“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
1
Nunca o Morro da Felicidade fora visto tão
silencioso nos seus meandros de intrigas, confusões, festas e conflitos entre
os moradores, sem falar nos tiroteios entre bandidos e policiais e até em
algumas mortes de quando em quando. Mas aquele era um silêncio diferente,
pesado, temeroso – e por que não dizer apavorante? –, porque muitos poderosos
líderes do tráfico de diversas favelas não paravam de chegar, ou de carro, ou a
pé, ou de moto, porém todos protegidos por seguranças fortemente armados e
ostentando joias caras e telefones celulares esquentando sem parar suas orelhas,
assim como se fossem brincos.
Também era fácil perceber que os chefões
ali chegavam acompanhados de seus homens de confiança, e todos se iam
encaminhando para a sede da associação de moradores. Contudo, não seria uma
festa o que aconteceria naquele lugar, mas uma reunião comandada pelo mais
importante cabeça do tráfico em todo o Grande Rio, um exemplar feroz e sombrio
e conhecido por todos como Tora. E já se sabia que naquele dia nem mesmo a
polícia teria coragem de fazer uma incursão na favela, porque, além do risco
inútil a que seriam submetidos os favelados, as baixas entre eles próprios, os
policiais, seriam inevitáveis. Demais, o capitalismo criminoso também já
cuidara no sentido de evitar qualquer escaramuça policial, mesmo imperando
naqueles dias um insuportável clima de hostilidade entre policiais e marginais.
Mas com dinheiro, tudo se resolve... Portanto, e em sendo assim, a paz estava
garantida.
A reunião fora resultado de muitos contatos
preliminares, tanto pessoalmente como por telefone, em conversas cifradas entre
aqueles magnatas do tráfico, de modo que uma possível interceptação das
ligações não redundasse em prejuízo ao importante encontro, cujo objetivo
principal, entre muitos outros, seria a consolidação da estrutura de uma nova
facção criminosa que se já vinha alinhavando há longo tempo: o Comando da
Morte. Mas este assunto era somente para que aqueles magnatas não assumissem
publicamente a inquietação maior que naquele momento lhes atordoava os
espíritos: o medo de morrer...
Tudo estava devidamente engendrado:
estatutos, demarcações de áreas, esquemas de interação com os presídios,
deveres de cada integrante da facção, cobrindo desde as mais simples às mais
complexas tarefas das quadrilhas que ali se integravam como uma grande
organização criminosa, a maior de todas que se poderia conceber naqueles
tempos. E havia também uma decisão definitiva entre os bandidos: a nova facção seria
comandada por Tora.
– Olha aí, rapaziada, aqui quem manda sou
eu. Todos chegaram juntos comigo a esta decisão. E também quero dizer aos
irmãos que já dei um arrego pros vermes, pros polícias que tão enchendo o nosso
saco e até matando a gente. Mas nós também matamo eles; então, tá tudo certo...
Ninguém mais discutia a liderança de Tora.
Ele conquistara na marra o topo do poder marginal, não só por sua ferocidade e
lealdade aos amigos do mundo do crime, mas principalmente porque era quem
fornecia a droga no atacado aos demais, e num preço tão melhor que nenhum
concorrente o igualava. Era ele quem trazia diretamente da fonte fronteiriça a
cocaína pura e com selo internacional de garantia, entregando-a aos demais
malfeitores ao tempo e à hora e ainda eventualmente consignada em confiança,
esta que, se quebrada, vinha ao faltoso a morte cruel. Era a regra de Tora, mas
que muita vez dava lugar ao inusitado perdão e à renovação do prazo, nunca se
sabendo, todavia, quando haveria o perdão, tudo dependia do momento e até do
humor do traficante-mor.
Havia, porém, mais um outro grande motivo
para que aqueles bandidos buscassem uma nova união entre eles, mais depurada e
cercada de graves cautelas: muitos estavam sendo estranhamente assassinados em
suas comunidades, e não parecia ser coisa de policiais, ou melhor, de policial,
porque se tratava de apenas um a matar muitos mediante variados e infalíveis
métodos. Sim, morriam às pencas, os bandidos, e não conseguiam desvendar o
autor para se chegar ao mandante. Por isso estava cada vez mais difícil
descobrir quem estaria por trás de toda aquela trama assassina, e por que nunca
apenas feria, sempre matava, sem mandar qualquer sinal dos seus motivos e sem
exigir qualquer tipo de negociação, como era de praxe acontecer. Estava, com
efeito, tudo muito estranho naqueles tempos...
E sobrepujava uma característica apavorante
em relação às mortes: toda vez que surgia um corpo ensanguentado, alguma
testemunha sempre via uma Gralha voando próxima do local do crime ou pousada
num ponto visível. E logo que era vista batia asas e desaparecia. E sempre se
encontrava uma pena azul-marinho cravada na testa da vítima, um sinal de que
aquele crime deveria ser colocado na conta de um mesmo assassino. Por isso, as
mortes passaram a ser catalogadas como os crimes da Gralha, em alusão à
estranha coincidência...
Mas nada indicava quem matara o infeliz,
sempre um de cada vez, fosse homem, fosse mulher, menos esta última, mais o
primeiro, porque também no submundo do crime funcionava a discriminação do sexo
oposto, que servia à quadrilha muito mais na cama do que em outras tarefas. Não
poderiam nunca sonhar, os bandidos, que aquela alusão à Gralha era a que mais
se aproximava da realidade...
2
Muitos anos antes, começou a emergir na
favela do Roncador uma seita religiosa de hábitos muito esquisitos e fechados.
No princípio eram poucos os membros daquela seita, mas não demorou muito para
que ela se fosse expandindo. E logo depois de um tempo já se via na favela uma
grande área cercada por altos muros, como se fosse ali uma fortaleza. No
início, os traficantes não se incomodaram. Afinal, já estavam acostumados a ver
o surgimento de muitos movimentos religiosos e não ligavam para o fenômeno,
desde que não atrapalhasse os negócios do tráfico. Se houvesse alguma
interferência, mesmo que mínima, influenciando contrariamente o comércio de
entorpecentes, aí adeus, seita, pois ela era finda na marra da vontade do
bandido, ou por bem ou por mal...
Muito tempo se passou sem que houvesse
qualquer cisma entre os bandidos e os membros da misteriosa seita. Conviviam no
mesmo espaço territorial sem grandes problemas. E a seita continuou a se
expandir sobremaneira, aglutinando cada vez mais adeptos, todos identificados
pelas roupas extravagantes que usavam, como se tudo fosse a reedição de um
movimento hippie tupiniquim. Não o
era, mas muitos dos hábitos se lhe assemelhavam, porém outros procedimentos já
se situavam no extremo quase oposto daquele movimento não-conformista que
marcou época na História por apregoar o rompimento definitivo de seus membros
com a sociedade tradicional. Mas enquanto aquele antigo movimento buscava um
ideal de paz, amor e liberdade predominando no Universo, este, da favela, tinha
como base filosófica e pragmática o combate feroz à imoralidade das drogas e ao
crime, pelo menos aparentemente...
Contudo, e curiosamente, aqueles sectários
contemporâneos estimulavam o sexo livre entre eles e sem a preocupação com
fidelidade conjugal ou parcerias monogâmicas. Ao contrário, praticavam a
poligamia como meio de ampliar a Tribo – como assim se autodenominavam –,
através da procriação acelerada. Mas, ao mesmo tempo em que pregavam a
multiplicação dos seus membros, a Tribo defendia a eliminação dos pecados do
mundo através do desaparecimento dos pecadores. E para tal desiderato é que
apregoavam a proliferação dos puros, enquanto os pecadores, inclusive e
principalmente os criminosos, envelhecessem e morressem. Não pensavam em
matá-los, não se preocupavam com o tempo terreno, não tinham pressa de nada, a
não ser de ampliar o número de seguidores purificados, enquanto os ruins fossem
naturalmente desaparecendo.
Tudo, porém, ainda se encontrava no nível
filosófico. Havia um conjunto de táticas sendo alinhavado, sim, nas reuniões
fechadas da seita, mas estas apenas forjavam o conteúdo da grande estratégia
futura de purificação da humanidade. Aí, decerto, os homens e as mulheres do
mundo viveriam a paz e a harmonia tão enaltecidas pelos hippies do passado. Em outra dimensão do entendimento, e segundo os
membros da seita, não poderia haver paz sem que antes houvesse a guerra. E eles
também vinham se preparando para a guerra, só que a da procriação célere dos
purificados. E a outra guerra, contra os pecadores, o passar do tempo resolveria...
3
O líder da Tribo era um sujeito muitíssimo
estranho, o único que se vestia de preto da cabeça aos pés e mantinha uma barba
cultivada há muitos anos. Apresentava uma aparência sinistra, e por isso era
tido como louco pela maioria dos favelados, que riam à sua passagem, algo porém
muito raro: ele não costumava sair, ficava recolhido à fortaleza, que, por sua
vez, aumentara sua área física em muitos metros, já se destacando como uma
comunidade dentro da outra, como assim grosseiramente comparando se apresenta
ao mundo o Vaticano dentro da Itália.
E aquele líder, homem de muitas mulheres,
era referido entre os sectários e os próprios favelados como Mestre Irvarum. E
até de certo modo lembrava a figura mítica do cearense Antônio Conselheiro,
pois havia nele, no Mestre Irvarum, um certo modo de copiar a legendária figura
que liderou um movimento camponês e construiu sua fortaleza em Canudos, sertão
da Bahia, a partir de 1893, e comandou a estupenda resistência armada lá pelos
idos de 1896 e ano seguintes. Pois o Mestre Irvarum, mesmo que não contrariasse abertamente os políticos e nem
aventasse as diferenças sociais e econômicas do presente como causas
concorrentes para o aumento da criminalidade, pregava a “igualdade das massas”
e defendia veementemente que para elas, as massas populares, haveria de haver
“um só pastor e um só rebanho”. Mas, pastor representando quem?... Deus ou o
diabo?...
No caso do Mestre Irvarum, tudo ocorria em
outros tempos e dentro de uma favela urbana. Todavia, não se podia negar que
aquela comunidade sectária crescia assustadoramente e com características
peculiares à outra seita ou movimento político e social do passado, porém tudo
ainda muito embaciado... Mas isto não guardava em si muita importância, porque,
como já dito, o foco filosófico que impulsionava hodiernamente a seita de
Mestre Irvarum era a purificação da espécie humana, ou seja, a ausência de
pecadores numa nova sociedade. Mas, afinal, quem seria o pecador?... Nada disso
era muito bem entendido pelos traficantes e principalmente por Nego Pinduca, o
manda-chuva daquela favela onde estava a Tribo plantada, e já com fortes raízes
fincadas naquele chão.
Mas chegaria o dia em que Nego Pinduca
teria o primeiro aviso de que a seita representava perigo para os seus
negócios. Um dos membros tornara-se dissidente e informara detalhadamente ao
traficante os planos “filosóficos” de Mestre Irvarum. Assim, e mesmo sem nada
entender de “filosofia”, o bandido se sentiu ameaçado. Daí mandou uma ordem
direta ao líder sectário para que lhe viesse ao encontro num ponto qualquer da
favela. E Mestre Irvarum, sem ainda saber que seus planos eram malvistos pelos
marginais, veio como se estivesse em missão de paz, num domingo de manhã.
O sol já dera os seus bons-dias a todos que
pularam cedo da cama e ganharam o lado de fora dos barracos. A favela
fervilhava de gente indo e vindo e parando e bebericando; mulheres lavavam
roupas rotas e as dependuravam em varais que enfeitavam (ou enfeavam) o espaço
favelado; crianças empinavam suas pipas e furavam búricas no chão para jogar
baleba, e outras rodavam pião, quando aquele ser estranho surgiu caminhado
pesadamente pela favela. E logo despertou a curiosidade geral, com muita gente
a olhar das portas, janelas e frestas dos barracos, além de logo se formar
atrás dele um numeroso séquito de adultos e crianças, todos matando pela
primeira vez a curiosidade que guardavam dentro de si sobre aquela misteriosa
figura que agora lhes surgia inusitadamente. E a caminhada do Mestre Irvarum
logo se tornou festiva, ele na frente e aquele poviléu lhe seguindo os passos.
Em poucos minutos Mestre Irvarum já se
colocava diante de Nego Pinduca e seus principais asseclas, que nenhum tempo
perderam e, para surpresa dos que assistiam ao encontro, passaram a agredir
violentamente o pobre-diabo. E depois de surrá-lo impiedosamente, os
enraivecidos bandidos o prostraram desmaiado ao chão. E nele continuaram a
bater, agora pontapeando-o sem dó e nem piedade, até que o sangue lhe ensopasse
as vestes e o pó do chão se lhe grudasse ao sangue, formando no pano a massa
tétrica, o resultado daquela covardia sem limites. E, se ainda não bastasse, os
bandidos passaram a urinar sobre o pobre-diabo, todos ao mesmo tempo e às
gargalhadas, levando ao delírio os assistentes, como se ali, de repente, se
tivesse transformado numa arena romana com os leões devorando os cristãos. Mas
algumas pessoas, silenciosas, e com um nítido temor, não gracejavam diante da
terrificante cena; apenas olhavam Mestre Irvarum se contorcer de dor, porém sem
soltar um só gemido. Queriam que ele suplicasse a clemência, mas ele não o fez.
E esta fora a razão, talvez, que levara aqueles facínoras ao extremo da covarde
surra e da humilhação a que submeteram o indefeso homem.
Caído, desmaiado, ensanguentado, e todo
mijado, Mestre Irvarum assim ficou durante mais de uma hora; e ninguém ousava
dele se aproximar: os bandidos ainda tomavam conta do ambiente que cercava
aquele cenário animalesco. Mas depois, já satisfeitos com a maldade que
gratuitamente encetaram, se retiraram. E foi a partir deste momento que algumas
pessoas da seita vieram e, improvisando a maca com dois caibros velhos, e neles
enfiando os paletós de três dos sectários que ali estavam, puseram então o
corpo desmaiado de Mestre Irvarum e o levaram embora, logo adentrando a
fortaleza da Tribo.
Aquele domingo transformara-se em dia de
espanto e temor, e as pessoas se recolheram ao silêncio de seus barracos, todas
apavoradas diante de tamanha covardia. Afinal, aqueles sectários ficavam
abrigados dentro das muralhas da fortaleza e nunca incomodavam ninguém. Mas
houvera a desmoralização do mais importante membro da seita, do seu fundador,
do único líder, do misterioso Mestre Irvarum, e havia um certo presságio de
vingança no ar, ar que se tornou pesado pelas nuvens pretas que desceram e
escureceram o céu. E logo os riscos de metal se anteciparam ao ribombar dos
trovões, tudo sem que caísse uma só gota d’água, parecendo que o diabo demonstrava
sua zanga por ver Mestre Irvarum vítima daquela insólita e violenta agressão,
ou então era coisa do Todo-Poderoso, que naquele exato momento lançava sua ira
em solidariedade ao aviltado líder espiritual terreno, assim especulavam
indistintamente os favelados, que não sabiam se o fenômeno vinha vindo de
decisão do primeiro ou do Segundo.
Mas, na medida em que o céu despejava sua
assombrosa descarga elétrica sobre a favela, o poviléu cada vez mais se enfiava
nas profundezas do silêncio, enquanto os próprios meliantes, também apavorados,
sumiam feito ratos em buracos cavados para ocultação de seus corpos e armas e
drogas na chegada da polícia. E de repente, do mesmo modo que o tempo fechou,
abriu, vindo de volta o sol brilhando no infinito agora azulado como antes.
Coincidentemente, os raios solares tocaram o chão da favela no exato momento em
que Mestre Irvarum reabria os seus olhos inchados. E o silêncio permaneceu até
chegar o lusco-fusco do entardecer, e entrou pela noite e se estendeu ao dia seguinte.
Fora o pior domingo já visto por aquela comunidade ordeira da favela do
Roncador...
4
Houve o passar de uma semana e se chegou
novamente ao domingo. Mestre Irvarum rapidamente se recuperou, coisa que também
ninguém entendeu lá na fortaleza. E muito menos entenderiam os moradores da
favela, ao contrário, se horrorizaram, quando viram o incêndio lamber a
fortaleza e incinerar todos os que lá estavam, enquanto cá fora o dissidente e
delator amanhecia dependurado pelo pescoço, enforcado, ensanguentado e todo
mijado. Morto. E lá dentro o fogo consumiu o prédio e matou centenas de
seguidores de Mestre Irvarum. E não que não viessem os bombeiros trabalhar
arduamente para tentar apagar o fogaréu, que de tão forte parecia sair das
profundezas infernais. Mas o fogo não pôde mesmo ser controlado, porque era o
que jorrava das cachoeiras do Leteu. Não dava para nenhum homem apagá-lo. E ali
muita gente finalmente entendeu que o fenômeno anterior fora provocado pelo
único príncipe espiritual daquela seita: o Satanás. Mas o que também ninguém
viu foi que do meio do crepitar horrendo das brasas que sobraram, do meio do
carvão incandescente que ainda insistia em vencer as águas dos bombeiros,
daquele meio tenebroso alçou voo uma ave predominantemente azul-marinho e de tamanho
médio: uma Gralha...
5
Correu o tempo de mais uma semana e veio o
domingo seguinte, e qual não foi a surpresa dos favelados quando se depararam
com um corpo de traficante em cada poste, todos dependurados em laços de
enforcamento de corda trançada em vermelho e preto. E os corpos ensanguentados
e mijados, tal e qual fizeram com Mestre Irvarum. E no poste mais alto da parte
mais elevada da favela estava o cadáver de Nego Pinduca, este ainda retalhado e
igualmente banhado em seu próprio sangue e no mijo de seu misterioso matador.
Mas nele havia algo mais: uma pena azul-marinho enfiada em sua testa, brotando
dali como se fosse nascida de dentro dele.
Ninguém entendia como aquela pena de tubo
córneo tão fino fora cravada na testa do manda-chuva, como se fosse um
unicórnio, nem mesmo os apavorados peritos, que nunca haviam visto cena tão
terrificante, mais ainda que a do domingo anterior, na fortaleza, na qual se
sabia que muitos sectários sucumbiram, porém deles somente sobraram as cinzas
humanas misturadas às outras, variadas, tornando-se impossível separar o joio
do trigo, e muito menos identificar quem quer que fosse. Por isso, nem
sepultamento dos sectários houvera, mas apenas um simbólico enterrar de cinzas
de defuntos desconhecidos misturadas às de madeira e demais materiais
juntamente incinerados. Na verdade, tudo ao pó voltara, não fazendo ali muita
diferença, se carne humana ou não.
E assim, mortos todos os asseclas de Nego
Pinduca, e ele próprio, na favela do Roncador, não muito tempo se passou e
outros bandidos ocuparam a comunidade. E logo o cenário tornou ao de sempre e
comum às demais favelas, ou seja, traficantes para todos os lados, armados até
os dentes e vendendo cocaína para milhares de viciados. Mas logo também a
favela foi assistindo à morte estranha de cada um deles, em dias diferentes,
porém todos sempre com a marca da Gralha: uma pena azul-marinho cravada na
testa de cada defunto. E o corpo ensanguentado, furado por faca e enforcado,
além de mijado...
E as mortes naquele estilo foram virando
moda sem que conseguissem desvendar a autoria delas, e nem poderiam fazê-lo,
posto que vinham vindo da ave azul-marinho que se materializava na forma humana
diante da vítima, sangrava-a, cravava-lhe a pena na testa, se desmaterializava
e tornava à forma animal: a da Gralha. Mas quem via a ave? Ninguém, ou melhor,
os alcançados pela ira da Gralha viam-na, sim, mas nunca poderiam dizer que a
viam, porque logo morriam levando para as trevas a imagem daquela Gralha virando
gente e matando-os sem qualquer contemplação. E o homem que surgia da Gralha
era nada mais nada menos que Mestre Irvarum...
6
Meses se passaram, e a polícia e os
bandidos perdidos e sem saber quem estava matando quem naquela sucessão de
matanças. E os bandidos acusavam a polícia, e a polícia dizia que eram os
bandidos disputando os rendosos pontos de venda de drogas, e a imprensa
aperreava os políticos, e estes acusavam supostos grupos de extermínio, e
acusavam a polícia para fazer média com os bandidos e se manterem como os
prediletos deles na hora do voto; enfim, todo mundo se acusava mutuamente, e
nem por isso a matança de traficantes e demais facínoras diminuía. Ao
contrário, aumentava, porque das acusações mútuas dos bandidos emergiam as
vinditas entre eles, e mais corpos caíam ensanguentados nas favelas; porém,
esses defuntos vinham desprovidos da marca registrada da Gralha: a pena
azul-marinho cravada na testa.
A confusão estava formada, e nem mesmo a
pena azul-marinho incomodava mais ninguém; de tanto que morria bandido, a
criminalidade na cidade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, com as pessoas
já podendo circular sem o temor de assaltos, e até já gostando de assistir de
camarote às intermináveis contendas entre marginais, como se fossem dois
escorpiões em luta mortal. Era coisa sobrenatural, assim diziam, e sem o saber
acertavam, posto que era de fato a vingança vinda das profundezas e de alguém
que fora cerceado por mãos humanas em sua missão de recolher almas penadas e
espíritos imundos para o príncipe das trevas. Sim, pois não era outra a missão
de Mestre Irvarum, apenas um demônio encarnado e a serviço do seu verdadeiro
senhor: o Lúcifer. E os facínoras humilharam e desdenharam o seu poder
sobrenatural. Estavam pagando caro por isso...
7
Esta era a razão de tanto bandido estar
reunido naquela favela sob a égide eventual do mais poderoso deles: Tora. E
liderado por esse terrível marginal, os demais discutiam e se acusavam entre si
num clima difícil de se controlar. Mas aos poucos Tora foi dominando a situação
e fazendo suas avaliações sobre aquela sucessão de mortes, todos buscando
entendê-las, porém sem conseguir. Contudo, depois de muito discutirem e
confessarem entre eles que protagonizaram muitas daquelas mortes, e de
concluírem, ao final, que se mataram gratuitamente, posto que ninguém ali
tomara a iniciativa de matar ninguém por interesses pecuniários ou de poder,
conseguiram provar para si próprios que aquelas mortes da pena azul-marinho
eram de origem desconhecida. E como venceram as desconfianças entre eles,
passaram a culpabilizar a polícia e juraram vingança, todos ao mesmo tempo
matando policiais durante um mês, até que de novo se reuniriam para deliberar
sobre o mesmo tema que os preocupava. Não perceberam, porém, que lá no alto da
laje do prédio, oculta nas sombras, uma Gralha crocitava surdamente...
Foi um mês de muitas matanças, com os
assassinatos de policiais batendo recordes jamais imagináveis. Eles eram
emboscados e covardemente mortos em blitze promovidas por bandos fortemente
armados. E sempre os bandidos os pegavam de folga e com suas famílias nos
carros, e não perdoavam ninguém: eliminavam sumariamente todos os que eram
apanhados.
As mortes de policiais e familiares,
inclusive de crianças, passaram então a ocupar as páginas dos jornais, enquanto
bandidos e mais bandidos apareciam mortos e dependurados em postes. E ninguém
se lembrava ou nada associava àquele líder espiritual da favela do Roncador que
fora surrado e tivera o seu corpo dilacerado e mijado por traficantes. Mas,
quem poderia lembrar, se todos aqueles que o viram morreram na hora e já
estavam nas trevas e em companhia do Belzebu?...
Um mês depois, os marginais novamente se
reuniram e concluíram que em todos os casos de comparsas assassinados havia a
pena azul-marinho cravada em suas testas; e seus corpos, além de ensanguentados,
estavam todos mijados; enfim, tudo indicava que o autor dos assassinatos era o
mesmo. Mas a população, apesar de lamentar as mortes dos policiais, não se
sabendo se hipocritamente ou não, vibrava com as mortes dos bandidos, estas em
quantidades muito maiores. E as pessoas, satisfeitas por não correrem tanto
perigo nas ruas e em suas casas, declaravam aos trezentos e tantos ventos que o
ideal seria a continuidade daquelas mortes, mesmo que de ambos os lados, e
mesmo com inocentes atingidos, assim igualando policiais e seus familiares a
bandidos, para gáudio de muitos políticos que se arvoravam de contestadores das
diferenças sociais e econômicas, e que diziam sempre que era aquilo mesmo, que
eram policiais matando bandidos e bandidos matando policiais, e com isso a
população só saía ganhando. E eram aplaudidos por bandidos e por favelados,
estes que, entre obedecer ao bandido ou defender uma polícia que não os
respeitava, preferiam a primeira hipótese, pois, “se correr o bicho pega, se
parar o bicho come”... Sim, porque ninguém poderia em sã consciência imaginar
que um anjo do Mal encarnado numa Gralha, e que se materializava num homem
matador provido de poderes diabólicos, era esse anjo do Mal o verdadeiro
assassino serial...
Mas a segunda reunião dos bandidos estava
determinada a ser o mais tétrico espetáculo jamais imaginado pela mente humana
acontecer em plena cidade e numa favela. E se naquela noite da reunião, e antes
do seu início, se alguém tivesse ido à favela do Roncador, se depararia com o
Mestre Irvarum circulando pelas vielas, cumprimentando as pessoas, afagando as
crianças, distribuindo doces e moedas e levando os favelados ao delírio. E
ninguém ali se preocupava em saber como o Mestre Irvarum escapara do grande
incêndio em sua fortaleza, e muitos já se comportavam como seus novos
seguidores, prometendo-lhe lealdade e lhe pedindo a “salvação”... E para
aquelas pessoas ele apenas dizia que formaria outras seitas, porém agora dissimuladas
em lugares e pessoas santas, cabendo a cada um identificar dentre elas os seus
verdadeiros porta-vozes...
Quem e quantos seriam eles?... O Mestre
Irvarum deixava esse ponto em dubiedade, pois dizia que seus porta-vozes
estariam sempre enaltecendo o seu maior Inimigo, estariam pregando o inverso da
Verdade... Mas, o que seria o inverso da Verdade, se não se sabia qual era a
Verdade?... E deveria ser assim por quê?... Ora, ora, é lógico que para levar
os seus seguidores ao fanatismo e à cegueira comunitária, societária e
espiritual, através da arguta exploração da boa-fé daquela gente simples, que
poderia estar caminhando tranquila e fervorosamente para o diabo, mas pensando
o contrário... como na dúvida que sempre se tem se se é comunitário ou societário,
ou vice-versa, sendo difícil entender que possa haver qualquer concomitância,
como em religião é sempre difícil saber quem é o legítimo representante da
Palavra de Deus e quem é o preposto do diabo que se oculta na roupagem do
primeiro...
E de repente, como se todos estivessem
entorpecidos diante de tantas dúvidas, Mestre Irvarum desapareceu. Mas a sua
mensagem ficou martelando os espíritos daqueles favelados, pois o Mestre
Irvarum não lhes deixara uma pista clara no sentido de identificar, entre tantas
seitas que existem, quais seriam as que o representariam e onde estavam
instaladas. Pelo visto, esse recado viria depois... pois na verdade ninguém ali
desconfiava de que o Mestre Irvarum era o próprio Lúcifer encarnado em corpo de
gente e de uma Gralha...
8
O traficante Tora custou a acalmar os
ânimos dos presentes. Mas, depois de muito esforço, e até mediante ameaças,
conseguiu o seu intento. E aquela reunião finalmente começou, com os bandidos
em acaloradas discussões e já concluindo que as matanças entre eles não mais
pareciam obra de policiais, mas de gente de fora, de outros municípios, e até
talvez de outros estados. Na verdade, já percebiam que matando policiais, como
o fizeram, não resolveram o problema e apenas arranjaram uma sarna a mais para administrar.
E cheios de dúvidas se enfiaram naquela polêmica sem início, meio ou fim, e
assim não perceberam que a Gralha mais uma vez lhes observava os movimentos de
lá de cima, do canto escuro de uma pilastra que a ocultava das vistas daqueles
facínoras, estes que se perdiam em suas próprias e desencontradas conclusões.
Sim, todos os bandidos e seus
lugar-tenentes e comparsas se foram ajuntando e se espremendo no ambiente para
ouvir a palavra final do líder Tora. E o bandido, do alto de sua autoridade sobre
os demais, entrou a orientar os passos seguintes que dariam. E, distraídos, os
bandoleiros não perceberam que as portas da associação de moradores se foram
fechando sem que mãos as tivessem movimentando. Era um discreto vento que fazia
o trabalho, mas aquele vento não era um vento comum, eram os anjos do inferno
que agiam...
Enquanto as portas silenciosamente
trancavam os bandidos lá dentro, as nuvens pretas cobriam o céu da favela e
desciam quase ao chão do lado de fora. Mas não havia nenhum barulho, tudo
ocorria no mais absoluto silêncio, até que aconteceu o primeiro estrondo,
assustador estrondo, que fez os favelados se escafederem para dentro de seus
barracos e casas simples. E fez estremecer a bandidagem, que imediatamente
tentou alcançar o lado de fora, porém dando de cara com as portas trancadas. E
foi neste momento que houve o segundo ribombar do trovão, e a ave sobrevoou o
ambiente amplo da associação de moradores, sendo vista pelos atônitos
marginais. E depois de sobrevoar o ambiente, pousou no pequeno palco onde
estava o famigerado Tora, que ainda a tentou pontapear. Mas tanto ele, que
falhou em seu intento, como os demais, de súbito associaram a ave diabólica às
penas azuis-marinhos cravadas nas testas de seus parceiros no crime. E ainda
pensando assim assistiram ao mais impressionante espetáculo que nunca um dia sonhariam
ver: a Gralha transformar-se em homem diante deles, metamorfosear-se em Mestre
Irvarum, que abriu os braços e lhes falou numa linguagem ininteligível: a fala
do demônio... E veio então outro estrondo dos céus, o mais violento de todos,
antecedido, porém, de uma faísca elétrica que bateu em cheio no telhado do
prédio. Neste momento, Mestre Irvarum tornou à forma de Gralha e grasnou num
som terrivelmente assustador. E alguns bandidos, de armas nas mãos, tentaram
nela atirar, enquanto ela sobrevoava em círculos satânicos o espaço fechado e
via o prédio ser lambido pelo fogaréu. E enquanto a Gralha rompia por um
pequeno buraco para o lado de fora, o fogo fez o seu trabalho trapeiro, não
deixando nenhum bandido para contar nenhuma história posterior. Todos viraram
cinzas...
9
No dia seguinte, o Morro da Felicidade
amanheceu seco como de véspera, porque dos trovões nenhuma chuva resultou. E somente
se via aquele local restrito totalmente incinerado, a exemplo do que ocorrera
com a fortaleza na favela do Roncador, onde se abrigava a seita do Mestre
Irvarum. Mas, e daí? Onde estava aquele misterioso personagem? Onde se
escondia, afinal? E como crer que uma Gralha se transformasse em homem e
vice-versa? Ora, não havia como acreditar em tamanha bobagem!... Por isso, a
conclusão era mais uma vez muito simples: os policiais finalmente se vingaram
das mortes de seus companheiros... Souberam da reunião, fecharam o local por
fora e o incendiaram... Era esta a versão oficial, logo absorvida e
estrondosamente estimulada pela imprensa, com algumas autoridades prometendo
rigorosa apuração, outras já trancafiando administrativamente diversos
policiais e apresentando-os como os responsáveis por aquela chacina, enquanto
aqueles políticos defensores das causas sociais festejavam o espaço na mídia
para cobrar responsabilidades de todo mundo e afirmando que tudo não passava de
resquícios da ditadura finda, que era preciso prender mais policiais,
expulsá-los de suas corporações, condená-los na Justiça, etecétera, etecétera,
etecétera, e as atônitas autoridades, sem mais saber o que fazer, danando a
prender seus suspeitos e a apresentá-los como os responsáveis por todas as
matanças e dizendo que eles mataram daquela maneira para desestabilizar o
governo, etecétera, etecétera, etecétera. E até criaram para os inocentes já
presos à moda manu militari e
política a antonomásia de Gralhas Voadoras. E a imprensa adorando as manchetes,
indo nas águas fétidas do sistema e publicando suas mentiras sem se preocupar
com verdade nenhuma, como sempre, aliás... Típica mídia terceiro-mundista...
Depois de alguns dias voltou a calmaria a
reinar na cidade, com o assunto já atropelado por outros mais urgentes. E na
manhã ensolarada de um domingo qualquer, surgiu mais uma vez Mestre Irvarum na
favela do Roncador, agora com o semblante feliz de quem cumpriu muito bem a
missão. E após circular festivamente pela favela cumprimentando os moradores e
recomendando aos mesmos que soubessem escolher com acerto os seus candidatos
nas próximas eleições, inclusive sugerindo alguns nomes de políticos defensores
das causas sociais, depois disso ele se despediu e pegou uma viela que levava a
um matagal delimitador da favela, à beira dum riacho assoreado por muito lixo
favelado, lixo de pobre, o lixo do lixo do lixo, o pior de todos os lixos
porque é o que representa a sobra do nada que os miseráveis favelados não usam.
E, em chegando à beira do matagal, acenou para muitos dos seus novos seguidores
e se virou de costas... e foi aí que todos puderam ver aquele rabo tenebroso
que lhe brotava por baixo das vestes, o rabo do demônio. E em seguida ao
balanço que fez daquele rabo de dragão, Mestre Irvarum se transformou novamente
numa Gralha e num fade lento e enevoado desapareceu no ar vazio...
* CONTO, TENDO
COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ ESGOTADO.
“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Para
Emir e Nilda, meus pais, agora juntos, e eu aqui com muita saudade.