É preciso dizer que Papa-Maike é PM?...
Na
briosa ingressei, em 1950, como soldado raso. Naquela época ela era
oficialmente denominada Força Policial do Estado do Rio de Janeiro. E de
soldado raso não saí, mais por ausência de linhagem familiar e menos por
comodismo, mas de certa maneira conformado com a falta de oportunidade interna
de ascensão hierárquica.
Mas,
honestamente, devo-lhes confessar que me ajustei em tarefa assaz interessante.
Era eu cassineiro dos oficiais no quartel-general da Força Policial, em
Niterói, sede do comando da milícia fluminense (não confundir com as atuais
“milícias”) ainda em tempos distantes da inaudita fusão entre os Estados do Rio
de Janeiro e da Guanabara (1975).
Ora
bem, deixemos de lado a política; e logo me enfio a elucidar o significado da
palavra cassineiro, para que os leitores não fiquem por aí a imaginar algum
palavrão. Mas, observando-a, tem-se a imediata impressão de que cassineiro
deriva de cassino, o que nos pode remeter à falsa ideia de que a Polícia
Militar mantivesse alguma casa de jogatina no seu âmago. Nada disso, longe
disso, apesar de todos saberem que a jogatina sempre correu solta em quartel,
especialmente em tempo de prontidão ou para ajudar a empurrar as horas durante
o serviço interno e noturno. Ou então por puro vício, mesmo... Por isso,
cassino trata-se tão-somente de termo, – mais aristocrático que militar, – a
designar o refeitório dos oficiais, também categorizado como “praça d’armas”,
este muito pouco usado; porém, em sendo uma ou outra designação, era tudo para diferenciar
o local daquele de repasto da soldadesca, da arraia-miúda, mais especificamente
do povoléu fardado, da ralé militarizada: rancho. Acham que não? Bem, então vou
entrar a dizer, rapidamente, como tudo começou, em 1835...
Em 14
de abril de 1835, foi criada a Guarda Policial da Província Fluminense, com
efetivo fixado em 241 homens entre oficiais e praças de pré. E se definiu como
seria preenchido esse efetivo de humanos. Sim, o efetivo era de humanos, mas os
métodos da época em recrutá-los nem tanto, especialmente no caso das praças de pré
assim categorizadas, e que mais pareciam presas de alguma caçada, como vocês
verão.
No
caso dos nobilíssimos oficiais, eram eles nomeados entre os voluntários avulsos
do Exército, – oficiais que completavam seu tempo de serviço e eram, nesses
casos, dispensados da farda – todos da aristocracia, é óbvio. Ou então, ainda
no caso dos oficiais, poderiam ser eles voluntários nomeados pelo presidente da
Província, depois de escolhidos dentre os também aristocráticos cidadãos civis
aptos às funções, recebendo as honrarias e as prerrogativas da patente. Em
resumo, eram investidos no irresistível brilho dos ouropeis que ornavam o
fardamento.
Já o
efetivo de praças de pré seria suprido por cidadãos brasileiros na faixa etária
entre 17 e 40 anos de idade, voluntários ou recrutados entre a ralé. Segundo a
história, o recrutamento era feito “na forma da lei”, isto é, “a pau e corda”,
como diziam outrora. E mais: como voluntários eles se obrigavam a permanecer
por dois anos na ativa; porém, no caso dos recrutados na marra do muque eram
quatro anos de dureza imperativa. E foi assim, “a pau e corda”, que muitos
foram dar com os corpos na briosa Guarda Policial da Província Fluminense. E
nunca se soube se as almas daqueles voluntários caçados vieram juntas com seus
corpos. É bem possível que não, e também não nos é difícil conceber que tipo de
gente vinha na ponta da corda e na pancada intimidativa do porrete. Se as
paredes do quartel ouvissem e falassem, reproduziriam a realidade mais ou menos
assim: “Olha, vosmecê não quer, mas agora vosmecê é miliciano! Tome a farda,
vista-a, e fique por quatro anos! Se desertar é crime!”, ao que o assim
recrutado respondia: “Sim, nhonhô!”
Era deste
modo, sem tirar nem pôr, ou, como dizia o texto legal, “na forma das leis
vigentes”. Colocando em miúdos, era como se um “criminoso” fosse condenado a
quatro anos de prisão, sendo obrigado a cumpri-los fardado de miliciano, não me
parecendo necessário explicar quão rigoroso era o militarismo naquela distante
época da nossa história...
Acham
que não?... Pois eu lhes digo que uma das punições mais abrandadas era a
pranchada (batida com a parte mais larga da espada ou do espadim) nos lombos
das faltosas praças de pré. Dependendo da falta, tome uma, ou vinte, ou trinta,
ou sei lá quantas pranchadas mais. Que tal?
Que
tudo seja invenção minha, poderão alguns cismar. Mas não! Juro-lhes que não
estou inventando nada! Era efetivamente assim por conta da lei nº 16, de 14 de
abril de 1835, assinada pelo presidente da Província do Rio de Janeiro, Joaquim
José Rodrigues Torres, que criou nos tempos Del-rei a milícia fluminense e
instituiu os critérios ora descritos. E não o fizera para que os milicianos
tivessem uma boa-vida, posto logo em 1842 a milícia fluminense, no mês de
agosto, já lutar na pacificação de duas províncias sublevadas, – Minas Gerais e
São Paulo, – enfrentando os milicianos ferimentos e mortes. Tempo “bom”,
aquele, em que o miliciano se ia à intestina contenda para morrer, depois de
recrutado “a pau e corda”...
Não
lhes parece estranho? E se eu lhes dissesse que em 1950 os milicianos não mais
eram trazidos “a pau e corda”, mas que bastava ao recrutador, geralmente
oficial, inspecionar-lhes os dentes e o físico para que os agora somente
voluntários se integrassem à briosa? Acreditariam? Não? Ora bem, pois lhes
garanto que comigo assim ocorreu. Apresentei-me voluntário, dentre algumas
dezenas de outros, e o oficial me inspecionou como a um burro a ser comprado,
tanto no seu significado substantivo como no alegórico...
Por
tudo o que foi contado, – e por muito mais que poderia sê-lo, mas não o farei
por amor à brevidade – vocês não acham que a palavra cassineiro tem um quê de
aristocrática? Não acham, também, que vem de longe o predomínio da aristocracia
na andança irreversível de um tempo pouco mudado? Por favor, digam que sim!...
Eia!... Creio, portanto, que não exagerei ao lhes dizer que o cassino dos
oficiais tem vínculo histórico com a aristocracia brasileira, já que os oficiais-militares,
desde os tempos Del-rei, eram integrantes dela. Daí cassino, um nome pomposo.
A
república chegou, porém em nada mudou a cultura dos quartéis, e somente se
acentuou esse aspecto da diferença social que, por sinal, predomina até hoje.
Sim, no fundo da mais isenta avaliação, os oficiais ainda se situam no plano da
“Casa-Grande”, enquanto as praças moram na “Senzala” contemporânea (ou na
favela, que é a mesma coisa). Mas isto não é motivo de preocupação. Afinal,
toda a sociedade continua dividida em partes desiguais e em proporções que
dispensam comentários...
Ora
bem, não vamos gastar muita prosa com ideologias. O que efetivamente desejo é lhes
contar os fatos que ocorriam em quartel, ou que eram por mim percebidos no
cassino dos oficiais, geralmente por estar com os ouvidos captando as mais
variadas conversas entre aqueles que compunham a casta da Polícia Militar do
antigo RJ, no momento da descontração do repasto diário no quartel-general.
Devo-lhes
dizer, todavia, que me chamavam pelo nome de guerra Aroeira somente alguns mais
austeros, porque a maioria se me dirigia por um apelido talvez até mais
adequado: Marche-Marche. Apelidavam-me assim, mais por culpa deles que, em meio
ao tumulto das impertinentes chamadas duma ponta a outra do amplo cassino,
obrigavam-me a correr para cá e para lá, num paranoico vaivém a atender a todos
ao mesmo tempo. Não me era possível, diriam muitos, ou alguns, ou poucos. E eu
responderia que me era possível sim, não sem um hercúleo esforço de minha
parte, eu, que cumpria tipo assim uma corrida de cem metros rasos, e por muitas
vezes, durante o almoço dos aristocráticos oficiais.
–
Marche-Marche, quero água! – brada o tenente, lá da mesa do canto.
–
Marche-Marche, traga-me o bife! – urra o major, preterindo ao tenente.
–
Marche-Marche, vem cá! – prevalece a voz baixa do coronel.
Imaginem
os senhores que eu ficava como “cu de breu” disparado a esmo em festa junina. E
corria a atender ao tenente, e voltava a meio caminho a atender ao major, e
revirava a direção a atender ao coronel, como um verdadeiro buscapé queimando as
botinas entre as dezenas de mesas sem destino certo. Ou, mais apropriadamente,
com destino a quem mais imperava no ambiente: ao coronel.
Vocês
têm ideia de como brada um oficial dando ordem? Claro que muitos de vocês
passaram pelo serviço militar obrigatório – não aquele dos tempos Del-rei, mas
de certa maneira semelhante, porque até hoje o serviço militar é insolitamente
obrigatório, ou seja, “a pau e corda” legalizados. Sim, passaram pelo serviço
militar obrigatório, e por isso têm perfeita noção daquilo que aqui lhes falo;
mas não pensem que cá estou gratuitamente criticando essa cultura do brado
autoritário de superiores para com (ou contra) os subordinados, praxe nas
casernas e no militarismo mundo afora. É coisa do militarismo, mesmo. Mas às
vezes aquele que mais grita com os subordinados tem o coração melhor do que o
daquele que fala macio, mas a ocultar na maciez uma índole de mau-caráter.
Sim,
prezados leitores. Não é pela força do grito do militar que se conhece o homem
que está por detrás dos galões ou das insígnias. Porém, e seja como for, se
gritar chamando escolha sempre o mais graduado, o de maior patente no ambiente,
e vá até ele. Nunca escolha o tenente em lugar do major, e não vá a este em
lugar do coronel. Seja um “cu de breu” consciente da hierarquia militar. E
assim eu o era, até que todos estivessem bem atendidos como o gado a buscar no
cocho a ração disputando prioridade quase que a tapas. Não havia empuxões entre
eles, no sentido literal, mas o empuxado era eu, como se fora todos me
empurrando para lá e para cá e um só tempo. Mesmo assim, valia a pena a troca
desse tratamento pela oportunidade de ligar minhas curiosas antenas nas
conversas e nos fatos, tanto no cassino como no quartel.
Certa
vez fui atender a um coronel recém-promovido. Narcisista como ele só, magnífico
loiro de meia-idade, olhos azuis e forte como um touro, o coronel jantava
isolado, sentado na mesa a ele destinada. Não era costume coronéis fazerem o
repasto noturno em quartel, mas ali estava ele, o magnífico coronel,
admirando-se a si próprio, mirando embevecido os ombros e as insígnias douradas
– os seus ouropeis. Fora promovido ao posto máximo naquela semana e estava para
lá de envaidecido. “Dos coronéis irrompem, como timbres soberbos, soberbas
cabeças de águias.” (Antero de Figueiredo).
De
caminho nesta história, devo-lhes confessar uma coisa que nunca entendi: na
Polícia Militar não tem general; o posto mais elevado é o de coronel. Mas
chamavam o quartel do comando-geral de Quartel-General da PMERJ (“QG da PMERJ”).
Designam-no assim até hoje, e não compreendo o paradoxo, já que quartel-general
é valhacouto específico de generais, que não existem na Polícia Militar. Deixem
passar a reflexão para depois, não sem antes conferir no Aurelião, ou confiar
no que lhes digo para ganhar tempo e para que eu possa pressurosamente atender
ao nosso recém-promovido coronel, que já está a nervosamente me convocar à sua
mesa de repasto:
–
Marche-Marche, vem cá!
– Fite
bem os meus ombros! – determinou-me. – E complementou com uma indagação, eu
perfilado e já tremendo na presença dele: – Que vê?
– Oh,
meu bom coronel! Vejo três estrelinhas douradas, bem bonitas!
– Só?
– Só,
meu bom coronel. Que mais eu poderia ou deveria ver, segundo sua sábia
percepção? – ironizei sem que ele, metido em sua vaidade, o percebesse.
–
Olhe melhor, Marche-Marche! Diga-me: como são as estrelas? – insistiu, e eu, mais
que nervoso, e sem entender nadinha, respondi-lhe:
– São
douradas, e estão em fila nos ombros. São seis...
Ele
me interpelou:
–
Não, Marche-Marche!
–
Não? Que mais então, meu boníssimo coronel? Não estou conseguindo ver nada além
do que vi, com os olhos que a terra me há de comer; e lhe digo sinceramente na
minha santa ignorância. Ou, melhor dizendo, sei que elas indicam que o senhor
foi merecidamente promovido a coronel – tentei me safar assim.
Inconformado,
ele retorquiu-me:
–
Não, Marche-Marche. Já vi que você não tem nenhuma visão profunda. Veja só, vou
clarear-lhe um pouco a mente. As estrelas têm cinco pontas, cada uma formando
uma pirâmide irregular e enfeixando-se todas numa base circular, que contém outra
estrela. – Notou esses detalhes?
–
Agora estou notando, meu bom coronel. Mas, perdoe-me meu bom superior, continuo
sem entender...
–
Imagino, imagino... Vou explicar-lhe um pouco mais para que você finalmente
entenda aonde quero chegar, e alcance a importância do que lhe quero
transmitir. – Vê que a estrela maior apresenta uma textura enrugada, e que as
linhas de remate dos triângulos que formam, aos pares, as cinco pontas da
estrela são polidas?
–
Isso eu vejo! – respondi-lhe. – Mas, meu bom coronel, a comida está
esfriando... – completei na esperança de terminar meu martírio, sem saber que
ele apenas começara-o.
–
Leve-a de volta, traga-me outra! Mas deixe-me completar esta parte da
explicação tal qual lhe dou! – exclamou. – Vou repetir o que lhe disse antes: –
Você notou que no alto da estrela maior há uma base circular a apoiar uma
estrela menor?
–
Estou vendo, meu bom coronel.
–
Então veja só, Marche-Marche, veja que a estrela menor tem cinco pontas
voltadas exatamente para os prolongamentos das linhas centrais das pontas da
estrela maior. E veja que ela, a estrela menor, é totalmente lisa, sem rugas na
textura, mas também colocada em alto-relevo. Na realidade, uma é contígua à
outra, a menor à maior, a maior à menor. – Diga-me se entendeu?
–
Pouco mais, pouco menos, meu bom coronel. – Mas a comida...
– Vá!
Vá!... Leve logo a comida! Vá aquecê-la e volte rápido, que lhe explicarei o
significado disso tudo! Não, não, não quero mais esta comida! Traga-me outra
diferente!
Fui
rápido, já com os nervos em incontroláveis repelões. Fui, sim, porém fitando
obliquamente o coronel enquanto dele me afastava. E ele, preso ao assunto que
antes me discorrera, mirava e carinhosamente alisava as estrelas de seu ombro
esquerdo com o fura-bolos da mão direita. “Estaria maluco?”, pensei comigo.
De
caminho, já de volta, encorajei-me. E excogitei em lhe indagar o significado
daquilo tudo, e ele, o afetado, ainda distraído, estava agora fitando os
reluzentes ombros, ora o esquerdo, ora o direito, como se um não fosse tal qual
o outro. “Irra!...”, somente pensei, é claro.
–
Pronto, meu bom coronel! A comida está quentinha.
–
Marche-Marche, diga-me uma coisa: que faziam na vida seu pai, seu avô e seu
bisavô? – indagou-me enquanto elegantemente comia, garfo e faca em postura de boas
maneiras e guardanapo levado aos cantos e ao centro da boca em gestos medidos.
– Meu
bisavô eu não o conheci, mas sei que era escravo. Meu avô e meu pai eram
lavradores em Campos dos Goytacazes. Lá nasci e vim para cá, menininho. Ambos
trabalhavam no corte da cana-de-açúcar em fazendas das usinas. Eram boias-frias.
–
Hum, entendi... Veja só, Marche-Marche, meu bisavô era aristocrata de alto
quilate, um nobre da corte imperial. Vovô e papai seguiram a carreira militar,
vovô no Exército e papai aqui na briosa. Meu saudoso avô chegou a Marechal e
deixou bela herança. Papai tornou-se coronel e culminou comandante-geral neste
mesmo quartel. Vê aquela mesa maior?...
–
Sim, meu bom coronel. É a mesa do comandante-geral.
– É a
mesma em que papai se assentou durante oito anos, até que a enfermidade e a
morte interromperam-lhe a carreira e a vida. Você tem dúvida de que chegará o
dia em que me sentarei naquela cadeira, hein, Marche-Marche?
– Não
meu bom coronel! Tenho certeza disso! – concordei rápido, mas pensando,
curioso, naquelas misteriosas estrelas. – E, mesmo com certo temor,
arrisquei-me em indagar-lhe sobre o tema principal que ele mesmo iniciara: –
Mas, meu bom coronel, e as estrelas, que significam?...
– São
símbolos, Marche-marche! São símbolos!...
– Símbolos?
De quê?...
– De poder, Marche-Marche... De inteligência,
Marche-Marche... De cultura, Marche-Marche... De
linhagem familiar, Marche-Marche... De histórias de glórias militares,
Marche-Marche... Vá, Marche-Marche! Vá rápido buscar o café!
Confesso
que me assustei com o maluco, mas acabei compreendendo o recado dele: o afetado
se deixava estar comparando-se a mim, ele no alto e eu cá embaixo da escada
social, nem mesmo galgando o primeiro degrau. As estrelas, quais fossem
douradas, quais fossem prateadas, quais fossem de lata vagabunda, apenas
serviram de motivo à sua galhofada social. Sim, poderia ele ter escolhido um
mero botão de sua impecável farda e o desfecho seria o mesmo. Coitado de mim,
cuja única ascensão social que tive na vida foi a de sair do andar de baixo, do
rancho da soldadesca, para servir aos sargentos, ainda embaixo, e, ao final de
muitos anos, chegar ao meu posto máximo de cassineiro da oficialidade, no andar
de cima.
Histórias
de glórias militares?... Curiosa, bem curiosa, a afirmação do coronel... Ora, a
não ser que ele se estivesse referindo à Guerra do Paraguai, como, aliás, todos
os demais faziam para passar o tempo sempre vazio de acontecimentos externos
que justificassem a existência da Força Policial... Daí eles ficavam rememorando
os feitos heroicos dos antepassados, lidos em livros velhos das estantes dos
quartéis antes e depois do repasto do meio-dia e na falta de novos e bons
livros a lhes distrair as mentes com algo mais atraente. Mas, ociosidade,
afetação e narcisismo à parte, ali aconteciam coisas muitíssimo curiosas, como
certa vez...
Certa
vez, numa das mesas do cassino se deixavam ficar quatro majores, que entraram a
conversar alto entre eles. Três deles, eu os conhecia bem. Eram uns safados de
boa estirpe que só viviam de pilhérias com os demais majores e até com alguns
tenentes-coronéis contemporâneos de academia. E coitados dos capitães e dos
tenentes, que sofriam deveras com aquele trio de traquinas. O outro major que
completava a mesa, ao contrário, era um pacato oficial que pouco falava, muito
inocente, e de quando em quando alvo de chacotas até das praças; mas em
cochichos à parte... E entraram os três a conversar animadamente, com o outro
apenas escutando em quietude. E eu de ouvidos cosidos na prosa, já imaginando
que boa coisa dali não sairia. E todos no cassino também...
–
Baixinho, diga-me cá, com toda sinceridade, mas com toda sinceridade mesmo!...
Você já fez meia quando era criança? – indaga o major que tinha o apelido de
Careca.
– Mas
é lógico, Careca! – responde o Baixinho, que assim era chamado pelos demais
devido a sua pouca altura. – E lhe digo mais: fiz meia muitas vezes e não tenho
vergonha de falar – completou.
–
Gostei da firmeza! Você é igual a mim, que também fiz meia muitas vezes quando criança!
– devolve o Careca, que completa indagando do outro, conhecido como Pescador,
se ele gostava do esporte...
– E
você, Pescador, já fez meia quando era criança?
–
Ora, careca! Você não tem outro assunto?... Não quero falar nisso, mas já que o
jogo é aberto, digo-lhe, e ao Baixinho, que fiz também, e muitas vezes. Nada
demais, coisas de criança...
E
assim ficaram, com toda a plateia observando. Nunca vi tanto ouvido colado no
ar aguardando o desfecho, incluindo-se o sisudo comandante-geral, sentado em
sua mesa de repasto, até que o Careca, o mais safado dos três, encaixa a
indagação endereçada ao compenetrado e silencioso major:
– E
você, meu amigo?... Já fez meia quando criança?
E
este levantou o braço direito e o tímido fura-bolos para cima, a indicar
quantidade, e respondeu meio sem jeito:
– Só
uma vezinha, com meu primo...
A
gargalhada foi ouvida a quilômetros de distância, deixando o pobre do major em
desconfortável situação. Logo a notícia correu os quartéis, no nosso famoso e
temido “Boletim do Soldado”, espécie de central de fuxicos internos cuja
existência nenhum comandante, por mais rigoroso que fosse, conseguia evitar.
Saibam que o “Boletim do Soldado” ganha fácil de quaisquer outras modalidades
de bulícios que se conhecem na prática e na ficção.
Também
cabe aqui explicar o que designei por “Academia”. Antes de existir a Escola de
Formação de Oficiais, conhecida pela sigla EsFO, havia o Curso Profissional
(CP). Neste último ingressavam sargentos para conquistar o direito ao
oficialato. Por isso houve uma época em que os oficiais formados na EsFO
conviveram com aqueles outros oriundos da tropa, e que se formaram no CP,
muitos ocupando postos hierárquicos e comando superiores. Por isso é que, de
quando em quando, acontecia de grupos heterogêneos se sentarem juntos à mesa de
repasto, ocasiões em que se afloravam os preconceitos, muita vez em tom de
brincadeiras como a que contei. E nem sempre o que soava inocente de fato
era-o...
Relembrando
o paradoxo do “Quartel-General”, que deveria ser “Quartel-Coronel”, verdade é
que o dito cujo possuía dois andares. Embaixo funcionavam diversos setores,
além do Batalhão de Serviços Auxiliares, cuja sigla era BSA. Aliás, - e como
vocês sabem, - militares adoram siglas, simplificam tudo de modo a não precisarem
se dedicar ao trabalho de pensar... E no meu quartel existiam muitas pessoas
interessantes, tais como o tenente Mangueira, figura que merece rápida
descrição. Imaginem um sujeito grande, de meia-idade, gordo do tipo balofo,
farda relaxada e vasto bigode a lhe disfarçar a feiura, a barba sempre por
fazer... Sim, sim, ele era assim!... Mas era sobretudo um bonachão, o tenente
Mangueira, apesar de semianalfabeto, voluntário vindo de longe, quiçá daqueles
tempos do “pau e corda”.
Sempre
ao se iniciar o expediente o BSA formava sua tropa no imenso pátio do quartel.
E nós todos, perfilados, a ouvirmos o Boletim da PM, não aquele outro, fofoqueiro,
mas este formal mecanismo de comunicação à tropa. Após a leitura, diante do
comandante do BSA, que era um coronel, a tropa desfilava, alternando-se a cada
dia os oficiais no comando da tropa. E chegara o dia do tenente Mangueira,
sempre uma surpresa. E ele, garboso, – apesar de sua figura até certo ponto
grotesca, mais para humor do que para qualquer seriedade militar, – ele comandou
primeiramente “sentido!”; em seguida, “ombro-Arma!”; e se apresentou ao coronel
pedindo-lhe permissão para deslocar a tropa em continência àquela autoridade
militar. Permissão concedida, ele comandou: “Direita... Volver!” Com este
brado, a tropa rodopiou em posição lateral ao comandante, para seguir marchando
até o ponto em que deveria retornar na marcha-batida para a continência. Então
o tenente Mangueira, em comovente empolgação, bradou num vozeirão: “Ordinário,
marche!”
E lá se
foi a tropa, uma enorme minhoca, seis colunas de homens batendo forte os pés no
chão (plac, ta plac, plac, ta plac...) ao som do rataplã e em direção ao espaço
de onde deveria voltar: em frente das portas já abertas da alfaiataria, que
davam para o pátio. Naquele ponto, o tenente Mangueira deveria – mas não o fez
– comandar “em direção à esquerda, marche!”, para que a tropa girasse como um
leque, o primeiro homem da coluna da esquerda marchando no mesmo lugar,
enquanto a primeira fila de soldados abriria e fecharia o leque até o ponto em
que a tropa deslocaria em retorno, já em linha reta, em direção onde se deixava
ficar o coronel a esperar os cumprimentos em continência. Mas o pobre-diabo do
tenente Mangueira esqueceu-se de como emitir o tal comando, e a tropa foi em
frente, rumando, inexorável, em direção às portas da alfaiataria. Desesperado,
o tenente Mangueira pulou na frente da tropa, de braços abertos em cruz,
gritando:
–
BSA, Ô ô ô! BSA, ô ô ô!... Ô ô ô, BSA! Ô ô ô, BSA!...
Os
safados dos soldados não obedeceram ao inexistente comando da “manada” e
atropelaram o exasperado tenente, enfiando-se na alfaiataria, deste modo causando
o maior pandemônio. Foi estupendamente cômica a cena, o coronel dobrando-se com
as mãos espalmadas a pressionar a barriga, rindo às bandeiras despregadas, e
com ele todos aqueles que assistiam à inusitada consequência de um mero
esquecimento. E mais hilariante foi a reação da tropa. Imaginem mil homens em
uníssonas gargalhadas. Imaginaram?...
O
episódio foi o assunto do mês no “Boletim do Soldado”, já que nada mais
ocorrera nos dias seguintes, ficando o quartel restrito às garbosas formaturas
da tropa, que venciam as horas matutinas e aguçavam os estômagos daqueles
milicianos que não logravam conquistar dispensa para cuidar de “coisas
externas”; ou que simplesmente desapareciam a serviço doméstico de algum
oficial. Neste último caso – hum!... – valiam seu peso em ouro os pedreiros,
eletricistas, carpinteiros, bombeiros, pintores etc.
Os
demais, ou ficavam literalmente coçando o saco, ou eram escalados para algumas
insólitas tarefas, dentre as quais a de servirem como improvisados cobradores
de bondes, por empréstimo à “SERVE” (sigla da estatal que administrava o
transporte do povoléu em bondes que cruzavam Niterói e São Gonçalo). Tempos
bons!...
Eis
uma história muito contada em quartéis policiais militares, de tal modo que nem
se sabe mais se é verdadeira ou inventada. Mas não importa, vale aqui
registrá-la mais ou menos como foi por mim ouvida um dia no rancho... Era uma
sexta-feira. No quartel, estava de serviço um corneteiro conhecido por suas
habilidades em elevar até à boca a sua pinga de sempre. Em suma, um pé de cana incorrigível
e muito amigo dum capitão que lá servia, eis que se conheciam desde a infância.
E o oficial se demonstrava habitualmente preocupado com o amigo corneteiro e
beberrão.
Sexta-feira,
como já disse, às duas horas da tarde, o capitão se deixava estar postado na
varanda do andar de cima quando avistou seu amigo e lhe chamou pelo nome. O
corneteiro para ele olhou, e o capitão fez dois gestos, a indagar se o amigo
parara de beber: primeiro levou à boca a mão direita espalmada, com o polegar
indo e vindo da boca à frente, no ar, e da frente à boca, em movimentos
alternados; depois, entrou a cruzar os braços em frente do corpo, com as mãos
espalmadas para baixo, imitando o clássico gesto de parar alguma coisa.
Em
resumo, o capitão perguntava ao corneteiro, por gestos medidos, se ele, o
corneteiro, parara de beber. Mas ele, o desavisado, entendeu tudo errado: ao
primeiro gesto, interpretou-o como tocar a corneta; ao segundo, interpretou-o
como o toque de encerramento do expediente. E foi o que ele fez, ato contínuo,
não dando tempo de nada.
Foi o
maior rebuliço em quartel, com a tropa largando os diversos serviços e se
escafedendo rápido, e o capitão gritando o engano, e os oficiais saindo das
repartições a tentar saber o que houvera, e o comandante-geral espumando de
raiva porque encerraram sem a sua ordem o expediente às duas horas, quando o
seria normalmente às cinco da tarde. Não houve jeito e conserto: o expediente
naquela sexta-feira encerrou-se às duas...
Os
leitores poderão estranhar essa incidência de alcoolismo em quartéis de PMs.
Mas já houve épocas em que a cachaça era servida como repasto aos faxineiros,
conforme se fez publicar numa Ordem do Dia do Coronel Rodrigues da Silva
Travassos, datada de 9 de maio de 1896:
“Dora em diante as praças sentenciadas e
para sentenciar não terão direito, nos dias de festa nacional, aos
extraordinários fornecidos às outras praças, nem nos dias comuns à ração de sobremesa
no jantar. A aguardente só será fornecida àquelas praças que, sendo presas,
estiverem no serviço de faxina.”
Segundo
alguns boletins antigos que andei lendo, entre o serviço do café da manhã e o
almoço há provas de que, pelo menos até o ano de 1903, a cachaça fazia parte da
alimentação da tropa tanto como o feijão e o arroz, sendo legalmente adquirida
para fins de consumo pelos milicianos. Num dos boletins que li encontrei a
seguinte ordem publicada:
“Sr. Ten Cel Cmt manda publicar, para
conhecimento do Btl. e devidos efeitos o seguinte:
1º – De acordo com as ordens estabelecidas,
foi ontem (15 de novembro) distribuído às praças que trabalham nos reparos do
quartel, meio litro de aguardente, fornecida pela agência do Btl.” (16 de
novembro de 1903 – Diversas ordens)”.
Ou
outra publicação extraída do mesmo boletim:
“6º
– De acordo com a 2ª observação da tabela de gêneros em vigor na Brigada, foram
ontem distribuídos às praças, que tomaram parte na parada (de 15 de novembro),
trinta litros de aguardente, saídos da agência do Btl.”
Acreditem,
caros leitores: se eu fosse anotar todas as histórias de paus-d’água daquela
época haveria de gastar muitas horas e laudas. E no cassino? Quantas vezes os
oficiais me faziam sinais convencionados para que eu lhes providenciasse uma
discreta dose da pinga como se fora água? E alguns repetiam a degustação em
quantidades de arrepiar...
Como
lhes disse, comecei a servir no rancho das praças, mas daquela forma coletiva,
tipo presídio, de encher os pratos da soldadesca em longas filas. O chefe do
rancho, chamado de aprovisionador, era um capitão velho de idade, ainda do
tempo do “pau e corda”. E a fila, ele a percorria recomendando: “Óia ocês
aí!... Sordado tem que trazê a canicrinha de alumino, senão num come, não!” Não
seria nenhum exagero jurar que era assim que ele falava. Certa vez, lá estava a
fila, bem comprida, e a soldadesca fuxicando, uns chamando os outros por
apelidos, algo muito comum nos quartéis. E o capitão, ao ver um miliciano
gritar ao seu parceiro – “Canarinhôoo!...” – estrilou: “Óia aí, o sordado que
chamá o otro por apilido num vai cumê, não!” Exatamente ao terminar a frase,
passou por ele seu (dele) ordenança e ele assim se lhe dirigiu: “Tico-tico, num
vai imbora sem dar graxa na minha butina, não, ó, hein!...”
E eu
sendo por ele chamado de Marche-Marche, dentre muitos milicianos igualmente
conhecidos apenas por antonomásias... É, não havia como evitar essa prática que
começava comigo, já apelidado por todos os comandantes-gerais e demais oficiais
aos quais servi no cassino.
A
partir daí, nada impedia a validade dos apelidos, alguns que provocavam até
contendas, por desgosto, de PMs que se exasperavam ao serem vítimas de alguma
galhofa com seu nome, o seu labor ou sua figura física. Diziam no “Boletim do Soldado”
que isso ocorria porque a ociosidade é mãe de todos os vícios...
Esta
correu no “Boletim do Soldado” na época em que eu já estava como cassineiro dos
oficiais. Foi no Primeiro Batalhão de Caçadores, onde é hoje a sede do 7º
batalhão da PMERJ, em Alcântara,
São Gonçalo. O quartel fica na rua principal. Defronte à entrada, do lado
oposto, há uma rua que dá para uma colina, transversal à principal, hoje
bastante movimentada. Nesta rua, distante talvez uns cem metros do quartel,
havia um bicheiro conhecido como Seu Antônio, homem velho e aleijado. Lá na
casa dele quase todos os milicianos iam fazer uma fezinha no jogo do bicho. Até
os oficiais também cultivavam o hábito de tentar a sorte com os números no
“ponto” de Seu Antônio. Mas eis que um dia a polícia civil lá estava a prender
Seu Antônio. Os milicianos assistiam à ação da coirmã da porta do quartel,
todos indignados por ver o bicheiro entrando em cana. E houve a inusitada
reação: por ordem dum oficial, que sempre arriscava a sorte com o velho
bicheiro, os PMs foram até lá e prenderam os policiais civis por “invasão
armada de área militar”, levando-os todos a ferros para o quartel.
Foi o
maior rebuliço, até que o delegado e o comandante chegaram a um acordo.
Soltaram o velho e marcaram um futebol de confraternização acompanhado de lauto
almoço no quartel, é lógico que regado a muita cerveja. E a paz voltou a reinar
entre as duas instituições, sendo justo esclarecer que nessa época a Polícia
Militar era aquartelada, como tropa militar, sem atribuições de policiar as
ruas. E, segundo dizem, Seu Antônio escreveu Jogo do Bicho naquele mesmo lugar
até morrer...
No
militarismo tudo é escrito. Existia essa prática desde o império, assim como
continua a vigorar na cultura profissional da Polícia Militar, até hoje, esse
procedimento de comunicação denominado “parte” (fulano deu parte, beltrano deu
parte, sicrano deu parte etc.), que contém informações básicas de algum fato
pretérito. Por conta dessas comunicações, há histórias inacreditáveis. Mas elas
ocorreram mesmo, por mais que os leitores estranhem ou desconfiem que não. Dá
até para jurar por todos os santos e santas...
Na
Escola de Formação de Oficiais havia um cadete que era tão rigoroso, mas tão
rigoroso que, certa vez, achando que cometera uma falta disciplinar, – somente
por ele presenciada ou sentida na pele, e mais ninguém, – ele simplesmente
comunicou ao seu comandante a falta que entendeu ter cometido, a fim de que
fosse punido... Deu parte de si mesmo, algo até então inédito nos anais dos
fuxicos internos. E, como não poderia deixar de ser, alguns o reputaram maluco.
E no
Batalhão de Polícia Rodoviária, que até hoje recolhe animais nas estradas, um
sargento comunicou, por escrito, – deu parte, como já expliquei, – que a
guarnição que ele comandava apreendera três cavalos, sendo um deles “égua”... E
outro PM deu parte da apreensão de “três carneiras”... E mais outro deixou de
comunicar a falta de um PM porque, ao conhecer o nome dele (Washington), preferiu
perdoar-lhe a falta... e ainda seria o mesmo PM muitas vezes “perdoado” por
seus superiores...
Na
Escola de Formação de Oficiais o comandante avisara aos cadetes que não mais
aceitaria desculpas das guarnições de serviço caso o campo de futebol fosse invadido
por cavalos soltos na cidade à procura de capim verde. A partir da
recomendação, todos os cadetes oficiais-de-dia zelavam no sentido de manter os
portões (ou porteiras) sempre fechados. Mas eis que um dia um cadete bobeou e
os cavalos invadiram o campo, formando aquele espetáculo irritadiço aos olhos
do comandante. E o cadete, para se livrar da punição que decerto viria, quis
transferi-la aos cavalos, e deu parte informando que “os cavalos invadiram o
campo sem autorização deste oficial-de-dia”, e que “eram reincidentes em faltas
daquela natureza”... Foi preso por dupla falta: pela parte que deu dos cavalos
como se fossem humanos e pela asnice que cometeu...
Há
muitas histórias que não decorreram de partes, mas foram parar no “Boletim do Soldado”
e lá ficaram para sempre. Na Polícia Militar, como em qualquer organização
militar, há o padre capelão. Na nossa, muitos capelães prestaram missões
religiosas. Mas havia um tenente cujo nome de guerra era Bispo, já falecido em
acidente automobilístico. Certa vez estava ele, o tenente Bispo, e o padre
capelão, ambos aguardando para falar com o comandante-geral, coronel do
Exército Hindemburgo Coelho de Araújo. O já também falecido coronel Aloísio, na
época capitão, exercia as funções de ajudante-de-ordens. E anunciou ao
comandante-geral que lá o estavam a esperar o padre capelão e o Bispo. O
comandante, respeitando a hierarquia religiosa, mandou entrar o Bispo (o
tenente), só aí percebendo a confusão... Desfez a gafe mandando se retirar o
tenente e entrar o capelão, que, ademais, era capitão...
Eis
uma ocorrida durante comunicação entre uma radiopatrulha e a Central de Comunicações:
–
Maré-zero! Maré-zero! Bravo-uno chamando!.
– Na
escuta, bravo-uno! Pode prosseguir.
–
Cabo na vala! Cabo na vala!
– Proceda, bravo-uno! Socorra o cabo! – autorizou maré-zero.
–
Não, maré-zero, não é cabo PM! É cabo de alta tensão!...
Havia
um cadete amazonense cujo nome de guerra era Vasconcellos. Ele cursava a Escola
de Formação de Oficiais da PMERJ devido a convênio entre a corporação daqui e
sua coirmã amazonense. Fazia ele, o cadete, uma prova de português, cuja
questão única consistia numa dissertação versando sobre o tema Controle da
Natalidade. E ele fez uma linda dissertação... Sobre as “festas natalinas”, com
papais-noéis, árvores enfeitadas em multicoloridas bolinhas de vidro e algodão
imitando a neve, além de presentes pendurados e tudo o mais que se possa
imaginar numa festa de Natal...
Por
sinal, esse amazonense era uma caixinha de surpresas em matéria de provas, que
sempre ocorriam numa mesma época, em sequência. O professor de Geografia havia
ensinado sobre os Movimentos Tectônicos (geodinâmica do globo terrestre),
enquanto mestre da Educação Física explicara que os exercícios abdominais eram
úteis à melhoria dos Movimentos Peristálticos (dos intestinos).
Bem,
vocês já aí imaginam o que ocorreu com o cadete, ao responder à pergunta que
lhe veio vindo na prova de Educação Física. Sim, ele misturou Geografia com
Educação Física e afirmou que os exercícios abdominais eram úteis aos
“movimentos tectônicos dos intestinos”; só faltou também explicar sobre os
“movimentos peristálticos” do globo terrestre...
Uma
guarnição de PATAMO do 9º BPM – viatura do tipo veraneio, com cinco PMs – foi
agraciada com um recruta recentemente lotado no batalhão. Sem que ele
percebesse, ao ocuparem os bancos do carro os outros PMs lhe deixaram livre o
lugar do carona, na porta, ao lado do motorista, onde ele impolutamente se
assentou. E saíram, aguardando algum chamado pelo rádio, algo comum e que logo
aconteceu.
Era
noite. Maré-zero determinou à guarnição que procedesse a uma ocorrência grave
com tiroteio. E lá se foi a PATAMO queimando pneus, sirene e giroscópio ligados,
a todo vapor. O recruta, de arma na mão e tenso, aguardava a ação. E ela veio:
o motorista parou de súbito a viatura e bradou: “Descendo! Descendo!” Todos
desceram rápido... Pelo lado do motorista, sobrando o outro lado ao inadvertido
recruta, que saltou velozmente... e foi parar dentro duma vala fétida, tomando
inesperado banho de lama fedorenta que certamente não era medicinal... Na
verdade, tudo não passara de comitê de boas-vindas ao novato, que deve ter
gastado bom dinheiro com perfumes... E não se sabe até hoje se aquela ordem emitida
pelo rádio fora verdadeira ou falsa...
Prova
de matemática na Escola de Formação de Oficiais. Os cadetes do primeiro ano não
sabiam quem era pior, se a dita (ou maldita) matemática, ou se o feroz
professor, que formulara quatro questões apenas, porém daquelas de arrancar os
cabelos, cada qual valendo 2,5 pontos...
Dois
cadetes que disputavam o primeiro lugar sempre serviam de gabarito aos demais.
Depois que eles terminaram a prova, – ambos com resultados idênticos e o grau
máximo conquistado, – acercou-se deles um desesperado colega não muito afeito a
números. E conferiu o resultado dele com o dos craques na matéria. Gelou-lhe o
sangue, errara quase tudo. Mas ele precisava de uma nota dez para se livrar da
segunda época. Não fez por menos: montou outra prova, gabaritada, e armou um
telefonema ao professor, trazido o recado por um cabo amigo dele: alguém
informava que a filha do rigoroso e irascível mestre “sofrera um acidente...”
O
homem deixou a sala de aula à revelia e correu feito um louco ao telefone, lá
na administração. Enquanto isso, o desesperado cadete adentrou rapidamente a
sala e enfiou na pilha de provas a sua outra, de nota dez, e retirou a que
fizera primeiro. E retornou o mestre com uma fisionomia de zanga feroz e de
atordoada perplexidade. Mas ele não tinha a mínima condição de saber o que
houvera durante a sua forçada ausência. Mas sentia claramente que fora vítima
de alguma tramoia.
Do
lado de fora, os cadetes festejavam a brilhante armação, quando o seu autor
retirou do bolso a prova reprovada... Não era a dele!... Mas a de outro colega
que com ele festejava e que danou a chorar ao ver sua prova reduzida a um
bolinho de papel, de tão amassada que ficara.
A
prova do cadete choroso não estava lá essas coisas, mas dava para o pobre-diabo
alcançar a aprovação. Assim ficou a situação: um cadete com duas provas na
pilha à frente do mestre, que dela tomava conta como se fora cão vigiando um
belo pedaço de osso, e o outro chorando sem prova alguma. Que fria!...
Um
pequeno grupo de retardatários cadetes ainda matutava em sala suas respostas,
em exercícios mentais que fediam longe. E o outro grupo, que já terminara a
sabatina, bolando do lado de fora um plano para enfiar de volta aquela prova
erradamente retirada pelo desesperado cadete. Isto no mínimo, porque o ideal
seria colocar a prova de volta e retirar a maldita que lá ficara sobrando, toda
errada.
Como
cadetes têm parte com trinta milhões de diabos, decidiram eles entrar em grupo
e provocar uma séria discussão com o mestre sobre as dificuldades das questões
etecétera, como um time de futebol reclamando ao juiz um gol de mão
descaradamente marcado por atacante adversário no último minuto, e valendo o
campeonato...
Assim
foi feito, o professor pressionado pelos ferozes cadetes a reclamar das questões,
enquanto uma furtiva mão acobertada por alguns corpos zangados enfiava de volta
a prova do segundo desesperado cadete ao seu devido lugar. Até aí o plano deu
certo, mas o primeiro desesperado cadete acabou por ficar com duas provas (a
verdadeira e a falsa) na desvirginada pilha.
Deu-se
mal, o cadete, mas se salvou pela oportunidade que o comandante culminou lhe
propiciando, uma inesperada chance dada por um dos melhores comandantes da
EsFO, apesar de disparadamente o mais durão que por lá passara. Com o elogio,
que lhe deram na conversa que ouvi, surgiu o nome dele: coronel Milto
D’Ornellas Moreno. E ele, o coronel D’Ornellas, já falecido, indagou ao cadete
qual das duas provas era a válida... Ele lhe respondeu que a ruim.
Falou
a verdade e se deu bem. Foi à segunda época, recebeu severa punição, mas obteve
o perdão do desligamento que se lhe afigurava inevitável. E ele nunca mais
colou, estudou muito e se formou com méritos. O caso dele era de preguiça
mental, mas o forte repelão que levou nos nervos colocou-o no rumo certo.
Outra
que deu no “Boletim do Soldado” também ocorreu com os cadetes e no comando do mesmo
coronel D’Ornellas, que era major. Ele, como diziam os oficiais no cassino, era
muito rígido, porém humano. Gostava de tudo bem-feito e tinha um brio de dar
exemplo. Certa vez a EsFO foi convidada a participar de uma festividade militar
no quartel do 3º Regimento de Infantaria do Exército (3º RI), hoje transformado
em batalhão (3º BI), também já desativado. Ficava ele situado no limite entre
os Municípios de Niterói e São Gonçalo. A participação dos cadetes consistiria
em desfilar em torno do campo de futebol, na pista de atletismo, em honra a
diversos generais e outras autoridades militares e civis que lá estariam
postadas num palanque.
O
coronel D’Ornellas recomendou aos cadetes o máximo esmero na marcha, e os
colocou a treinar ordem-unida durante toda a semana que se antecedeu ao evento.
O falecido tenente-coronel Cavalcanti, na época primeiro-tenente, comandaria os
cadetes, como de fato comandou. Comandou?... Ele inventou uma novidade a ser
feita durante o desfile para demonstrar aos oficiais-generais que os cadetes da
briosa marchavam melhor que os militares de verdade.
Tudo
bem. A intenção parecia boa, a de ser “mais realista que o rei”. Tal
demonstração consistiria no seguinte: os cadetes viriam marchando em passos
garbosos. E ao chegarem defronte ao palanque o tenente comandaria “alto!”,
“direita-volver!”; e os cadetes, ato contínuo, e parados, prestariam uma bela
continência. Na sequência, – e novamente em ato contínuo, – ele comandaria
“esquerda-volver!”, “ordinário-marche!”, e os cadetes sairiam rompendo a
marcha, tudo bem rápido, no tempo exato e em máximo entusiasmo. Na teoria tudo
estava efetivamente perfeito, e assim foi exaustivamente treinado na EsFO até a
véspera da festividade.
O dia
amanheceu garoando muito, um transtorno para os cadetes já vestidos com calças cinzas
do uniforme de gala e sapatos revestidos com polainas brancas. Mas lá foram
eles, porque “soldado é superior ao tempo”...
No
quartel do Exército, tudo enfeitado, lá estavam os cadetes em forma e em meio à
irritante chuva fina aguardando a hora de romperem a marcha. No momento
previsto, os garbosos cadetes partiram à marcha esmerada tal e qual haviam
exaustivamente treinado. E lá foram eles, a banda tocando um dobrado e o
tenente Cavalcanti à frente, comandando o que deveria ser o “espetáculo”.
Todos
os cadetes em desfile esperavam, ansiosos, a sua primeira voz de comando, que
seria “Alto!”, para em seguida vir a segunda, que seria “Direita-volver!” E
ele, o tenente Cavalcanti, deu a primeira voz de comando no tempo certo:
“Alto!”; e emendou a segunda, num comando – inverso do esperado:
“Esquerda-volver!”, mandando assim a tropa de cadetes voltar-se de frente para
o campo, lado contrário a que estava em palanque a seleta plateia...
Desmoronou-se
tudo o que fora esmeradamente treinado: eram cadetes girando à direita, outros
à esquerda, outros mais dando voltas malucas em torno de si, enfim, uma zorra
total, as calças brancas respingando lama e, no palanque, todo mundo às
gargalhadas. Se o Renato Aragão lá estivesse contrataria o grupo imediatamente.
Só um oficial, do alto do palanque, não estava com cara de riso. Em contrário,
bufava com cara de poucos amigos: o major Milto D’Ornellas Moreno...
Já
que estamos neste ritmo de marcha, vamos a outro desfile. Era o ano de 1972, a
briosa preparava-se para a marcha militar de Sete de Setembro. Tempos ruins,
época de repressão, plena ditadura. Eu estava escalado para desfilar no
Batalhão de Serviços Auxiliares (BSA), que formaria uma tropa condensada com os
recrutas da Companhia Escola. Ou seja, jovens e velhos unidos e levando vaia na
Avenida Amaral Peixoto, em Niterói.
Até
aí, tudo bem, uma vaia a mais, uma vaia a menos, em se tratando de PM é malhar
em ferro frio... Ocorre, todavia, que havia um rumor correndo no “Boletim do Soldado”
de que a tropa poderia “sofrer um atentado” na hora do desfile. Depois, o
assunto ficou deveras sério, deixando-nos apreensivos. Eu, por exemplo, que nem
entendia direito esse negócio de ditadura, – limitava-me há mais de 20 anos a
apenas servir aos senhores oficiais no cassino, – preocupei-me de fato com os
fuxicos dos oficiais quando no repasto cotidiano.
Perigo
verdadeiro ou não, mandei a patroa nem sair de casa, ela doida pra ver a parada
escolar das meninas, – tinha duas, já adolescentes, – ambas animadas em marchar
pelo colégio que estudavam. Não as deixei ir, temeroso com as possíveis
consequências do “atentado”.
Madrugada
do esperado dia, lá estava eu, no pátio da Companhia Escola de Recrutas, no
bairro do Fonseca, esperando ordem de entrar em formatura. Já sabíamos, pelo
boletim oficial, que a tropa seria comandada por um major reconhecidamente
vibrador.
No
cassino, antes, os oficiais comentavam que ele, o major, era tão empolgado, mas
tão empolgado com militarismo, que dormia com sua espada de oficial debaixo do
travesseiro, mania que começara ainda na EsFO, pois ele fazia o mesmo com o
Espadim de Castrioto (João Nepomuceno Castrioto, primeiro comandante da Guarda
Policial da Província Fluminense), o símbolo do cadete. Diziam até que ele
entre escolher a esposa ou a espada para dormir optava pela segunda.
Era,
sim, um patriota sobremodo devotado, respeitável amante do militarismo. Mas
alguns o reputavam como perdido caso de neurônios cabriolando além do usual. Ou
seja, maluco!...
Contudo,
lá estávamos nós, aquele bando de desengonçados milicianos, uns velhos outros
gordos, todos vestidos com uma feia farda de brim cáqui e botins pretos que em
nada combinavam com ela, além de cinto de guarnição em napa verde e capacete
cinza simplesmente horroroso. Que feia aquela farda! Nada combinava com coisa
alguma!...
Nem
mais precisava a garantir uma estrondosa vaia que envergar em público aquele
feiíssimo uniforme. Mas, conformados, esperávamos nosso major comandante,
quando ele finalmente chegou paramentado em alto estilo. E, solene, mandou
formar a tropa com o fim de transmitir-lhe um recado:
–
Atenção, senhores! Bom dia! Todos sabem que hoje é o dia mais importante da
nossa pátria. Mas poderemos enfrentar graves problemas durante o desfile. Há um
plano de ataque à tropa que poderá ocorrer do alto dos prédios na Avenida
Amaral Peixoto. Diante da gravidade do fato, eu e os demais oficiais estaremos
armados para protegê-los. Por exemplo, vou demonstrar pra vocês como estou, de
modo a que os oficiais façam o mesmo.
Dito,
desvestiu-se da gandola; e lhe surgiu, preso ao dorso nu, o dobro do que usavam
os cangaceiros nos velhos tempos de Lampião. Tinha de tudo agarrado ao corpo do
major, desde peixeiras e cartucheiras, com centenas de munição, a binóculos etc.
Deu-me, confesso que sim, uma incontrolável vontade de rir; porém, o máximo que
consegui foi travar a boca em comportado silêncio. E mais ele disse, como o
único até então a falar ao microfone previamente instalado:
– A
ordem é a seguinte: se houver algum ataque do alto dos prédios, as colunas da
esquerda cairão para a esquerda da Avenida e as da direita, do mesmo modo, para
a direita da Avenida. Entenderam? – perguntou ele, fitando os oficiais.
E um
deles, exatamente o mais alto e já nosso conhecido, o tenente Mangueira (aquele
do “BSA, ô!, Ô, BSA!”), indagou-lhe singelamente:
– Meu
major, que faço com a minha coluna? São elas nove... E a que estou à frente é a
do meio. Pra que lado eu vou?...
Aí,
que me desculpem os leitores, disparei junto com a tropa, – mais de mil homens,
– a mais sonora gargalhada de que já coletivamente participei. Já fora demais
para todos ouvir do major que ele e meia dúzia de oficiais estariam a tomar
conta de mil... E novamente por conta do tenente Mangueira os mil explodiram em
riso uníssono.
O
major ficou vermelho feito tomate maduro e retrucou ao tenente dizendo-lhe que
escolhesse o lado que bem quisesse, mas sem se esquecer do comando que daria à
tropa em marcha, para não se repetir o que já fizera antes... Coitado do
tenente Mangueira, que não sabia onde enfiar sua cara de vexame. Enquanto isso,
o bulício corria solto, em meio às galhofadas que não mais cessaram. Já estava
virando circo quando o major retomou energicamente o controle e encerrou o
assunto:
–
Batalhão, sentido! – comandou. – E acrescentou: – Entendam-me bem, senhores!
Não se trata de brincadeira! Há mesmo o risco de ataque à tropa. E minha ordem
é que as colunas saiam do centro da rua para as laterais até coordenarmos a
reação! Agora vamos embarcar em silêncio.
O
homem estava bufando como fera acuada. Andava com dificuldade, de tanto peso
que levava. Mas lá foi ele, impoluto, embarcando no seu jipe, que por sinal
adorava, em direção ao local da concentração.
Era
próximo do Instituto Abel, situado na Avenida Estácio de Sá, hoje Roberto
Silveira. Na nossa vez, saímos marchando daquele ponto a caminho da Avenida
Amaral Peixoto. E lá fomos nós levando a maior vaia desde que rompemos marcha
até dobrarmos na pista de desfile, o tão esperado “momento de perigo”, com as
laterais da Avenida Amaral Peixoto apinhadas de crianças – chupando pirulitos e
agitando bandeirolas – e de populares em alegria. Mas bastou surgir a briosa
com aquela farda feiíssima e o brado maluco do major ecoou no ar: “Batalhão do
meu sangue! Vamos à vitória! Avante camaradas!”, para que ganhássemos a maior
vaia do mundo.
E lá
se foi o major, no comando da tropa, vociferando seus altos brados de
entusiasmo como se quisesse sobrepujar as cada vez mais estrondosas vaias que
levávamos. Confesso-lhes, confesso-lhes mesmo: eu não mais sabia se as vaias
eram para nós ou somente para ele... Ó bendito capacete! Sim, bendito porque
nos permitiu a nós, envergonhados PMs, esconder dentro dele quase toda a cara
de vexame ou de riso descontrolado, de cabo a rabo da tropa, sem exceção! Ou
melhor, uma exceção: ele, o empolgado major, que na frente ia como se nada
estivesse acontecendo de anormal. Parecia surdo e alheio ao lado de fora dele
mesmo.
Sim,
lá fomos nós, vexados e vaiados, até alcançarmos o final da Avenida Amaral
Peixoto; e prosseguimos marchando e levando vaia, marchando e levando vaia, com
destino ao quartel-general. Para melhor mentalização da cena, – sinto as
palavras me faltando para bem descrevê-la, – imaginem o time do Vasco da Gama
percorrendo a Marquês de Sapucaí com as arquibancadas ocupadas somente pela
torcida do Flamengo; ou o contrário, para que não digam que sou torcedor faccioso.
Imaginem, agora, a intensidade das vaias. Imaginaram? Sim, imaginaram! Digo a
vocês: no nosso caso foi pior...
Confesso-lhes
que naquele dia senti vontade de me vaiar a mim mesmo, como aquele cadete que
deu parte de si próprio. E até hoje espero o tal atentado, eu em casa levando
vaia da patroa e das meninas. Sim, por conta do fuxico que virou “verdade
oficial” até hoje sou vaiado por minha própria família...
Esta
aconteceu no outrora 1º Batalhão de Caçadores, em São Gonçalo. As paredes dos
gabinetes dos oficiais estavam apinhadas de fotos, de quadros com diplomas e
outros símbolos típicos da meritocracia militar, cultura genérica e comum a
todos os quartéis. Mas surgiu uma lei determinando que os gabinetes, a partir
de sua vigência, somente poderiam ostentar duas fotos: a do Presidente da
República e a do Governador do Estado. O comandante reuniu os oficiais e lhes
determinou que retirassem todos os quadros das paredes, deixando apenas aqueles
dois previstos em lei. Foi quando um distraído tenente indagou:
–
Comandante, concordo que a lei deva ser cumprida, mas não acho justo que o
retrato de Jesus Cristo seja retirado. Isto é desrespeito aos cristãos, como
eu, e como o senhor, que também mantém na parede do seu gabinete o seu quadro
igual ao meu...
Dito,
todos fitaram o quadro singelamente apontado pelo tenente... E verificaram que
o “Jesus Cristo”, com aquela barba característica e cabelos compridos, trazia ao
pescoço uma corda com o histórico laço de forca representando a imagem do
supliciado Tiradentes...
Esta
aconteceu no mesmo 1º Batalhão de Caçadores e no “tempo do onça”. O comandante
mandou o seu (dele) ordenança levar ao prefeito da cidade um bilhete no qual
pedia sacos de cimento para alguns reparos a serem feitos no quartel. O pobre
do PM, ao entregar o bilhete e após a sua leitura por parte da autoridade
municipal, dela ouviu o seguinte:
– Poxa!
O comandante está maluco! Como posso doar 102 sacos de cimento? Será que ele
está querendo reformar todo o quartel? – reclamou. – Diga-lhe que 102 sacos de
cimento eu não tenho como mandar – concluiu o prefeito.
No
quartel, o PM comentou com o comandante as palavras do prefeito:
–
Comandante, o prefeito ficou nervoso, e disse que não poderia ceder os 102
sacos de cimento que o senhor pediu.
O comandante,
visivelmente irritado, respondeu-lhe o seguinte:
– Ô,
políça! Vorta lá no prefeto e diga que ele se enganô. Diga que é pra ele mandá
1 Ô 2 saco de cimento...
Esta
aconteceu em Niterói. Foi contada no cassino por um capitão, que na época era ajudante-de-ordens
do comandante-geral. Era noite dum sábado. O capitão teve necessidade de dar um
telefonema urgente. Estava ele próximo ao prédio do DETRAN, onde também
funcionava a Companhia de Trânsito, que mantinha um PM de plantão para
atendimento ao público.
Ao
chegar, o capitão observou uma inusitada discussão entre um novato PM e o
respeitável Juiz Titular da Vara de Execuções Penais do Estado, homem de
reconhecido saber e figura notória na cidade de Niterói. Menos para o novato...
– Meu
prezado policial. Vou explicar-lhe mais uma vez: o meu filho, este rapaz que
aqui está ao meu lado com a mulher dele e meus dois netos, abalroou o veículo
deste outro cidadão, que também aqui está com esposa e filhos, todos na sua
presença. Veja bem: eles, por coincidência, são amigos íntimos. E também, por
coincidência, abalroaram os carros que dirigiam. O senhor entendeu até este
ponto o meu relato? – indagou calmamente o Juiz.
–
Positivo! Correto!...
–
Pois bem, meu prezado policial. Apenas por precaução eles decidiram comparecer
ao Hospital Antônio Pedro, por livre e espontânea vontade, a fim de verificar
se alguém dentre os familiares se ferira. Tudo isso na hora do acidente e em
natural nervosismo. Mas, graças a Deus, ninguém sequer se arranhou, nada
ocorreu, não houve nenhuma vítima. Entendeu até este ponto, policial?
–
Positivo!
–
Então veja bem: o senhor está com as chaves e os documentos dos carros de
ambos; e os carros foram recolhidos ao depósito enquanto eles se dirigiram ao
hospital. Mas isso é procedimento específico em acidentes com vítimas, que não
foi o caso. Neste caso, meu caro policial, o senhor não pode reter os
documentos e os carros. Por isso, vim até aqui tentar explicar e esclarecer ao
senhor que este não é um caso de retenção de veículos e documentos; e o senhor
precisa devolvê-los para que todos se retirem. Entendeu, policial?
–
Negativo! Eles foram ao hospital e por isso tenho de proceder como se o
acidente fosse com vítima. É ordem do tenente. Nesses casos as chaves e os
documentos devem ser encaminhados à delegacia e os veículos, ao depósito. É o
que vou fazer por ordem do tenente.
–
Mas, policial, sou Juiz de Direito, portanto entendedor de leis. Eu seria o
último a lhe exigir algo fora dos preceitos legais. A lei é clara: não houve vítima
no acidente e a ocorrência deve ser encerrada no local. No máximo, se for do
entendimento do policial que atendeu à ocorrência, poderá ele multar. Nada
mais. Por isso insisto, em nome da lei, que o senhor devolva as chaves e os
documentos dos carros agora mesmo! As famílias estão esgotadas, o senhor há de
convir.
–
Negativo, senhor! A ordem que tenho do tenente é bem clara. Foi ao hospital,
tem vítima! E tudo deve ser mandado para a delegacia. É o que farei senão
acabarei preso no quartel...
–
Bem, policial, então eu é que serei obrigado a prendê-lo por desrespeito às
leis, por abuso de poder, por desobediência etc.
O
capitão que a tudo assistia dirigiu-se ao juiz:
– Com
licença, meritíssimo. Sou capitão. Passei aqui somente para telefonar e acabei
assistindo a tudo. Peço-lhe permissão para interferir nesta questão.
–
Pois não, capitão! Fique à vontade! – aquiesceu o Juiz.
– Soldado,
sou capitão PM. Aqui estão os meus documentos.
–
Sim, senhor capitão! Sd PM Beltrano, RG 44444, do primeiro pelotão da companhia
de trânsito do 5º batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, de
plantão no posto etc. – perfilou-se o novato PM num enquadramento de fazer
inveja a qualquer militar de verdade.
–
Soldado, eu desejo lhe fazer uma pergunta: você reconhece minha superioridade
hierárquica em relação ao tenente comandante do seu pelotão?
–
Sim, senhor capitão! Sim, senhor! É lógico que sei que o senhor é superior ao
tenente.
–
Bem, então devolva as chaves e os documentos dos carros aos usuários aqui
presentes. E imediatamente! Entendido?
–
Sim, senhor capitão! Sim, senhor capitão! Imediatamente!
Sem
mais delongas, o novato entregou tudo ao juiz, mantendo-se durante todo esse
tempo na mais enquadrada posição de sentido, como se assim fosse uma estátua. O
juiz agradeceu ao capitão, satisfeito com o desfecho, e logo se retirou,
juntamente com os familiares e o amigo do filho. Foi quando o capitão tentou
fazer ver ao novato que ele seria preso pelo magistrado se insistisse naquela
decisão equivocada, mesmo com a ordem do tenente, este que não teria autoridade
nenhuma para libertá-lo. E ele então disse, singelamente:
–
Mas, capitão, se eu liberasse os carros também seria preso pelo tenente, o que
me seria muito pior porque, pelo juiz, eu seria preso uma vez só, e pelo
tenente quantas vezes ele bem entenda...
Como
diria o mestre Ancelmo Gois: “É... faz sentido!”
A
vida de cassineiro me permitia preencher sobremodo minha aguda curiosidade. Não
havia histórias que eu não soubesse, posto estar sempre a buscá-las onde
estivessem. Por isso é que durante as folgas eu procurava ler coisas do
passado, por sinal muito interessantes. Vou lhes contar alguns fatos ocorridos
nos “tempos do onça” e do “pau e corda”, que pude conhecer lendo um livreto da
Irmandade de Nossa Senhora das Dores da Polícia Militar. Tomem lá a primeira
delas nos termos em que foi publicada:
“Com
muitos goles de cachaça eles foram comemorando seus nomes iguais; por fim o
soldado, escolta do preso, acaba sendo carregado por este:
– Seu
nome é Manoel?
– É.
–
Pois o meu também é.
–
Então somos xarás.
– Sem
tirar nem pôr.
–
Você de onde é?
– Da
Bahia.
–
Bem, o nome é igual, mas a província é diferente; minha terra é Minas Gerais.
–
Povo bom.
–
Obrigado.
– Ah!
mineiro, seu eu pudesse molhar a garganta agora, até me esquecia de que sou
preso.
–
Você tem umas patacas no bolso?
– Ora
se tenho!
– Na
taberna do Lucas a gente encontra da boa. Em frente, marche!
E lá
foram os dois: o detento Manuel Joaquim Afonso e o soldado Manuel José
Rodrigues, escolta do xará, encarregado de levá-lo à cadeia. Bem. Da taberna do
Lucas, os dois Manueis já saíram um tanto ou quanto alegres. E continuaram
tocando pra frente, mas um trago aqui, mais outro trago ali. E, naturalmente, o
soldado vendo cada vez menos o caminho da cadeia. Entretanto, algo importante
ocorria. É que enquanto a praça desmoronava-se rápido ante a ação do álcool, o
prisioneiro – velho pau-d’água – continuava firme em cima das pernas. De
repente, a cachaça cantou de galo dentro do Manuel fardado, e ele escarrapachou-se
na calçada, largado feito um morto. O outro Manuel não vacilou: abaixou-se,
agarrou o xará e acomodou-o no ombro. E avançou, resoluto, levando o peso do
borracho e o do próprio corpo encharcado de pinga. E os passos estalando nas
lajes da calçada. E as esquinas ficando para trás. Lento, lento. De repente, o
portão de ferro da Casa de Correção. A chegada, afinal. E então, estendendo num
banco a carga humana, o preso explica:
– É
meu amigo e xará; não podia deixar ele caído na rua.
Eis
agora como o fato vem narrado no ofício (29-julho-1836) do Administrador da
Casa de Correção ao Chefe de Polícia (sic):
'Ilmo.
Sr.
O
preso Manoel Joaquim Affonso, que por ordem de V. S.a foi removido
para o Quartel General, se apresentou hontem ás 5 horas da tarde nesta Casa com
o offício incluso, trazendo ás costas o soldado da Companhia adida Manoel José
Rodrigues, o qual estava como morto, pelo estado de embriagues em que se
achava, sendo de notar que era este o guarda que conduzia o ditto preso. Pelo
despacho dado por V. S.a no offício ditto (que entregou aberto) se
vê que devia o referido sêr conduzido a Cadeia, porém mais certo do caminho
para esta Casa, do que para aquela, carregou o guarda, e veio aqui se
apresentar. Deixo a consideração de V. S.a que espetáculo tão
interessante seria pelas ruas onde tranzitarão, vendo-se um preso conduzindo ás
costas o soldado que devia guardar. Levando pois o relatado ao conhecimento de
v. S.a, envio egualmente o supra ditto preso em conformidade do Despacho ditto
de V. S.a em o mencionado offício – Deos Guarde V. S.a. Casa de
Correção, 29 de julho de 1836. – Ilmo. Sr. Doutor Eusebio de Queiroz Chefe de
Polícia – Thomé Joaquim Torres – Administrador.'”
“Oito
dias na Fortaleza da Laje para a praça que de folga, acompanhasse tropa
marchando na rua. Sim, a coisa era dura naquela época. Por exemplo, o coronel
João Antônio Garcez Palha, comandante do Corpo Militar da Polícia da Corte, não
era de fazer graça a ninguém. Se soubesse que uma praça sua fora vista
acompanhando tropa marchando na rua perdia as estribeiras. Por quê? Porque
naquele tempo (1870), quando viam força militar marchando na rua, ao som de
banda de música, os capoeiras corriam para a frente dela e punham-se a dançar,
gingar e a dar rasteiras. Também os vagabundos, mendigos – a arraia-miúda –
gostavam de seguir a música da caserna. Esse negócio, pois, de soldados do
Corpo Militar misturados à patuléia, não agradava ao coronel Garcez Palha. E
até baixou ordem proibindo. E foi ao extremo, ao fixar o castigo de oito dias
na Fortaleza de Laje para toda praça encontrada acompanhando força militar
desfilando na rua, conforme os termos de sua ordem do dia nº 66, de
7-junho-1870. Mas parece que o soldado João de Souza Pacheco, da 3ª Cia, de
Inf., não levou muito a sério a recomendação de seu comandante. Era como
jogador de pôquer: gostava de pagar para ver.
E
assim, certo dia, vendo passar o 2º Btl da Guarda Nacional, naturalmente puxado
por furiosa banda de música, o Pacheco esqueceu a proibição do rigoroso coronel
Garcez Palha, e, não aguentando o fogo do entusiasmo queimando-o por dentro,
voou para o meio do povo que acompanhava a tropa. Foi o mal. Por certo algum
sargento bigodudo, cara ruim de buldogue, que andava por ali rondando, pôs os
olhos em cima do Pacheco e logo franziu a testa. E deu voz de prisão. O soldado
faltoso caiu numa lamúria de arrancar lágrimas de um lobo, mas o sargento
cortou a cantilena: “Vamos pro quartel; lá você explica tudo ao oficial de
estado-maior.” Frente a frente com o superior, Pacheco ainda tentou se livrar
da friagem do xadrez, mas apenas ouviu algumas palavras secas: “Nhenhenhém não
adianta. Eu é que não vou pro buque no seu lugar.” E não adiantou mesmo. Basta
ler a ordem do dia nº 66 de 7-junho-1870, na sua forma original:
“Quartel
do Commando Geral do Corpo Militar de Polícia da Corte, Rio de Janeiro, 7 de
junho de 1870.
Ordem
do Dia
Nº 66
Nesta
data mando soltar o soldado da 3ª Companhia de Infantaria João de Souza Pacheco,
que foi preso por ter estado entre o povo que acompanhava o 2º Bat. da Guarda
Nacional, sem estar de serviço, em contravenção ás ordens estabelecidas, e
mando declarar de novo que é inteiramente prohibido ás praças deste Corpo
andarem no grupo do povo, não estando em serviço, para que se não diga que o
Corpo Militar tem em seu seio capoeiras, e que aquelle que for encontrado em
desrespeito a esta ordem será remetido para a Fortaleza da Laje, por oito dias.
Assignado, João Antônio Garcez Palha – Tenente Coronel Commandante geral.”
Esta
veio de tempo pouco posterior ao voluntariado “a pau e corda”...
Ingressara
no 1º batalhão de Alcântara, São Gonçalo, uma turma de recrutas, todos de nível
primário, exceto um, que já contava com o segundo grau completo e fazia
pré-vestibular para medicina.
No
curso de formação de soldados era comum o sargento monitor cobrir os tempos de
aula dos “atarefados” oficiais instrutores. Mas, naquela época, os sargentos
ainda eram daqueles caçados “a pau e corda”, ou seja, quase todos semianalfabetos.
E havia um que, mesmo não tendo muita instrução, trabalhava como enfermeiro do
quartel, eis que era mestre na aplicação de injeção. E também excelente ser
humano, estimado por toda a soldadesca.
O
sargento substituía o tenente médico nas aulas de Higiene e Primeiros Socorros.
E veio a prova, com questão elaborada pelo médico, uma apenas: dissertar sobre
infecção e infestação, estabelecendo as devidas diferenças. Pois bem,
divulgou-se o resultado, tendo o bondoso sargento corrigido para o tenente
médico as provas dos vinte e oito recrutas. E, ao anunciar as notas que
atribuíra a cada aluno, lamentou-se com o recruta que estudava no
pré-vestibular de medicina, este que não vencera nem mesmo o grau 2 em sua
prova, enquanto que os demais, semianalfabetos como o monitor, angariaram notas
acima de sete.
O
recruta, inconformado com o baixo grau a ele atribuído, e consciente de que
fizera uma dissertação além da capacidade do sargento em corrigi-la, requereu
ao comandante da companhia a revisão de sua prova pelo tenente médico. O pedido
dele foi acolhido, a prova foi revisada, e seu grau passou de 1,5 para 10...
Segundo
os comentários no cassino, a transmudação da tropa de analfabeta para outra
mais alfabetizada, – assim como o aumento da procura e a exigência de concursos
para selecionar, entre os interessados, apenas os mais capacitados, – provocou
inusitada situação: uma nova tropa, escolarizada, porém recebendo ordens e
“ensinamentos” de antigos oficiais que mal sabiam assinar o próprio nome, mas
que, em compensação, possuíam muita cultura e invejável inteligência “nos
ombros”, como no caso daquele coronel lá do início...
OBS.:
COMO ESSAS HISTÓRIAS DE QUARTEL NÃO TÊM LIMITES, E MUITOS GUARDAM SUAS PRÓPRIAS
HISTÓRIAS NA MEMÓRIA OU NO PAPEL, OFEREÇO ESTE ESPAÇO AOS COMPANHEIROS,
BASTANDO-LHES ENCAMINHÁ-LAS NO CAMPO DE COMENTÁRIOS. ELAS SERÃO AQUI
ACRESCENTADAS, CUNHANDO-SE O DEVIDO CRÉDITO A CADA UM QUE AS ENVIAR, CABENDO A
ESTE DONO DO BLOG O DIREITO DE REVISÃO ORTOGRÁFICA PARA GARANTIR A QUALIDADE
MÍNIMA DO CONTEÚDO.














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