sábado, 6 de maio de 2017

CRIME PERFEITO





Era, indubitavelmente, um enterramento de primeira categoria. Mesmo que quase abolida a prática da condução do féretro pelas ruas nos plantios modernos de defuntos, – hoje tudo funciona no espaço interno do sepulcrário, – havia a necessária pompa naquela cerimônia que levava à última morada o corpo de Jacinto Pessoa, porque de sua alma não se tem notícia alguma.
Contudo, no campo-santo do Parque da Montanha um vasto gramado entremeado de jardins floridos dava à vista dos que ali pranteavam seus mortos uma imagem de paz congelada no tempo. Também as árvores incorporavam ao ar um olor úmido tão agradável que mais parecia o dos jardins do Éden, com a mãe-natureza explodindo feraz e bela sobre o adubo de corpos humanos em decomposição. Pois é assim que o infalível bicho-homem cumpre sua função de mero estrume, porquanto em cemitério não há de haver diferença entre corpo santo ou carcaça de bandido: ambos igualmente fazem medrar as plantas do lugar sacrossanto que impõe a isonomia entre pobres e ricos, entre maculados e imaculados, entre lindos e horrendos, entre eles, elas ou invertidos para quaisquer lados; enfim, a igualdade tão propalada pelos racionais, invenção feita em vida, porém só alcançada na morte que a todos espera mui pacientemente. E sempre vence...
Mas ali, a bem da verdade, e por medo do inferno, nada lembrava cemitério, posto não haver ostentações inúteis como antigamente se via e ainda se vê nos campos-santos tradicionais, com seus jazigos que somente perpetuam nomes e títulos de ilustres desconhecidos que viveram as riquezas de suas épocas, ou até mesmo o falso deslumbre dos “ricos em ouropéis”, mas que, mesmo assim, fizeram questão de se projetar à eternidade através da suntuosidade de seus túmulos. Sim, sim, lá estão comendadores e condessas, reis e rainhas, imperadores e imperatrizes, e outros remotos detentores de supérfluos títulos honoríficos, muitos dos quais comprados a peso de ouro verdadeiro. Hoje, esses defuntos não são mais nada, absolutamente nada, nem mesmo lembrança. Dentro do túmulo há apenas carne apodrecida, ossos ou pó ou desses amantes de honrarias e dos praticantes de crime em vida. Tudo igual na eternidade horizontal...
Mas como tudo é cemitério, lá estava Wanda da Silva Pessoa, bela viúva que escolhera o melhor lugar para semear em simpleza seu companheiro de 23 anos de conúbio, paixão que se iniciara cedo, ele com 21 e ela com 18, suas idades quando se conheceram num baile de carnaval e em ambos aflorara o amor em impetuosa sensualidade que terminaria na alcova de um belo motel. Casaram-se, enfim, e empurraram a vida até o momento da despedida. E não se casaram em vão: geraram duas filhas, ambas já adolescentes.
Wanda, na sala do velório, sentada em pose de resignação profunda, rememorava no íntimo a sua vida com Jacintinho, como assim era apelidado o seu marido. Morrera de repente, o Jacintinho, vítima de infarto fulminante, durante simples caminhada no calçadão da praia de Ipanema numa segunda-feira de manhã.
Não que morasse ali na praia, não, mas porque fazia questão de se deslocar da Zona Oeste três vezes por semana somente para ostentar em lugar chique seu anônimo sucesso empresarial, já que ele não se dava o luxo de largar seus afazeres e a bela moradia em mãos alheias e mudar para a Zona Sul. Na verdade, até se podia mudar, mas o risco de desbarrancar seus negócios era grande. Por isso foi ficando em sua região de origem, até que lhe adveio a morte súbita.
Fora no mínimo curioso que um empresário como ele morresse à beira da praia de Ipanema feito um ricaço sem preocupações, quando, na realidade, sua labuta era intensa. E valia a pena, ele possuía apreciável patrimônio: era patrono de tudo e todos, autêntico senhor feudal, único tomador de decisões em sua empresa de estruturas metálicas, que servia tanto às grandes obras como à montagem dum simplório palanque com cheiro de arapuca para candidato a cargo político, sem chance de ganhar coisíssima alguma, discursar em empolgação. E muitos deles efetivamente se elegeram, roubaram e culminaram trancafiados em presídios de segurança máxima trás de grades forjadas por Jacintinho...
Para Jacintinho, porém, todos os clientes eram preferenciais, e ele lhes dava atenção pessoalmente. E ninguém além dele manipulava o capital, tanto o que saía quanto o que entrava, este sempre mais que aquele. Enfim, Jacintinho era um vencedor, o que, paradoxalmente, não lhe permitia sair da Zona Oeste, um desalento para a sua família, que insistia em badalar sob as rutilantes luzes da sociedade de novos ricos.
Dinheiro para atender às pretensões da família, e dele próprio, não lhe faltava; mas Jacintinho, muito prático, batia pé negando tal aspiração à mulher e às filhas. Afinal, na Zona Oeste ele era exclusivo, era o “Príncipe do Ferro Batido”, título máximo que ele atribuíra a si mesmo depois de ficar rico, porém sempre com a cautela de não se conflitar com os únicos reis do lugar por direito de sucessão familiar contravencional ou criminoso: os imperadores da zooteca e do tráfico...
E ali, no velório, diante do padre que dizia a missa de corpo gelado, toda a história de vida com o defunto vinha à cabeça de Wanda, a viúva, que se mantinha pranteando a perda do baluarte da família, do alicerce de uma fortuna conquistada a ferro e ferro... Pois tudo se iniciara numa serralheria de pequena monta, com Jacintinho empregado e patrão de si próprio. Era só o que possuía quando conquistou Wanda, mas pôde contrair núpcias com sua amada em poucos meses, já que seus negócios não paravam de prosperar. E agora era tudo dela...
Assim refletia Wanda, que consolava as filhas e vertia lágrimas em enxurrada. Mas, na verdade, chorava unicamente o seu eu exterior, porque sua alma ria às bandeiras despregadas; vibrava por finalmente ver o caradura do Jacintinho esticado dentro do luxuoso caixão, mortinho da silva. Sim, gargalhava a alma íntima de Wanda ao saber que dali em diante toda a fortuna do marido seria por ela gerida sem dever explicações a ninguém. Ria ainda mais porque finalmente entregaria seu belo corpo ao desfrute das delícias da alta-roda. Pois assim efetivamente estava Wanda, chorando por fora e gargalhando por dentro, enquanto esperava que a terra engolisse para sempre o canalha do Jacintinho, tal como ela o concebia nos últimos anos de vida conjugal.
Na juventude, Jacintinho era um belo exemplar masculino: moreno, alto, corpo atlético e bem distribuído, fruto do seu esforço diário em meio às ferragens. Passaria por modelo, se não fossem as mãos calejadas e encardidas da fuligem que o traíam ao cumprimentar alguém ou simplesmente gesticular. Mas ele não se preocupava muito com isso, sentia orgulho por ter vencido na vida por meio de trabalho árduo e do elevado tirocínio nos negócios.
Wanda, por sua vez, não lhe ficava atrás. Morena, alta, olhos verdes e corpo escultural, adentrara a casa dos quarenta anos conservando a mesma beleza da juventude, salvo algumas poucas rugas que lhe marcavam o rosto e que logo desapareceriam com ajustes plásticos, pois grana não mais lhe faltaria. Enfim, um casal atlético e bem-disposto quando se conheceram, e assim ambos permaneceram por muitos anos. Contudo, Jacintinho não morrera atleta. Já nele não se viam músculos, mas, sim, muita banha... Dizem as más línguas que tanto mata a falta de comida como o seu excesso... Esta segunda hipótese fora a causa mortis de Jacintinho. Nada lhe ocorrera gratuitamente...


Fazia tempo que Jacintinho vinha desfrutando desmedidamente dos prazeres de seu sucesso financeiro tanto na mesa como na alcova; e nesta com muitos brotinhos que lhe surgiam a rodo, não faltando programas em motéis de luxo, algo que nem dava para beliscar a sua gorda conta bancária. Sim, era impressionante a gulodice de Jacintinho em matéria de sexo. Fosse brotinho, fosse bonita, com ele tinha vez, pois, afinal, ele era o príncipe das estruturas metálicas, e todo sultão que se preza tem um harém apinhado de odaliscas.
Mas tudo isso era pouco para afetar a dedicada esposa, mulher discreta e atraente, que também gostava de dar escapulidas, sempre alegando o falso pretexto de passear com Fernanda, linda loura de 35 anos, corpo escultural, viúva, mas que, além de íntima de Wanda, era-o também de Jacintinho antes de aprofundar amizade com a esposa traída. Sim, o ferrão de Jacintinho já cravara algumas vezes as partes íntimas de Fernanda.
Fernanda, porém, não era uma viúva qualquer; tratava-se de bem-sucedida empresária do ramo rodoviário; herdara do marido, – falecido também de infarto, – uma próspera empresa de ônibus. Portanto, nada devia ao casal, o que facilitou a aproximação dessas duas mulheres que gravitavam em torno de Jacintinho.
Mas Fernanda, até em maior tom que Wanda, enciumava-se deveras com as estripulias cada vez mais aventurescas e deveras estrambóticas de Jacintinho, que não cuidava de resguardar a sua imagem de respeitável marido, e muito menos, é claro, a de amante. Ao contrário, parecia que lhe dava prazer ostentar, diante dos amigos e dos inimigos, o papel de machão insuperável. E Fernanda, para se vingar de Jacintinho, arrastara Wanda à perdição.
Sim, Fernanda ainda não terminara o romance com Jacintinho, mas tudo indicava que a paixão fenecera diante da volúpia do machão por inúmeras moçoilas que lhe caíam nas garras diariamente. Fernanda não pensava sair perdendo sem vingança, muito menos se contentava em apenas transformar Jacintinho num corno enviesado, o que já até conseguira. Mas isto era comum, sem graça. Na verdade, a sua ira era profunda, o seu sonho era fazer com que o insaciável garanhão recebesse punição mais grave. Fernanda era, com efeito, vaidosa e vingativa, e sabia dissimular como inegável psicopata seus maus-caracteres.
Coitada da Wanda, nem sonhava ter ao seu lado alguém pior que qualquer inimiga, ou seja, uma falsa amiga, que, para destruir alguém, seria capaz de rebentar todos os obstáculos que porventura lhe cruzassem o caminho, e de transformar qualquer pessoa em bucha de canhão. Mas tudo isso ela dissimulava numa imagem de sacripanta que lhe dava absoluta vantagem em relação a Jacintinho e à sua despeitada mulher. Sim, esta era a fissura na alma de Wanda: o despeito por onde Fernanda vinha insidiosamente enfiando sua cunha vingadora... Porque Wanda cada vez mais se desbriava em desalento e permitia o avanço da outra em seu plano diabólico...
Houvera, sim, uma tentativa de reação de Wanda contra as escapadas de Jacintinho. Mas ele, também desconfiando dela, passou a lhe aplicar corretivos estupendos, mostrando uma violenta faceta de comportamento até então enclausurada no seu íntimo. E quanto mais agredia Wanda mais isto lhe dava prazer, além, é claro, de deixar a pobre mulher sem condições de sair às ruas. Daí às ameaças de morte fora um pulo, o que obrigara Wanda a se recolher em ostracismo, temerosa de acabar sucumbindo nas mãos do possesso companheiro, este que, – agora sim, – tornara definitivamente à vida de solteiro: entrava e saía de casa a qualquer hora do dia e da noite e não mais se aproximava de Wanda com outro fim que não o de agredi-la dispensando-a do sexo.
Nesta triste situação, a casa de Fernanda foi o lugar que sobrou a Wanda, covil da rival que se passava por amiga, com quem passou a confidenciar o seu drama sem saber que boa parte dele era culpa exatamente dela, da Fernanda, que não se cansava de enviar mensagens anônimas para Jacintinho acusando-a de infidelidade conjugal. E tome pancada nela, que, desesperada, ia exatamente para o único lugar que não deveria ir: a casa da rival. Deste modo, Fernanda conseguia acompanhar o resultado de cada armação que excogitava e levava a cabo contra seu ex-amante.
– Ai, amiga, eu não aguento mais o Jacintinho!... – choramingava Wanda.
– Quer saber, Wanda?... Você não pode mais viver com esse canalha!... – devolvia Fernanda em cinismo.
E assim, de pancadaria em pancadaria, de lamento em lamento, Fernanda fez Wanda odiar violentamente a Jacintinho. Intrigas surgiam do nada e pancadas sobravam para a atônita Wanda, que, mesmo sem sair de casa uma única vez, apanhava quase que diariamente, chegando as rusgas conjugais ao extremo de um dia Jacintinho simplesmente desligar todas as linhas telefônicas isolando-a do mundo. Nem tanto, pois na casa de Fernanda ele não a proibia de ir, e era exatamente lá que Wanda choramingava suas mágoas e propiciava à rival saber a temperatura daquele termômetro que ela mesma, Fernanda, fazia subir insidiosamente através de um diz-que-diz mui bem elaborado.
Assim a coitada da Wanda ia à arapuca de Fernanda se aprisionar: sem perceber; ia atrás de alento para o seu drama exatamente no covil da víbora venenífera. Era-lhe, porém, o único lugar possível de visitar, muito embora sempre acompanhada de um segurança, homem de extrema confiança de Jacintinho, imposto à constrangida esposa no seu dia a dia, ou seja, mais um tormento além das pancadas diárias.
Contudo, – e é bom dizer, – a retirada dos telefones e a inserção do esquema de segurança tranquilizou tanto Jacintinho que ele foi naturalmente espargindo as surras destinadas à esposa, dando-lhe aliviado descanso. Mas apenas do seu dolorido corpo, que, enquanto sarava, empurrava para a alma a ira intensa contra o agressor. Afinal, Wanda nunca fora “mulher de malandro” e não admitia de forma alguma, e sob qualquer pretexto, o tratamento desumano que vinha recebendo do enciumado marido. Demais, aquele segurança a atemorizava deveras. Para Wanda, já sugestionada pelas oportunas intrigas de Fernanda, o homem estava ali para um dia qualquer assassiná-la. E o temor foi indo aos poucos se transformando em terror...
– Ai, Fernanda, que medo! Você acha que Jacintinho quer me matar?...
– Querida, infelizmente, é uma possibilidade. E vejo-a muito concreta diante dos atuais acontecimentos. Você há de concordar comigo que, em razão do comportamento dele nos últimos anos, não será nada demais se ele surgir apaixonado por outra. Talvez até de casa montada... E aí – quem sabe? – ele pode estar pensando em se livrar de você...
– Ah, Fernanda, é demais! Apanhar na cara como estou apanhando, perder minha juventude ajudando o miserável a enricar, como eu ajudei, e ainda vê-lo desfilar com outra, isso é demais!... Vou acabar fazendo merda!...
– Eu sei, minha querida, eu sei. Mas você tem de reagir com classe, até fazer alguma coisa pra reconquistar Jacintinho...
– Quê? Reconquistar?... Ora, amiga, eu nunca mais vou deixar aquele filho da puta me fazer uma carícia, por menor que seja. Pancadas eu não as posso evitar; mas nem pensar em reconciliação. Agora é ele pra lá e eu pra cá. Só não aceito perder meu lugar de esposa. Ele não venceu na vida sozinho, pô!...
– Não é bem isso que estou sugerindo, querida. Você não me deixou concluir. Acho que você tem de criar uma fórmula de convivência que o convença de que as coisas melhoraram; você deve demonstrar resignação, afirmar que ele é realmente o rei do pedaço, que você, enfim, é uma esposa submissa. Diga-me, ele continua a comer em casa?...
– Sim, quase todos os dias. Mas que pergunta estranha é essa?...
– Poxa, Wanda, me responda primeiro! Depois eu explico.
– Tudo bem, me desculpe. Você sabe que a fábrica é perto e ele não consegue perder o hábito de fazer refeições em casa pra depois tirar uma soneca. É hábito de anos. Mas às vezes ele não aparece; sei lá pra onde ele vai...
– Wanda, diga-me uma coisa, o que ele come normalmente?
– Ora, Fernanda, um prato bastante leve, moderado... Mas você não tá pensando em sugerir que eu coloque veneno na comida dele. Espere um pouco!... Isto é só no cinema...
– Calma, amiga! Não falei nada disso! Só perguntei se ele costuma comer em casa. Não sugeri nada. Você tá com tanta raiva que já foi concluindo besteiras por sua conta.
– Me desculpe, Fernanda! É que estou nervosa. Minhas filhas choram diariamente e às vezes apanham também quando tentam me defender dele. É por isso que reagi pensando matar o desgraçado.
– É verdade, e você tem motivos de sobra pra pensar em acabar com ele. Mas acho que você não deve estragar a sua vida nem pode continuar apanhando desse jeito, pior que sem poder dar umas escapulidas. Você é nova, linda, e sabe que homem bonito não falta na praça. Ainda por cima é endinheirada. Portanto, nada de reações tresloucadas. Mas temos de pensar numa solução.
Na verdade, a solução já estava formulada na mente de Fernanda, mas ela não podia se entusiasmar a ponto de Wanda desconfiar. Não podia manifestar muito interesse pelo drama da amiga, de tal modo que despertasse suspeitas. Afinal, o problema pertencia a Wanda. Contudo, a despeitada ex-amante já havia enfiado na cabeça que destruiria Jacintinho de qualquer maneira, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida. E não indagara à toa se Jacintinho fazia suas refeições em casa...
– Wanda, você não me respondeu direito quando perguntei se Jacintinho come sempre em casa. Você se zangou sem motivo e se desviou do assunto. Mas é importante que eu insista. Penso que muitas guerras foram vencidas pela barriga, a maioria delas por falta de comida. Quantas vezes você já não viu no cinema um exército atacar as bases de suprimento do inimigo pra deixar os soldados com fome?
– Ah, Fernanda, acho que você tá maluca. Você não tá querendo me sugerir que eu não administre mais a cozinha de minha casa?... Que não faça mais comida? Aí é que ele vai me arrebentar a cara!... Que isso, Fernanda?
– Não, amiga, não é isso! Mais uma vez você está me atropelando. Como eu lhe iria sugerir não pôr a mesa pra Jacintinho? Ora, não é nada disso! É o contrário...
– Hum... Tá bem! Se existe algo sagrado lá em casa é a mesa bem-posta. Afinal, eu e minhas filhas temos o hábito de fazer juntas nossas refeições. Aquele miserável sempre fez questão disso, de ter a família em torno da mesa. Sempre disse pra nós que esse momento é sagrado. Mas ele é um desgraçado! – desabafou Wanda explodindo em lágrimas.
– Tudo bem, querida, tudo bem!... Depois a gente continua a conversar. Tenho de sair agora. Fique aí. Use e abuse do telefone. Faça o que bem quiser! Até mesmo convidar algum gatinho pra te consolar...
– Puxa amiga, obrigada! Mas hoje não! Não tenho cabeça pra nada. Acho que virei aqui amanhã, e creio que vou aceitar sua sugestão. Estou muito carente...
Foram inúmeras as conversas entre as amigas, tendo ou não pancadaria na casa de Wanda. Mas esta não perdeu tempo e logo arranjou um meio de se encontrar com seu gatinho na casa de Fernanda, atendendo assim aos desejos do seu belo corpo. Porém, a paixão física pelo jovem se foi transformando em paixão da alma. Enfim, Wanda culminou perdidamente enamorada, passando a se enojar ainda mais de Jacintinho. E, se aproveitando desse clima Fernanda retomou seu mirabolante plano:
– Querida, você não acha que é hora de se livrar de Jacintinho? Veja só, ele vai acabar descobrindo suas transas com Mário, e que você subornou o segurança. Você sabe como são esses seguranças... Vão com quem dá mais...
– Ah, Fernanda, quer mesmo saber? Pois eu lhe digo que não aguento nem olhar pra cara daquele miserável. Por mim, ele devia estar debaixo de sete palmos...
– Poxa, Wanda, já pensou? Você ficaria como eu, livre e desimpedida, além de rica. Se eu fosse você, faria como eu, mataria o Jacintinho pela boca...
– Pela boca?...
– É mesmo, pela boca!...
– Ah, espere aí, Fernanda! Todo mundo sabe que seu finado morreu de infarto. Poxa, será que você o envenenou e ninguém percebeu?...
– Que nada, amiga! Vou lhe dizer como fiz...
 Logo no dia seguinte, ao se assentar à mesa do repasto, Jacintinho elogiou o gosto diferente do feijão... O restante viera, como sempre, sem novidades. Mas o feijão estava tão delicioso que Jacintinho repetiu o prato. E foi assim que, dia após dia, o feijão ia à mesa a mais e mais incrementado no tempero, até que na terrina boiasse um belo pedaço de paio. Jacintinho, porém, resistiu à tentação, e reclamou:
– Pô, Wanda, qual é a sua? Tá exagerando na gordura.
– Nada, Jacintinho! É só pra dar um gostinho... Aliás, me dá um pedacinho aí...
Não precisou mais para Jacintinho morder a isca e passar a comer um “pedacinho”, enquanto Wanda via-o reclamar, e comer, e engordar, e reclamar, e comer, e engordar... E ao pedacinho de paio se inseriu o de carne-seca, e mais outro de costelinha, e, sempre aos poucos, o feijão chegou à mesa já com cara de feijoada.
Deste modo Jacintinho finalmente se entregou às gostosuras do feijão, enquanto nem notava, ou fingia não notar, que o bife vinha mais saboroso à mesa, e que a carne-assada apresentava-se acompanhada de batatinhas coradas e um molho bastante gorduroso a banhá-las. E assim Jacintinho sucumbiu aos prazeres da mesa e ao cansaço físico delicioso, dobrando o tempo da sesta.
Passados alguns meses, Jacintinho estava tão roliço que se desesperou. Percebia que, apesar do dinheiro, já alguns brotinhos o recusavam. Partiu então para a dieta radical, porém inutilmente, pois a mulher e as filhas se mantinham degustando comidas pesadas à mesa, enquanto ele tentava a fidelidade às folhagens e leguminosas. Perda de tempo, porque, no final, ele sempre dava uma beliscada na comida gordurosa, até se esquecer da dieta. E dos brotinhos... E se foi transformando num incorrigível comilão, com a obesidade se instalando insidiosamente no seu corpo. O mesmo, porém, não ocorria com Wanda e as filhas, que se mantinham esbeltas e controladas na quantidade de comida, além de malharem na Academia do Mário, o gatinho amante de Wanda.
A partir daí Jacintinho jamais seria o mesmo. Com vergonha da barriga, parara de caminhar e sempre inventava desculpa para não se exercitar; ainda estrilava na mesa quando a mulher e as filhas o criticavam por estar comendo em demasia. Elas, as filhas, até chegaram a retirar da mesa as comidas venenosas, claro que sem saber do plano da mãe, que apenas fazia jogo de cena, pois, na verdade, não gostara da interferência das meninas para evitar que o pai engordasse. Mas elas passaram a receber do pai violentas agressões verbais, até que desistiram de conter a gula que já o dominava integralmente.


Depois de dois anos, Jacintinho, já uma bola de tão gordo, resolveu novamente caminhar em Ipanema e esticou as canelas com as coronárias entupidas. Morreu de tanto comer. Por isso a viúva ria por dentro ao ver o volumoso corpo dele descer à sepultura, assim como gargalhava a outra que lhe sugerira matar Jacintinho como ela própria o fizera com seu marido. Sobraram, destarte, duas viúvas lindas e ricas, confirmando-se a lógica da mulher sempre desgraçar o homem pela boca, como ocorreu com Adão e Eva. Porque assim, e mais uma vez na história da humanidade, confirmou-se na prática o velho ditado escrito de muitas formas: “O pobre morre de fome tal como o rico morre de ceva.”

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