Tão logo raiava o dia e já se ouvia o ranger das portas
do Armazém Tamoio enrodilhando-se no alto de seus largos umbrais e se abrindo
ao público. E, não raro, apressados fregueses esperavam para comprar alguma
coisa antes de irem ao trabalho. Sempre, é claro, mandando anotar no Caderno de
Fiado. Era a década de 60, tempo dos armazéns de Secos & Molhados e de
outros pequenos ramos de comércio nos bairros proletários das cidades
brasileiras. Aqui, todavia, nos referimos ao Pita, bairro de São Gonçalo,
cidade próxima do Rio de Janeiro.
Quem não se lembra do Caderno de Fiado?... Sim, era
nele que as gentes do bairro penduravam suas contas para acertá-las no dia do
pagamento de seus salários, que sempre acabavam antes de o mês findar. Era
tradição o “fiado” e havia seriedade sacerdotal nessa interação comerciante e freguês,
cuja garantia residia na realidade de que ninguém comia apenas no mês que
devia, e só comeria no seguinte se pagasse o anterior.
Falando assim parece que tratamos de algum comércio
frio, calculista, impessoal e egoísta. Não!... Ao contrário, havia um
ingrediente humano envolvendo as relações entre o armazém e os fregueses. Era
nele que os trabalhadores costumavam parar, na volta do trabalho, para
cavaquear e deglutir a boa pinga acompanhada do salame ou de outros petiscos.
Depois saíam levando algo para complementar a alimentação da família no jantar.
Sim, havia o lado humano de comerciar, cada caso era um caso, e cada freguês,
um amigo de anos. E quando alguém se via em dificuldades financeiras, ou
desempregado, dava-se um jeito, o prego enferrujava com a conta pendurada e a
família do freguês não via a fome chegar ao estômago.
Dito está sobre os armazéns de Secos & Molhados,
mas o que nos interessa é o Armazém Tamoio, pertencente ao Seu Pereira,
simpático lusitano que herdara do pai o comércio, dando-lhe continuidade. Seu Pereira
veio criança para o Brasil e se instalou no Pita, onde o pai dele iniciou o
negócio de Secos & Molhados. Com a morte do pai, Seu Pereira tomou conta de
tudo, ainda jovem, porém demonstrando a mesma vocação paterna. Casou-se com
Cláudia, que lhe ficou a ajudar atrás do balcão. Enfim, uma família laboriosa,
financeiramente equilibrada e feliz.
Até aqui, diriam os leitores, há muitas histórias como
esta, com o que concordamos. Afinal, ainda hoje não são poucos os donos de
vendas Brasil afora. E foram muitos os que enricaram sem nunca pôr os pés fora
de seus lugares, onde os negócios geralmente se desdobravam em outros ramos. E
como metal chama metal e o rio corre para o mar, Seu Pereira era dono de muitas
casas, todas alugadas. E jamais pensou sair do Pita para lugar mais chique. Era
naquele bairro que ele exercia o seu labor e dizia que dali só sairia ao
cemitério...
Não se podia dizer o mesmo de seus filhos... Eram três
homens, Francisco, Manoel e Bento, que se formaram doutores em universidades de
nomeada. Pela ordem, advogado, médico e dentista. E é sobre Bento, por alcunha
Bentinho, o dentista, que vamos falar. Vamos contar a sua história e a de sua
doidivana esposa, que depois de formado ele conduziria ao altar-mor da igreja
de N.S. da Conceição, em Niterói, em conúbio deslumbrante. Antes, porém, ainda
solteiro, Bentinho abriu seu consultório no próprio bairro, logo se ocupando
com grande clientela. Cobrava baratinho, é a mais pura verdade, e por isso era
estimado por toda aquela gente modesta. Também no Pita ele possuía amigos com
os quais se divertia nas rodas de baile, no futebol e nos namoros adolescentes.
Para estes, ele era apenas Bentinho, e não o pomposo “Dr. Bento Pereira –
Cirurgião-Dentista” da placa que indicava o seu consultório.
Bentinho, em época de faculdade, conhecera a moça que
viria a ser o grande amor de sua vida. Chamava-se Fernanda. Tudo começara numa
festa em Icaraí, bairro abastado de Niterói, cidade vizinha de São Gonçalo. Quando
Bentinho fisgou o olho na belíssima morena de olhos verdes e corpo escultural,
seu coração disparou. Para encurtar esta parte, imagine a mais bela mulher e
coloque-a aos pés de Fernanda para que esta reine facilmente. Ela era assim.
Foi paixão explosiva. Começaram a namorar e em pouco
tempo trocaram alianças, vindo o casal a morar no Pita a contragosto de
Fernanda, apesar de ser na melhor casa do bairro. Garota chique, porém, ela não
se conformava em viver em bairro proletário. Não esquecia os seus tempos de
solteira em Icaraí. O amor venceria este obstáculo social?...
Fernanda adentrou o Pita com o pé esquerdo. Quando ia
da casa ao consultório do marido, ou ao armazém, caminhava sem dar a mínima às
pessoas. Seguia impoluta, altiva, queixo empinado, nariz empertigado, com o
andar arrogantemente rebolativo. Encenava uma figura antipática, embora bonita,
o que em muito desgostava a Bentinho e familiares, que se envergonhavam a mais
e mais do comportamento socialmente inamistoso de Fernanda.
O tempo ia vencendo o tempo, com Fernanda sem endereçar
qualquer aceno às pessoas. E lhe vieram os filhos, dois meninos. Fernanda
levava-os ao colégio, em Icaraí, e permanecia na casa de seus pais aguardando a
hora de voltar, sempre no fim do dia e, às vezes, mais tarde. Bentinho,
agastado, suportava humildemente os rompantes da mulher. Que fazer?...
Um dia, porém, Fernanda saiu sem as crianças e nunca
mais voltou. Fugiu com um amante, levando ao desespero e à vergonha as famílias
dela e de Bentinho...
Todos se revoltaram com insensibilidade dela em relação
aos filhos. Foi terrível o sofrimento de Bentinho, que passou a andar
cabisbaixo, em rotina de tristeza que partia o coração do povo simples que o admirava.
Não foi pequeno o tempo da tristeza de Bentinho; mas o
mesmo tempo que se fazia cruel também funcionaria a seu favor, pois ele se foi
recuperando do trauma, até que conheceu Maristela, viúva fazia dois anos, mesmo
período em que Bentinho fora abandonado por Fernanda. Maristela não tivera
filhos. Seu marido, policial, fora assassinado por bandidos.
Assim o tempo tornou-se bom e curou todas as dores de
Bentinho, e o destino aproximou-o de Maristela; e mais fez: uniu-os em
arrebatadora paixão. Casaram-se, então, e a alegria voltou a reinar no Pita.
Já que falamos em policial, havia outro que também se
casara com moça do bairro. Morava próximo à casa de Bentinho e Fernanda, esta
que ele sempre via, mas que por ela não era visto, tanto como as demais pessoas
que ela desdenhava. Mas veja só, caro leitor, como o destino prega suas
peças...
O policial, que se chamava Sidney, fora designado com
outros colegas para a missão de investigar um caso em Campos. Para lá partiram,
ele e os demais companheiros, hospedando-se em hotel. Numa determinada noite,
porém, eles decidiram tomar cerveja em lugar animado da cidade. Foram então a
uma boate recomendada pelo recepcionista do hotel. Era um prostíbulo, onde
havia shows, dança, bebida e, eventualmente, a possibilidade de
desaparecer por discretos corredores com alguma “dançarina”.
Sidney não gostara muito da ideia, estava informado de
que a boate não passava de local de exploração de lenocínio, apesar de
dissimulada em clube de dança. Contudo, e mesmo a contragosto, ele se deixou
levar pelos companheiros para não ficar como estraga-prazer. E partiu com eles
para a Boate Novacap. Em chegando, ocuparam uma discreta mesa e ficaram
bebericando; daí a pouco os seus colegas se entrosaram com as meninas e saíram
a “dançar” algures...
Num determinado
momento em que Sidney se encontrava sozinho na mesa, distraído e tomando um
chope, a morena se acercou da mesa e sentou-se bem em frente dele. Ele se
petrificou: era Fernanda, reduzida à deprimente condição de prostituta.
Incrível, mas era ela!... Sidney perdeu a voz, a ponto de Fernanda, que não o
reconhecera, indagar-lhe:
– Puxa vida! Você não gostou de mim? Assustei você?...
– Não, não! Foi só impressão sua! Está tudo bem! –
Sidney respondeu ainda atônito.
– Mas você teve uma reação estranha. Desculpe-me, mas
você gosta de mulher?...
– Claro que sim! – respondeu Sidney, irritando-se ao
perceber que Fernanda não perdera a arrogância.
– Então, por que não dançamos? – sugeriu Fernanda.
– Não tenho vontade – descartou Sidney.
– Ah! Acho que você não gostou de mim... Será que me
achou feia? Puxa vida, eu nunca fui recusada!
– Tudo tem sua primeira vez... – respondeu evasivamente
Sidney, incomodado com a insistência da prostituta.
– É, acho que não lhe agradei. Mas pelo menos me diga
por quê – insistiu Fernanda.
– Quer saber? Eu sei quem é você! – devolveu Sidney.
– Sabe?...
– Sei.
– Como?...
– Ora, Fernanda, eu era seu vizinho de muro em São
Gonçalo. Sou amigo do Bentinho...
– Ai, meu Deus!
Foi um momento constrangedor. A mulher, arrasada por
ter sido reconhecida, caiu em pranto e deixou desabar a sua máscara. Contou a
Sidney que terminara ali depois de ter sido abandonada pelo amante, que não
passava de refinado cafajeste. Disse-lhe que tão logo seus recursos escassearam
o amante simplesmente a transformou em bisca. Depois ele a abandonou. Ela então
passou a se prostituir, até que parou na Boate Novacap, onde já se deixava
ficar fazia dois anos. Não guardava qualquer traço da beleza de outrora, a
prostituição a avelhantara precocemente.
– Lamento, Fernanda, que você tenha terminado assim!
Mas, e sua família? E seus pais?
– Não sei deles. Eu os procurei uma vez e fui
escorraçada. Nunca mais os vi. Estou na pior, mas tenho o meu orgulho...
– E seus filhos?...
– Também nunca mais soube deles; e não quero que eles
saibam de mim...
– Está certa...
Sidney se ausentou da boate. Estava impressionado.
Sabia que a sina daquela mulher, se já era terrível, ficaria ainda pior. Sua
experiência lhe dava a certeza de que na prostituição os degraus somente descem...
É uma das poucas atividades em que sempre se começa por cima, pelo auge, e
depois advém a derrocada. Fernanda decerto acabaria à beira de um cais
qualquer, drogada e doente, e até poderia encerrar a sua vida na mendicância,
algo comum. Sidney sentiu pena dela, especialmente porque ela lhe pediu para
guardar segredo. Tudo bem... Mas a Boate Novacap é real e situa-se em algum
lugar do país...

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