“Quem imagina que a imprensa se alimenta de novidades
não tem a menor ideia do que se passa na cabeça de jornalistas. Eles gostam
mesmo é da novidade-padrão. [...] a melhor notícia é aquela que já vem
escrita.” (Olavo de Carvalho, Filósofo. Revista Época nº 154, 30/4/01)
A tragédia se deu
num quartel de Polícia Militar, em qualquer época que se queira sugerir; mas
não importa a época nem qual seja o quartel; nem sei se devo dizer que é
situado no Rio de Janeiro porque também poderia sê-lo em outro lugar, já que há
PMs espalhados por todo o Brasil. Todavia, não posso ocultar que o fato ocorreu
em local próximo ao rancho (refeitório) das praças, apesar de este comentário
nada esclarecer a respeito da história que aqui será narrada.
Dentro de quartéis,
porém, nenhum estranho ao ninho jamais saberá o que lá realmente acontece; sim,
as pessoas de fora só conhecerão as notícias depois de manipuladas ao
bel-prazer do interesse interno, enraizado costume dos que não admitem que alienígenas
saibam quais acontecimentos se insulam cotidianamente em unidades militares.
Enfim, há uma fronteira nítida entre os de fora e os de dentro, como marco
entre dois países belicosos. É mania de caserna, e também um pouco, - ou muito
até, - da velha dissensão entre militares e civis, que é universal, vem de
épocas remotas, e decerto alcançará o futuro. Daí o inelutável cisma...
Contudo, posso-lhes
assegurar que havia no rancho daquele quartel 30 mesas com seis cadeiras em
cada uma delas, nas quais se acomodavam de uma só vez 180 PMs. Mas esta
informação, embora minuciosa, não identificará quais PMs nem suas patentes ou
graduações, nem qual quartel, sem falar que a quantidade de mesas também pode
ser falsa... Demais, PMs atuam geralmente em escalas, e não se conhece aqui nem
o dia nem a escala nem a hora nem nada, o que importa considerar a
inviabilidade de se saber com exatidão onde ocorreram as conversas entre muitos
personagens cautelosamente anônimos, e em dias variados.
Fiquemos, pois,
assim, com estas insanáveis dúvidas, e vamos à história. Mas antes lhes devo
reafirmar que havia 30 mesas devidamente numeradas e simetricamente arrumadas
em ambiente apertado, o que impunha manter pequena distância entre elas, de
modo que se tornava impossível evitar que conversas entre indivíduos e grupos
de cada mesa fossem ouvidas por indivíduos e grupos das demais, tudo ao mesmo
tempo, especialmente por aqueles assentados em mesas contíguas. Infiram, pois,
destes detalhes, a algaravia que se formava, e saibam ainda que eram poucas as
conversas ditas civilizadas, do tipo indagar pela família uns dos outros,
dentre outras manifestações simpáticas, mas geralmente desprovidas de emoção ou
sinceridade. Quanto a isso, é de se sublinhar que os PMs, especialmente praças,
soem ter a alma no peito, e não na cabeça, e muito menos nas entranhas, como
sugeriu um dia a filosofia para classificar guerreiros, pensantes e mulheres
respectivamente. Mas a hipocrisia costuma ser privilégio de pensantes... Bem,
chega de rodeios e vamos ao que interessa.
Na mesa de número 1 sentaram-se
três guarnições de radiopatrulha, ou seja, seis PMs, mas não casualmente.
Programaram a conversa na hora do almoço para combinar uma ação que demandava
perigo, tanto do lado de fora como internamente. Nas ruas, haveria risco de
ferimentos ou morte; no quartel, ameaças de punição caso descobrissem o que ali
parolavam em conluio. Mas
eles estavam resolutos e passaram, então, ao concerto das ações que encetariam
naquela noite.
– E aí, irmãos,
vamos dar um bote no Malha Fina? Acho que hoje temos boa chance; o clima tá bom
pra montar nosso esquema. Vamos botar as radiopatrulhas em fila, igual a
trenzinho, e partir pra mineira... – diz o PM Medina.
– Sei lá! Aquele
tenente Valdez que tá hoje na supervisão não é de dormir. Parece corujinha. Ele
pode melar nosso esquema de arribar do setor pra dar bote e ainda arranjar uma
pica grossa pra nós, daquelas que nem proctologista dá jeito – responde o PM
Patreze.
– Pô, rapaziada,
como fazer a parada sem risco? Risco já sobra de montão! Basta um de nós ganhar
uma carga de ameixa pra zebrar a porra toda! Temos até de combinar isso. Se
algum de nós se der mal, o jeito é ficar o parceiro dele ajudando e os outros
se mandam. Podemos até voltar depois, mas tudo já comunicado à Central de
Operações, álibi armado e todo mundo direitinho no setor. Como é tudo perto, dá
pra desarmar o esquema e a parada terminar bem. Mas tem de ajustar; se não, dá
merda. Em cima da hora, é rabo decidir! – externa o PM Ivano.
Na mesa 2 sentavam-se
os PMs do policiamento a pé e outros componentes de PATAMO. Conversavam
assuntos variados, tanto como os que estavam nas mesas 3 e 4. Os da mesa 3 trabalhavam
internamente, e os da mesa 4
eram enfermeiros e atendentes do setor médico, que existe em todos os quartéis.
– E aí, amizade,
aquele tenente Valdez ainda tá torrando seu saco? – indaga o patameiro Astrix,
da mesa 2, ao seu colega PM Louvação, sentado ao lado.
– Pô, camarada,
você nem imagina. Ele é meio estranho, tem um jeitão semelhante ao do capitão
Silvio – responde o PM Louvação.
– São veados! –
dispara o miliciano Roqueiro, enfermeiro, sentado na mesa 4.
– Quê? Que você
disse aí?... Pô, amizade, cuidado com a taramela!... Não foi isso que eu quis
dizer pô. E vem você se meter no papo e deturpar a conversa, pô! – estranha o
PM Louvação, que entendera ter o colega se referido aos mesmos superiores aos
quais ele antes se reportara.
– Que isso, cara?
Eu não falei nada pra você! Nem sei do que você tá falando! – reage
imediatamente Roqueiro.
– Como não sabe?
Você acabou de dizer que o tenente e o capitão são veados. Você completou meu
raciocínio que era outro totalmente diferente. Como é que não fez? Todo mundo
aqui ouviu o que você disse, pô! – retruca, já meio enfezado, o PM Louvação
sempre metido a valente.
– Olha, cara, nem
sei do que você tá falando! Mas, só pra seu governo, chamei de veados dois
artistas de uma peça teatral que meu amigo viu e tava comentando. Acho que você
só ouviu o que eu disse no final; não manjou que o papo era outro. Mas você é
bem folgado! Não me meti na sua conversa, pô! Você, sim, interrompeu a minha!
Portanto, vá tomar naquele lugar! Tá pensando que só porque você é operacional
tem mais valentia, porra? Cuidado, hein, cara, que sou da saúde, mas não sou
frouxo, não! – atalha o PM Roqueiro bastante alterado.
– Pô, cara, desculpa!
Eu confundi tudo. Por isso é que chiei. Mas não precisa também ofender, não,
que meu negócio não é brigar com ninguém, muito menos com o pessoal da saúde,
porque posso precisar de algum apoio e só me vão receitar injeção... –
descontrai o PM Louvação já bastante preocupado, posto os demais das duas mesas
se estarem olhando em pé de guerra e somente aguardando o desfecho daquela
altercação particular...
Enquanto o
incidente ocorria, o silêncio imperou no ambiente. De repente, todos os
presentes se ouriçaram, porque percebiam que dali poderia sair até tiroteio
entre aqueles dois que apenas misturaram momentaneamente as estações. Mas logo
tudo terminou numa boa gargalhada, principalmente porque o PM Roqueiro,
embarcando no humor do PM Louvação, completou:
– Pô, amizade, não
chamei os dois superiores de veados, não; mas, quem sabe?...
Veio a
descontração, com todos desfraldando estrondosa gargalhada em reação à
bem-humorada sugestão. No fim de contas, insinuar aleivosias contra superiores
em quartéis de qualquer lugar do mundo, e em qualquer tempo, é prática comum
entre subordinados. É a velha história de elite contra massa, de luta entre os
que galgam posição social superior por mérito de inteligência ou berço, e há os
que preferem crer nos músculos, esquecendo-se de exercitar o cérebro e se
fixando teimosamente na camada social mais baixa. Ou então porque não tiveram
nenhuma oportunidade, ou seja, acesso à mobilidade social, como dizem os que
estudam sociologia e vivem por aí bebendo uísque, e, enquanto arrotam em bons
restaurantes, defendem teoricamente os pobres, indigentes e miseráveis. Mas
estes nasceram fornicados e fornicados morrerão, por gerações e gerações que se
proliferam em razão do “crescei e multiplicai-vos” para a garantia do trabalho
braçal. Afinal, é assim que se dá a substituição da mão de obra humana, e
sempre o será, e por todos os séculos e séculos, amém!...
Bem, enquanto nos
distraímos na digressão o rancho do quartel continuou fervilhando em conversas
fechadas entre os integrantes das mesas, porém cruzadas em virtude da exagerada
proximidade entre eles e da surdez generalizada. E assim, sem que os comensais
notassem (será que é direito chamar comedores de rango de quartel de
comensais?...), a algaravia tomara conta do ambiente. Agora todos falavam alto,
e as frases se misturavam como a Torre de Babel trazida ao presente. E nem
precisava misturar idiomas. Bastava a predominância do tal “trauma do
artilheiro”, que já danificara a audição da maioria, aliada à intrínseca
grosseria dos PMs, que de educados não têm lá muita coisa... Mas, não me
entendam mal! Vejam que são homens rudes, de pouca instrução, ou seja, massa
típica de manobra, não muito bem forjada pela sociedade da qual se viram
alijados desde o dia em que ingressaram na PM, ou, na verdade, desde que
nasceram. Exagero?...
Não! Não
exagero!... É só concluir, em vista da tão festejada Carta Magna, que cidadania
é consequente do acesso que todo brasileiro tem, - ou deveria ter, - aos
direitos sociais genericamente destinados aos trabalhadores urbanos e rurais.
Tendo-os, o brasileiro é supostamente cidadão. Digo ainda supostamente porque
aqui as leis não são observadas pelos que ocupam o poder, mesmo que as utilizem
em seus prosélitos discursos na defesa da cidadania para chegarem ao topo do
mando governamental. Por sinal, não há nada melhor que promessa de “cidadania”
para enganar eleitores paupérrimos, semianalfabetos e analfabetos que vivem por
aí levando geral e pancada de uma polícia paupérrima e despida de cultura, como
eles, sem saber o que significa essa palavra bonita (cultura) tão festivamente
propalada pelos que se dizem “de esquerda”...
Sim, são esses
pobres-diabos que resolvem entrar na PM, já que outro emprego não há no mercado
de trabalho. Daí, mesmo sendo cidadãos apenas teoricamente, e porque são civis,
ao ingressarem na PM recebem o título de “servidores públicos especiais”, algo
deveras pomposo, porém enganador, posto a primeira coisa que se torna
inacessível aos desgraçados são os direitos sociais grafados com pompas e
circunstâncias na Carta Magna. A Carta é “Magna” em quê?... “Magna” por quê?...
No fim de contas, quase tudo que nela está gravado depende de leis menores para
efetivamente valer!... Ora!...
Sou misantropo?
Como não o ser em sendo também PM?...
Bem, cá estamos
novamente em digressão, quando o que interessa é explicar as causas do grave
incidente havido um dia naquele rancho das praças de um não identificado
quartel de PM.
– Pô, amigo, não
resisto em fazer uma fofoca – disse o patameiro Fogly, sentado na mesa 2 com
outros parceiros de guarnição e mais três PMs do policiamento a pé.
– Que é isso,
companheiro? Diga logo! Não fique aí fazendo suspense... – reclamou ansioso o seu
colega ao lado, já com os demais das mesas 1, 3 e 4 de antenas ligadíssimas.
Uma fofoca tem
sempre lugar à mesa, tanto de ricos como de pobres, tanto de mulheres como de
homens, e mais ainda quando a mesa é mista. Bem, seja lá como for, imaginem as
lavadeiras na beira de um rio e comparem a um rancho de quartel. Imaginaram?
Garanto-lhes que em quartel as fofocas rolam muitíssimo mais.
– Vou falar! Calma!
Sabe o sargento Parunha, que é casado com aquela...
–... Puta! – disse
ao longe o PM Algur, o que fez explodir outra gargalhada.
– Quê? Quem é puta,
camarada? Como é que você atinge assim a honra de um superior? A mulher do
sargento Parunha é santa. Eu ia dizer que ela é excelente costureira e que
conserta baratinho uma farda. Acho bom você se desculpar, que a brincadeira foi
de mau gosto! – atalhou raivosamente o PM Fogly, quase que gritando ao outro da
mesa 20.
– Ah, camarada, não
me fornique o juízo, não! Nem sei o que você tá dizendo. Quem foi que disse que
eu chamei a esposa do sargento Parunha de puta? Por que eu faria uma grosseria
com o sargento, que é gente da melhor qualidade? Nem sei quem é a esposa dele.
Eu estava aqui me referindo ao traficante George Ivan, dizendo que ele é um
filho-da-puta, pô! – reagiu o PM Algur.
– Mas você falou
alto, pô! – retrucou o PM Fogly já meio sem graça.
– Você é que tá com
os buracos entupidos, pô! Só ouviu o final do que falei! Pergunte só aos
companheiros aqui se não falei duas vezes que o George Ivan é filho da puta. A
não ser que você seja amigo dele... – devolveu Algur.
– Quê? Olhe aqui,
agora eu é que digo que você é filho da puta! Nem conheço você e você vem me
ofendendo, pô!... Vá pro caralho, que acabo tendo um problema com você! Acho
que você quer ter filho comigo, pô!... – devolveu o PM Fogly já de pé querendo briga,
porém logo seguro pelos companheiros de mesa, enquanto, na outra, o PM Algur
também já se encontrava travado em seu ímpeto de avançar contra o descontrolado
PM Fogly.
“Atenção!”, alguém
bradou às pressas ao perceber que vinha vindo o oficial-de-dia em direção
àquele local “sagrado” de repasto diário. E quem gritou fê-lo bem antes de o
tenente Valdez adentrar o rancho, de modo que deu tempo de todos se recomporem
e pararem de vociferar impropérios a torto e a direito uns contra os outros,
porque, na verdade, a discussão generalizara. Mas a presença do superior foi
como se ali aparecesse um mago com sua varinha de condão, e que, num simples
toque, emudecesse a todos. Pois, quando o tenente Valdez ocupou o umbral de
entrada do rancho, nem mesmo as moscas tiveram coragem de se manifestar com
seus impertinentes zumbidos. Mas aproveitaram o momento em que os PMs estavam
petrificados, em silêncio de túmulo, e caíram gostosamente em seus pratos
esquecidos pela imposição hierárquica. E o tenente Valdez, percebendo que
estava perdendo seu precioso tempo, mandou-os que ficassem à vontade e se
retirou. Quanto menos problemas no seu serviço, melhor...
O rancho é lugar de
confraternização, mas também o é de contendas veladas ou ostensivas. Ali se
ajuntam amigos e inimigos, não há como evitar, porque todos trabalham em
horários rígidos e não controlam seus passos. Por isso, - e por mais que o
evitem, - há sempre uma forte possibilidade de inimigos comerem na mesma mesa,
um de cara para o outro, ciscando os pés embaixo das mesas como touros bravios,
porém se contendo com temor de punição. Ali o que realmente segura a barra de
ambos os lados é a necessidade do emprego, senão muitos já se teriam
engalfinhado como cães e gatos. E diante dessas inevitáveis coincidências, há
mesas barulhentas e silenciosas, há alaridos e conversas surdas, e há sempre
mal-entendidos em função da natural algaravia que predomina depois de um tempo.
– E aí, meu amigo,
como foi aquela parada do malote? Você se deu bem, hein?... – insinua invejosamente
o PM Osias sentado na mesa 26 e se dirigindo ao PM Vasconça, com assento na
mesa 25.
– Pô, cara, que
papo-furado é esse? – rebate o PM Vasconça.
– Ah, maninho, não
vem que não tem! Todo mundo tá sabendo que sua guarnição, naquele assalto a banco,
levou a melhor e saiu abonada. O pior é que Jarbas morreu e a viúva tá
necessitando de ajuda. Há quatro bacorinhos com as boquinhas abertas pedindo
comida. Você bem que podia chegar junto! – insiste o PM Osias.
– Não sei do que
você tá falando. E vai ter que provar, porque vou comunicar. Nunca teve malote
nenhum, pô! Você acha que é possível praça pegar malote com superior
comandando?... – defende-se o PM Vasconça.
– Rapaz, veja bem o
que você tá dizendo!... Quem tava lá era o capitão Figueira, que é gente boa e
não arma em cima de praça, não. Eu sei que vocês camuflaram o malote. Se ele
tivesse apanhado o malote dividiria a grana e a viúva estaria coberta e
alinhada, sem passar necessidade. Por isso sei que vocês deram um balão no
superior, deram uma volta legal nele... – devolve o PM Osias.
– Olha, malandro,
você vai ter de provar o que tá dizendo. Vou sair daqui direto pra comunicar e
pedir pra apurar sua acusação – ameaça o PM Vasconça, já revoltado.
– Vá em frente!
Comunique, se você tem peito! – provoca o PM Osias.
O PM Vasconça
levanta-se e sai de cara amarrada. Sua resolução indica que aquele bate-papo
nervoso terminará em inquérito, porque ali ninguém mais duvida de que o PM Vasconça
fora diretamente ao seu comandante de companhia para se queixar do PM Osias. Ah,
mas até hoje está todo mundo esperando o desfecho da ameaça, que, entretanto,
não houve e jamais haverá, pois é claro que o PM Vasconça não dera parte de
coisíssima nenhuma. Recolhera-se em evidente culpa. Porém, não jogou fora a
raiva, ela ficaria guardada em seu íntimo contra aquele que o desmascarara
publicamente. E assim, no rancho, mais uma grave inimizade se construiu pra
toda a vida.
Mas havia coisas
boas no rancho, havia bons e saudáveis bate-papos, havia o companheirismo de
muitos que se organizavam de tal modo na fila que se tornavam cativos em
determinadas mesas. Geralmente esses PMs trabalhavam internamente, e por isso
conseguiam se organizar com mais eficiência e se isolar dos que eles chamavam
de “pipas-voadas”, ou seja, PMs que até em se respirar o ar perto deles
significava perigo.
Havia, sim, uma
nítida rixa entre os PMs da atividade-meio e os da atividade-fim, com os
segundos sempre insinuando covardia em relação aos primeiros, e estes devolviam
as ofensas designando os outros como venais e matadores. E, por mais impetuosos
que fossem os segundos, os ditos operacionais – ou “fodões” –, os burocratas –
ou “bundões” – acabavam ganhando a contenda, com os valentes se chegando e se
desculpando individualmente.
A razão era
simples: os “bundões”, mesmo que efetivamente o fossem, permaneciam mais tempo
em quartel, e por isso se tornavam íntimos de seus superiores,
ampliando-se-lhes o poder de retaliar os “fodões”, porquanto podiam interferir
nas escalas de serviço e levá-los ao desespero metendo-os em serviços extras. E
sempre os piores, como, por exemplo, o policiamento de locais interditos. É só
imaginar um patrulheiro de repente ficando de pé, e no frio, e na chuva, e na
canícula, a tomar conta de uma loja incendiada até vir a perícia. Em muitos
casos a perícia leva dias e semanas para chegar, posto não haver vítimas e seu
trabalho visar apenas a comprovação das causas do incêndio, principalmente para
efeito de pagamento do seguro.
Pior ainda é ser
escalado extraordinariamente em presídios, com os “fodões” dando de cara com
bandidos que antes trancafiara. Não que guardassem medo, mas é desagradável o
constrangimento, sem falar na possibilidade de uma prisão decorrente de ação
normal se transformar em inimizade pessoal, sempre um perigo para ambos os
lados. Quanto mais impessoal o trabalho do policial, melhor; quanto maior a
distância entre o policial que prendeu e o facínora que foi preso, melhor.
Como se vê, o
rancho, lugar destinado ao repasto das praças e de oficiais, na verdade se
transforma em coração do quartel, pois ali se concentram dramas, tragédias,
conflitos, amizades, inimizades etc. Mas nem por isso é lugar desagradável,
porque lá os PMs se comportam instintivamente; portanto, não percebem claramente
esses detalhes. A eles o que interessa, mesmo, é comer, em primeiro lugar, e
reagem naturalmente diante das acaloradas discussões que sempre surgem. É ali,
na verdade, que acabam “lavando as roupas sujas” do dia a dia do quartel. E é
ali que muita vez o tempo esquenta...
Todavia, qualquer
desavença entre os esfaimados PMs que se concentram para exercitar o
sacratíssimo direito de encherem o bucho, qualquer que seja a desavença ela
sempre termina do mesmo jeito que começou: entre eles. E, por mais que o calor
esquente no ambiente, a ponto de fazer surgir um superior, tudo vira discussão
sobre futebol...
Sim, os rachas
futebolísticos são sempre uma saída rápida e honrosa que deixa os superiores
atordoados, pois é certo que estes sabem que o assunto era outro. Mas, e daí?
Como desvendar os segredos da tropa? Como penetrar na sabedoria coletiva do PM?
Como?... Bem, na verdade, ninguém, nenhum superior será capaz de tal proeza,
assim como a recíproca é verdadeira, ou melhor, nem tanto assim, porque as praças
são bem mais sábias...
Perguntariam,
então: “Como ‘não letrados’ podem ser mais sábios que os ‘letrados’?” Eu lhes
responderia que os superiores, em número bem menor, disputam entre si um poder
que não interessa às praças, estas que não disputam poder algum, pelo menos
diretamente. Por isso os superiores são mais isolados e desconfiados entre si e
buscam entre as praças os amigos que lhes serão fiéis por toda a vida, salvo
algum erro de escolha... Em compensação, pagam o preço dessas amizades, pois
alguns de seus segredos se descortinam ao conhecimento dos que passaram a
confiar suas alegrias e temores, confiança que muita vez abrange até mesmo a
vida privada.
Bem, dada a
explicação, o resto é pura matemática, porque o somatório dos eleitos como
amigos de todos os superiores é a tropa toda. Daí se deduz: quem conhece os
segredos da elite é a massa, e sempre se pode tirar proveito disso. E não
somente em quartel, porque ninguém pode negar que muitas patroas são submissas
às empregadas que lhes conhecem as mazelas conjugais, dentre outros exemplos
que preencheriam aqui muitas laudas.
Alguém duvida que no
quartel a tropa manda bem mais? Diriam alguns que nem tanto assim, porque o manu
militari é terrível. Consegue-se sobrepor muita vez às amizades,
especialmente quando se trata do superior e o amigo do inimigo dele, o que
provoca, enfim, a mais violenta dissensão em todos os níveis da hierarquia,
permitindo concluir que são poucas as verdadeiras amizades no militarismo,
especialmente o praticado pelas PMs. Nada sei em relação aos militares de
verdade, das Forças Armadas, porque de lá nunca me contaram nada.Que fiquem em
paz! Não se deve cutucar onça com vara curta...
Ora bem, cá no
nosso rancho, que novamente saiu de cena, mas que agora a ela torna, cá no
rancho de PMs, sempre heterogêneos em idade, cultura, interesse, amizade, além
de torcerem por times diferentes, há mesmo é muito diz-que-me-diz-que, muitas
fofocas e muito mal-entendidos como os até aqui narrados. E outras confusões
ocorrem não somente pelas falhas auditivas da maioria, mas também pela vontade
de muitos em provocar aqueles com os quais são naturalmente cismados. Briga de
irmão, diriam alguns. Será mesmo?...
– Irmão, que tal
sairmos sábado pra farrear? – indaga o PM Peixeira ao PM Ribeirão.
– Numa boa, irmão,
acontece que eu tô duro feito coco. Só se a gente armar uma paradinha durante o
serviço – sugere o PM Ribeirão.
– Tudo bem, irmão,
mas armar o quê? Tô meio sem imaginação hoje. E acho que pega mal tomar algum
do portuga. Ele já deu o dele esta semana. O que você sugere? – indaga o PM Peixeira.
– Bem, irmão, tamos
nessa RP faz tempo. Somos manos de fé, mesmo! Por isso, acho que a gente podia
dar um bote no bicheiro do setor, no Macieira, aquele baixinho com pinta de
curumim... – sugere o PM Ribeirão.
– Tá maluco, irmão!
Se a gente partir pra essa amanhã tamos na rua da amargura, transferido, ou até
preso por motivo bobo. Isto é cutucar vespeiro – apavora-se o PM Peixeira.
– Que nada, irmão!
Uma prensa bem dada ainda funciona. Aquele puto fica escrevendo jogo do bicho
na nossa cara e ainda tira uma onda com a gente. Vou fazer ele engolir as pules
e tomar a grana dele. Digo mais: se ele folgar, levo ele pro rodo, falou? –
exaspera-se o PM Ribeirão.
– Que isso? Calma
aí, irmão! – diz o PM Peixeira. – Vamos pensar em algo menos perigoso. Você
sabe que bicheiro é tão fodido como nós, não tem nada com nossos problemas e
tem ordem de não dar nada pra gente e, mesmo assim, dá. Por isso, acho que é
furada. Mas podemos partir pra cima do banqueiro. Ele sempre almoça no nosso
setor, naquele restaurante de luxo. Vamos lá. Se ele não estiver almoçando com
alguma autoridade a gente chega e dá um toque na hora que ele for embarcar pra
partir. Vamos ficar na paquera e puxar um papo com os seguranças dele. É tudo
da casa, o banqueiro não vai escapulir. Acho que nem precisa pedir nada, que
ele vem e dá. É assim que eles fazem, pô! – completa o PM Peixeira o seu
discurso.
– Tá certo, irmão,
tem razão. Pra que arranjar confusão, se temos essa chance de ouro nas mãos.
Então, tá combinado. Vamos cercar o homem. Mas, se ele não aparecer pra
almoçar, aí, irmão, desculpe, mas vou pegar é o Macieira mesmo! – encerrou o PM
Ribeirão com a concordância constrangida e visivelmente temerosa do PM Peixeira.
Não sabiam eles, ou
melhor, não queriam saber que as mesas e cadeiras daquele rancho tinham
ouvidos: o bate-papo entre os PMs já afetados pela surdez e com um tom de voz
mais alto, logo chegou aos ouvidos atentos do comandante da companhia, que se
encontrava a cem metros de distância deles... Não levou nem meia hora para que
ambos se vissem a pé numa porta de colégio, em local ermo. Só um recado, que
eles entenderam muito bem, apesar da simpatia do sargenteante, que lhes
garantia ser apenas uma urgente necessidade de suprir o policiamento.
– Pô, irmão, não
disse a você que meter o bedelho nessa área dava merda? Viu? Nem saímos do
quartel e dançamos ao som de samba enredo com passo de bolero. Marchamos de
passo errado. Acho que temos que ir ao capitão pra dizer que era tudo
brincadeira. Pô, irmão, o chefe é legal, só adianta o nosso lado. Pisamos na
bola, mas acho que ele gosta da gente e vai acreditar que a gente não ia fazer
nada daquilo... – disse o PM Peixeira ao colega Ribeirão durante o jantar.
O PM Ribeirão
concordou e discursou igualmente, ambos observando de soslaio onde estavam os
“ouvidos” do comandante da companhia, que, por essa hora, eles já sabiam se
tratar do PM Heráclito, postado na mesma posição do almoço como quem não quer
nada, mas com os ouvidos cosidos na fala da dupla. Sim, escutava por delegação
de seu superior... No dia seguinte, lá estava o sargenteante escalando-os
novamente na radiopatrulha e esbanjando um simpático sorriso. Mas não deixou de
lhes dar um rápido e direto recado:
– Da fruta que
vocês gostam há muita gente que come até o caroço. Mas vocês se recuperaram a
tempo. E saibam que as paredes do rancho têm ouvidos...
É óbvio que
sabiam... O rancho é lugar agradável, porém muita vez perigoso. Assim eles
aprenderam a lição e passaram a ouvir mais que falar naquele recinto onde
muitos se alimentam comedidamente e outros se chafurdam em gula. Pois uma coisa
é boa em rancho de PM: pode não haver muita qualidade, mas a quantidade é
liberada. E deste modo muitos PMs vão entupindo as coronárias até o infarto,
sem falar nos acidentes vasculares cerebrais: haja PM todo torto por aí
afora!...
– Cara, você nem
sonha quem eu vi entrando num motel... – fofocou o PM Deocleciano, logo
despertando a atenção de todas as mesas que rodeavam a dele, de número 10.
O PM Deocleciano
trabalhava interno e adorava tomar conta da vida alheia. Mas não se interessava
por ilicitudes da tropa. Não, ele não se interessava por nada disso, muito
menos por boas ações. Era um rapaz honesto e dedicado, sim, mas tinha um
defeito adquirido por experiência própria: flagrara a esposa debaixo do vizinho
em plena luz do dia, em sua casa e na sua cama.
Foi num dia em que,
curiosamente, o quartel entrara de prontidão por causa de uma turbamulta que
provocava estupendo quebra-quebra no centro da cidade. E o PM Deocleciano, já
escalado na força de choque, pediu ao superior para ir rapidamente a sua casa,
próxima do quartel, pegar o capacete que lá esquecera. Como ele não era
operacional, seu deslize fora perdoado. E foi tremendamente desagradável o que
lhe aconteceu, porque, no afã de cumprir sua tarefa no menor tempo possível,
entrou em casa como um bólido bem na hora em que o casal infiel atingia o
clímax do gozo e explodia em êxtase total.
O PM Deocleciano
ficou estuporado, estatelado, pasmado, apavorado, vendo sua esposa rebolar e
urrar de prazer, além de declarar amor ao vizinho. Ele se sentiu um merda,
exasperou-se e instintivamente sacou do revólver disposto a matar o casal
infiel ali mesmo, na sua cama. Mas descobriu não ser capaz de matar ninguém, o
máximo que conseguiu foi mandar o homem sair de cima da mulher dele e se
escafeder, além de ameaçá-lo de morte caso ele comentasse o episódio com a
vizinhança. Depois permaneceu de pé, na porta do quarto, com a arma apontada
para a esposa, nua, e ainda mais bonita do que ele mesmo imaginava, porém
aterrorizada e olhando-o com os bugalhos desorbitados. E ele lhe apontava a
arma, e recuava, e apontava, e recuava, até que desabou em pranto, mandando-a
sumir de sua vida.
Vencido o estupor e
a tristeza, o PM Deocleciano se foi recalcando, aluando e desejando no seu
íntimo que todos os homens do mundo fossem cornos. Passou então a tomar conta
do comportamento de tudo que era mulher de PM, ligando-se nas fofocas
aquarteladas a tal ponto que era sempre a referência quando o assunto era
chifre. E como quartel de PM tem intimidade com duzentos milhões de diabos,
diversos PMs iam até ele para contar falsas histórias de traição conjugal
envolvendo outros PMs seus desafetos. Haja imaginação! Contavam para o PM
Deocleciano as mais mirabolantes aventuras extraconjugais que as mentes deles
permitiam inventar. E o PM Deocleciano, satisfeito por saber que não era o
único corno em quartel, saía espalhando em surdina as fofocas, criando um
péssimo clima, sendo ameaçado de morte etc. Ele mesmo, quando passeava pelo
pátio do quartel, era sempre alvo de gozações misteriosas. Havia sempre alguém
oculto num ponto qualquer mugindo feito boi. O corno aloprava e desafiava todo
mundo; porém, ninguém aparecia. Mas, como tudo tem um fim, seu reinado de
fofocas terminou, e de maneira bastante curiosa...
Um belo dia
adentrou o quartel um monumento de mulher: uma espetacular morena. Os olhos
dela, verdes, tremeluziam como duas estrelas em seu rosto fenomenal. Em resumo,
a mulher causou espanto em todo o quartel e imaginem o PM Deocleciano quando a
viu... Ele a avistou quando ela sumia pela porta do consultório odontológico, e
foi bastante para ele, no meio do pátio, se plantar como estátua a esperar a
saída daquele avião, momento em que veio cruzando pátio o comandante do
batalhão. E o PM Deocleciano, já com a língua coçando, se lhe dirigiu:
– Comandante, o
senhor precisa ver a mulheraça que entrou no consultório do dentista. Aliás, o
senhor sabia que ele é corno?... Se o senhor quiser saber mais, depois eu lhe
conto. Mas, que mulher que tá lá dentro! Feliz é seu dono!...
– Ela é minha
esposa!... Apresente-se ao oficial-de-dia...
O PM Deocleciano
foi parar na enxovia, depois no hospício, porque, enfim, descobriram que ele
estava louco.
Houve época em que
a comida piorou sobremodo. Não estava chegando regularmente ao batalhão o que
chamam de repasse de rancho, ou seja, o batalhão demorava a receber sua parcela
da verba de alimentação recolhida do Estado e destinada ao repasto diário da
tropa. E surgiam veementes reclamações das praças, incrivelmente unidas diante
da intragável comida.
– Pô, sacanagem
desses putos! A gente sabe que o quartel-general fica com quase todo o nosso
dinheiro de alimentação e só manda um pedaço pro batalhão, e mesmo assim nem
esse pedaço vem em dia, pô! – estrilou o PM Lageado, sentado na mesa 18.
– Tá certo, mano!
Pior é que a gente sabe que pela lei esse dinheiro é pra comprar nossa comida.
E é mandado depois de calculado quanto se gasta por homem. Quer dizer, a gente
ganha pra comer uma lauta refeição, mas só vem dinheiro pra comer sanduíche ou
então esta merda que tá na mesa. São uns putos, mesmo!... – reagiu o PM Espinoso,
que se assentara na mesa 19.
– Pô, vocês tão
certos! Quando a gente vê alguns reclamando, eles alegam que necessitam do
dinheiro pra sustentar a “operacionalidade” da corporação, pra manter rodando
as patrulhas, pintar quartéis e tudo mais. Pô, que papo-furado!... A gente tem
direito à alimentação de qualidade e o dinheiro é pra isso!... – reforçou o PM Araújo,
da mesa 20.
– É mesmo, é tudo
sacanagem! Eles dizem que o dinheiro sobra porque trabalhamos em escala e não
comemos todos os dias. Daí eles ficam com a maior parte no quartel-general. Pô,
quer dizer que na folga nós não temos o direito de comer? E se o dinheiro
viesse em Vale Refeição,
que a gente até pode trocar por alimentos no mercado, como eles iam fazer? Iam
tomar da gente? Vê onde tá a sacanagem? Como vem em espécie, os superiores
escamoteiam a maior parte e depois exigem que a gente cumpra regulamentos, leis
e o caralho, que sejamos honestos e tal e tal... Mas eles não cumprem lei
nenhuma, são todos mãozudos na hora de tomar nossa grana!... – explodiu o PM Vaner,
também sentado à mesa 20.
Pronto! Os
comentários funcionaram como um rastilho queimando rápido em direção a muitos
tonéis de pólvora. E logo se viu a explosão no ambiente do rancho, traduzida em
estupendo alarido e numa descontrolada manifestação coletiva que exigiu até
mesmo a presença do comandante. Tudo isto feito da maneira mais simples que se
possa imaginar, pela via indireta de pressionar sem cutucar nenhuma ferida com
vara curta: o corneteiro mandou ao ar o toque de formatura geral...
Todos tiveram que
largar a comida e a algaravia recheada de impropérios para entrar rapidamente
em forma. E o mais impressionante: depois de deixar a tropa em posição de
sentido por bom tempo – todos os homens perfilados como estátuas –, o
comandante foi mandando recolher ao xadrez exatamente aqueles que iniciaram a
manifestação mediante seus comentários individuais...
Cada um pegou
trinta dias de prisão fechada e o grupo ainda teve de enfrentar Conselho
Disciplinar. E no final, como todo o quartel esperava, foram excluídos
administrativamente, porque no quartel não se brinca de afrontar os basilares
princípios da hierarquia e da disciplina nem mesmo quando os reclamantes têm
razão...
E para aumentar
ainda mais o constrangimento da tropa daquele batalhão, que por sua vez teve
seu comandante trocado para aliviar as pressões de baixo para cima, porque não
se pode muito evitar que elas ocorram veladamente, um patrulheiro foi
assassinado por marginais em tocaia covarde. Aí é que se via, no rancho, como
um lugar animado se transforma no mais silencioso dos túmulos. Sim, porque
ninguém abria a boca a dizer nada, nem sequer comentar a morte do companheiro.
Todos permaneciam na fila com os olhos cosendo o chão. Entravam em quietude e
comiam sem fazer qualquer barulho. Só se ouviam as moscas...
E foi assim, com o
quartel cabisbaixo, que o tempo correu e foi atropelando aqueles desagradáveis
acontecimentos, que se sufocaram diante de outros novos que surgiam. É sempre
assim o mundo, é como a água do rio que passa debaixo da ponte e é logo
empurrada pela outra água que lhe vem atrás pedindo passagem. E foi assim que
se iniciou o drama do PM Dácio, que depois se transformaria em inesperada e
impressionante tragédia...
Por questões
familiares sem mais solução, o PM Dácio entrou em sério litígio com a esposa. E
ela, insidiosamente, veio ao quartel e apresentou contra ele uma queixa de
agressão. No dia em que veio, a mulher, bastante bonita e coquete, fez questão
de desfilar com o sargento que a atendera, indo com ele almoçar no rancho dos
graduados. E o sargento, por acaso, já antes tivera um entrevero com o PM Dácio,
que culminara em punição para este segundo.
Além das gozeiras
que naturalmente surgiram, inclusive alguns misteriosos gritinhos imitando boi
quando passava, o que lhe provocava desconforto, o sargento exagerava em suas
mesuras públicas à mulher, que, de modo exagerado, as acolhia diante duma
curiosa tropa, especialmente perto do rancho das praças. E, se não bastasse
aquele primeiro dia de total constrangimento, outros se seguiram com a mulher
visitando o sargento em quartel e com ele desfilando. Tal procedimento já
estava tornando pesado o ar militar, mas o casal não se preocupava e continuava
na provocação ao PM Dácio, que já nem era visto em lugar nenhum. Escondia-se
pelos cantos, não ia ao rancho, evitava conversar, enfim, isolara-se totalmente.
E seus companheiros, até os que lhe faziam mangações às escondidas, até eles
silenciaram. No fundo, sentiam cheiro de tragédia...
Depois de quinze
dias de “apuração” das denúncias da mulher feita pelo sargento, que já a ela se
referia em rodas de PM como sua amante, a tropa viu publicada no boletim a
punição do PM Dácio por maus-tratos à ex-esposa, acrescida da determinação do
comando para instaurar Inquérito Policial Militar. No dia seguinte à publicação,
o sargento e a mulher desfilavam pelo pátio, indo em direção ao rancho,
enquanto o PM Dácio se preparava para ser recolhido e iniciar o cumprimento da
punição. E houve então o trágico desfecho: rápido como um raio, quando o
sargento e a mulher passeavam perto da fila do rancho ostentando vitória, o PM
Dácio tomou a arma do colega que o escoltava, e como um bólido foi em direção
ao sargento e à mulher, e lhes desferiu vários tiros, matando-os
instantaneamente; em seguida, suicidou-se.
Não houve tempo
para nada. Ninguém teve condições de evitar a tragédia, que logo correu o
quartel, saiu pelos portões, foi às ruas, e em pouco tempo já visitava as
redações dos jornais e das estações de rádio e tevê. No quartel, ficaram os
corpos e o sangue em abundância manchando o piso, desenlace já esperado pela sabedoria
da tropa. Do lado de fora, uma imprensa ávida por registrar a sensacional
matéria jornalística.
Contudo, o comando
do batalhão não permitiu a entrada dos repórteres. Deixou-os do lado de fora e
trancou a sete chaves o problema do lado de dentro, até que chegaram os
policiais civis, a perícia e o rabecão; e, do mesmo modo rápido com que
entraram pelos fundos, agiram em seus labores de fotografar, medir, anotar e
recolher os corpos. Depois saíram, ficando o sangue pelo chão. Mas logo um
bando de recrutas comandados por um tenente entrou a limpar os vestígios da
tragédia, e assim, como num passe de mágica, apagou-se tudo, sumiram todos os
vestígios.
Logo após, com os
recrutas já marchando em entusiasmada ordem-unida no campo de futebol,
finalmente os portões foram abertos à imprensa. Do lado de dentro, um oficial
especialista em
Relações Públicas esperava os repórteres com seu discurso
pronto e acabado. E lhes narrou o que acontecera seca e sucintamente,
transformando a tragédia num ato sem importância.
É lógico que os
profissionais da imprensa odiaram o oficial que lhes passava a perna. Chegaram
a jurar que um dia se desforrariam... Mas isto não era importante no momento. A
instituição, sim, é que era, e estava a salvo de mais um escândalo terrivelmente
depreciativo a qualquer organização que exista para prevenir o crime, mas que
não conseguira fazê-lo nem mesmo intramuros do quartel. Afinal, o oficial e os
repórteres eram ali nada mais que efêmeros membros de instituições
historicamente conflitantes. Mas a corporação é eterna e precisava ser
preservada a qualquer custo. E assim mais uma vez se fez a história oficial em
detrimento da realidade. Porque a imagem única que naquele trágico dia ficara à
disposição dos fotógrafos e cinegrafistas fora a dos garbosos recrutas
marchando, e cantando, e marchando, e cantando, e marchando, e...



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