segunda-feira, 1 de maio de 2017

A BOAZUDA




 Todos a cobiçavam. Quando ela passava pela rua meneando seu corpo escultural, – em provocativa voluptuosidade, – os homens se espantavam e as mulheres a miravam com indisfarçável invídia. Para ela, a rua era passarela, e não lhe era possível ocultar a beleza, tão deslumbrante que nenhum senso moral travaria o ímpeto de mirá-la em gulodice, eles, ou em despeito, elas.
Carla, mulher belíssima, pertencia exclusivamente a Mauro, – O Felizardo, – como se lhe referiam os frustrados e as invejosas. Era vendedor. Elegante e simpático, ele sabia que sua mulher era desejada pelos vizinhos e absorvia com cavalheirismo a inevitabilidade do fato. E assim seguia Mauro pela mesma rua em que morava, – a passarela de Carla, – metido em impecável terno e levando nas mãos sua inseparável pasta; mas, diferentemente de Carla, a todos ele cumprimentava, não sem um ar íntimo de superioridade.
Mauro representava empresas importantes e residia na melhor casa da rua herdada dos pais. Por isso havia, sim, uma ponta de ira nos homens por vê-lo bem-sucedido fora e dentro da casa onde reinava a sua mulher, que, pouco tempo depois, apresentava sinais da primeira gravidez, fazendo-lhe desaparecer momentaneamente as curvas fenomenais. Os homens apostavam que ela retornaria ao antes; as mulheres torciam para que nas belas pernas dela surgissem varizes, e que sumissem definitivamente as curvas que a esculpiam em forma de Vênus. Mas, quem apostou no azar de Carla, perdeu: ela ressurgiu mamãe e mais linda que antes.
Carla não gostava de externar vaidade além dos limites naturais. Usava roupas de qualidade, porém comuns, sem ornamentos que a pudessem confundir com alguma perua. Mas, no fundo, e até de raiva devido às piadinhas impertinentes que ouvia das concorrentes, volta e meia surgia com uns modelitos acentuando-lhe as magníficas curvas, especialmente as suas coxas. Assim enraivecia as vizinhas e fazia aumentar os ais de seus atentos espectadores: “Que pernas! que corpo! que rosto! que belas metades de limão! que mulher!” Assim reagiam os marmanjos enquanto as ciumentas futricavam: “Que bisca!”
Puro despeito, sim, posto a linda mulher ostentar comportamento irrepreensível em meio às piadas e aos desvairados elogios que lhe eram dirigidos. Ela picava o passo, indiferente, da casa até o ponto do ônibus, do ponto do ônibus até a casa, sem olhar para os lados. Não havia, na verdade, a quem cumprimentar, a cena era a mesma de sempre, os homens cobiçando-a em olhares lascivos e as mulheres futricando em corroída inveja.
Diziam algumas que Carla era coquete. Não era bem assim, ela até tentava dissimular seus requebros maravilhosos. Contudo, mesmo que colocasse apenas sandálias nos seus belos pés de cinderela, mesmo assim suas cadeiras meneavam em deslumbre e sensualidade e despertavam a imaginação dos desejosos: sonhavam um dia tê-la na cama ou em qualquer lugar. Se pusesse salto alto, aí é que Carla se tornava inigualável. Era decisão da mãe-natureza; sim, a mãe-natureza lhe determinara a postura exageradamente feminina e sensacionalmente linda...
Corria o tempo, o filho crescera e lhe adviera outra gravidez e o segundo parto. Ninguém mais duvidava, porém, de que Carla retornaria estupenda. Nem por isso lhe faltaram pragas e pragas, que, no entanto, - e mais uma vez, - resultaram em efeito contrário: as invejosas não viam surgir naquele corpo escultural verrugas, varizes, pelancas, celulite e os cabelos brancos que nelas, nas invejosas, lhes sobravam. Em Carla, ao contrário, tudo era beleza, exuberância, sensação.
Mauro, O Felizardo, era, sem embargo, o mais invejado do bairro. Mas nunca se esquecia do sorriso franco e da delicadeza no trato com todos os vizinhos. Por isso muitos e muitas até se envergonhavam por cobiçar ou invejar a esposa dele. Porém, não havia como evitar, a beleza dela era irresistível, e os homens capitulavam diante de sua passagem: “Que boazuda!” Ou as mulheres futricavam: “Que bisca!”
Tudo inútil, Carla não destinava a ninguém nem um distraído olhar. Era uma pedra de gelo ambulante; sua austeridade instituía um profundo abismo entre o céu que ela representava para seus admiradores e o inferno para as concorrentes. Mas a todos nada sobrava além de seus próprios olhares lascivos ou despeitados. Somente isto, nada mais que agonia de um platonismo crudelíssimo.
O tempo, porém, inexoravelmente corria, e os homens se conformavam com seus insucessos. Carla, em contrário, cumpria seu destino de mulher bonita. Andava com os filhos nas mãos, molduras de sua rara beleza, e “os” e “as” da rua sempre à espreita: ou nos portões, ou nas janelas, ou nos discretos postigos, ou em qualquer outra fresta que se lhes surgissem, formando descaradas fileiras de cobiçosos e invejosas a apreciarem a passagem da boazuda.
Carla era como o vinho: quanto mais velha ficava, mais qualidade apresentava ao mundo. Era diamante lapidado pela mãe-natureza e tornado brilhante a tremeluzir e irradiar luxúria. E começava a atrair a cobiça e a inveja de gerações mais novas, dos rapazes espinhentos e calejados de tanto... por causa dela, e das moças sem unhas, de tanto roê-las em despeito.
Foi desse modo que Carla finalmente alcançou seus 50 anos; os filhos cresceram e casaram; o marido perdeu os cabelos e ganhou proeminente barriga; e lhes vieram os netos. Carla, contudo, eterna se tornara, a idade lhe parecia ser de mulher de trinta. Não havia nela cabelos brancos, nenhuma ruga na pele sedosa que lhe moldava o corpo ainda escultural. Sim, continuava uma delícia de mulher à vista de adolescentes a cobiçá-la e de meninas a invejá-la. As despeitadas adolescentes, como suas mamães, morriam de raiva ao deparar com aquela beleza eternizada na mulher de quase 60 anos. Sim, Carla não conhecera ainda a decrepitude; mantinha inalterado o andar das belas pernas a carregar a escultura talhada por Vênus, e o olhar no infinito em altivez de rainha. Foi quando lhe faltou o marido...
Viúva, linda, desacompanhada no mundo, Carla, porém, jamais permitiu que alguém se lhe aproximasse. Foi mulher de um só homem, apenas de Mauro, O Felizardo, e soube esperar o próprio fim com a mesma dignidade que sustentara em toda a sua vida de boazuda, até que lhe chegou a vez de também deixar o mundo que tanto atordoou com sua beleza. Sim, o coração a surpreendeu sem aviso. O músculo envelhecera e enfraquecera dentro dela. Ela, do lado de fora, não sentia nada e continuava linda e sensual. Mas o coração decidira encerrar sua trajetória. E ele, o músculo, mesmo pequeno, venceu o corpo da bela mulher. Assim Carla se foi, levando consigo a sensualidade que nela se eternizara. E não lhe faltaram admiradores e invejosas no enterro, ainda fisgando gulosamente o invólucro inerte, ou rogando surdas pragas em vez de orações. Deste modo Carla ao pó tornou, era agora e somente a efêmera depositária da deslumbrante beleza que jamais lhe poderia ser eterna...

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