“Para que o acontecimento mais banal se torne uma
aventura, é necessário e suficiente que o narremos.” (Jean-Paul Sartre)
Tudo aconteceu num sábado, no ano de 1987. No 12º
Batalhão da Polícia Militar, em Niterói/RJ, a troca de serviço estava ocorrendo
às oito da manhã. A agitação era intensa, com centenas de PMs circulando ou entrando
e saindo de pequenas formaturas espalhadas pelo quartel, todos verificando
armas, viaturas e demais apetrechos destinados ao serviço de policiamento
ostensivo nas ruas da cidade, em algaravia típica de feira livre. Mas por trás
do aparente caos o que predominava era a militarismo enquadrando todos. Demais,
sabia-se que as ruas estariam movimentadas. Não era dia normal, era um sábado
de carnaval.
Bem, para a polícia, os dias nunca são normais. Há dias
menos ou mais agitados, ou dramáticos, ou trágicos, nunca normais, porque não
há ordem sem a desordem acompanhando-a de perto. Ordem e desordem andam de
braços dados, correm paralelas no ambiente social, assim como andam próximos o
feio e o bonito, o alto e o baixo, o gordo e o magro, ou seja, os inúmeros
contrastes que enfeitam ou enfeiam a vida. Nem tanto assim em lugares bucólicos
do interior, onde as horas escorrem pesadas e espaçosas, num marasmo que
somente o suporta quem lá vive. Lá, o feio tem mais tempo de ser feio e o
bonito demora-se bonito, e ambos podem ser mais acuradamente observados. Aqui
falamos de cidade grande, vibrante, rápida, populosa, problemática, complexa,
quase absurda.
Segundo bulícios efervescentes no quartel, a
sexta-feira já fora suficientemente agitada, garantia de que o sábado não seria
diferente. Houvera de tudo: colisões de veículos, atropelamentos, homicídios,
assaltos, bebedeiras, flagrantes de tráfico de drogas, brigas de marido e mulher,
e mais, e muito mais, e mais ainda. Sim, sem dúvida, o sábado de carnaval prometia
esquentar.
De manhã, o major Lima já se estava fardando no
alojamento. Era o oficial superior escalado na supervisão, o mais importante
serviço do batalhão, eis que a ele competiria discernir e decidir em nome do
comandante a quem ali representava. Ele se fardou e saiu do alojamento. Um
recruta já o esperava na saída, escalado como seu motorista. Chamava-se
Cosendei. Era o seu primeiro serviço externo após a conclusão do curso.
Tratava-se dum simpático jovem de 20 anos, idade até para ser filho do major.
– Bom dia, major. Sou o soldado Cosendei, seu
motorista. O carro está tinido. Sei que o serviço é interno, mas estarei sempre
pronto a lhe atender. Ficarei junto à viatura, e, necessitando, é só chamar que
imediatamente me apresento...
– Quem lhe disse que o serviço é interno?...
– Ué, major? O sargento me disse...
– Bem, deixa pra lá. Vamos fazer o seguinte: procure
descansar bastante. Não o chamarei antes das quatro da tarde. Mas prepare-se porque
sairemos às ruas sem hora de voltar...
O experimentado major já sabia que o sábado não seria
diferente dos dias seguintes de festejos momescos. Na parte da manhã geralmente
a cidade dormia, vazia de foliões. Porém, a partir do meio-dia o movimento se
iniciava em ritmo acelerado e não mais parava. E quatro horas da tarde, no mais
ou no menos, a folia começava a tomar forma de grandiosidade, o álcool já
fazendo efeito na cabeça dos carnavalescos e as drogas complementando um caldo
tendente a engrossar.
O major cogitava o quanto é curioso o ambiente social.
De um lado, a prevalência da ordem, com as pessoas se comportando em tranquilidade;
do outro, – e sempre presente, – a desordem, com alguns quebrando as regras
mais comezinhas de respeito aos direitos genéricos e subjetivos dos cidadãos,
motivo suficiente para existir a PMERJ e seu aparato em homens, armas e
viaturas, dentre outros meios destinados ao controle social, já que a desordem
sempre foi e sempre será parte integrante da convivência social.
Contudo, voltemos ao quartel e ao sábado de carnaval, e
à nossa dupla. E lá está o major entrando no carro, tendo ao seu lado o
empolgado recruta. O carro é um fusquinha; novo, é certo, porém apenas um
fusquinha.
– Cosendei, vamos que é hora! Está com a arma em condições
de uso? – indagou o major.
– Sim, senhor! Estou pronto!...
E foram às ruas, o major e o recruta, rompendo ambos,
resolutos, o umbral do batalhão, a fronteira entre a segurança e o risco, a
linha divisória entre o hermético militarismo e a realidade ambiental eivada de
incertezas e turbulências, e possivelmente o limiar entre a vida e a morte
trágica. Do lado de dentro, a ordem; do lado de fora, a ordem e a desordem,
aquela almejando o equilíbrio, e esta, o contrário. Um batalhão cuida de
atalhar as desordens, além de se dedicar à prevenção para evitá-las. É este o
exercício dinâmico da atividade policial.
Curioso é que o mundo da desordem nem sempre é
percebido pelos cidadãos que estão no mundo da ordem. Mas esse mundo da
desordem, que ainda não é o submundo do crime, já exige a ação sistemática e
diuturna da PMERJ. Neste segundo caso, porém, trata-se de exceção, dos crimes
prescritos em códigos e normas legais avulsas. É hora então da repressão.
Muito bem, retornemos ao Major Lima e ao PM Cosendei a
partir do átimo em que ganham as ruas, fardados, armados e embarcados em
viatura caracterizada: um fusquinha. Como se vê, não passa de mais uma
guarnição de radiopatrulha aos olhos do povo. Vejamos, pois, o que aconteceu
com esta dupla entre as quatro da tarde do sábado e a manhã do dia seguinte,
quando finalmente o major e o animado recruta deixaram o serviço. E que
serviço!...
Antes, porém, creio que devemos pensar um pouco mais na
desordem, já que é nela que reside o fascínio, a diferença, a exceção. Para os
anarquistas, por exemplo, a desordem é o charme da vida, é o sentido máximo da
aversão às excessivas formalidades e o desprezo pela pouca ou nenhuma liberdade.
Para eles, a promoção da desordem é um meio de impor uma nova ordem, até que
outra desordem a modifique. É a ordem como tese e a desordem como antítese,
advindo desse inevitável conflito, como síntese, a nova ordem, logo contestada,
por uma nova desordem, num processo contínuo no tempo e no espaço.
Ora, nem ao mar nem à montanha! A PM está no meio desta
polêmica. E como ela se integra obedientemente à maquinaria estatal, cujo
objetivo é a manutenção da ordem pública, é desta maquinaria que ela recebe os
meios de sustentação estrutural, e que por isso presta-lhe cega obediência. Nem
tanto às leis vigentes, como logo se poderia supor, eis que nem sempre são
observadas por eventuais detentores do poder político. É desse caldo complexo
que emerge a permissividade ou o excesso, com a PM na gangorra e à deriva,
longe do ponto de equilíbrio, distante do meio, do ponto que seria a perfeita
conjugação entre o “ser” e o “dever ser”. O fiel da balança. Quem dera!...
É assim a convivência social: geradora de muitas teses
e outras tantas antíteses, tanto naturais como fabricadas, todas, porém, gerando
sínteses, efeitos, alguns bons, outros ruins. Anarquia, permissividade, excesso,
tudo é antítese à ordem pública, que não passa de uma situação de paz e de
harmonia que deve ser mantida como regra, ou restaurada como exceção. E a PM é
a polícia de manutenção da ordem pública, a suposta tese. Sim, é a PM que se
incumbe da preservação da paz no ambiente social. Se formos verificar o
conceito de ordem pública, aí sim é que veremos o quanto isto é complicado.
Vejamos o firmado pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Ordem
Pública é a situação de paz e harmonia que experimenta a população, fundada nos
princípios éticos vigentes na sociedade” Ele ainda nos ensina que os
“princípios éticos” abarcam: “As leis, a moral e os costumes.” É esta complexa
e abrangente ordem pública que a PM tem de manter ou restaurar; e é através da
ação parcial do major Lima e do recruta Cosendei que isto é feito, em somatório
a muitos outros labores simultaneamente executados por milicianos em todo o
Estado do Rio de Janeiro. E imaginem, leitores, tudo isto em véspera de
carnaval...
Será que, enquanto se preparava e depois saía às ruas,
todos esses conceitos estariam cabriolando nas reflexões do major? Ou ele, ao
colocar os pés no asfalto, estaria imbuído apenas do sentimento racionalizado,
restrito e prático inerente ao seu dever funcional de exigir nas ruas o “dever
ser”? Mas, será que tudo o que se poderia supor como “dever ser” estaria
formalizado? A resposta é não! E Cosendei?... O que lhe estaria passando pela cachola?
Somente dirigir o fusquinha? E os riscos? Bem, deixando de lado as incontáveis
respostas que emergiriam destas indagações, lá estão eles, o major e o recruta,
caindo no mundo da alegria e dos conflitos sociais num sábado de carnaval...
Eram quatro da tarde; e desta hora até seis a dupla já
percorrera todos os pontos de tradicional concentração popular. Eis aqui o
“dever ser” ajustando-se ao “ser”, porque a folia sempre se integrou à cultura
dos bairros. E o carnaval em determinadas ruas é tão inevitável que somente
cabe à PM cuidar de desviar o trânsito e proteger os foliões. Se ela não tomar
a iniciativa de organizar a folia, esta acontecerá de qualquer maneira por
conta da explosão da vontade do povo. Já a elite estará nos clubes e espaços
mais nobres cercados de musculosos seguranças. Nestes, a polícia ficará
convenientemente do lado de fora. Afinal, polícia é povoléu...
O major e o recruta alcançaram, juntos, a chegada do
lusco-fusco do anoitecer. Até então tudo lhes vinha transcorrendo às mil
maravilhas, porém nem tanto com outros PMs empenhados em inúmeras ocorrências,
todas atentamente acompanhadas pelo major, por via do rádio, mas cuidadas por supervisão
de tenente. Nesta hora, perto das oito, o major decidiu ir ao Largo da Batalha,
bairro situado a meio caminho da Região Oceânica. Logo que chegou ficou
estacionado em ponto estratégico observando o povo brincar e o policiamento a
postos, protegendo-o.
O carnaval fervilhava em animação. Havia
ainda muitas crianças acompanhadas dos pais, porém em pouco tempo se
recolheram, dando lugar aos adultos. Já se alcançava o ponto das nove da noite,
o movimento crescendo, alguns bêbados trocando pernas em danças movidas a
álcool, casais namorando, outro brigando em ciumeiras, e muitos outros ostentando
rotas e esfarrapadas fantasias de carnavais passados; e, finalmente, o grosso
do povoléu malvestido e enfeando a folia, não por culpa deles, é claro!...
De repente, parou diante da viatura um ônibus
superlotado. E dele desceram duas mulheres, mãe e filha, a primeira aos gritos
desesperados acusando alguém do ônibus de ter bolinado a garota, esta, que se
vestia com sumaríssima bermuda e ínfimo sutiã cobrindo-lhe apenas as pontinhas
das mamas. A mulher foi direto ao major pedindo-lhe escandalosamente que
prendesse o folião que molestara a filha dela.
O ônibus vinha vindo de Pendotiba, outro bairro de
Niterói. O major fitou a dupla feminina em frente dele e mirou aquela lata de
sardinha ambulante apinhada de gentes a reclamar do transtorno em incontrolável
algaravia. Para evitar maiores problemas, o major mandou descer o acusado, um
folião fantasiado de “onça pintada”, com rabo e tudo mais que pertence a uma
lídima onça, figura realmente cômica, de 1,76m de altura, no mais ou no menos.
E veio a “onça pintada”, de máscara, postando-se diante do major, enquanto o
ônibus era liberado para seguir viagem. A “onça pintada” tremia dos pés à
cabeça...
– Foi ele, senhor policial, que passou a mão na minha
menina! – reclamou a nervosa mãe.
O major fitou novamente a menina, de short tão
microscópico que dava quase para visualizar o resto. E que resto!... Sim, era
uma bela menina, com um bumbum que não merecia apenas belisco... Era o que se
ouvia, em torno do major, dos populares que se ajuntavam curiosos e futricando
sem parar. O major fitou a menina e depois a “onça pintada”, inusitada figura,
a primeira onça bípede vista na cidade, coisas do carnaval...
– Vem cá, onça! Vá tirando a máscara! – disse-lhe o
major, em tom imperativo.
A onça não obedeceu, ou melhor, em vez da máscara
retirou as luvas, deixando à mostra duas mãos calejadas e manchadas de graxa,
seguindo-se ao gesto uma súplica:
– Seu polícia, pelo amor de Deus, sou trabalhador, sou
mecânico aqui no bairro! Toda essa gente me conhece! Por favor, seu polícia,
não me mande tirar a máscara! Me leva preso, mas tirá-la, não! Eu vou me desmoralizar!
– clamou a “onça pintada” em total desespero.
O major viu-se diante de uma insólita situação. Olhou
em torno de si e pôde perceber um montão de curiosos na expectativa de saber
quem se ocultava atrás da máscara. Sim, ansiavam por saber quem era a onça. Ninguém
mais queria saber da menina e de seu precioso bumbum que teria sido violado num
belisco inofensivo por parte da “onça pintada”, todos queriam ver a cara da
“onça pintada” – a única novidade... O próprio major de repente percebeu que
ele mesmo estava tão curioso como os demais. Também queria saber quem, afinal,
era a “onça pintada”, único mistério a ser desvelado, o que garantiria um final
apoteótico à ocorrência. Mas o major, surpreendendo a todos, falou:
– Minha senhora, ouça-me com atenção, vou levar todo
mundo pra delegacia. Veja bem, a senhora e sua filha também serão obrigadas a
isto. E não lhe posso garantir que o delegado não implique com a vestimenta da
menina. Se ele for um moralista, ela acabará processada por ultraje público ao
pudor; e, com relação à “onça pintada”, se ela, ou ele, negar que passou a mão
no bumbum da sua filha, ou dizer que apenas nela esbarrou em virtude do excesso
de passageiros no ônibus, até eu mesmo serei impelido a concordar com esta
versão. Vai sobrar apenas a sua filha e a prova de que ela está seminua...
– Mas, senhor, ele passou a mão na minha filha; eu vi,
todos viram. Ele é culpado – exasperou-se a mulher, com a filha ao seu lado,
sem nada falar, e pouco incomodada de ter ganhado o belisco indecoroso no seu
belo traseiro.
– Tudo bem, mas não há como garantir que o delegado
pense como a senhora; é isto que me preocupa. Eu lhe pergunto: a senhora quer
amanhecer o dia na delegacia, talvez vendo a sua filha presa?...
– Não, seu polícia, nem pensei em ir à delegacia. Só
quero que o safado seja preso. Se o senhor me prometer isto, eu me vou com
minha filha. A gente mora aqui perto...
– Minha Senhora, não vou prender a “onça pintada”, não;
mas lhe garanto que vou admoestá-la severamente antes de mandá-la embora. É o
máximo que posso fazer, a não ser que a senhora queira ir à delegacia...
– Deus me livre! Prefiro ir embora. E vou agradecida ao
senhor, que foi muito simpático e atencioso comigo.
– Acho uma ótima ideia. Vá, então, e leve sua filha –
disse-lhe o major, fitando a menina e concordando, no seu íntimo, com a “onça
pintada”, pois o traseiro da garota era, com efeito, irresistível...
O major não falou duas vezes: a mulher arrastou a filha
e se escafedeu, não sem ouvir gritinhos e gracejos da torcida organizada em
favor da “onça pintada”, mas todos esperando a apoteose da ocorrência, que
seria o desvelamento da identidade que se ocultava atrás da máscara.
– Puxa, senhor, obrigado! Vou falar uma coisa: sou
vizinho deles, e casado. Se o senhor me tirasse a máscara meu prejuízo seria total.
E eu, na verdade, apenas gosto de me fantasiar e de brincar assim o carnaval.
Visto a fantasia na casa de um amigo, longe daqui, e venho circular no bairro
sem ser reconhecido. Mas desta vez não resisti e passei a mão no traseiro dela,
não posso negar.
– Tudo bem; nem quero ver seu rosto. Aliás, as mãos são
sua melhor credencial. Pode ir e aproveite em paz o carnaval. Mas não fique por
aí bolinando as meninas! Vê lá, hein?...
O PM Cosendei ria às bandeiras despregadas enquanto
assistia ao divertido desenrolar da cena, que culminou com a “onça pintada” se
mandando na velocidade do tufão. E ao entrar no fusquinha não resistiu em comentar
com o major:
– Caramba, meu chefe! Sabe o que eu estava pensando?
Aquela ocorrência poderia resultar em mil e uma soluções, dependendo de qual PM
que com ela deparasse. Por exemplo, se fosse um quadradão, seria capaz de
prender a garota; mas, se fosse outro que tivesse uma filha que se espelhasse
no exemplo da garota, coitada da “onça pintada”...
– Tem razão, Cosendei. Esta nossa profissão é complexa
e curiosa, muito mais do que pensam por aí afora. Nós temos o poder de agir
imediatamente em casos como este, que são múltiplos e variados. É a faculdade
de discernir e decidir na hora, com base no Poder de Polícia. Na verdade,
ressalvadas as proporções, nós atuamos como se fôssemos quase que juízes de
pequenas causas; mas não podemos ultrapassar nossos limites, não podemos
infringir as leis. E mais, não podemos nos deixar influenciar por nossos
preconceitos. Difícil, né?...
– Complicado mesmo, hein, major?...
– Nem tanto. Mas há, na verdade, um ponto controvertido.
Veja só, nada impede ao PM de levar tudo pra delegacia e deixar que a
autoridade policial decida sobre os conflitos vários que ocorrem nas ruas.
Isto, porém, acabaria sobrecarregando as delegacias com bobagens, como a
ocorrência que acabamos de solucionar, nem sei se salomonicamente, mas solucionamos.
– É verdade, major; mas acho que o senhor decidiu com
sabedoria...
– Ora, Cosendei, tá puxando o meu saco?...
– Não, chefe! Gostei mesmo do desfecho...
– Estou brincando. E saiba, Cosendei, que o povo ali se
dividiu. É certo que uma parte aprovou nossa decisão, mas também é certíssimo
que muitos saíram frustrados, e até raivosos por não terem visto a cara da
“onça pintada”. Mas sabe o que faria a maioria dos PMs nesse caso?... E,
diga-se de passagem, com sabedoria? Eu lhe respondo: carregariam tudo pra
delegacia e deixaria a bomba nas mãos do delegado. Assim evitariam problemas
futuros. Em compensação, a cidade ficaria despoliciada, pois é certo que os PMs
se aproveitariam da ocorrência pra descansar na própria delegacia. Quer
descanso mais legitimado que este?...
– Poxa, major! Não pensei nisso. E é exatamente na hora
em que a patrulha está fora das ruas que os problemas mais graves ocorrem.
Parece praga...
– É verdade! Sabe de uma coisa, Cosendei?... Nossa
profissão é muito simples e ao mesmo tempo extremamente complexa. Não lhe
parece uma contradição?...
– Contradição?... Olha, major, confesso que o que vejo
é muita complicação!...
– Com efeito, companheiro, com efeito!... – encerrou o
major, divertido com a confusão que criara na cabeça do recruta.
E logo a viatura chegou ao quartel, bem na hora de se fazer
um lanche...
Dez e trinta da noite em sábado de céu límpido e
estrelado, garantia de povo nas ruas e muita bebedeira. O major Lima e seu
motorista metem os pés no asfalto novamente percorrendo os locais de
concentração popular e verificando o policiamento. Mas também abrangendo os
clubes espalhados pela cidade, com os foliões nas filas de entrada. Tudo calmo.
Já raspava a meia-noite quando entrou no rádio uma ocorrência
grave: tentativa de homicídio no Terminal Norte, local de concentração dos
ônibus destinados aos passageiros da Zona Norte de Niterói e do Município de
São Gonçalo e algures. O major estava em frente do Clube Canto do Rio, próximo
do local da tragédia, para onde partiu célere. Em chegando, deparou com uma
guarnição de PATAMO socorrendo a vítima, uma negra de 30 anos aproximadamente,
com uma perfuração por PAF na altura do coração.
O assassino havia fugido. Segundo as testemunhas,
tratava-se de briga de casal, e o homem atirara na mulher por incontrolável
ciúme. O marido cismou que ela se insinuara para outro homem, e começaram a discutir
asperamente. Estavam ambos alcoolizados, o álcool levou-os ao desvario, o
revólver fez o resto. E veio o tiro, um só, que fez tombar a mulher, enquanto o
homem fugia sem muita noção do que fizera e mais para se livrar do clamor
público. Ninguém o perseguiu.
Era esta a situação quando o major chegou ao Terminal
Norte.
– Cosendei, acho que nesta hora não há como sair da
cidade, a não ser a pé ou tentando pegar algum ônibus. Não há nenhum táxi
circulando e o assassino só pode ter ido para a rodoviária. Vamos lá...
Foram. De caminho, porém, entrou no rádio a notícia da
morte da mulher. O tiro realmente acertara-lhe o coração. E enquanto a
informação era transmitida o major se aproximava da rodoviária, logo avistando
o suspeito, desnudado da cintura para cima, com a camisa enrolada nas mãos, de
cócoras e olhando o nada. O major se acercou dele de arma em punho; o homem
estava absolutamente apático, e somente quando o major lhe retirou das mãos a
camisa que ocultava a arma do crime, é que o homem o fitou.
– Ô, rapaz! Você matou a mulher! – disse-lhe o major,
constatando que a arma era um revólver calibre 22 mm.
– É minha esposa, mãe dos meus três filhos! Eu não
matei ela, não, senhor! Só dei um tirinho nela com este revólver, e ele não
mata, não, senhor!...
Sim, eram casados, e o pobre-diabo matara a própria
esposa; e entrou em desespero, chorando convulsivamente, enquanto era conduzido
à delegacia.
– Poxa, major, o serviço está ficando quente! E eu
pensando em dormir dia e noite no quartel...
– Tem razão, Cosendei. Mas vamos descontrair um pouco.
Vamos ao Clube Canto do Rio...
Partiram, chegaram. Tudo calmo. Do lado de fora não
havia ninguém além dos vinte e cinco sargentos e do subtenente que os
comandava. Eram alunos de um curso de aperfeiçoamento e vieram como tropa de
reforço ao 12º batalhão. Contudo, não havia mais nada que justificasse manter
ali aquele aparato, motivo pelo qual o major lhes autorizou o retorno ao
quartel. Eram duas horas da madrugada.
O irrequieto major logo tornou ao Terminal Norte, onde
havia maior concentração popular, local ainda tenso devido ao episódio do
assassinato. Em lá chegando, verificou que as imensas filas se apresentavam em
desordem, com as pessoas amontoadas e disputando aos tapas um espaço nos
escassos ônibus que chegavam. Havia um pequeno grupo de PMs, talvez seis,
tentando manter a ordem com muita dificuldade. O major e seu motorista também
entraram a ajudar, mas logo o oficial percebeu ser inútil; e pensou nos
sargentos, decidindo ir ao quartel para mandá-los reforçar o policiamento no
tumultuado local. Já era uma situação típica de restauração da ordem. Ele foi
rápido, chegou, e, por sorte, os sargentos estavam ainda formados aguardando a
dispensa.
– Subtenente, embarque novamente os sargentos e
dirija-se com eles ao Terminal Norte. Distribua-os em grupos de cinco e
coloque-os patrulhando. A coisa está feia por lá, e há companheiros em
dificuldade – determinou o major, ao chegar.
– Senhor major, desculpe-me, mas não dá, não! Nós
estamos cansados! – ponderou inusitadamente o subtenente, deixando o major de
saia justa.
– Quem é o sargento mais antigo? – indagou o major ao
grupo, ignorando totalmente a fala do subtenente, que logo se assustou com o
que lhe poderia acontecer...
– Pronto, senhor! Sou o mais antigo! – enquadrou-se o
sargento.
– Perfeito! Assuma o comando do grupamento e se dirija
imediatamente ao Terminal Norte, entendido? – sentenciou o major.
– Sim, major, prontamente!
– Senhor, e eu?– indagou, sem graça e temeroso, o subtenente.
– Você está dispensado! Vá descansar...
O major nada mais falou, além de avisar que iria ao
local fiscalizar o policiamento. Enquanto isso, o subtenente sobrou sozinho,
sem saber o que fazer. O major foi então ao Terminal Norte e verificou que
valera a pena a medida: os passageiros, diante da proteção oferecida,
descontraíram-se e se deitaram nas calçadas, muitos dormindo, outros conversando
animadamente, e alguns embarcando ordeiramente nos ônibus. Estava restaurada a
ordem, e a prevenção pela presença fez o resto. Pois toda aquela desordem
resumia-se a nada mais que medo de assalto, brigas etc.
Os sargentos, em grupos, passeavam para lá e para cá
dando proteção às pessoas. E alguns graduados vieram até o major para externar
o prazer de se sentirem úteis. E lá estava, entre eles, o subtenente...
– Ué? O que você está fazendo aqui? – indagou-lhe o
major.
– Major, desculpe-me, mas não fui feliz no meu aparte
ao senhor. Eu estava realmente cansado. Não quis descumprir a sua ordem. Nem
sei por que lhe falei daquela maneira. Já estou meio velho; talvez tenha sido
por isso...
– Foi um comportamento precipitado, subtenente; mas não
se preocupe. Assuma o comando dos sargentos. Creio que agora você não tem
dúvida de que aqui eles eram imprescindíveis...
– É verdade, major! Obrigado pela chance! Confesso que
me passou pela cabeça que o senhor iria me prender. O oficial-de-dia até me
alertou que, além da transgressão disciplinar que cometi, ainda poderia haver a
conclusão de que eu pratiquei crime militar. Peço desculpas, major! Nada houve
além do cansaço...
– Tudo bem, companheiro. Vá em frente, bom serviço e
tenha bom carnaval. Estenda a todos os sargentos os meus agradecimentos...
O major chamou seu fiel escudeiro e motorista, agora já
consolidada uma sincera amizade entre ambos. E Cosendei, que pensava num
“serviço interno”, empolgado e sentindo-se deveras útil, viu ainda na rua
amanhecer o domingo de carnaval. É assim a profissão do PM: cheia de surpresas
agradáveis e desagradáveis. Este o seu fascínio e que venham outros carnavais!...