantia de que o sábado não seria diferente. Houvera de tudo: colisões de veículos, atropelamentos, homicídios, assaltos, bebedeiras, flagrantes de tráfico de drogas, brigas de marido e mulher, e mais, e muito mais, e mais ainda. Sim, sem dúvida, o sábado de carnaval prometia esquentar.

De manhã, o major Lima já se estava fardando no alojamento. Era o oficial superior escalado na supervisão, o mais importante serviço do batalhão, eis que a ele competiria discernir e decidir em nome do comandante a quem ali representava. Ele se fardou e saiu do alojamento. Um recruta já o esperava na saída, escalado como seu motorista. Chamava-se Cosendei. Era o seu primeiro serviço externo após a conclusão do curso. Tratava-se dum simpático jovem de 20 anos, idade até para ser filho do major.

– Bom dia, major. Sou o soldado Cosendei, seu motorista. O carro está tinido. Sei que o serviço é interno, mas estarei sempre pronto a lhe atender. Ficarei junto à viatura, e, necessitando, é só chamar que imediatamente me apresento...

– Quem lhe disse que o serviço é interno?...

– Ué, major? O sargento me disse...

– Bem, deixa pra lá. Vamos fazer o seguinte: procure descansar bastante. Não o chamarei antes das quatro da tarde. Mas prepare-se porque sairemos às ruas sem hora de voltar...

O experimentado major já sabia que o sábado não seria diferente dos dias seguintes de festejos momescos. Na parte da manhã geralmente a cidade dormia, vazia de foliões. Porém, a partir do meio-dia o movimento se iniciava em ritmo acelerado e não mais parava. E quatro horas da tarde, no mais ou no menos, a folia começava a tomar forma de grandiosidade, o álcool já fazendo efeito na cabeça dos carnavalescos e as drogas complementando um caldo tendente a engrossar.

O major cogitava o quanto é curioso o ambiente social. De um lado, a prevalência da ordem, com as pessoas se comportando em tranquilidade; do outro, – e sempre presente, – a desordem, com alguns quebrando as regras mais comezinhas de respeito aos direitos genéricos e subjetivos dos cidadãos, motivo suficiente para existir a PMERJ e seu aparato em homens, armas e viaturas, dentre outros meios destinados ao controle social, já que a desordem sempre foi e sempre será parte integrante da convivência social.

Contudo, voltemos ao quartel e ao sábado de carnaval, e à nossa dupla. E lá está o major entrando no carro, tendo ao seu lado o empolgado recruta. O carro é um fusquinha; novo, é certo, porém apenas um fusquinha.







– Cosendei, vamos que é hora! Está com a arma em condições de uso? – indagou o major.

– Sim, senhor! Estou pronto!...

E foram às ruas, o major e o recruta, rompendo ambos, resolutos, o umbral do batalhão, a fronteira entre a segurança e o risco, a linha divisória entre o hermético militarismo e a realidade ambiental eivada de incertezas e turbulências, e possivelmente o limiar entre a vida e a morte trágica. Do lado de dentro, a ordem; do lado de fora, a ordem e a desordem, aquela almejando o equilíbrio, e esta, o contrário. Um batalhão cuida de atalhar as desordens, além de se dedicar à prevenção para evitá-las. É este o exercício dinâmico da atividade policial.

Curioso é que o mundo da desordem nem sempre é percebido pelos cidadãos que estão no mundo da ordem. Mas esse mundo da desordem, que ainda não é o submundo do crime, já exige a ação sistemática e diuturna da PMERJ. Neste segundo caso, porém, trata-se de exceção, dos crimes prescritos em códigos e normas legais avulsas. É hora então da repressão.

Muito bem, retornemos ao Major Lima e ao PM Cosendei a partir do átimo em que ganham as ruas, fardados, armados e embarcados em viatura caracterizada: um fusquinha. Como se vê, não passa de mais uma guarnição de radiopatrulha aos olhos do povo. Vejamos, pois, o que aconteceu com esta dupla entre as quatro da tarde do sábado e a manhã do dia seguinte, quando finalmente o major e o animado recruta deixaram o serviço. E que serviço!...

Antes, porém, creio que devemos pensar um pouco mais na desordem, já que é nela que reside o fascínio, a diferença, a exceção. Para os anarquistas, por exemplo, a desordem é o charme da vida, é o sentido máximo da aversão às excessivas formalidades e o desprezo pela pouca ou nenhuma liberdade. Para eles, a promoção da desordem é um meio de impor uma nova ordem, até que outra desordem a modifique. É a ordem como tese e a desordem como antítese, advindo desse inevitável conflito, como síntese, a nova ordem, logo contestada, por uma nova desordem, num processo contínuo no tempo e no espaço.

Ora, nem ao mar nem à montanha! A PM está no meio desta polêmica. E como ela se integra obedientemente à maquinaria estatal, cujo objetivo é a manutenção da ordem pública, é desta maquinaria que ela recebe os meios de sustentação estrutural, e que por isso presta-lhe cega obediência. Nem tanto às leis vigentes, como logo se poderia supor, eis que nem sempre são observadas por eventuais detentores do poder político. É desse caldo complexo que emerge a permissividade ou o excesso, com a PM na gangorra e à deriva, longe do ponto de equilíbrio, distante do meio, do ponto que seria a perfeita conjugação entre o “ser” e o “dever ser”. O fiel da balança. Quem dera!...

É assim a convivência social: geradora de muitas teses e outras tantas antíteses, tanto naturais como fabricadas, todas, porém, gerando sínteses, efeitos, alguns bons, outros ruins. Anarquia, permissividade, excesso, tudo é antítese à ordem pública, que não passa de uma situação de paz e de harmonia que deve ser mantida como regra, ou restaurada como exceção. E a PM é a polícia de manutenção da ordem pública, a suposta tese. Sim, é a PM que se incumbe da preservação da paz no ambiente social. Se formos verificar o conceito de ordem pública, aí sim é que veremos o quanto isto é complicado. Vejamos o firmado pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Ordem Pública é a situação de paz e harmonia que experimenta a população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade” Ele ainda nos ensina que os “princípios éticos” abarcam: “As leis, a moral e os costumes.” É esta complexa e abrangente ordem pública que a PM tem de manter ou restaurar; e é através da ação parcial do major Lima e do recruta Cosendei que isto é feito, em somatório a muitos outros labores simultaneamente executados por milicianos em todo o Estado do Rio de Janeiro. E imaginem, leitores, tudo isto em véspera de carnaval...

Será que, enquanto se preparava e depois saía às ruas, todos esses conceitos estariam cabriolando nas reflexões do major? Ou ele, ao colocar os pés no asfalto, estaria imbuído apenas do sentimento racionalizado, restrito e prático inerente ao seu dever funcional de exigir nas ruas o “dever ser”? Mas, será que tudo o que se poderia supor como “dever ser” estaria formalizado? A resposta é não! E Cosendei?... O que lhe estaria passando pela cachola? Somente dirigir o fusquinha? E os riscos? Bem, deixando de lado as incontáveis respostas que emergiriam destas indagações, lá estão eles, o major e o recruta, caindo no mundo da alegria e dos conflitos sociais num sábado de carnaval...

Eram quatro da tarde; e desta hora até seis a dupla já percorrera todos os pontos de tradicional concentração popular. Eis aqui o “dever ser” ajustando-se ao “ser”, porque a folia sempre se integrou à cultura dos bairros. E o carnaval em determinadas ruas é tão inevitável que somente cabe à PM cuidar de desviar o trânsito e proteger os foliões. Se ela não tomar a iniciativa de organizar a folia, esta acontecerá de qualquer maneira por conta da explosão da vontade do povo. Já a elite estará nos clubes e espaços mais nobres cercados de musculosos seguranças. Nestes, a polícia ficará convenientemente do lado de fora. Afinal, polícia é povoléu...

O major e o recruta alcançaram, juntos, a chegada do lusco-fusco do anoitecer. Até então tudo lhes vinha transcorrendo às mil maravilhas, porém nem tanto com outros PMs empenhados em inúmeras ocorrências, todas atentamente acompanhadas pelo major, por via do rádio, mas cuidadas por supervisão de tenente. Nesta hora, perto das oito, o major decidiu ir ao Largo da Batalha, bairro situado a meio caminho da Região Oceânica. Logo que chegou ficou estacionado em ponto estratégico observando o povo brincar e o policiamento a postos, protegendo-o.

O carnaval fervilhava em animação. Havia ainda muitas crianças acompanhadas dos pais, porém em pouco tempo se recolheram, dando lugar aos adultos. Já se alcançava o ponto das nove da noite, o movimento crescendo, alguns bêbados trocando pernas em danças movidas a álcool, casais namorando, outro brigando em ciumeiras, e muitos outros ostentando rotas e esfarrapadas fantasias de carnavais passados; e, finalmente, o grosso do povoléu malvestido e enfeando a folia, não por culpa deles, é claro!...

De repente, parou diante da viatura um ônibus superlotado. E dele desceram duas mulheres, mãe e filha, a primeira aos gritos desesperados acusando alguém do ônibus de ter bolinado a garota, esta, que se vestia com sumaríssima bermuda e ínfimo sutiã cobrindo-lhe apenas as pontinhas das mamas. A mulher foi direto ao major pedindo-lhe escandalosamente que prendesse o folião que molestara a filha dela.

O ônibus vinha vindo de Pendotiba, outro bairro de Niterói. O major fitou a dupla feminina em frente dele e mirou aquela lata de sardinha ambulante apinhada de gentes a reclamar do transtorno em incontrolável algaravia. Para evitar maiores problemas, o major mandou descer o acusado, um folião fantasiado de “onça pintada”, com rabo e tudo mais que pertence a uma lídima onça, figura realmente cômica, de 1,76m de altura, no mais ou no menos. E veio a “onça pintada”, de máscara, postando-se diante do major, enquanto o ônibus era liberado para seguir viagem. A “onça pintada” tremia dos pés à cabeça...

– Foi ele, senhor policial, que passou a mão na minha menina! – reclamou a nervosa mãe.

O major fitou novamente a menina, de short tão microscópico que dava quase para visualizar o resto. E que resto!... Sim, era uma bela menina, com um bumbum que não merecia apenas belisco... Era o que se ouvia, em torno do major, dos populares que se ajuntavam curiosos e futricando sem parar. O major fitou a menina e depois a “onça pintada”, inusitada figura, a primeira onça bípede vista na cidade, coisas do carnaval...

– Vem cá, onça! Vá tirando a máscara! – disse-lhe o major, em tom imperativo.

A onça não obedeceu, ou melhor, em vez da máscara retirou as luvas, deixando à mostra duas mãos calejadas e manchadas de graxa, seguindo-se ao gesto uma súplica:

– Seu polícia, pelo amor de Deus, sou trabalhador, sou mecânico aqui no bairro! Toda essa gente me conhece! Por favor, seu polícia, não me mande tirar a máscara! Me leva preso, mas tirá-la, não! Eu vou me desmoralizar! – clamou a “onça pintada” em total desespero.

O major viu-se diante de uma insólita situação. Olhou em torno de si e pôde perceber um montão de curiosos na expectativa de saber quem se ocultava atrás da máscara. Sim, ansiavam por saber quem era a onça. Ninguém mais queria saber da menina e de seu precioso bumbum que teria sido violado num belisco inofensivo por parte da “onça pintada”, todos queriam ver a cara da “onça pintada” – a única novidade... O próprio major de repente percebeu que ele mesmo estava tão curioso como os demais. Também queria saber quem, afinal, era a “onça pintada”, único mistério a ser desvelado, o que garantiria um final apoteótico à ocorrência. Mas o major, surpreendendo a todos, falou:

– Minha senhora, ouça-me com atenção, vou levar todo mundo pra delegacia. Veja bem, a senhora e sua filha também serão obrigadas a isto. E não lhe posso garantir que o delegado não implique com a vestimenta da menina. Se ele for um moralista, ela acabará processada por ultraje público ao pudor; e, com relação à “onça pintada”, se ela, ou ele, negar que passou a mão no bumbum da sua filha, ou dizer que apenas nela esbarrou em virtude do excesso de passageiros no ônibus, até eu mesmo serei impelido a concordar com esta versão. Vai sobrar apenas a sua filha e a prova de que ela está seminua...

– Mas, senhor, ele passou a mão na minha filha; eu vi, todos viram. Ele é culpado – exasperou-se a mulher, com a filha ao seu lado, sem nada falar, e pouco incomodada de ter ganhado o belisco indecoroso no seu belo traseiro.

– Tudo bem, mas não há como garantir que o delegado pense como a senhora; é isto que me preocupa. Eu lhe pergunto: a senhora quer amanhecer o dia na delegacia, talvez vendo a sua filha presa?...

– Não, seu polícia, nem pensei em ir à delegacia. Só quero que o safado seja preso. Se o senhor me prometer isto, eu me vou com minha filha. A gente mora aqui perto...

– Minha Senhora, não vou prender a “onça pintada”, não; mas lhe garanto que vou admoestá-la severamente antes de mandá-la embora. É o máximo que posso fazer, a não ser que a senhora queira ir à delegacia...

– Deus me livre! Prefiro ir embora. E vou agradecida ao senhor, que foi muito simpático e atencioso comigo.

– Acho uma ótima ideia. Vá, então, e leve sua filha – disse-lhe o major, fitando a menina e concordando, no seu íntimo, com a “onça pintada”, pois o traseiro da garota era, com efeito, irresistível...

O major não falou duas vezes: a mulher arrastou a filha e se escafedeu, não sem ouvir gritinhos e gracejos da torcida organizada em favor da “onça pintada”, mas todos esperando a apoteose da ocorrência, que seria o desvelamento da identidade que se ocultava atrás da máscara.

– Puxa, senhor, obrigado! Vou falar uma coisa: sou vizinho deles, e casado. Se o senhor me tirasse a máscara meu prejuízo seria total. E eu, na verdade, apenas gosto de me fantasiar e de brincar assim o carnaval. Visto a fantasia na casa de um amigo, longe daqui, e venho circular no bairro sem ser reconhecido. Mas desta vez não resisti e passei a mão no traseiro dela, não posso negar.

– Tudo bem; nem quero ver seu rosto. Aliás, as mãos são sua melhor credencial. Pode ir e aproveite em paz o carnaval. Mas não fique por aí bolinando as meninas! Vê lá, hein?...

O PM Cosendei ria às bandeiras despregadas enquanto assistia ao divertido desenrolar da cena, que culminou com a “onça pintada” se mandando na velocidade do tufão. E ao entrar no fusquinha não resistiu em comentar com o major:

– Caramba, meu chefe! Sabe o que eu estava pensando? Aquela ocorrência poderia resultar em mil e uma soluções, dependendo de qual PM que com ela deparasse. Por exemplo, se fosse um quadradão, seria capaz de prender a garota; mas, se fosse outro que tivesse uma filha que se espelhasse no exemplo da garota, coitada da “onça pintada”...

– Tem razão, Cosendei. Esta nossa profissão é complexa e curiosa, muito mais do que pensam por aí afora. Nós temos o poder de agir imediatamente em casos como este, que são múltiplos e variados. É a faculdade de discernir e decidir na hora, com base no Poder de Polícia. Na verdade, ressalvadas as proporções, nós atuamos como se fôssemos quase que juízes de pequenas causas; mas não podemos ultrapassar nossos limites, não podemos infringir as leis. E mais, não podemos nos deixar influenciar por nossos preconceitos. Difícil, né?...

– Complicado mesmo, hein, major?...

– Nem tanto. Mas há, na verdade, um ponto controvertido. Veja só, nada impede ao PM de levar tudo pra delegacia e deixar que a autoridade policial decida sobre os conflitos vários que ocorrem nas ruas. Isto, porém, acabaria sobrecarregando as delegacias com bobagens, como a ocorrência que acabamos de solucionar, nem sei se salomonicamente, mas solucionamos.

– É verdade, major; mas acho que o senhor decidiu com sabedoria...

– Ora, Cosendei, tá puxando o meu saco?...

– Não, chefe! Gostei mesmo do desfecho...

– Estou brincando. E saiba, Cosendei, que o povo ali se dividiu. É certo que uma parte aprovou nossa decisão, mas também é certíssimo que muitos saíram frustrados, e até raivosos por não terem visto a cara da “onça pintada”. Mas sabe o que faria a maioria dos PMs nesse caso?... E, diga-se de passagem, com sabedoria? Eu lhe respondo: carregariam tudo pra delegacia e deixaria a bomba nas mãos do delegado. Assim evitariam problemas futuros. Em compensação, a cidade ficaria despoliciada, pois é certo que os PMs se aproveitariam da ocorrência pra descansar na própria delegacia. Quer descanso mais legitimado que este?...

– Poxa, major! Não pensei nisso. E é exatamente na hora em que a patrulha está fora das ruas que os problemas mais graves ocorrem. Parece praga...

– É verdade! Sabe de uma coisa, Cosendei?... Nossa profissão é muito simples e ao mesmo tempo extremamente complexa. Não lhe parece uma contradição?...

– Contradição?... Olha, major, confesso que o que vejo é muita complicação!...

– Com efeito, companheiro, com efeito!... – encerrou o major, divertido com a confusão que criara na cabeça do recruta.

E logo a viatura chegou ao quartel, bem na hora de se fazer um lanche...







Dez e trinta da noite em sábado de céu límpido e estrelado, garantia de povo nas ruas e muita bebedeira. O major Lima e seu motorista metem os pés no asfalto novamente percorrendo os locais de concentração popular e verificando o policiamento. Mas também abrangendo os clubes espalhados pela cidade, com os foliões nas filas de entrada. Tudo calmo.

Já raspava a meia-noite quando entrou no rádio uma ocorrência grave: tentativa de homicídio no Terminal Norte, local de concentração dos ônibus destinados aos passageiros da Zona Norte de Niterói e do Município de São Gonçalo e algures. O major estava em frente do Clube Canto do Rio, próximo do local da tragédia, para onde partiu célere. Em chegando, deparou com uma guarnição de PATAMO socorrendo a vítima, uma negra de 30 anos aproximadamente, com uma perfuração por PAF na altura do coração.

O assassino havia fugido. Segundo as testemunhas, tratava-se de briga de casal, e o homem atirara na mulher por incontrolável ciúme. O marido cismou que ela se insinuara para outro homem, e começaram a discutir asperamente. Estavam ambos alcoolizados, o álcool levou-os ao desvario, o revólver fez o resto. E veio o tiro, um só, que fez tombar a mulher, enquanto o homem fugia sem muita noção do que fizera e mais para se livrar do clamor público. Ninguém o perseguiu.

Era esta a situação quando o major chegou ao Terminal Norte.

– Cosendei, acho que nesta hora não há como sair da cidade, a não ser a pé ou tentando pegar algum ônibus. Não há nenhum táxi circulando e o assassino só pode ter ido para a rodoviária. Vamos lá...

Foram. De caminho, porém, entrou no rádio a notícia da morte da mulher. O tiro realmente acertara-lhe o coração. E enquanto a informação era transmitida o major se aproximava da rodoviária, logo avistando o suspeito, desnudado da cintura para cima, com a camisa enrolada nas mãos, de cócoras e olhando o nada. O major se acercou dele de arma em punho; o homem estava absolutamente apático, e somente quando o major lhe retirou das mãos a camisa que ocultava a arma do crime, é que o homem o fitou.

– Ô, rapaz! Você matou a mulher! – disse-lhe o major, constatando que a arma era um revólver calibre 22 mm.

– É minha esposa, mãe dos meus três filhos! Eu não matei ela, não, senhor! Só dei um tirinho nela com este revólver, e ele não mata, não, senhor!...

Sim, eram casados, e o pobre-diabo matara a própria esposa; e entrou em desespero, chorando convulsivamente, enquanto era conduzido à delegacia.

– Poxa, major, o serviço está ficando quente! E eu pensando em dormir dia e noite no quartel...

– Tem razão, Cosendei. Mas vamos descontrair um pouco. Vamos ao Clube Canto do Rio...

Partiram, chegaram. Tudo calmo. Do lado de fora não havia ninguém além dos vinte e cinco sargentos e do subtenente que os comandava. Eram alunos de um curso de aperfeiçoamento e vieram como tropa de reforço ao 12º batalhão. Contudo, não havia mais nada que justificasse manter ali aquele aparato, motivo pelo qual o major lhes autorizou o retorno ao quartel. Eram duas horas da madrugada.

O irrequieto major logo tornou ao Terminal Norte, onde havia maior concentração popular, local ainda tenso devido ao episódio do assassinato. Em lá chegando, verificou que as imensas filas se apresentavam em desordem, com as pessoas amontoadas e disputando aos tapas um espaço nos escassos ônibus que chegavam. Havia um pequeno grupo de PMs, talvez seis, tentando manter a ordem com muita dificuldade. O major e seu motorista também entraram a ajudar, mas logo o oficial percebeu ser inútil; e pensou nos sargentos, decidindo ir ao quartel para mandá-los reforçar o policiamento no tumultuado local. Já era uma situação típica de restauração da ordem. Ele foi rápido, chegou, e, por sorte, os sargentos estavam ainda formados aguardando a dispensa.

– Subtenente, embarque novamente os sargentos e dirija-se com eles ao Terminal Norte. Distribua-os em grupos de cinco e coloque-os patrulhando. A coisa está feia por lá, e há companheiros em dificuldade – determinou o major, ao chegar.

– Senhor major, desculpe-me, mas não dá, não! Nós estamos cansados! – ponderou inusitadamente o subtenente, deixando o major de saia justa.

– Quem é o sargento mais antigo? – indagou o major ao grupo, ignorando totalmente a fala do subtenente, que logo se assustou com o que lhe poderia acontecer...

– Pronto, senhor! Sou o mais antigo! – enquadrou-se o sargento.

– Perfeito! Assuma o comando do grupamento e se dirija imediatamente ao Terminal Norte, entendido? – sentenciou o major.

– Sim, major, prontamente!

– Senhor, e eu?– indagou, sem graça e temeroso, o subtenente.

– Você está dispensado! Vá descansar...

O major nada mais falou, além de avisar que iria ao local fiscalizar o policiamento. Enquanto isso, o subtenente sobrou sozinho, sem saber o que fazer. O major foi então ao Terminal Norte e verificou que valera a pena a medida: os passageiros, diante da proteção oferecida, descontraíram-se e se deitaram nas calçadas, muitos dormindo, outros conversando animadamente, e alguns embarcando ordeiramente nos ônibus. Estava restaurada a ordem, e a prevenção pela presença fez o resto. Pois toda aquela desordem resumia-se a nada mais que medo de assalto, brigas etc.

Os sargentos, em grupos, passeavam para lá e para cá dando proteção às pessoas. E alguns graduados vieram até o major para externar o prazer de se sentirem úteis. E lá estava, entre eles, o subtenente...

– Ué? O que você está fazendo aqui? – indagou-lhe o major.

– Major, desculpe-me, mas não fui feliz no meu aparte ao senhor. Eu estava realmente cansado. Não quis descumprir a sua ordem. Nem sei por que lhe falei daquela maneira. Já estou meio velho; talvez tenha sido por isso...

– Foi um comportamento precipitado, subtenente; mas não se preocupe. Assuma o comando dos sargentos. Creio que agora você não tem dúvida de que aqui eles eram imprescindíveis...

– É verdade, major! Obrigado pela chance! Confesso que me passou pela cabeça que o senhor iria me prender. O oficial-de-dia até me alertou que, além da transgressão disciplinar que cometi, ainda poderia haver a conclusão de que eu pratiquei crime militar. Peço desculpas, major! Nada houve além do cansaço...

– Tudo bem, companheiro. Vá em frente, bom serviço e tenha bom carnaval. Estenda a todos os sargentos os meus agradecimentos...

O major chamou seu fiel escudeiro e motorista, agora já consolidada uma sincera amizade entre ambos. E Cosendei, que pensava num “serviço interno”, empolgado e sentindo-se deveras útil, viu ainda na rua amanhecer o domingo de carnaval. É assim a profissão do PM: cheia de surpresas agradáveis e desagradáveis. Este o seu fascínio e que venham outros carnavais!...


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