Era, indubitavelmente, um enterramento de primeira
categoria. Mesmo que quase abolida a prática da condução do féretro pelas ruas
nos plantios modernos de defuntos, – hoje tudo funciona no espaço interno do sepulcrário,
– havia a necessária pompa naquela cerimônia que levava à última morada o corpo
de Jacinto Pessoa, porque de sua alma não se tem notícia alguma.
Contudo, no campo-santo do Parque da Montanha um vasto
gramado entremeado de jardins floridos dava à vista dos que ali pranteavam seus
mortos uma imagem de paz congelada no tempo. Também as árvores incorporavam ao
ar um olor úmido tão agradável que mais parecia o dos jardins do Éden, com a
mãe-natureza explodindo feraz e bela sobre o adubo de corpos humanos em
decomposição. Pois é assim que o infalível bicho-homem cumpre sua função de
mero estrume, porquanto em cemitério não há de haver diferença entre corpo
santo ou carcaça de bandido: ambos igualmente fazem medrar as plantas do lugar
sacrossanto que impõe a isonomia entre pobres e ricos, entre maculados e
imaculados, entre lindos e horrendos, entre eles, elas ou invertidos para
quaisquer lados; enfim, a igualdade tão propalada pelos racionais, invenção
feita em vida, porém só alcançada na morte que a todos espera mui pacientemente.
E sempre vence...
Mas ali, a bem da verdade, e por medo do inferno, nada
lembrava cemitério, posto não haver ostentações inúteis como antigamente se via
e ainda se vê nos campos-santos tradicionais, com seus jazigos que somente
perpetuam nomes e títulos de ilustres desconhecidos que viveram as riquezas de
suas épocas, ou até mesmo o falso deslumbre dos “ricos em ouropéis”, mas que,
mesmo assim, fizeram questão de se projetar à eternidade através da
suntuosidade de seus túmulos. Sim, sim, lá estão comendadores e condessas, reis
e rainhas, imperadores e imperatrizes, e outros remotos detentores de
supérfluos títulos honoríficos, muitos dos quais comprados a peso de ouro
verdadeiro. Hoje, esses defuntos não são mais nada, absolutamente nada, nem
mesmo lembrança. Dentro do túmulo há apenas carne apodrecida, ossos ou pó ou
desses amantes de honrarias e dos praticantes de crime em vida. Tudo igual na
eternidade horizontal...
Mas como tudo é cemitério, lá estava Wanda da Silva
Pessoa, bela viúva que escolhera o melhor lugar para semear em simpleza seu
companheiro de 23 anos de conúbio, paixão que se iniciara cedo, ele com 21 e
ela com 18, suas idades quando se conheceram num baile de carnaval e em ambos
aflorara o amor em impetuosa sensualidade que terminaria na alcova de um belo
motel. Casaram-se, enfim, e empurraram a vida até o momento da despedida. E não
se casaram em vão: geraram duas filhas, ambas já adolescentes.
Wanda, na sala do velório, sentada em pose de
resignação profunda, rememorava no íntimo a sua vida com Jacintinho, como assim
era apelidado o seu marido. Morrera de repente, o Jacintinho, vítima de infarto
fulminante, durante simples caminhada no calçadão da praia de Ipanema numa
segunda-feira de manhã.
Não que morasse ali na praia, não, mas porque fazia
questão de se deslocar da Zona Oeste três vezes por semana somente para
ostentar em lugar chique seu anônimo sucesso empresarial, já que ele não se
dava o luxo de largar seus afazeres e a bela moradia em mãos alheias e mudar
para a Zona Sul. Na verdade, até se podia mudar, mas o risco de desbarrancar
seus negócios era grande. Por isso foi ficando em sua região de origem, até que
lhe adveio a morte súbita.
Fora no mínimo curioso que um empresário como ele
morresse à beira da praia de Ipanema feito um ricaço sem preocupações, quando,
na realidade, sua labuta era intensa. E valia a pena, ele possuía apreciável
patrimônio: era patrono de tudo e todos, autêntico senhor feudal, único tomador
de decisões em sua empresa de estruturas metálicas, que servia tanto às grandes
obras como à montagem dum simplório palanque com cheiro de arapuca para
candidato a cargo político, sem chance de ganhar coisíssima alguma, discursar
em empolgação. E muitos deles efetivamente se elegeram, roubaram e culminaram trancafiados
em presídios de segurança máxima trás de grades forjadas por Jacintinho...
Para Jacintinho, porém, todos os clientes eram
preferenciais, e ele lhes dava atenção pessoalmente. E ninguém além dele
manipulava o capital, tanto o que saía quanto o que entrava, este sempre mais
que aquele. Enfim, Jacintinho era um vencedor, o que, paradoxalmente, não lhe
permitia sair da Zona Oeste, um desalento para a sua família, que insistia em
badalar sob as rutilantes luzes da sociedade de novos ricos.
Dinheiro para atender às pretensões da família, e dele
próprio, não lhe faltava; mas Jacintinho, muito prático, batia pé negando tal
aspiração à mulher e às filhas. Afinal, na Zona Oeste ele era exclusivo, era o “Príncipe
do Ferro Batido”, título máximo que ele atribuíra a si mesmo depois de ficar
rico, porém sempre com a cautela de não se conflitar com os únicos reis do
lugar por direito de sucessão familiar contravencional ou criminoso: os
imperadores da zooteca e do tráfico...
E ali, no velório, diante do padre que dizia a missa de
corpo gelado, toda a história de vida com o defunto vinha à cabeça de Wanda, a
viúva, que se mantinha pranteando a perda do baluarte da família, do alicerce
de uma fortuna conquistada a ferro e ferro... Pois tudo se iniciara numa serralheria
de pequena monta, com Jacintinho empregado e patrão de si próprio. Era só o que
possuía quando conquistou Wanda, mas pôde contrair núpcias com sua amada em
poucos meses, já que seus negócios não paravam de prosperar. E agora era tudo
dela...
Assim refletia Wanda, que consolava as filhas e vertia
lágrimas em enxurrada. Mas, na verdade, chorava unicamente o seu eu exterior,
porque sua alma ria às bandeiras despregadas; vibrava por finalmente ver o caradura
do Jacintinho esticado dentro do luxuoso caixão, mortinho da silva. Sim,
gargalhava a alma íntima de Wanda ao saber que dali em diante toda a fortuna do
marido seria por ela gerida sem dever explicações a ninguém. Ria ainda mais
porque finalmente entregaria seu belo corpo ao desfrute das delícias da alta-roda.
Pois assim efetivamente estava Wanda, chorando por fora e gargalhando por
dentro, enquanto esperava que a terra engolisse para sempre o canalha do
Jacintinho, tal como ela o concebia nos últimos anos de vida conjugal.
Na juventude, Jacintinho era um belo exemplar
masculino: moreno, alto, corpo atlético e bem distribuído, fruto do seu esforço
diário em meio às ferragens. Passaria por modelo, se não fossem as mãos
calejadas e encardidas da fuligem que o traíam ao cumprimentar alguém ou
simplesmente gesticular. Mas ele não se preocupava muito com isso, sentia
orgulho por ter vencido na vida por meio de trabalho árduo e do elevado
tirocínio nos negócios.
Wanda, por sua vez, não lhe ficava atrás. Morena, alta,
olhos verdes e corpo escultural, adentrara a casa dos quarenta anos conservando
a mesma beleza da juventude, salvo algumas poucas rugas que lhe marcavam o
rosto e que logo desapareceriam com ajustes plásticos, pois grana não mais lhe
faltaria. Enfim, um casal atlético e bem-disposto quando se conheceram, e assim
ambos permaneceram por muitos anos. Contudo, Jacintinho não morrera atleta. Já
nele não se viam músculos, mas, sim, muita banha... Dizem as más línguas que
tanto mata a falta de comida como o seu excesso... Esta segunda hipótese fora a
causa mortis de Jacintinho. Nada lhe ocorrera
gratuitamente...
Fazia tempo que Jacintinho vinha desfrutando
desmedidamente dos prazeres de seu sucesso financeiro tanto na mesa como na alcova;
e nesta com muitos brotinhos que lhe surgiam a rodo, não faltando programas em
motéis de luxo, algo que nem dava para beliscar a sua gorda conta bancária. Sim,
era impressionante a gulodice de Jacintinho em matéria de sexo. Fosse brotinho,
fosse bonita, com ele tinha vez, pois, afinal, ele era o príncipe das
estruturas metálicas, e todo sultão que se preza tem um harém apinhado de
odaliscas.
Mas tudo isso era pouco para afetar a dedicada esposa,
mulher discreta e atraente, que também gostava de dar escapulidas, sempre
alegando o falso pretexto de passear com Fernanda, linda loura de 35 anos,
corpo escultural, viúva, mas que, além de íntima de Wanda, era-o também de
Jacintinho antes de aprofundar amizade com a esposa traída. Sim, o ferrão de
Jacintinho já cravara algumas vezes as partes íntimas de Fernanda.
Fernanda, porém, não era uma viúva qualquer; tratava-se
de bem-sucedida empresária do ramo rodoviário; herdara do marido, – falecido
também de infarto, – uma próspera empresa de ônibus. Portanto, nada devia ao
casal, o que facilitou a aproximação dessas duas mulheres que gravitavam em
torno de Jacintinho.
Mas Fernanda, até em maior tom que Wanda, enciumava-se
deveras com as estripulias cada vez mais aventurescas e deveras estrambóticas
de Jacintinho, que não cuidava de resguardar a sua imagem de respeitável
marido, e muito menos, é claro, a de amante. Ao contrário, parecia que lhe dava
prazer ostentar, diante dos amigos e dos inimigos, o papel de machão
insuperável. E Fernanda, para se vingar de Jacintinho, arrastara Wanda à
perdição.
Sim, Fernanda ainda não terminara o romance com
Jacintinho, mas tudo indicava que a paixão fenecera diante da volúpia do machão
por inúmeras moçoilas que lhe caíam nas garras diariamente. Fernanda não
pensava sair perdendo sem vingança, muito menos se contentava em apenas
transformar Jacintinho num corno enviesado, o que já até conseguira. Mas isto
era comum, sem graça. Na verdade, a sua ira era profunda, o seu sonho era fazer
com que o insaciável garanhão recebesse punição mais grave. Fernanda era, com
efeito, vaidosa e vingativa, e sabia dissimular como inegável psicopata seus
maus-caracteres.
Coitada da Wanda, nem sonhava ter ao seu lado alguém
pior que qualquer inimiga, ou seja, uma falsa amiga, que, para destruir alguém,
seria capaz de rebentar todos os obstáculos que porventura lhe cruzassem o
caminho, e de transformar qualquer pessoa em bucha de canhão. Mas tudo isso ela
dissimulava numa imagem de sacripanta que lhe dava absoluta vantagem em relação
a Jacintinho e à sua despeitada mulher. Sim, esta era a fissura na alma de
Wanda: o despeito por onde Fernanda vinha insidiosamente enfiando sua cunha
vingadora... Porque Wanda cada vez mais se desbriava em desalento e permitia o
avanço da outra em seu plano diabólico...
Houvera, sim, uma tentativa de reação de Wanda contra
as escapadas de Jacintinho. Mas ele, também desconfiando dela, passou a lhe
aplicar corretivos estupendos, mostrando uma violenta faceta de comportamento
até então enclausurada no seu íntimo. E quanto mais agredia Wanda mais isto lhe
dava prazer, além, é claro, de deixar a pobre mulher sem condições de sair às
ruas. Daí às ameaças de morte fora um pulo, o que obrigara Wanda a se recolher
em ostracismo, temerosa de acabar sucumbindo nas mãos do possesso companheiro,
este que, – agora sim, – tornara definitivamente à vida de solteiro: entrava e
saía de casa a qualquer hora do dia e da noite e não mais se aproximava de
Wanda com outro fim que não o de agredi-la dispensando-a do sexo.
Nesta triste
situação, a casa de Fernanda foi o lugar que sobrou a Wanda, covil da rival que
se passava por amiga, com quem passou a confidenciar o seu drama sem saber que
boa parte dele era culpa exatamente dela, da Fernanda, que não se cansava de
enviar mensagens anônimas para Jacintinho acusando-a de infidelidade conjugal.
E tome pancada nela, que, desesperada, ia exatamente para o único lugar que não
deveria ir: a casa da rival. Deste modo, Fernanda conseguia acompanhar o
resultado de cada armação que excogitava e levava a cabo contra seu ex-amante.
– Ai, amiga, eu não
aguento mais o Jacintinho!... – choramingava
Wanda.
– Quer saber, Wanda?... Você não pode mais viver com
esse canalha!... – devolvia Fernanda em cinismo.
E assim, de pancadaria em pancadaria, de lamento em
lamento, Fernanda fez Wanda odiar violentamente a Jacintinho. Intrigas surgiam
do nada e pancadas sobravam para a atônita Wanda, que, mesmo sem sair de casa
uma única vez, apanhava quase que diariamente, chegando as rusgas conjugais ao
extremo de um dia Jacintinho simplesmente desligar todas as linhas telefônicas
isolando-a do mundo. Nem tanto, pois na casa de Fernanda ele não a proibia de
ir, e era exatamente lá que Wanda choramingava suas mágoas e propiciava à rival
saber a temperatura daquele termômetro que ela mesma, Fernanda, fazia subir
insidiosamente através de um diz-que-diz mui bem elaborado.
Assim a coitada da Wanda ia à arapuca de Fernanda se
aprisionar: sem perceber; ia atrás de alento para o seu drama exatamente no
covil da víbora venenífera. Era-lhe, porém, o único lugar possível de visitar,
muito embora sempre acompanhada de um segurança, homem de extrema confiança de
Jacintinho, imposto à constrangida esposa no seu dia a dia, ou seja, mais um
tormento além das pancadas diárias.
Contudo, – e é bom dizer, – a retirada dos telefones e
a inserção do esquema de segurança tranquilizou tanto Jacintinho que ele foi
naturalmente espargindo as surras destinadas à esposa, dando-lhe aliviado
descanso. Mas apenas do seu dolorido corpo, que, enquanto sarava, empurrava
para a alma a ira intensa contra o agressor. Afinal, Wanda nunca fora “mulher
de malandro” e não admitia de forma alguma, e sob qualquer pretexto, o tratamento
desumano que vinha recebendo do enciumado marido. Demais, aquele segurança a
atemorizava deveras. Para Wanda, já sugestionada pelas oportunas intrigas de
Fernanda, o homem estava ali para um dia qualquer assassiná-la. E o temor foi
indo aos poucos se transformando em terror...
– Ai, Fernanda, que medo! Você acha que Jacintinho quer
me matar?...
– Querida, infelizmente, é uma possibilidade. E vejo-a
muito concreta diante dos atuais acontecimentos. Você há de concordar comigo
que, em razão do comportamento dele nos últimos anos, não será nada demais se
ele surgir apaixonado por outra. Talvez até de casa montada... E aí – quem
sabe? – ele pode estar pensando em se livrar de você...
– Ah, Fernanda, é demais! Apanhar na cara como estou
apanhando, perder minha juventude ajudando o miserável a enricar, como eu
ajudei, e ainda vê-lo desfilar com outra, isso é demais!... Vou acabar fazendo
merda!...
– Eu sei, minha querida, eu sei. Mas você tem de reagir
com classe, até fazer alguma coisa pra reconquistar Jacintinho...
– Quê? Reconquistar?... Ora, amiga, eu nunca mais vou
deixar aquele filho da puta me fazer uma carícia, por menor que seja. Pancadas
eu não as posso evitar; mas nem pensar em reconciliação. Agora é ele pra lá e
eu pra cá. Só não aceito perder meu lugar de esposa. Ele não venceu na vida
sozinho, pô!...
– Não é bem isso que estou sugerindo, querida. Você não
me deixou concluir. Acho que você tem de criar uma fórmula de convivência que o
convença de que as coisas melhoraram; você deve demonstrar resignação, afirmar
que ele é realmente o rei do pedaço, que você, enfim, é uma esposa submissa.
Diga-me, ele continua a comer em casa?...
– Sim, quase todos os dias. Mas que pergunta estranha é
essa?...
– Poxa, Wanda, me responda primeiro! Depois eu explico.
– Tudo bem, me desculpe. Você sabe que a fábrica é
perto e ele não consegue perder o hábito de fazer refeições em casa pra depois
tirar uma soneca. É hábito de anos. Mas às vezes ele não aparece; sei lá pra
onde ele vai...
– Wanda, diga-me uma coisa, o que ele come normalmente?
– Ora, Fernanda, um prato bastante leve, moderado...
Mas você não tá pensando em sugerir que eu coloque veneno na comida dele.
Espere um pouco!... Isto é só no cinema...
– Calma, amiga! Não falei nada disso! Só perguntei se
ele costuma comer em casa. Não sugeri nada. Você tá com tanta raiva que já foi
concluindo besteiras por sua conta.
– Me desculpe, Fernanda! É que estou nervosa. Minhas
filhas choram diariamente e às vezes apanham também quando tentam me defender
dele. É por isso que reagi pensando matar o desgraçado.
– É verdade, e você tem motivos de sobra pra pensar em
acabar com ele. Mas acho que você não deve estragar a sua vida nem pode
continuar apanhando desse jeito, pior que sem poder dar umas escapulidas. Você
é nova, linda, e sabe que homem bonito não falta na praça. Ainda por cima é
endinheirada. Portanto, nada de reações tresloucadas. Mas temos de pensar numa
solução.
Na verdade, a solução já estava formulada na mente de
Fernanda, mas ela não podia se entusiasmar a ponto de Wanda desconfiar. Não
podia manifestar muito interesse pelo drama da amiga, de tal modo que
despertasse suspeitas. Afinal, o problema pertencia a Wanda. Contudo, a
despeitada ex-amante já havia enfiado na cabeça que destruiria Jacintinho de
qualquer maneira, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. E não
indagara à toa se Jacintinho fazia suas refeições em casa...
– Wanda, você não me respondeu direito quando perguntei
se Jacintinho come sempre em casa. Você se zangou sem motivo e se desviou do
assunto. Mas é importante que eu insista. Penso que muitas guerras foram
vencidas pela barriga, a maioria delas por falta de comida. Quantas vezes você
já não viu no cinema um exército atacar as bases de suprimento do inimigo pra
deixar os soldados com fome?
– Ah, Fernanda, acho que você tá maluca. Você não tá
querendo me sugerir que eu não administre mais a cozinha de minha casa?... Que
não faça mais comida? Aí é que ele vai me arrebentar a cara!... Que isso,
Fernanda?
– Não, amiga, não é isso! Mais uma vez você está me
atropelando. Como eu lhe iria sugerir não pôr a mesa pra Jacintinho? Ora, não é
nada disso! É o contrário...
– Hum... Tá bem! Se existe algo sagrado lá em casa é a
mesa bem-posta. Afinal, eu e minhas filhas temos o hábito de fazer juntas
nossas refeições. Aquele miserável sempre fez questão disso, de ter a família
em torno da mesa. Sempre disse pra nós que esse momento é sagrado. Mas ele é um
desgraçado! – desabafou Wanda explodindo em lágrimas.
– Tudo bem, querida, tudo bem!... Depois a gente
continua a conversar. Tenho de sair agora. Fique aí. Use e abuse do telefone.
Faça o que bem quiser! Até mesmo convidar algum gatinho pra te consolar...
– Puxa amiga, obrigada! Mas hoje não! Não tenho cabeça
pra nada. Acho que virei aqui amanhã, e creio que vou aceitar sua sugestão.
Estou muito carente...
Foram inúmeras as conversas entre as amigas, tendo ou
não pancadaria na casa de Wanda. Mas esta não perdeu tempo e logo arranjou um
meio de se encontrar com seu gatinho na casa de Fernanda, atendendo assim aos
desejos do seu belo corpo. Porém, a paixão física pelo jovem se foi
transformando em paixão da alma. Enfim, Wanda culminou perdidamente enamorada,
passando a se enojar ainda mais de Jacintinho. E, se aproveitando desse clima
Fernanda retomou seu mirabolante plano:
– Querida, você não acha que é hora de se livrar de
Jacintinho? Veja só, ele vai acabar descobrindo suas transas com Mário, e que
você subornou o segurança. Você sabe como são esses seguranças... Vão com quem
dá mais...
– Ah, Fernanda, quer mesmo saber? Pois eu lhe digo que
não aguento nem olhar pra cara daquele miserável. Por mim, ele devia estar
debaixo de sete palmos...
– Poxa, Wanda, já pensou? Você ficaria como eu, livre e
desimpedida, além de rica. Se eu fosse você, faria como eu, mataria o
Jacintinho pela boca...
– Pela boca?...
– É mesmo, pela boca!...
– Ah, espere aí, Fernanda! Todo mundo sabe que seu
finado morreu de infarto. Poxa, será que você o envenenou e ninguém
percebeu?...
– Que nada, amiga! Vou lhe dizer como fiz...
Logo no dia seguinte, ao se assentar à mesa do repasto,
Jacintinho elogiou o gosto diferente do feijão... O restante viera, como
sempre, sem novidades. Mas o feijão estava tão delicioso que Jacintinho repetiu
o prato. E foi assim que, dia após dia, o feijão ia à mesa a mais e mais
incrementado no tempero, até que na terrina boiasse um belo pedaço de paio.
Jacintinho, porém, resistiu à tentação, e reclamou:
– Pô, Wanda, qual é a sua? Tá exagerando na gordura.
– Nada, Jacintinho! É só pra dar um gostinho... Aliás,
me dá um pedacinho aí...
Não precisou mais para Jacintinho morder a isca e
passar a comer um “pedacinho”, enquanto Wanda via-o reclamar, e comer, e
engordar, e reclamar, e comer, e engordar... E ao pedacinho de paio se inseriu
o de carne-seca, e mais outro de costelinha, e, sempre aos poucos, o feijão
chegou à mesa já com cara de feijoada.
Deste modo Jacintinho finalmente se entregou às
gostosuras do feijão, enquanto nem notava, ou fingia não notar, que o bife
vinha mais saboroso à mesa, e que a carne-assada apresentava-se acompanhada de
batatinhas coradas e um molho bastante gorduroso a banhá-las. E assim
Jacintinho sucumbiu aos prazeres da mesa e ao cansaço físico delicioso,
dobrando o tempo da sesta.
Passados alguns meses, Jacintinho estava tão roliço que
se desesperou. Percebia que, apesar do dinheiro, já alguns brotinhos o
recusavam. Partiu então para a dieta radical, porém inutilmente, pois a mulher
e as filhas se mantinham degustando comidas pesadas à mesa, enquanto ele
tentava a fidelidade às folhagens e leguminosas. Perda de tempo, porque, no
final, ele sempre dava uma beliscada na comida gordurosa, até se esquecer da
dieta. E dos brotinhos... E se foi transformando num incorrigível comilão, com a
obesidade se instalando insidiosamente no seu corpo. O mesmo, porém, não
ocorria com Wanda e as filhas, que se mantinham esbeltas e controladas na
quantidade de comida, além de malharem na Academia do Mário, o gatinho amante
de Wanda.
A partir daí Jacintinho jamais seria o mesmo. Com
vergonha da barriga, parara de caminhar e sempre inventava desculpa para não se
exercitar; ainda estrilava na mesa quando a mulher e as filhas o criticavam por
estar comendo em demasia. Elas, as filhas, até chegaram a retirar da mesa as
comidas venenosas, claro que sem saber do plano da mãe, que apenas fazia jogo
de cena, pois, na verdade, não gostara da interferência das meninas para evitar
que o pai engordasse. Mas elas passaram a receber do pai violentas agressões
verbais, até que desistiram de conter a gula que já o dominava integralmente.
Depois de dois anos, Jacintinho, já uma bola de tão
gordo, resolveu novamente caminhar em Ipanema e esticou as canelas com as
coronárias entupidas. Morreu de tanto comer. Por isso a viúva ria por dentro ao
ver o volumoso corpo dele descer à sepultura, assim como gargalhava a outra que
lhe sugerira matar Jacintinho como ela própria o fizera com seu marido.
Sobraram, destarte, duas viúvas lindas e ricas, confirmando-se a lógica da
mulher sempre desgraçar o homem pela boca, como ocorreu com Adão e Eva. Porque
assim, e mais uma vez na história da humanidade, confirmou-se na prática o
velho ditado escrito de muitas formas: “O pobre morre de fome tal como o rico
morre de ceva.”



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