domingo, 30 de abril de 2017

SÁBADO DE CARNAVAL


“Para que o acontecimento mais banal se torne uma aventura, é necessário e suficiente que o narremos.” (Jean-Paul Sartre)



Tudo aconteceu num sábado, no ano de 1987. No 12º Batalhão da Polícia Militar, em Niterói/RJ, a troca de serviço estava ocorrendo às oito da manhã. A agitação era intensa, com centenas de PMs circulando ou entrando e saindo de pequenas formaturas espalhadas pelo quartel, todos verificando armas, viaturas e demais apetrechos destinados ao serviço de policiamento ostensivo nas ruas da cidade, em algaravia típica de feira livre. Mas por trás do aparente caos o que predominava era a militarismo enquadrando todos. Demais, sabia-se que as ruas estariam movimentadas. Não era dia normal, era um sábado de carnaval.

Bem, para a polícia, os dias nunca são normais. Há dias menos ou mais agitados, ou dramáticos, ou trágicos, nunca normais, porque não há ordem sem a desordem acompanhando-a de perto. Ordem e desordem andam de braços dados, correm paralelas no ambiente social, assim como andam próximos o feio e o bonito, o alto e o baixo, o gordo e o magro, ou seja, os inúmeros contrastes que enfeitam ou enfeiam a vida. Nem tanto assim em lugares bucólicos do interior, onde as horas escorrem pesadas e espaçosas, num marasmo que somente o suporta quem lá vive. Lá, o feio tem mais tempo de ser feio e o bonito demora-se bonito, e ambos podem ser mais acuradamente observados. Aqui falamos de cidade grande, vibrante, rápida, populosa, problemática, complexa, quase absurda.

Segundo bulícios efervescentes no quartel, a sexta-feira já fora suficientemente agitada, garantia de que o sábado não seria diferente. Houvera de tudo: colisões de veículos, atropelamentos, homicídios, assaltos, bebedeiras, flagrantes de tráfico de drogas, brigas de marido e mulher, e mais, e muito mais, e mais ainda. Sim, sem dúvida, o sábado de carnaval prometia esquentar.

De manhã, o major Lima já se estava fardando no alojamento. Era o oficial superior escalado na supervisão, o mais importante serviço do batalhão, eis que a ele competiria discernir e decidir em nome do comandante a quem ali representava. Ele se fardou e saiu do alojamento. Um recruta já o esperava na saída, escalado como seu motorista. Chamava-se Cosendei. Era o seu primeiro serviço externo após a conclusão do curso. Tratava-se dum simpático jovem de 20 anos, idade até para ser filho do major.

– Bom dia, major. Sou o soldado Cosendei, seu motorista. O carro está tinido. Sei que o serviço é interno, mas estarei sempre pronto a lhe atender. Ficarei junto à viatura, e, necessitando, é só chamar que imediatamente me apresento...

– Quem lhe disse que o serviço é interno?...

– Ué, major? O sargento me disse...

– Bem, deixa pra lá. Vamos fazer o seguinte: procure descansar bastante. Não o chamarei antes das quatro da tarde. Mas prepare-se porque sairemos às ruas sem hora de voltar...

O experimentado major já sabia que o sábado não seria diferente dos dias seguintes de festejos momescos. Na parte da manhã geralmente a cidade dormia, vazia de foliões. Porém, a partir do meio-dia o movimento se iniciava em ritmo acelerado e não mais parava. E quatro horas da tarde, no mais ou no menos, a folia começava a tomar forma de grandiosidade, o álcool já fazendo efeito na cabeça dos carnavalescos e as drogas complementando um caldo tendente a engrossar.

O major cogitava o quanto é curioso o ambiente social. De um lado, a prevalência da ordem, com as pessoas se comportando em tranquilidade; do outro, – e sempre presente, – a desordem, com alguns quebrando as regras mais comezinhas de respeito aos direitos genéricos e subjetivos dos cidadãos, motivo suficiente para existir a PMERJ e seu aparato em homens, armas e viaturas, dentre outros meios destinados ao controle social, já que a desordem sempre foi e sempre será parte integrante da convivência social.

Contudo, voltemos ao quartel e ao sábado de carnaval, e à nossa dupla. E lá está o major entrando no carro, tendo ao seu lado o empolgado recruta. O carro é um fusquinha; novo, é certo, porém apenas um fusquinha.







– Cosendei, vamos que é hora! Está com a arma em condições de uso? – indagou o major.

– Sim, senhor! Estou pronto!...

E foram às ruas, o major e o recruta, rompendo ambos, resolutos, o umbral do batalhão, a fronteira entre a segurança e o risco, a linha divisória entre o hermético militarismo e a realidade ambiental eivada de incertezas e turbulências, e possivelmente o limiar entre a vida e a morte trágica. Do lado de dentro, a ordem; do lado de fora, a ordem e a desordem, aquela almejando o equilíbrio, e esta, o contrário. Um batalhão cuida de atalhar as desordens, além de se dedicar à prevenção para evitá-las. É este o exercício dinâmico da atividade policial.

Curioso é que o mundo da desordem nem sempre é percebido pelos cidadãos que estão no mundo da ordem. Mas esse mundo da desordem, que ainda não é o submundo do crime, já exige a ação sistemática e diuturna da PMERJ. Neste segundo caso, porém, trata-se de exceção, dos crimes prescritos em códigos e normas legais avulsas. É hora então da repressão.

Muito bem, retornemos ao Major Lima e ao PM Cosendei a partir do átimo em que ganham as ruas, fardados, armados e embarcados em viatura caracterizada: um fusquinha. Como se vê, não passa de mais uma guarnição de radiopatrulha aos olhos do povo. Vejamos, pois, o que aconteceu com esta dupla entre as quatro da tarde do sábado e a manhã do dia seguinte, quando finalmente o major e o animado recruta deixaram o serviço. E que serviço!...

Antes, porém, creio que devemos pensar um pouco mais na desordem, já que é nela que reside o fascínio, a diferença, a exceção. Para os anarquistas, por exemplo, a desordem é o charme da vida, é o sentido máximo da aversão às excessivas formalidades e o desprezo pela pouca ou nenhuma liberdade. Para eles, a promoção da desordem é um meio de impor uma nova ordem, até que outra desordem a modifique. É a ordem como tese e a desordem como antítese, advindo desse inevitável conflito, como síntese, a nova ordem, logo contestada, por uma nova desordem, num processo contínuo no tempo e no espaço.

Ora, nem ao mar nem à montanha! A PM está no meio desta polêmica. E como ela se integra obedientemente à maquinaria estatal, cujo objetivo é a manutenção da ordem pública, é desta maquinaria que ela recebe os meios de sustentação estrutural, e que por isso presta-lhe cega obediência. Nem tanto às leis vigentes, como logo se poderia supor, eis que nem sempre são observadas por eventuais detentores do poder político. É desse caldo complexo que emerge a permissividade ou o excesso, com a PM na gangorra e à deriva, longe do ponto de equilíbrio, distante do meio, do ponto que seria a perfeita conjugação entre o “ser” e o “dever ser”. O fiel da balança. Quem dera!...

É assim a convivência social: geradora de muitas teses e outras tantas antíteses, tanto naturais como fabricadas, todas, porém, gerando sínteses, efeitos, alguns bons, outros ruins. Anarquia, permissividade, excesso, tudo é antítese à ordem pública, que não passa de uma situação de paz e de harmonia que deve ser mantida como regra, ou restaurada como exceção. E a PM é a polícia de manutenção da ordem pública, a suposta tese. Sim, é a PM que se incumbe da preservação da paz no ambiente social. Se formos verificar o conceito de ordem pública, aí sim é que veremos o quanto isto é complicado. Vejamos o firmado pelo professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Ordem Pública é a situação de paz e harmonia que experimenta a população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade” Ele ainda nos ensina que os “princípios éticos” abarcam: “As leis, a moral e os costumes.” É esta complexa e abrangente ordem pública que a PM tem de manter ou restaurar; e é através da ação parcial do major Lima e do recruta Cosendei que isto é feito, em somatório a muitos outros labores simultaneamente executados por milicianos em todo o Estado do Rio de Janeiro. E imaginem, leitores, tudo isto em véspera de carnaval...

Será que, enquanto se preparava e depois saía às ruas, todos esses conceitos estariam cabriolando nas reflexões do major? Ou ele, ao colocar os pés no asfalto, estaria imbuído apenas do sentimento racionalizado, restrito e prático inerente ao seu dever funcional de exigir nas ruas o “dever ser”? Mas, será que tudo o que se poderia supor como “dever ser” estaria formalizado? A resposta é não! E Cosendei?... O que lhe estaria passando pela cachola? Somente dirigir o fusquinha? E os riscos? Bem, deixando de lado as incontáveis respostas que emergiriam destas indagações, lá estão eles, o major e o recruta, caindo no mundo da alegria e dos conflitos sociais num sábado de carnaval...

Eram quatro da tarde; e desta hora até seis a dupla já percorrera todos os pontos de tradicional concentração popular. Eis aqui o “dever ser” ajustando-se ao “ser”, porque a folia sempre se integrou à cultura dos bairros. E o carnaval em determinadas ruas é tão inevitável que somente cabe à PM cuidar de desviar o trânsito e proteger os foliões. Se ela não tomar a iniciativa de organizar a folia, esta acontecerá de qualquer maneira por conta da explosão da vontade do povo. Já a elite estará nos clubes e espaços mais nobres cercados de musculosos seguranças. Nestes, a polícia ficará convenientemente do lado de fora. Afinal, polícia é povoléu...

O major e o recruta alcançaram, juntos, a chegada do lusco-fusco do anoitecer. Até então tudo lhes vinha transcorrendo às mil maravilhas, porém nem tanto com outros PMs empenhados em inúmeras ocorrências, todas atentamente acompanhadas pelo major, por via do rádio, mas cuidadas por supervisão de tenente. Nesta hora, perto das oito, o major decidiu ir ao Largo da Batalha, bairro situado a meio caminho da Região Oceânica. Logo que chegou ficou estacionado em ponto estratégico observando o povo brincar e o policiamento a postos, protegendo-o.

O carnaval fervilhava em animação. Havia ainda muitas crianças acompanhadas dos pais, porém em pouco tempo se recolheram, dando lugar aos adultos. Já se alcançava o ponto das nove da noite, o movimento crescendo, alguns bêbados trocando pernas em danças movidas a álcool, casais namorando, outro brigando em ciumeiras, e muitos outros ostentando rotas e esfarrapadas fantasias de carnavais passados; e, finalmente, o grosso do povoléu malvestido e enfeando a folia, não por culpa deles, é claro!...

De repente, parou diante da viatura um ônibus superlotado. E dele desceram duas mulheres, mãe e filha, a primeira aos gritos desesperados acusando alguém do ônibus de ter bolinado a garota, esta, que se vestia com sumaríssima bermuda e ínfimo sutiã cobrindo-lhe apenas as pontinhas das mamas. A mulher foi direto ao major pedindo-lhe escandalosamente que prendesse o folião que molestara a filha dela.

O ônibus vinha vindo de Pendotiba, outro bairro de Niterói. O major fitou a dupla feminina em frente dele e mirou aquela lata de sardinha ambulante apinhada de gentes a reclamar do transtorno em incontrolável algaravia. Para evitar maiores problemas, o major mandou descer o acusado, um folião fantasiado de “onça pintada”, com rabo e tudo mais que pertence a uma lídima onça, figura realmente cômica, de 1,76m de altura, no mais ou no menos. E veio a “onça pintada”, de máscara, postando-se diante do major, enquanto o ônibus era liberado para seguir viagem. A “onça pintada” tremia dos pés à cabeça...

– Foi ele, senhor policial, que passou a mão na minha menina! – reclamou a nervosa mãe.

O major fitou novamente a menina, de short tão microscópico que dava quase para visualizar o resto. E que resto!... Sim, era uma bela menina, com um bumbum que não merecia apenas belisco... Era o que se ouvia, em torno do major, dos populares que se ajuntavam curiosos e futricando sem parar. O major fitou a menina e depois a “onça pintada”, inusitada figura, a primeira onça bípede vista na cidade, coisas do carnaval...

– Vem cá, onça! Vá tirando a máscara! – disse-lhe o major, em tom imperativo.

A onça não obedeceu, ou melhor, em vez da máscara retirou as luvas, deixando à mostra duas mãos calejadas e manchadas de graxa, seguindo-se ao gesto uma súplica:

– Seu polícia, pelo amor de Deus, sou trabalhador, sou mecânico aqui no bairro! Toda essa gente me conhece! Por favor, seu polícia, não me mande tirar a máscara! Me leva preso, mas tirá-la, não! Eu vou me desmoralizar! – clamou a “onça pintada” em total desespero.

O major viu-se diante de uma insólita situação. Olhou em torno de si e pôde perceber um montão de curiosos na expectativa de saber quem se ocultava atrás da máscara. Sim, ansiavam por saber quem era a onça. Ninguém mais queria saber da menina e de seu precioso bumbum que teria sido violado num belisco inofensivo por parte da “onça pintada”, todos queriam ver a cara da “onça pintada” – a única novidade... O próprio major de repente percebeu que ele mesmo estava tão curioso como os demais. Também queria saber quem, afinal, era a “onça pintada”, único mistério a ser desvelado, o que garantiria um final apoteótico à ocorrência. Mas o major, surpreendendo a todos, falou:

– Minha senhora, ouça-me com atenção, vou levar todo mundo pra delegacia. Veja bem, a senhora e sua filha também serão obrigadas a isto. E não lhe posso garantir que o delegado não implique com a vestimenta da menina. Se ele for um moralista, ela acabará processada por ultraje público ao pudor; e, com relação à “onça pintada”, se ela, ou ele, negar que passou a mão no bumbum da sua filha, ou dizer que apenas nela esbarrou em virtude do excesso de passageiros no ônibus, até eu mesmo serei impelido a concordar com esta versão. Vai sobrar apenas a sua filha e a prova de que ela está seminua...

– Mas, senhor, ele passou a mão na minha filha; eu vi, todos viram. Ele é culpado – exasperou-se a mulher, com a filha ao seu lado, sem nada falar, e pouco incomodada de ter ganhado o belisco indecoroso no seu belo traseiro.

– Tudo bem, mas não há como garantir que o delegado pense como a senhora; é isto que me preocupa. Eu lhe pergunto: a senhora quer amanhecer o dia na delegacia, talvez vendo a sua filha presa?...

– Não, seu polícia, nem pensei em ir à delegacia. Só quero que o safado seja preso. Se o senhor me prometer isto, eu me vou com minha filha. A gente mora aqui perto...

– Minha Senhora, não vou prender a “onça pintada”, não; mas lhe garanto que vou admoestá-la severamente antes de mandá-la embora. É o máximo que posso fazer, a não ser que a senhora queira ir à delegacia...

– Deus me livre! Prefiro ir embora. E vou agradecida ao senhor, que foi muito simpático e atencioso comigo.

– Acho uma ótima ideia. Vá, então, e leve sua filha – disse-lhe o major, fitando a menina e concordando, no seu íntimo, com a “onça pintada”, pois o traseiro da garota era, com efeito, irresistível...

O major não falou duas vezes: a mulher arrastou a filha e se escafedeu, não sem ouvir gritinhos e gracejos da torcida organizada em favor da “onça pintada”, mas todos esperando a apoteose da ocorrência, que seria o desvelamento da identidade que se ocultava atrás da máscara.

– Puxa, senhor, obrigado! Vou falar uma coisa: sou vizinho deles, e casado. Se o senhor me tirasse a máscara meu prejuízo seria total. E eu, na verdade, apenas gosto de me fantasiar e de brincar assim o carnaval. Visto a fantasia na casa de um amigo, longe daqui, e venho circular no bairro sem ser reconhecido. Mas desta vez não resisti e passei a mão no traseiro dela, não posso negar.

– Tudo bem; nem quero ver seu rosto. Aliás, as mãos são sua melhor credencial. Pode ir e aproveite em paz o carnaval. Mas não fique por aí bolinando as meninas! Vê lá, hein?...

O PM Cosendei ria às bandeiras despregadas enquanto assistia ao divertido desenrolar da cena, que culminou com a “onça pintada” se mandando na velocidade do tufão. E ao entrar no fusquinha não resistiu em comentar com o major:

– Caramba, meu chefe! Sabe o que eu estava pensando? Aquela ocorrência poderia resultar em mil e uma soluções, dependendo de qual PM que com ela deparasse. Por exemplo, se fosse um quadradão, seria capaz de prender a garota; mas, se fosse outro que tivesse uma filha que se espelhasse no exemplo da garota, coitada da “onça pintada”...

– Tem razão, Cosendei. Esta nossa profissão é complexa e curiosa, muito mais do que pensam por aí afora. Nós temos o poder de agir imediatamente em casos como este, que são múltiplos e variados. É a faculdade de discernir e decidir na hora, com base no Poder de Polícia. Na verdade, ressalvadas as proporções, nós atuamos como se fôssemos quase que juízes de pequenas causas; mas não podemos ultrapassar nossos limites, não podemos infringir as leis. E mais, não podemos nos deixar influenciar por nossos preconceitos. Difícil, né?...

– Complicado mesmo, hein, major?...

– Nem tanto. Mas há, na verdade, um ponto controvertido. Veja só, nada impede ao PM de levar tudo pra delegacia e deixar que a autoridade policial decida sobre os conflitos vários que ocorrem nas ruas. Isto, porém, acabaria sobrecarregando as delegacias com bobagens, como a ocorrência que acabamos de solucionar, nem sei se salomonicamente, mas solucionamos.

– É verdade, major; mas acho que o senhor decidiu com sabedoria...

– Ora, Cosendei, tá puxando o meu saco?...

– Não, chefe! Gostei mesmo do desfecho...

– Estou brincando. E saiba, Cosendei, que o povo ali se dividiu. É certo que uma parte aprovou nossa decisão, mas também é certíssimo que muitos saíram frustrados, e até raivosos por não terem visto a cara da “onça pintada”. Mas sabe o que faria a maioria dos PMs nesse caso?... E, diga-se de passagem, com sabedoria? Eu lhe respondo: carregariam tudo pra delegacia e deixaria a bomba nas mãos do delegado. Assim evitariam problemas futuros. Em compensação, a cidade ficaria despoliciada, pois é certo que os PMs se aproveitariam da ocorrência pra descansar na própria delegacia. Quer descanso mais legitimado que este?...

– Poxa, major! Não pensei nisso. E é exatamente na hora em que a patrulha está fora das ruas que os problemas mais graves ocorrem. Parece praga...

– É verdade! Sabe de uma coisa, Cosendei?... Nossa profissão é muito simples e ao mesmo tempo extremamente complexa. Não lhe parece uma contradição?...

– Contradição?... Olha, major, confesso que o que vejo é muita complicação!...

– Com efeito, companheiro, com efeito!... – encerrou o major, divertido com a confusão que criara na cabeça do recruta.

E logo a viatura chegou ao quartel, bem na hora de se fazer um lanche...







Dez e trinta da noite em sábado de céu límpido e estrelado, garantia de povo nas ruas e muita bebedeira. O major Lima e seu motorista metem os pés no asfalto novamente percorrendo os locais de concentração popular e verificando o policiamento. Mas também abrangendo os clubes espalhados pela cidade, com os foliões nas filas de entrada. Tudo calmo.

Já raspava a meia-noite quando entrou no rádio uma ocorrência grave: tentativa de homicídio no Terminal Norte, local de concentração dos ônibus destinados aos passageiros da Zona Norte de Niterói e do Município de São Gonçalo e algures. O major estava em frente do Clube Canto do Rio, próximo do local da tragédia, para onde partiu célere. Em chegando, deparou com uma guarnição de PATAMO socorrendo a vítima, uma negra de 30 anos aproximadamente, com uma perfuração por PAF na altura do coração.

O assassino havia fugido. Segundo as testemunhas, tratava-se de briga de casal, e o homem atirara na mulher por incontrolável ciúme. O marido cismou que ela se insinuara para outro homem, e começaram a discutir asperamente. Estavam ambos alcoolizados, o álcool levou-os ao desvario, o revólver fez o resto. E veio o tiro, um só, que fez tombar a mulher, enquanto o homem fugia sem muita noção do que fizera e mais para se livrar do clamor público. Ninguém o perseguiu.

Era esta a situação quando o major chegou ao Terminal Norte.

– Cosendei, acho que nesta hora não há como sair da cidade, a não ser a pé ou tentando pegar algum ônibus. Não há nenhum táxi circulando e o assassino só pode ter ido para a rodoviária. Vamos lá...

Foram. De caminho, porém, entrou no rádio a notícia da morte da mulher. O tiro realmente acertara-lhe o coração. E enquanto a informação era transmitida o major se aproximava da rodoviária, logo avistando o suspeito, desnudado da cintura para cima, com a camisa enrolada nas mãos, de cócoras e olhando o nada. O major se acercou dele de arma em punho; o homem estava absolutamente apático, e somente quando o major lhe retirou das mãos a camisa que ocultava a arma do crime, é que o homem o fitou.

– Ô, rapaz! Você matou a mulher! – disse-lhe o major, constatando que a arma era um revólver calibre 22 mm.

– É minha esposa, mãe dos meus três filhos! Eu não matei ela, não, senhor! Só dei um tirinho nela com este revólver, e ele não mata, não, senhor!...

Sim, eram casados, e o pobre-diabo matara a própria esposa; e entrou em desespero, chorando convulsivamente, enquanto era conduzido à delegacia.

– Poxa, major, o serviço está ficando quente! E eu pensando em dormir dia e noite no quartel...

– Tem razão, Cosendei. Mas vamos descontrair um pouco. Vamos ao Clube Canto do Rio...

Partiram, chegaram. Tudo calmo. Do lado de fora não havia ninguém além dos vinte e cinco sargentos e do subtenente que os comandava. Eram alunos de um curso de aperfeiçoamento e vieram como tropa de reforço ao 12º batalhão. Contudo, não havia mais nada que justificasse manter ali aquele aparato, motivo pelo qual o major lhes autorizou o retorno ao quartel. Eram duas horas da madrugada.

O irrequieto major logo tornou ao Terminal Norte, onde havia maior concentração popular, local ainda tenso devido ao episódio do assassinato. Em lá chegando, verificou que as imensas filas se apresentavam em desordem, com as pessoas amontoadas e disputando aos tapas um espaço nos escassos ônibus que chegavam. Havia um pequeno grupo de PMs, talvez seis, tentando manter a ordem com muita dificuldade. O major e seu motorista também entraram a ajudar, mas logo o oficial percebeu ser inútil; e pensou nos sargentos, decidindo ir ao quartel para mandá-los reforçar o policiamento no tumultuado local. Já era uma situação típica de restauração da ordem. Ele foi rápido, chegou, e, por sorte, os sargentos estavam ainda formados aguardando a dispensa.

– Subtenente, embarque novamente os sargentos e dirija-se com eles ao Terminal Norte. Distribua-os em grupos de cinco e coloque-os patrulhando. A coisa está feia por lá, e há companheiros em dificuldade – determinou o major, ao chegar.

– Senhor major, desculpe-me, mas não dá, não! Nós estamos cansados! – ponderou inusitadamente o subtenente, deixando o major de saia justa.

– Quem é o sargento mais antigo? – indagou o major ao grupo, ignorando totalmente a fala do subtenente, que logo se assustou com o que lhe poderia acontecer...

– Pronto, senhor! Sou o mais antigo! – enquadrou-se o sargento.

– Perfeito! Assuma o comando do grupamento e se dirija imediatamente ao Terminal Norte, entendido? – sentenciou o major.

– Sim, major, prontamente!

– Senhor, e eu?– indagou, sem graça e temeroso, o subtenente.

– Você está dispensado! Vá descansar...

O major nada mais falou, além de avisar que iria ao local fiscalizar o policiamento. Enquanto isso, o subtenente sobrou sozinho, sem saber o que fazer. O major foi então ao Terminal Norte e verificou que valera a pena a medida: os passageiros, diante da proteção oferecida, descontraíram-se e se deitaram nas calçadas, muitos dormindo, outros conversando animadamente, e alguns embarcando ordeiramente nos ônibus. Estava restaurada a ordem, e a prevenção pela presença fez o resto. Pois toda aquela desordem resumia-se a nada mais que medo de assalto, brigas etc.

Os sargentos, em grupos, passeavam para lá e para cá dando proteção às pessoas. E alguns graduados vieram até o major para externar o prazer de se sentirem úteis. E lá estava, entre eles, o subtenente...

– Ué? O que você está fazendo aqui? – indagou-lhe o major.

– Major, desculpe-me, mas não fui feliz no meu aparte ao senhor. Eu estava realmente cansado. Não quis descumprir a sua ordem. Nem sei por que lhe falei daquela maneira. Já estou meio velho; talvez tenha sido por isso...

– Foi um comportamento precipitado, subtenente; mas não se preocupe. Assuma o comando dos sargentos. Creio que agora você não tem dúvida de que aqui eles eram imprescindíveis...

– É verdade, major! Obrigado pela chance! Confesso que me passou pela cabeça que o senhor iria me prender. O oficial-de-dia até me alertou que, além da transgressão disciplinar que cometi, ainda poderia haver a conclusão de que eu pratiquei crime militar. Peço desculpas, major! Nada houve além do cansaço...

– Tudo bem, companheiro. Vá em frente, bom serviço e tenha bom carnaval. Estenda a todos os sargentos os meus agradecimentos...

O major chamou seu fiel escudeiro e motorista, agora já consolidada uma sincera amizade entre ambos. E Cosendei, que pensava num “serviço interno”, empolgado e sentindo-se deveras útil, viu ainda na rua amanhecer o domingo de carnaval. É assim a profissão do PM: cheia de surpresas agradáveis e desagradáveis. Este o seu fascínio e que venham outros carnavais!...


AVENTURAS DO DETETIVE PELEJÃO II – SEQUESTRO




Eram nove horas da manhã de uma segunda-feira, em setembro de 1997, quando Pelejão e Clarimunda adentraram o modesto escritório situado na Avenida Rio Banco, no Centro do Rio de Janeiro. Como de hábito, Clarimunda foi direto à secretária eletrônica recolher as mensagens do fim de semana. Deste modo se iniciava a rotina do casal de investigadores particulares, que durante muito tempo incluiu árduos treinamentos de Clarimunda patrocinados por seu marido, quase que reeditando o famoso “casal vinte” norte-americano, porém com brutal diferença entre suas respectivas contas bancárias: enquanto o de lá nadava em dólares, o seu similar daqui afogava-se em dívidas.

Os tempos estavam ruins: a principal especialidade de Pelejão – investigação de adultério – havia saído de moda. A infidelidade sucumbira-se no lugar-comum da aceitação geral. Em consequência, houvera a falência de Pelejão, que até pensava vender carnê fartura, plano de saúde e similares para sobreviver. Contudo, sua vocação de detetive sempre lhe batia mais forte no peito, e ele resistia estimulado pela entusiasmada esposa, mui também preparada para investigar. No fim de contas, investigação não passa de técnica que, inclusive, é exercitada até nos lares para flagrar filhos surrupiando trocados de algibeiras paternas ou maternas. A diferença entre a investigação profissional e a doméstica, aí sim, se estabelece pelo grau de conhecimento dos mais variados métodos investigativos. No caso de nossa dupla, estamos diante de dois excelentes profissionais, porém em momento de graves dificuldades pecuniárias.

Nesse clima de desalento, Clarimunda ouviu a providencial mensagem gravada na secretária eletrônica: uma pessoa que se identificava como Péricles, de Niterói, dirigia-se a Pelejão solicitando contato urgentíssimo, deixando os telefones registrados. O detetive deu um salto quando Clarimunda o chamou para ouvir a mensagem. A voz do interlocutor indicava certo desespero. Pelejão, depois de esclarecer a Clarimunda que se tratava dum velho amigo de infância, tratou de ligar para o primeiro dos números deixados.

Péricles era bem-sucedido empresário do ramo imobiliário, proprietário da maior corretora de imóveis de Niterói, com inúmeras filiais espalhadas por todo o território pátrio. Muitíssimo rico, tinha especial carinho por Pelejão desde os tempos em que ambos estudaram o ginasial. Depois, cada qual seguiu o seu rumo, Pelejão ingressando na Polícia Civil e Péricles indo trabalhar como corretor.

Tanto como Pelejão, Péricles era vocacionado para a profissão que escolhera. E não tardou em fazer fortuna, eis que ninguém o superava nos negócios que intermediava. Ganhou tanto dinheiro que pôde montar sua própria imobiliária, não mais parando de crescer e enricar, enquanto Pelejão se aventurava na atividade de detetive particular, algo que lhe assegurava o direito de, pelo menos, não pagar aluguel. Sim, pois ele conseguira comprar um apartamento no subúrbio do Rio, onde morava e permaneceu morando após juntar sua vida à de Clarimunda, bela baiana que lhe tomara de assalto o coração a partir de estupenda transa. O amor veio depois, tão forte como a paixão que lhe dera início, como se assim fossem ambos Romeu e Julieta. Mas o dinheiro começara a escassear...

É bom que se diga, todavia, que Pelejão recebia um misérrimo salário de tira aposentado, mas dava para pagar o condomínio e outras pequeníssimas contas, além de garantir a alimentação do casal. De resto, já começava a faltar dinheiro para o sustento da estrutura profissional. A súbita aparição de Péricles, e seu nervosismo ao deixar o recado, indicavam serviço à vista. E não era outra coisa:

– Alô, Péricles falando...

– Alô, amigo, é Pelejão...

– Olá amigo, quanto tempo!... Preciso me encontrar com você, se possível ainda hoje! – sugeriu nervosamente o corretor.

– Você manda! Estou na Avenida Rio Branco, no Edifício Central. Mas posso correr até Niterói...

– Não, amigo! Prefiro ir até você.

– Bem, se é assim então venha...

– Já estou indo!...

– Tudo bem. Aqui a gente conversa mais à vontade.

Na hora marcada, Péricles já apertava a campainha do escritório de Pelejão, este que o observava pelo visor plantado do lado de fora. E curtiu deixá-lo esperar um pouquinho, apenas para poder fitar aquela figura que não via há tempos. Os sinais de fortuna afloravam em Péricles: roupa finamente rematada e um relógio de ouro no pulso, sem dúvida um Rolex, com a pulseira de ouro tremeluzindo como desnecessário suplemento ao relógio; enfim, em poucos minutos Pelejão estaria diante de quem concretamente vencera na vida. “Pô, sempre tirei melhores notas que ele no colégio...”, pensava Pelejão corroendo uma ponta de inveja. “É, mas não posso reclamar. Escolhi esta profissão e ele optou por vender imóvel. Se eu fosse fazer o que ele faz, morreria de fome...”, continuava Pelejão a cogitar enquanto abria a porta:

– Olá, amigo! Quanto tempo!... Tenho acompanhado seu sucesso na polícia. Inclusive fiquei muito preocupado quando soube que você foi baleado... – mentiu Péricles em agrado ao velho colega de banco escolar.

– Obrigado, Péricles! Também tenho acompanhado suas andanças empresariais. Só vejo anúncio seu nos classificados. Sei que você está muito bem. Muitos colegas nossos, com os quais me encontro esporadicamente, também me informam que você é um dos grandes do ramo imobiliário. Meus parabéns! – exagerou Pelejão, seguindo a mesma tática do outro que não via há anos e que dele nem mais se lembrava. – Pelo visto, você me traz algum problema. Se for da minha alçada, conte comigo!...

– Bem, amigo, não sei se você terá condições de me ajudar, mas foi o desespero que me trouxe aqui. Já não creio na polícia, que vem tratando sem sucesso dum grave problema que afeta a minha família. Um filho adolescente de um primo meu está sequestrado faz um mês. Não há qualquer sinal dos sequestradores. Eles fizeram dois contatos nos primeiros dias e não mais se comunicaram com a família. A PM já prendeu dois suspeitos, um sargento e um soldado, que meu primo reconheceu...

– Mas, como ele pôde reconhecer? Explique isto melhor! – interrompeu Pelejão.

– Bem, o sequestro ocorreu em Friburgo. A família estava na fazenda quando foi surpreendida pelos sequestradores. Três deles vieram pelo meio do mato e alcançaram a casa, enquanto os outros rendiam os empregados. Tudo feito como se fosse um grupo de comando militar. Eles não estavam com os rostos cobertos. Apenas usavam toucas “ninja” nas cabeças, mas não as colocaram cobrindo os rostos; e mesmo com todos na penumbra, porque não eles permitiram que acendessem as luzes, meu primo pôde manjar dois deles, que posteriormente reconheceu.

– Mas como reconheceu?...

– Bem, primeiro ele ajudou na elaboração dos retratos falados. Depois, um oficial da PM que comandava o policiamento lá na região, e que tinha contato amiúde com o primo, achou que os retratos falados coincidiam com as fisionomias do tal sargento e de um soldado. Então o oficial levou meu primo até o quartel onde ambos serviam e, em lá chegando, e avistando os suspeitos, ele não teve qualquer dúvida em apontá-los como culpados. Foram presos na hora e estão presos até hoje. Contudo, depois deste episódio, não mais houve qualquer ligação ou recado dos sequestradores. A Polícia Civil não acredita que o graduado e o soldado tenham participado do sequestro. Há uma briga danada entre os policiais civis da DAS e os investigadores da PM. E, no meio dessa briga, estão meu primo e seus familiares desesperados. Por isso me lembrei de você, que com sua experiência nos poderia ajudar...

– É, talvez possa, mas pelo visto o caldeirão está muito remexido. Tem muito cacique pra pouco índio nessa história. Diga-me uma coisa, sinceramente, esse primo seu é rico, famoso ou coisa que o valha?

– Sem dúvida! É pessoa importante, conhecida e rica...

– Um sequestrável em potencial – atalhou Pelejão. – Ele exerce que profissão? – completou.

– É arquiteto, já projetou residências de pessoas importantes e vive figurando nas colunas sociais...

– Hum... E reconheceu os PMs como sequestradores... Veja só, Péricles, há uma coisa que não combina, e eu vou torcer pra ter razão: seu primo tem o perfil ideal para ser alvo do CV. É estranho que de súbito tenha um filho sequestrado por PMs. Acho que ele reconheceu as pessoas erradas, – o que nos daria chance de retomar o assunto, pois prevaleceria meu raciocínio de que o garoto foi sequestrado pelo CV, – ou então ele acertou no reconhecimento, o que lhe será trágico...

– Trágico?... Explique-me melhor! Não entendi muito bem – retrucou Péricles.

– Simples, amigo. Se os tais PMs foram presos, os cúmplices deles devem ser também PMs, e por esta hora já desapareceram com os vestígios do sequestro, ou seja, com o corpo do jovem. A prevalecer esta hipótese, em minha opinião estamos diante de um caso perdido. Mas, se eu estiver certo, teremos o garoto de volta. Quando é que conversaremos com seu primo?

– Agora. Ele nos está aguardando aqui perto, em seu escritório. Podemos ir até lá?

– Claro!

Foram ambos ao pai do rapaz. Em lá chegando, encontraram um homem alquebrado, nervoso, porém arrogantemente convicto de que reconhecera os PMs sem qualquer margem de erro.

– Meu senhor, diga-me uma coisa, o que lhe dá tanta certeza de que o senhor não se enganou no reconhecimento?... Indago assim porque já vi muitos erros devido à emoção da vítima. Ademais, segundo Péricles me informou, o ambiente estava na penumbra... – sugeriu Pelejão ao iniciar a conversa.

– Ora, rapaz! Sou um arquiteto afeito a minúcias por vício profissional. Como é que eu não os observaria com precisão? É impossível que eu tenha errado. Aqueles dois participaram do sequestro, com certeza! – retorquiu arrogantemente o arquiteto, deixando Pelejão aborrecido.

– Senhor, vou lhe falar muito claro também! Não entendo nadinha de arquitetura, mas de investigação criminal eu entendo muito bem, modéstia à parte! A mesma infalível experiência que o senhor afirma ter, para mim somente vale se o senhor estiver construindo uma ponte... Mas em matéria de investigação criminal o senhor não passa de mais uma desesperada vítima por fora de tudo. E lhe digo mais: torça para que esteja errado, pois, se os PMs que o senhor reconheceu são realmente culpados, por esta hora seu filho está morto! – exclamou Pelejão já irritado.

Foi bastante para desmontar o arquiteto, que caiu na realidade e passou a dar atenção aos argumentos de Pelejão, este que prometeu investigar o caso sem acirrar ainda mais a briga entre policiais civis e militares, com os primeiros acusando os segundos de incompetentes e afeitos a estranhos métodos de “investigação espiritual” e loucuras do gênero, o que muito acontecia na época por conta de um oficial PM insano e afeito a crer que poderia identificar um criminoso indagando de um copo d’água...

Pelejão saiu da reunião com a cabeça girando a mil por hora. Mas sabia por onde e como começar. Com experiência, e de posse de muitas informações sobre a criminalidade, – pois nunca deixara de contatar seus companheiros policiais civis e militares, com os quais mantinha útil intercâmbio, – Pelejão decidiu começar sua investigação visitando os PMs presos.

Foi, conversou longamente com o sargento e o soldado, concluindo, para seu alívio, que ambos eram absolutamente inocentes. Foram apenas vítimas do açodamento de um oficial que os confundira com os retratos falados sem considerar que isto é habitual ocorrer, especialmente quando os traços característicos de suspeitos retratados são comuns a muita gente. Pelejão tinha certeza de que o tal oficial e o arquiteto foram traídos pela circunstância de dois retratos falados apenas genericamente indicando as fisionomias dos suspeitos, havendo a possibilidade de se encontrar, em qualquer lugar, pessoas semelhantes aos desenhos. E não houvera outra coisa senão um terrível engano...

Com esta certeza na mente, Pelejão partiu ao encontro de seus amigos da DAS, e não lhe foi difícil saber que, como ele de antemão vislumbrara, os sequestros eram praticados por membros do CV, tendo como foco de mando os presídios de segurança máxima e os chefões que lá cumpriam pena. Também não lhe foi difícil saber de onde eram os bandidos: a favela Monsenhor Universal...

Pelejão começou a traçar o roteiro do sequestro a partir dos sequestradores, também por saber que dificilmente outros bandidos partiriam para esse tipo de ação a não ser policiais desviados. A regra geral, porém, era a de sempre, e tinha nome certo: CV.

Com a mente já ajustada à realidade, Pelejão partiu ao quartel da PM situado na área onde se localizava a favela, com o fim de se entender com alguns oficiais e soldados amigos. Não lhe foi difícil confirmar que os sequestros eram comandados de presídio de segurança máxima e por famigerado bandido conhecido como Robinho Fantasma, alcunha que surgira por ter ele tatuada no peito uma caveira enorme, além de duas caveirinhas em cada braço.

Outra informação importante recolhida por Pelejão dava conta de que os bandidos da favela Monsenhor Universal cuidavam somente da parte operacional do sequestro, logo entregando o sequestrado a outro grupo para guardá-lo em cativeiro enquanto negociava com a família. Tudo, claro, orquestrado pelos chefões presos. E em meio ao importante manancial de dados que recolheu veio-lhe uma surpreendente revelação: havia em outro quartel um PM que namorava a irmã de Robinho Fantasma, e que era ligado a um PM amigo Pelejão. Daí ao encontro foi um pulo.

– Meu amigo, há uma situação muito grave envolvendo o irmão de sua namorada. Sei que você é firmeza, que conheceu a moça por acaso, sem saber mais detalhes a respeito da família dela. Mas acontece que tenho certeza de que foi o irmão dela quem tramou o sequestro do meu primo – mentiu Pelejão ao se dizer parente. – Sei que você nada tem a ver com isso, e muito menos a irmã de Robinho Fantasma, mas preciso da sua ajuda pra lhe mandar um recado. Os sequestradores estão exigindo cinco milhões de dólares pra devolver o menino. É impossível, mas se fizerem um preço razoável a família paga o resgate. Há condição de você ajudar?

– Olha aqui, irmão: você chegou muito bem recomendado! Fique sabendo que não tenho trato com esse bandido. Quando conheci a irmã dele eu nunca poderia sonhar com a coincidência. Quando ela soube que eu era PM quis até terminar o namoro. Ela gosta do irmão e ele não sabe que ela namora PM. Nem sei se vamos continuar juntos... Por isso, posso mandar um recado pro Robinho Fantasma. Quero que ele se dane! Não gosto de bandidos!...

– Com certeza! Quero-lhe agradecer pela disposição em ajudar. Saiba que isto é segredo entre nós. Só preciso que Robinho Fantasma reveja o valor do resgate e saiba que vento que venta pra cá, venta pra lá... Importante é que ele saiba que está com alguém de minha família, mas que eu também cheguei perto da família dele... Preciso que ele saiba que sei perder, mas que ele também poderá perder feio... É parada de homem!... Quero o menino de volta, mas por um preço que possa ser pago. Assim terminará tudo bem. Há trinta dias os sequestradores estão quietos. Acho que foi por causa das prisões dos PMs e do excesso de divulgação. Mas isto já passou...

– Pode deixar. Vou agir ainda hoje. Mas o encontro da garota com o mano dela só vai acontecer no domingo. Antes disso é impossível. Mas creio que tudo vai clarear...

Pelejão ficou organizando os dados e as ações que desencadeara. Naqueles dias, não parou de articular contatos, sempre em sigilo e sem comprometer as investigações em curso. Na verdade, duas: a da Polícia Civil, que caminhava dentro da lógica e fechava o cerco em torno dos verdadeiros criminosos a partir de investigações de pessoas ligadas à família. Para os investigadores não havia dúvida de que o sequestro contara com a participação de alguém próximo. A outra vertente de investigação, a da PM, é que era absurda e mantinha dois inocentes presos e execrados em jornais.

Esta era a situação quando Pelejão, juntamente com Péricles, foi novamente se avistar com o arquiteto, agora na residência deste último. Era noite. O ambiente na casa era de consternação. Dava pena ver o desespero da mãe do rapaz. O pai também perdera a arrogância inicial e não tinha mais certeza de nada. Mas Pelejão trazia de volta a esperança:

– Senhor, tenho boas notícias para lhe dar. Não há mais dúvida de que o sequestro foi executado por bandidos do CV. Não se impressione se a Polícia Civil alcançar alguém muito próximo de vocês. Mas isto será depois do resgate. Não lhe vou narrar o que fiz, é segredo profissional. Só quero assegurar-lhe que, se tudo correr bem, na segunda-feira o senhor receberá contato. Fique atento. E mais: o preço do resgate não será absurdo, mas é bom que o senhor pague...

– Está certo, meu amigo! Só lamento que o senhor não me queira contar o que aconteceu nesses dias. Imagine como estou ansioso... – reclamou, agradecido, o arquiteto.

– Senhor, eu só decidi ajudar neste caso por força de minha amizade com Péricles. O meu dia a dia é outro. Mas achei justa esta causa. Portanto, confie no que fiz e aguarde. Porém, não posso deixar de repreendê-lo por causa dos inocentes que o senhor mandou à cadeia. Isto é prova de que em investigação criminal nem sempre o que aparenta ser confirma-se na prática. Espero que o senhor repare o mal que fez a esses inocentes. Mas só depois que seu filho já estiver a salvo! – discursou Pelejão, deixando em mistério o que fizera.

Na segunda-feira, conforme previra Pelejão, os contatos entre os sequestradores e o arquiteto foram reiniciados. Só neste dia ocorreram três ligações, nas quais os interlocutores chegaram a uma satisfatória conclusão sobre o valor do resgate: US$ 70.000,00 (setenta mil dólares) e R$ 5.000,00 (cinco mil reais), ajustando-se o modo de entrega sem a presença da polícia. Na quarta-feira da mesma semana o rapaz foi libertado num trecho da Via Dutra. Buscou um telefone, ligou para o pai e logo já estava em casa sendo abraçado pela família.

Péricles telefonou para Pelejão convidando-o a ir à casa do engenheiro, mas ele, polidamente, recusou. Não pretendia cobrar qualquer valor por seu serviço e entendeu que sua ida à residência do sequestrado poderia ser vista como um tipo de cobrança. Péricles insistiu, mas não houve como demover Pelejão.

Dias depois, Péricles compareceu ao escritório de Pelejão, e, além de lhe agradecer o empenho, passou-lhe às mãos um envelope certamente contendo dinheiro, mais presente que pagamento por seus serviços. Pelejão esboçou uma recusa, mas nem tanto que o outro acabasse recolhendo o precioso envelope. Afinal, o detetive estava matando cachorro a grito, com um monte de contas a pagar e literalmente enfiado numa camisa-de-onze-varas.

Depois que Péricles se retirou, Pelejão e Clarimunda correram a abrir o envelope, dando ambos com a grata surpresa de fitar 20 mil dólares cintilando diante de seus olhos. Bom tempo de contas em dia e reserva financeira garantindo tranquilidade ao casal de detetives particulares. E, ainda naquele dia, as rádios noticiavam que a polícia prendera uma antiga empregada da casa envolvida no sequestro. Ela confessara tudo, inocentando o sargento e o soldado, que foram imediatamente libertados, com as esfarrapadas desculpas do sistema. Mais uma prova de que Pelejão tinha razão...

Tempos se passaram, e os dois PMs ingressaram na Justiça com o pedido de indenização pelos danos que sofreram. Devem estar até hoje esperando a decisão, já sabendo que, com muita sorte, se a sentença lhes for favorável, como dizem os renomeados juristas, talvez seus bisnetos a recebam... E quanto aos “investigadores espirituais” que aprisionaram esses inocentes?... Bem entraram em transe e em fade sumiram...


Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...