segunda-feira, 1 de maio de 2017

RANCHO DE QUARTEL



“Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades não tem a menor ideia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam mesmo é da novidade-padrão. [...] a melhor notícia é aquela que já vem escrita.” (Olavo de Carvalho, Filósofo. Revista Época nº 154, 30/4/01)



A tragédia se deu num quartel de Polícia Militar, em qualquer época que se queira sugerir; mas não importa a época nem qual seja o quartel; nem sei se devo dizer que é situado no Rio de Janeiro porque também poderia sê-lo em outro lugar, já que há PMs espalhados por todo o Brasil. Todavia, não posso ocultar que o fato ocorreu em local próximo ao rancho (refeitório) das praças, apesar de este comentário nada esclarecer a respeito da história que aqui será narrada.

Dentro de quartéis, porém, nenhum estranho ao ninho jamais saberá o que lá realmente acontece; sim, as pessoas de fora só conhecerão as notícias depois de manipuladas ao bel-prazer do interesse interno, enraizado costume dos que não admitem que alienígenas saibam quais acontecimentos se insulam cotidianamente em unidades militares. Enfim, há uma fronteira nítida entre os de fora e os de dentro, como marco entre dois países belicosos. É mania de caserna, e também um pouco, - ou muito até, - da velha dissensão entre militares e civis, que é universal, vem de épocas remotas, e decerto alcançará o futuro. Daí o inelutável cisma...

Contudo, posso-lhes assegurar que havia no rancho daquele quartel 30 mesas com seis cadeiras em cada uma delas, nas quais se acomodavam de uma só vez 180 PMs. Mas esta informação, embora minuciosa, não identificará quais PMs nem suas patentes ou graduações, nem qual quartel, sem falar que a quantidade de mesas também pode ser falsa... Demais, PMs atuam geralmente em escalas, e não se conhece aqui nem o dia nem a escala nem a hora nem nada, o que importa considerar a inviabilidade de se saber com exatidão onde ocorreram as conversas entre muitos personagens cautelosamente anônimos, e em dias variados.

Fiquemos, pois, assim, com estas insanáveis dúvidas, e vamos à história. Mas antes lhes devo reafirmar que havia 30 mesas devidamente numeradas e simetricamente arrumadas em ambiente apertado, o que impunha manter pequena distância entre elas, de modo que se tornava impossível evitar que conversas entre indivíduos e grupos de cada mesa fossem ouvidas por indivíduos e grupos das demais, tudo ao mesmo tempo, especialmente por aqueles assentados em mesas contíguas. Infiram, pois, destes detalhes, a algaravia que se formava, e saibam ainda que eram poucas as conversas ditas civilizadas, do tipo indagar pela família uns dos outros, dentre outras manifestações simpáticas, mas geralmente desprovidas de emoção ou sinceridade. Quanto a isso, é de se sublinhar que os PMs, especialmente praças, soem ter a alma no peito, e não na cabeça, e muito menos nas entranhas, como sugeriu um dia a filosofia para classificar guerreiros, pensantes e mulheres respectivamente. Mas a hipocrisia costuma ser privilégio de pensantes... Bem, chega de rodeios e vamos ao que interessa.

Na mesa de número 1 sentaram-se três guarnições de radiopatrulha, ou seja, seis PMs, mas não casualmente. Programaram a conversa na hora do almoço para combinar uma ação que demandava perigo, tanto do lado de fora como internamente. Nas ruas, haveria risco de ferimentos ou morte; no quartel, ameaças de punição caso descobrissem o que ali parolavam em conluio. Mas eles estavam resolutos e passaram, então, ao concerto das ações que encetariam naquela noite.

– E aí, irmãos, vamos dar um bote no Malha Fina? Acho que hoje temos boa chance; o clima tá bom pra montar nosso esquema. Vamos botar as radiopatrulhas em fila, igual a trenzinho, e partir pra mineira... – diz o PM Medina.

– Sei lá! Aquele tenente Valdez que tá hoje na supervisão não é de dormir. Parece corujinha. Ele pode melar nosso esquema de arribar do setor pra dar bote e ainda arranjar uma pica grossa pra nós, daquelas que nem proctologista dá jeito – responde o PM Patreze.

– Pô, rapaziada, como fazer a parada sem risco? Risco já sobra de montão! Basta um de nós ganhar uma carga de ameixa pra zebrar a porra toda! Temos até de combinar isso. Se algum de nós se der mal, o jeito é ficar o parceiro dele ajudando e os outros se mandam. Podemos até voltar depois, mas tudo já comunicado à Central de Operações, álibi armado e todo mundo direitinho no setor. Como é tudo perto, dá pra desarmar o esquema e a parada terminar bem. Mas tem de ajustar; se não, dá merda. Em cima da hora, é rabo decidir! – externa o PM Ivano.

Na mesa 2 sentavam-se os PMs do policiamento a pé e outros componentes de PATAMO. Conversavam assuntos variados, tanto como os que estavam nas mesas 3 e 4. Os da mesa 3 trabalhavam internamente, e os da mesa 4 eram enfermeiros e atendentes do setor médico, que existe em todos os quartéis.

– E aí, amizade, aquele tenente Valdez ainda tá torrando seu saco? – indaga o patameiro Astrix, da mesa 2, ao seu colega PM Louvação, sentado ao lado.

– Pô, camarada, você nem imagina. Ele é meio estranho, tem um jeitão semelhante ao do capitão Silvio – responde o PM Louvação.

– São veados! – dispara o miliciano Roqueiro, enfermeiro, sentado na mesa 4.

– Quê? Que você disse aí?... Pô, amizade, cuidado com a taramela!... Não foi isso que eu quis dizer pô. E vem você se meter no papo e deturpar a conversa, pô! – estranha o PM Louvação, que entendera ter o colega se referido aos mesmos superiores aos quais ele antes se reportara.

– Que isso, cara? Eu não falei nada pra você! Nem sei do que você tá falando! – reage imediatamente Roqueiro.

– Como não sabe? Você acabou de dizer que o tenente e o capitão são veados. Você completou meu raciocínio que era outro totalmente diferente. Como é que não fez? Todo mundo aqui ouviu o que você disse, pô! – retruca, já meio enfezado, o PM Louvação sempre metido a valente.

– Olha, cara, nem sei do que você tá falando! Mas, só pra seu governo, chamei de veados dois artistas de uma peça teatral que meu amigo viu e tava comentando. Acho que você só ouviu o que eu disse no final; não manjou que o papo era outro. Mas você é bem folgado! Não me meti na sua conversa, pô! Você, sim, interrompeu a minha! Portanto, vá tomar naquele lugar! Tá pensando que só porque você é operacional tem mais valentia, porra? Cuidado, hein, cara, que sou da saúde, mas não sou frouxo, não! – atalha o PM Roqueiro bastante alterado.

– Pô, cara, desculpa! Eu confundi tudo. Por isso é que chiei. Mas não precisa também ofender, não, que meu negócio não é brigar com ninguém, muito menos com o pessoal da saúde, porque posso precisar de algum apoio e só me vão receitar injeção... – descontrai o PM Louvação já bastante preocupado, posto os demais das duas mesas se estarem olhando em pé de guerra e somente aguardando o desfecho daquela altercação particular...

Enquanto o incidente ocorria, o silêncio imperou no ambiente. De repente, todos os presentes se ouriçaram, porque percebiam que dali poderia sair até tiroteio entre aqueles dois que apenas misturaram momentaneamente as estações. Mas logo tudo terminou numa boa gargalhada, principalmente porque o PM Roqueiro, embarcando no humor do PM Louvação, completou:

– Pô, amizade, não chamei os dois superiores de veados, não; mas, quem sabe?...

Veio a descontração, com todos desfraldando estrondosa gargalhada em reação à bem-humorada sugestão. No fim de contas, insinuar aleivosias contra superiores em quartéis de qualquer lugar do mundo, e em qualquer tempo, é prática comum entre subordinados. É a velha história de elite contra massa, de luta entre os que galgam posição social superior por mérito de inteligência ou berço, e há os que preferem crer nos músculos, esquecendo-se de exercitar o cérebro e se fixando teimosamente na camada social mais baixa. Ou então porque não tiveram nenhuma oportunidade, ou seja, acesso à mobilidade social, como dizem os que estudam sociologia e vivem por aí bebendo uísque, e, enquanto arrotam em bons restaurantes, defendem teoricamente os pobres, indigentes e miseráveis. Mas estes nasceram fornicados e fornicados morrerão, por gerações e gerações que se proliferam em razão do “crescei e multiplicai-vos” para a garantia do trabalho braçal. Afinal, é assim que se dá a substituição da mão de obra humana, e sempre o será, e por todos os séculos e séculos, amém!...

Bem, enquanto nos distraímos na digressão o rancho do quartel continuou fervilhando em conversas fechadas entre os integrantes das mesas, porém cruzadas em virtude da exagerada proximidade entre eles e da surdez generalizada. E assim, sem que os comensais notassem (será que é direito chamar comedores de rango de quartel de comensais?...), a algaravia tomara conta do ambiente. Agora todos falavam alto, e as frases se misturavam como a Torre de Babel trazida ao presente. E nem precisava misturar idiomas. Bastava a predominância do tal “trauma do artilheiro”, que já danificara a audição da maioria, aliada à intrínseca grosseria dos PMs, que de educados não têm lá muita coisa... Mas, não me entendam mal! Vejam que são homens rudes, de pouca instrução, ou seja, massa típica de manobra, não muito bem forjada pela sociedade da qual se viram alijados desde o dia em que ingressaram na PM, ou, na verdade, desde que nasceram. Exagero?...

Não! Não exagero!... É só concluir, em vista da tão festejada Carta Magna, que cidadania é consequente do acesso que todo brasileiro tem, - ou deveria ter, - aos direitos sociais genericamente destinados aos trabalhadores urbanos e rurais. Tendo-os, o brasileiro é supostamente cidadão. Digo ainda supostamente porque aqui as leis não são observadas pelos que ocupam o poder, mesmo que as utilizem em seus prosélitos discursos na defesa da cidadania para chegarem ao topo do mando governamental. Por sinal, não há nada melhor que promessa de “cidadania” para enganar eleitores paupérrimos, semianalfabetos e analfabetos que vivem por aí levando geral e pancada de uma polícia paupérrima e despida de cultura, como eles, sem saber o que significa essa palavra bonita (cultura) tão festivamente propalada pelos que se dizem “de esquerda”...

Sim, são esses pobres-diabos que resolvem entrar na PM, já que outro emprego não há no mercado de trabalho. Daí, mesmo sendo cidadãos apenas teoricamente, e porque são civis, ao ingressarem na PM recebem o título de “servidores públicos especiais”, algo deveras pomposo, porém enganador, posto a primeira coisa que se torna inacessível aos desgraçados são os direitos sociais grafados com pompas e circunstâncias na Carta Magna. A Carta é “Magna” em quê?... “Magna” por quê?... No fim de contas, quase tudo que nela está gravado depende de leis menores para efetivamente valer!... Ora!...

Sou misantropo? Como não o ser em sendo também PM?...

Bem, cá estamos novamente em digressão, quando o que interessa é explicar as causas do grave incidente havido um dia naquele rancho das praças de um não identificado quartel de PM.

– Pô, amigo, não resisto em fazer uma fofoca – disse o patameiro Fogly, sentado na mesa 2 com outros parceiros de guarnição e mais três PMs do policiamento a pé.

– Que é isso, companheiro? Diga logo! Não fique aí fazendo suspense... – reclamou ansioso o seu colega ao lado, já com os demais das mesas 1, 3 e 4 de antenas ligadíssimas.

Uma fofoca tem sempre lugar à mesa, tanto de ricos como de pobres, tanto de mulheres como de homens, e mais ainda quando a mesa é mista. Bem, seja lá como for, imaginem as lavadeiras na beira de um rio e comparem a um rancho de quartel. Imaginaram? Garanto-lhes que em quartel as fofocas rolam muitíssimo mais.

– Vou falar! Calma! Sabe o sargento Parunha, que é casado com aquela...

–... Puta! – disse ao longe o PM Algur, o que fez explodir outra gargalhada.

– Quê? Quem é puta, camarada? Como é que você atinge assim a honra de um superior? A mulher do sargento Parunha é santa. Eu ia dizer que ela é excelente costureira e que conserta baratinho uma farda. Acho bom você se desculpar, que a brincadeira foi de mau gosto! – atalhou raivosamente o PM Fogly, quase que gritando ao outro da mesa 20.

– Ah, camarada, não me fornique o juízo, não! Nem sei o que você tá dizendo. Quem foi que disse que eu chamei a esposa do sargento Parunha de puta? Por que eu faria uma grosseria com o sargento, que é gente da melhor qualidade? Nem sei quem é a esposa dele. Eu estava aqui me referindo ao traficante George Ivan, dizendo que ele é um filho-da-puta, pô! – reagiu o PM Algur.

– Mas você falou alto, pô! – retrucou o PM Fogly já meio sem graça.

– Você é que tá com os buracos entupidos, pô! Só ouviu o final do que falei! Pergunte só aos companheiros aqui se não falei duas vezes que o George Ivan é filho da puta. A não ser que você seja amigo dele... – devolveu Algur.

– Quê? Olhe aqui, agora eu é que digo que você é filho da puta! Nem conheço você e você vem me ofendendo, pô!... Vá pro caralho, que acabo tendo um problema com você! Acho que você quer ter filho comigo, pô!... – devolveu o PM Fogly já de pé querendo briga, porém logo seguro pelos companheiros de mesa, enquanto, na outra, o PM Algur também já se encontrava travado em seu ímpeto de avançar contra o descontrolado PM Fogly.

“Atenção!”, alguém bradou às pressas ao perceber que vinha vindo o oficial-de-dia em direção àquele local “sagrado” de repasto diário. E quem gritou fê-lo bem antes de o tenente Valdez adentrar o rancho, de modo que deu tempo de todos se recomporem e pararem de vociferar impropérios a torto e a direito uns contra os outros, porque, na verdade, a discussão generalizara. Mas a presença do superior foi como se ali aparecesse um mago com sua varinha de condão, e que, num simples toque, emudecesse a todos. Pois, quando o tenente Valdez ocupou o umbral de entrada do rancho, nem mesmo as moscas tiveram coragem de se manifestar com seus impertinentes zumbidos. Mas aproveitaram o momento em que os PMs estavam petrificados, em silêncio de túmulo, e caíram gostosamente em seus pratos esquecidos pela imposição hierárquica. E o tenente Valdez, percebendo que estava perdendo seu precioso tempo, mandou-os que ficassem à vontade e se retirou. Quanto menos problemas no seu serviço, melhor...

O rancho é lugar de confraternização, mas também o é de contendas veladas ou ostensivas. Ali se ajuntam amigos e inimigos, não há como evitar, porque todos trabalham em horários rígidos e não controlam seus passos. Por isso, - e por mais que o evitem, - há sempre uma forte possibilidade de inimigos comerem na mesma mesa, um de cara para o outro, ciscando os pés embaixo das mesas como touros bravios, porém se contendo com temor de punição. Ali o que realmente segura a barra de ambos os lados é a necessidade do emprego, senão muitos já se teriam engalfinhado como cães e gatos. E diante dessas inevitáveis coincidências, há mesas barulhentas e silenciosas, há alaridos e conversas surdas, e há sempre mal-entendidos em função da natural algaravia que predomina depois de um tempo.

– E aí, meu amigo, como foi aquela parada do malote? Você se deu bem, hein?... – insinua invejosamente o PM Osias sentado na mesa 26 e se dirigindo ao PM Vasconça, com assento na mesa 25.

– Pô, cara, que papo-furado é esse? – rebate o PM Vasconça.

– Ah, maninho, não vem que não tem! Todo mundo tá sabendo que sua guarnição, naquele assalto a banco, levou a melhor e saiu abonada. O pior é que Jarbas morreu e a viúva tá necessitando de ajuda. Há quatro bacorinhos com as boquinhas abertas pedindo comida. Você bem que podia chegar junto! – insiste o PM Osias.

– Não sei do que você tá falando. E vai ter que provar, porque vou comunicar. Nunca teve malote nenhum, pô! Você acha que é possível praça pegar malote com superior comandando?... – defende-se o PM Vasconça.

– Rapaz, veja bem o que você tá dizendo!... Quem tava lá era o capitão Figueira, que é gente boa e não arma em cima de praça, não. Eu sei que vocês camuflaram o malote. Se ele tivesse apanhado o malote dividiria a grana e a viúva estaria coberta e alinhada, sem passar necessidade. Por isso sei que vocês deram um balão no superior, deram uma volta legal nele... – devolve o PM Osias.

– Olha, malandro, você vai ter de provar o que tá dizendo. Vou sair daqui direto pra comunicar e pedir pra apurar sua acusação – ameaça o PM Vasconça, já revoltado.

– Vá em frente! Comunique, se você tem peito! – provoca o PM Osias.

O PM Vasconça levanta-se e sai de cara amarrada. Sua resolução indica que aquele bate-papo nervoso terminará em inquérito, porque ali ninguém mais duvida de que o PM Vasconça fora diretamente ao seu comandante de companhia para se queixar do PM Osias. Ah, mas até hoje está todo mundo esperando o desfecho da ameaça, que, entretanto, não houve e jamais haverá, pois é claro que o PM Vasconça não dera parte de coisíssima nenhuma. Recolhera-se em evidente culpa. Porém, não jogou fora a raiva, ela ficaria guardada em seu íntimo contra aquele que o desmascarara publicamente. E assim, no rancho, mais uma grave inimizade se construiu pra toda a vida.

Mas havia coisas boas no rancho, havia bons e saudáveis bate-papos, havia o companheirismo de muitos que se organizavam de tal modo na fila que se tornavam cativos em determinadas mesas. Geralmente esses PMs trabalhavam internamente, e por isso conseguiam se organizar com mais eficiência e se isolar dos que eles chamavam de “pipas-voadas”, ou seja, PMs que até em se respirar o ar perto deles significava perigo.

Havia, sim, uma nítida rixa entre os PMs da atividade-meio e os da atividade-fim, com os segundos sempre insinuando covardia em relação aos primeiros, e estes devolviam as ofensas designando os outros como venais e matadores. E, por mais impetuosos que fossem os segundos, os ditos operacionais – ou “fodões” –, os burocratas – ou “bundões” – acabavam ganhando a contenda, com os valentes se chegando e se desculpando individualmente.

A razão era simples: os “bundões”, mesmo que efetivamente o fossem, permaneciam mais tempo em quartel, e por isso se tornavam íntimos de seus superiores, ampliando-se-lhes o poder de retaliar os “fodões”, porquanto podiam interferir nas escalas de serviço e levá-los ao desespero metendo-os em serviços extras. E sempre os piores, como, por exemplo, o policiamento de locais interditos. É só imaginar um patrulheiro de repente ficando de pé, e no frio, e na chuva, e na canícula, a tomar conta de uma loja incendiada até vir a perícia. Em muitos casos a perícia leva dias e semanas para chegar, posto não haver vítimas e seu trabalho visar apenas a comprovação das causas do incêndio, principalmente para efeito de pagamento do seguro.

Pior ainda é ser escalado extraordinariamente em presídios, com os “fodões” dando de cara com bandidos que antes trancafiara. Não que guardassem medo, mas é desagradável o constrangimento, sem falar na possibilidade de uma prisão decorrente de ação normal se transformar em inimizade pessoal, sempre um perigo para ambos os lados. Quanto mais impessoal o trabalho do policial, melhor; quanto maior a distância entre o policial que prendeu e o facínora que foi preso, melhor.

Como se vê, o rancho, lugar destinado ao repasto das praças e de oficiais, na verdade se transforma em coração do quartel, pois ali se concentram dramas, tragédias, conflitos, amizades, inimizades etc. Mas nem por isso é lugar desagradável, porque lá os PMs se comportam instintivamente; portanto, não percebem claramente esses detalhes. A eles o que interessa, mesmo, é comer, em primeiro lugar, e reagem naturalmente diante das acaloradas discussões que sempre surgem. É ali, na verdade, que acabam “lavando as roupas sujas” do dia a dia do quartel. E é ali que muita vez o tempo esquenta...

Todavia, qualquer desavença entre os esfaimados PMs que se concentram para exercitar o sacratíssimo direito de encherem o bucho, qualquer que seja a desavença ela sempre termina do mesmo jeito que começou: entre eles. E, por mais que o calor esquente no ambiente, a ponto de fazer surgir um superior, tudo vira discussão sobre futebol...

Sim, os rachas futebolísticos são sempre uma saída rápida e honrosa que deixa os superiores atordoados, pois é certo que estes sabem que o assunto era outro. Mas, e daí? Como desvendar os segredos da tropa? Como penetrar na sabedoria coletiva do PM? Como?... Bem, na verdade, ninguém, nenhum superior será capaz de tal proeza, assim como a recíproca é verdadeira, ou melhor, nem tanto assim, porque as praças são bem mais sábias...

Perguntariam, então: “Como ‘não letrados’ podem ser mais sábios que os ‘letrados’?” Eu lhes responderia que os superiores, em número bem menor, disputam entre si um poder que não interessa às praças, estas que não disputam poder algum, pelo menos diretamente. Por isso os superiores são mais isolados e desconfiados entre si e buscam entre as praças os amigos que lhes serão fiéis por toda a vida, salvo algum erro de escolha... Em compensação, pagam o preço dessas amizades, pois alguns de seus segredos se descortinam ao conhecimento dos que passaram a confiar suas alegrias e temores, confiança que muita vez abrange até mesmo a vida privada.

Bem, dada a explicação, o resto é pura matemática, porque o somatório dos eleitos como amigos de todos os superiores é a tropa toda. Daí se deduz: quem conhece os segredos da elite é a massa, e sempre se pode tirar proveito disso. E não somente em quartel, porque ninguém pode negar que muitas patroas são submissas às empregadas que lhes conhecem as mazelas conjugais, dentre outros exemplos que preencheriam aqui muitas laudas.

Alguém duvida que no quartel a tropa manda bem mais? Diriam alguns que nem tanto assim, porque o manu militari é terrível. Consegue-se sobrepor muita vez às amizades, especialmente quando se trata do superior e o amigo do inimigo dele, o que provoca, enfim, a mais violenta dissensão em todos os níveis da hierarquia, permitindo concluir que são poucas as verdadeiras amizades no militarismo, especialmente o praticado pelas PMs. Nada sei em relação aos militares de verdade, das Forças Armadas, porque de lá nunca me contaram nada.Que fiquem em paz! Não se deve cutucar onça com vara curta...

Ora bem, cá no nosso rancho, que novamente saiu de cena, mas que agora a ela torna, cá no rancho de PMs, sempre heterogêneos em idade, cultura, interesse, amizade, além de torcerem por times diferentes, há mesmo é muito diz-que-me-diz-que, muitas fofocas e muito mal-entendidos como os até aqui narrados. E outras confusões ocorrem não somente pelas falhas auditivas da maioria, mas também pela vontade de muitos em provocar aqueles com os quais são naturalmente cismados. Briga de irmão, diriam alguns. Será mesmo?...

– Irmão, que tal sairmos sábado pra farrear? – indaga o PM Peixeira ao PM Ribeirão.

– Numa boa, irmão, acontece que eu tô duro feito coco. Só se a gente armar uma paradinha durante o serviço – sugere o PM Ribeirão.

– Tudo bem, irmão, mas armar o quê? Tô meio sem imaginação hoje. E acho que pega mal tomar algum do portuga. Ele já deu o dele esta semana. O que você sugere? – indaga o PM Peixeira.

– Bem, irmão, tamos nessa RP faz tempo. Somos manos de fé, mesmo! Por isso, acho que a gente podia dar um bote no bicheiro do setor, no Macieira, aquele baixinho com pinta de curumim... – sugere o PM Ribeirão.

– Tá maluco, irmão! Se a gente partir pra essa amanhã tamos na rua da amargura, transferido, ou até preso por motivo bobo. Isto é cutucar vespeiro – apavora-se o PM Peixeira.

– Que nada, irmão! Uma prensa bem dada ainda funciona. Aquele puto fica escrevendo jogo do bicho na nossa cara e ainda tira uma onda com a gente. Vou fazer ele engolir as pules e tomar a grana dele. Digo mais: se ele folgar, levo ele pro rodo, falou? – exaspera-se o PM Ribeirão.

– Que isso? Calma aí, irmão! – diz o PM Peixeira. – Vamos pensar em algo menos perigoso. Você sabe que bicheiro é tão fodido como nós, não tem nada com nossos problemas e tem ordem de não dar nada pra gente e, mesmo assim, dá. Por isso, acho que é furada. Mas podemos partir pra cima do banqueiro. Ele sempre almoça no nosso setor, naquele restaurante de luxo. Vamos lá. Se ele não estiver almoçando com alguma autoridade a gente chega e dá um toque na hora que ele for embarcar pra partir. Vamos ficar na paquera e puxar um papo com os seguranças dele. É tudo da casa, o banqueiro não vai escapulir. Acho que nem precisa pedir nada, que ele vem e dá. É assim que eles fazem, pô! – completa o PM Peixeira o seu discurso.

– Tá certo, irmão, tem razão. Pra que arranjar confusão, se temos essa chance de ouro nas mãos. Então, tá combinado. Vamos cercar o homem. Mas, se ele não aparecer pra almoçar, aí, irmão, desculpe, mas vou pegar é o Macieira mesmo! – encerrou o PM Ribeirão com a concordância constrangida e visivelmente temerosa do PM Peixeira.

Não sabiam eles, ou melhor, não queriam saber que as mesas e cadeiras daquele rancho tinham ouvidos: o bate-papo entre os PMs já afetados pela surdez e com um tom de voz mais alto, logo chegou aos ouvidos atentos do comandante da companhia, que se encontrava a cem metros de distância deles... Não levou nem meia hora para que ambos se vissem a pé numa porta de colégio, em local ermo. Só um recado, que eles entenderam muito bem, apesar da simpatia do sargenteante, que lhes garantia ser apenas uma urgente necessidade de suprir o policiamento.

– Pô, irmão, não disse a você que meter o bedelho nessa área dava merda? Viu? Nem saímos do quartel e dançamos ao som de samba enredo com passo de bolero. Marchamos de passo errado. Acho que temos que ir ao capitão pra dizer que era tudo brincadeira. Pô, irmão, o chefe é legal, só adianta o nosso lado. Pisamos na bola, mas acho que ele gosta da gente e vai acreditar que a gente não ia fazer nada daquilo... – disse o PM Peixeira ao colega Ribeirão durante o jantar.

O PM Ribeirão concordou e discursou igualmente, ambos observando de soslaio onde estavam os “ouvidos” do comandante da companhia, que, por essa hora, eles já sabiam se tratar do PM Heráclito, postado na mesma posição do almoço como quem não quer nada, mas com os ouvidos cosidos na fala da dupla. Sim, escutava por delegação de seu superior... No dia seguinte, lá estava o sargenteante escalando-os novamente na radiopatrulha e esbanjando um simpático sorriso. Mas não deixou de lhes dar um rápido e direto recado:

– Da fruta que vocês gostam há muita gente que come até o caroço. Mas vocês se recuperaram a tempo. E saibam que as paredes do rancho têm ouvidos...

É óbvio que sabiam... O rancho é lugar agradável, porém muita vez perigoso. Assim eles aprenderam a lição e passaram a ouvir mais que falar naquele recinto onde muitos se alimentam comedidamente e outros se chafurdam em gula. Pois uma coisa é boa em rancho de PM: pode não haver muita qualidade, mas a quantidade é liberada. E deste modo muitos PMs vão entupindo as coronárias até o infarto, sem falar nos acidentes vasculares cerebrais: haja PM todo torto por aí afora!...

– Cara, você nem sonha quem eu vi entrando num motel... – fofocou o PM Deocleciano, logo despertando a atenção de todas as mesas que rodeavam a dele, de número 10.

O PM Deocleciano trabalhava interno e adorava tomar conta da vida alheia. Mas não se interessava por ilicitudes da tropa. Não, ele não se interessava por nada disso, muito menos por boas ações. Era um rapaz honesto e dedicado, sim, mas tinha um defeito adquirido por experiência própria: flagrara a esposa debaixo do vizinho em plena luz do dia, em sua casa e na sua cama.

Foi num dia em que, curiosamente, o quartel entrara de prontidão por causa de uma turbamulta que provocava estupendo quebra-quebra no centro da cidade. E o PM Deocleciano, já escalado na força de choque, pediu ao superior para ir rapidamente a sua casa, próxima do quartel, pegar o capacete que lá esquecera. Como ele não era operacional, seu deslize fora perdoado. E foi tremendamente desagradável o que lhe aconteceu, porque, no afã de cumprir sua tarefa no menor tempo possível, entrou em casa como um bólido bem na hora em que o casal infiel atingia o clímax do gozo e explodia em êxtase total.

O PM Deocleciano ficou estuporado, estatelado, pasmado, apavorado, vendo sua esposa rebolar e urrar de prazer, além de declarar amor ao vizinho. Ele se sentiu um merda, exasperou-se e instintivamente sacou do revólver disposto a matar o casal infiel ali mesmo, na sua cama. Mas descobriu não ser capaz de matar ninguém, o máximo que conseguiu foi mandar o homem sair de cima da mulher dele e se escafeder, além de ameaçá-lo de morte caso ele comentasse o episódio com a vizinhança. Depois permaneceu de pé, na porta do quarto, com a arma apontada para a esposa, nua, e ainda mais bonita do que ele mesmo imaginava, porém aterrorizada e olhando-o com os bugalhos desorbitados. E ele lhe apontava a arma, e recuava, e apontava, e recuava, até que desabou em pranto, mandando-a sumir de sua vida.

Vencido o estupor e a tristeza, o PM Deocleciano se foi recalcando, aluando e desejando no seu íntimo que todos os homens do mundo fossem cornos. Passou então a tomar conta do comportamento de tudo que era mulher de PM, ligando-se nas fofocas aquarteladas a tal ponto que era sempre a referência quando o assunto era chifre. E como quartel de PM tem intimidade com duzentos milhões de diabos, diversos PMs iam até ele para contar falsas histórias de traição conjugal envolvendo outros PMs seus desafetos. Haja imaginação! Contavam para o PM Deocleciano as mais mirabolantes aventuras extraconjugais que as mentes deles permitiam inventar. E o PM Deocleciano, satisfeito por saber que não era o único corno em quartel, saía espalhando em surdina as fofocas, criando um péssimo clima, sendo ameaçado de morte etc. Ele mesmo, quando passeava pelo pátio do quartel, era sempre alvo de gozações misteriosas. Havia sempre alguém oculto num ponto qualquer mugindo feito boi. O corno aloprava e desafiava todo mundo; porém, ninguém aparecia. Mas, como tudo tem um fim, seu reinado de fofocas terminou, e de maneira bastante curiosa...

Um belo dia adentrou o quartel um monumento de mulher: uma espetacular morena. Os olhos dela, verdes, tremeluziam como duas estrelas em seu rosto fenomenal. Em resumo, a mulher causou espanto em todo o quartel e imaginem o PM Deocleciano quando a viu... Ele a avistou quando ela sumia pela porta do consultório odontológico, e foi bastante para ele, no meio do pátio, se plantar como estátua a esperar a saída daquele avião, momento em que veio cruzando pátio o comandante do batalhão. E o PM Deocleciano, já com a língua coçando, se lhe dirigiu:

– Comandante, o senhor precisa ver a mulheraça que entrou no consultório do dentista. Aliás, o senhor sabia que ele é corno?... Se o senhor quiser saber mais, depois eu lhe conto. Mas, que mulher que tá lá dentro! Feliz é seu dono!...

– Ela é minha esposa!... Apresente-se ao oficial-de-dia...

O PM Deocleciano foi parar na enxovia, depois no hospício, porque, enfim, descobriram que ele estava louco.





 Houve época em que a comida piorou sobremodo. Não estava chegando regularmente ao batalhão o que chamam de repasse de rancho, ou seja, o batalhão demorava a receber sua parcela da verba de alimentação recolhida do Estado e destinada ao repasto diário da tropa. E surgiam veementes reclamações das praças, incrivelmente unidas diante da intragável comida.

– Pô, sacanagem desses putos! A gente sabe que o quartel-general fica com quase todo o nosso dinheiro de alimentação e só manda um pedaço pro batalhão, e mesmo assim nem esse pedaço vem em dia, pô! – estrilou o PM Lageado, sentado na mesa 18.

– Tá certo, mano! Pior é que a gente sabe que pela lei esse dinheiro é pra comprar nossa comida. E é mandado depois de calculado quanto se gasta por homem. Quer dizer, a gente ganha pra comer uma lauta refeição, mas só vem dinheiro pra comer sanduíche ou então esta merda que tá na mesa. São uns putos, mesmo!... – reagiu o PM Espinoso, que se assentara na mesa 19.

– Pô, vocês tão certos! Quando a gente vê alguns reclamando, eles alegam que necessitam do dinheiro pra sustentar a “operacionalidade” da corporação, pra manter rodando as patrulhas, pintar quartéis e tudo mais. Pô, que papo-furado!... A gente tem direito à alimentação de qualidade e o dinheiro é pra isso!... – reforçou o PM Araújo, da mesa 20.

– É mesmo, é tudo sacanagem! Eles dizem que o dinheiro sobra porque trabalhamos em escala e não comemos todos os dias. Daí eles ficam com a maior parte no quartel-general. Pô, quer dizer que na folga nós não temos o direito de comer? E se o dinheiro viesse em Vale Refeição, que a gente até pode trocar por alimentos no mercado, como eles iam fazer? Iam tomar da gente? Vê onde tá a sacanagem? Como vem em espécie, os superiores escamoteiam a maior parte e depois exigem que a gente cumpra regulamentos, leis e o caralho, que sejamos honestos e tal e tal... Mas eles não cumprem lei nenhuma, são todos mãozudos na hora de tomar nossa grana!... – explodiu o PM Vaner, também sentado à mesa 20.

Pronto! Os comentários funcionaram como um rastilho queimando rápido em direção a muitos tonéis de pólvora. E logo se viu a explosão no ambiente do rancho, traduzida em estupendo alarido e numa descontrolada manifestação coletiva que exigiu até mesmo a presença do comandante. Tudo isto feito da maneira mais simples que se possa imaginar, pela via indireta de pressionar sem cutucar nenhuma ferida com vara curta: o corneteiro mandou ao ar o toque de formatura geral...

Todos tiveram que largar a comida e a algaravia recheada de impropérios para entrar rapidamente em forma. E o mais impressionante: depois de deixar a tropa em posição de sentido por bom tempo – todos os homens perfilados como estátuas –, o comandante foi mandando recolher ao xadrez exatamente aqueles que iniciaram a manifestação mediante seus comentários individuais...

Cada um pegou trinta dias de prisão fechada e o grupo ainda teve de enfrentar Conselho Disciplinar. E no final, como todo o quartel esperava, foram excluídos administrativamente, porque no quartel não se brinca de afrontar os basilares princípios da hierarquia e da disciplina nem mesmo quando os reclamantes têm razão...

E para aumentar ainda mais o constrangimento da tropa daquele batalhão, que por sua vez teve seu comandante trocado para aliviar as pressões de baixo para cima, porque não se pode muito evitar que elas ocorram veladamente, um patrulheiro foi assassinado por marginais em tocaia covarde. Aí é que se via, no rancho, como um lugar animado se transforma no mais silencioso dos túmulos. Sim, porque ninguém abria a boca a dizer nada, nem sequer comentar a morte do companheiro. Todos permaneciam na fila com os olhos cosendo o chão. Entravam em quietude e comiam sem fazer qualquer barulho. Só se ouviam as moscas...

E foi assim, com o quartel cabisbaixo, que o tempo correu e foi atropelando aqueles desagradáveis acontecimentos, que se sufocaram diante de outros novos que surgiam. É sempre assim o mundo, é como a água do rio que passa debaixo da ponte e é logo empurrada pela outra água que lhe vem atrás pedindo passagem. E foi assim que se iniciou o drama do PM Dácio, que depois se transformaria em inesperada e impressionante tragédia...







Por questões familiares sem mais solução, o PM Dácio entrou em sério litígio com a esposa. E ela, insidiosamente, veio ao quartel e apresentou contra ele uma queixa de agressão. No dia em que veio, a mulher, bastante bonita e coquete, fez questão de desfilar com o sargento que a atendera, indo com ele almoçar no rancho dos graduados. E o sargento, por acaso, já antes tivera um entrevero com o PM Dácio, que culminara em punição para este segundo.

Além das gozeiras que naturalmente surgiram, inclusive alguns misteriosos gritinhos imitando boi quando passava, o que lhe provocava desconforto, o sargento exagerava em suas mesuras públicas à mulher, que, de modo exagerado, as acolhia diante duma curiosa tropa, especialmente perto do rancho das praças. E, se não bastasse aquele primeiro dia de total constrangimento, outros se seguiram com a mulher visitando o sargento em quartel e com ele desfilando. Tal procedimento já estava tornando pesado o ar militar, mas o casal não se preocupava e continuava na provocação ao PM Dácio, que já nem era visto em lugar nenhum. Escondia-se pelos cantos, não ia ao rancho, evitava conversar, enfim, isolara-se totalmente. E seus companheiros, até os que lhe faziam mangações às escondidas, até eles silenciaram. No fundo, sentiam cheiro de tragédia...

Depois de quinze dias de “apuração” das denúncias da mulher feita pelo sargento, que já a ela se referia em rodas de PM como sua amante, a tropa viu publicada no boletim a punição do PM Dácio por maus-tratos à ex-esposa, acrescida da determinação do comando para instaurar Inquérito Policial Militar. No dia seguinte à publicação, o sargento e a mulher desfilavam pelo pátio, indo em direção ao rancho, enquanto o PM Dácio se preparava para ser recolhido e iniciar o cumprimento da punição. E houve então o trágico desfecho: rápido como um raio, quando o sargento e a mulher passeavam perto da fila do rancho ostentando vitória, o PM Dácio tomou a arma do colega que o escoltava, e como um bólido foi em direção ao sargento e à mulher, e lhes desferiu vários tiros, matando-os instantaneamente; em seguida, suicidou-se.

Não houve tempo para nada. Ninguém teve condições de evitar a tragédia, que logo correu o quartel, saiu pelos portões, foi às ruas, e em pouco tempo já visitava as redações dos jornais e das estações de rádio e tevê. No quartel, ficaram os corpos e o sangue em abundância manchando o piso, desenlace já esperado pela sabedoria da tropa. Do lado de fora, uma imprensa ávida por registrar a sensacional matéria jornalística.

Contudo, o comando do batalhão não permitiu a entrada dos repórteres. Deixou-os do lado de fora e trancou a sete chaves o problema do lado de dentro, até que chegaram os policiais civis, a perícia e o rabecão; e, do mesmo modo rápido com que entraram pelos fundos, agiram em seus labores de fotografar, medir, anotar e recolher os corpos. Depois saíram, ficando o sangue pelo chão. Mas logo um bando de recrutas comandados por um tenente entrou a limpar os vestígios da tragédia, e assim, como num passe de mágica, apagou-se tudo, sumiram todos os vestígios.

Logo após, com os recrutas já marchando em entusiasmada ordem-unida no campo de futebol, finalmente os portões foram abertos à imprensa. Do lado de dentro, um oficial especialista em Relações Públicas esperava os repórteres com seu discurso pronto e acabado. E lhes narrou o que acontecera seca e sucintamente, transformando a tragédia num ato sem importância.

É lógico que os profissionais da imprensa odiaram o oficial que lhes passava a perna. Chegaram a jurar que um dia se desforrariam... Mas isto não era importante no momento. A instituição, sim, é que era, e estava a salvo de mais um escândalo terrivelmente depreciativo a qualquer organização que exista para prevenir o crime, mas que não conseguira fazê-lo nem mesmo intramuros do quartel. Afinal, o oficial e os repórteres eram ali nada mais que efêmeros membros de instituições historicamente conflitantes. Mas a corporação é eterna e precisava ser preservada a qualquer custo. E assim mais uma vez se fez a história oficial em detrimento da realidade. Porque a imagem única que naquele trágico dia ficara à disposição dos fotógrafos e cinegrafistas fora a dos garbosos recrutas marchando, e cantando, e marchando, e cantando, e marchando, e...


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...