terça-feira, 23 de maio de 2017

VINGANÇA*



“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)





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Nunca o Morro da Felicidade fora visto tão silencioso nos seus meandros de intrigas, confusões, festas e conflitos entre os moradores, sem falar nos tiroteios entre bandidos e policiais e até em algumas mortes de quando em quando. Mas aquele era um silêncio diferente, pesado, temeroso – e por que não dizer apavorante? –, porque muitos poderosos líderes do tráfico de diversas favelas não paravam de chegar, ou de carro, ou a pé, ou de moto, porém todos protegidos por seguranças fortemente armados e ostentando joias caras e telefones celulares esquentando sem parar suas orelhas, assim como se fossem brincos.

Também era fácil perceber que os chefões ali chegavam acompanhados de seus homens de confiança, e todos se iam encaminhando para a sede da associação de moradores. Contudo, não seria uma festa o que aconteceria naquele lugar, mas uma reunião comandada pelo mais importante cabeça do tráfico em todo o Grande Rio, um exemplar feroz e sombrio e conhecido por todos como Tora. E já se sabia que naquele dia nem mesmo a polícia teria coragem de fazer uma incursão na favela, porque, além do risco inútil a que seriam submetidos os favelados, as baixas entre eles próprios, os policiais, seriam inevitáveis. Demais, o capitalismo criminoso também já cuidara no sentido de evitar qualquer escaramuça policial, mesmo imperando naqueles dias um insuportável clima de hostilidade entre policiais e marginais. Mas com dinheiro, tudo se resolve... Portanto, e em sendo assim, a paz estava garantida.

A reunião fora resultado de muitos contatos preliminares, tanto pessoalmente como por telefone, em conversas cifradas entre aqueles magnatas do tráfico, de modo que uma possível interceptação das ligações não redundasse em prejuízo ao importante encontro, cujo objetivo principal, entre muitos outros, seria a consolidação da estrutura de uma nova facção criminosa que se já vinha alinhavando há longo tempo: o Comando da Morte. Mas este assunto era somente para que aqueles magnatas não assumissem publicamente a inquietação maior que naquele momento lhes atordoava os espíritos: o medo de morrer...

Tudo estava devidamente engendrado: estatutos, demarcações de áreas, esquemas de interação com os presídios, deveres de cada integrante da facção, cobrindo desde as mais simples às mais complexas tarefas das quadrilhas que ali se integravam como uma grande organização criminosa, a maior de todas que se poderia conceber naqueles tempos. E havia também uma decisão definitiva entre os bandidos: a nova facção seria comandada por Tora.

– Olha aí, rapaziada, aqui quem manda sou eu. Todos chegaram juntos comigo a esta decisão. E também quero dizer aos irmãos que já dei um arrego pros vermes, pros polícias que tão enchendo o nosso saco e até matando a gente. Mas nós também matamo eles; então, tá tudo certo...

Ninguém mais discutia a liderança de Tora. Ele conquistara na marra o topo do poder marginal, não só por sua ferocidade e lealdade aos amigos do mundo do crime, mas principalmente porque era quem fornecia a droga no atacado aos demais, e num preço tão melhor que nenhum concorrente o igualava. Era ele quem trazia diretamente da fonte fronteiriça a cocaína pura e com selo internacional de garantia, entregando-a aos demais malfeitores ao tempo e à hora e ainda eventualmente consignada em confiança, esta que, se quebrada, vinha ao faltoso a morte cruel. Era a regra de Tora, mas que muita vez dava lugar ao inusitado perdão e à renovação do prazo, nunca se sabendo, todavia, quando haveria o perdão, tudo dependia do momento e até do humor do traficante-mor.

Havia, porém, mais um outro grande motivo para que aqueles bandidos buscassem uma nova união entre eles, mais depurada e cercada de graves cautelas: muitos estavam sendo estranhamente assassinados em suas comunidades, e não parecia ser coisa de policiais, ou melhor, de policial, porque se tratava de apenas um a matar muitos mediante variados e infalíveis métodos. Sim, morriam às pencas, os bandidos, e não conseguiam desvendar o autor para se chegar ao mandante. Por isso estava cada vez mais difícil descobrir quem estaria por trás de toda aquela trama assassina, e por que nunca apenas feria, sempre matava, sem mandar qualquer sinal dos seus motivos e sem exigir qualquer tipo de negociação, como era de praxe acontecer. Estava, com efeito, tudo muito estranho naqueles tempos...

E sobrepujava uma característica apavorante em relação às mortes: toda vez que surgia um corpo ensanguentado, alguma testemunha sempre via uma Gralha voando próxima do local do crime ou pousada num ponto visível. E logo que era vista batia asas e desaparecia. E sempre se encontrava uma pena azul-marinho cravada na testa da vítima, um sinal de que aquele crime deveria ser colocado na conta de um mesmo assassino. Por isso, as mortes passaram a ser catalogadas como os crimes da Gralha, em alusão à estranha coincidência...

Mas nada indicava quem matara o infeliz, sempre um de cada vez, fosse homem, fosse mulher, menos esta última, mais o primeiro, porque também no submundo do crime funcionava a discriminação do sexo oposto, que servia à quadrilha muito mais na cama do que em outras tarefas. Não poderiam nunca sonhar, os bandidos, que aquela alusão à Gralha era a que mais se aproximava da realidade...



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Muitos anos antes, começou a emergir na favela do Roncador uma seita religiosa de hábitos muito esquisitos e fechados. No princípio eram poucos os membros daquela seita, mas não demorou muito para que ela se fosse expandindo. E logo depois de um tempo já se via na favela uma grande área cercada por altos muros, como se fosse ali uma fortaleza. No início, os traficantes não se incomodaram. Afinal, já estavam acostumados a ver o surgimento de muitos movimentos religiosos e não ligavam para o fenômeno, desde que não atrapalhasse os negócios do tráfico. Se houvesse alguma interferência, mesmo que mínima, influenciando contrariamente o comércio de entorpecentes, aí adeus, seita, pois ela era finda na marra da vontade do bandido, ou por bem ou por mal...

Muito tempo se passou sem que houvesse qualquer cisma entre os bandidos e os membros da misteriosa seita. Conviviam no mesmo espaço territorial sem grandes problemas. E a seita continuou a se expandir sobremaneira, aglutinando cada vez mais adeptos, todos identificados pelas roupas extravagantes que usavam, como se tudo fosse a reedição de um movimento hippie tupiniquim. Não o era, mas muitos dos hábitos se lhe assemelhavam, porém outros procedimentos já se situavam no extremo quase oposto daquele movimento não-conformista que marcou época na História por apregoar o rompimento definitivo de seus membros com a sociedade tradicional. Mas enquanto aquele antigo movimento buscava um ideal de paz, amor e liberdade predominando no Universo, este, da favela, tinha como base filosófica e pragmática o combate feroz à imoralidade das drogas e ao crime, pelo menos aparentemente...

Contudo, e curiosamente, aqueles sectários contemporâneos estimulavam o sexo livre entre eles e sem a preocupação com fidelidade conjugal ou parcerias monogâmicas. Ao contrário, praticavam a poligamia como meio de ampliar a Tribo – como assim se autodenominavam –, através da procriação acelerada. Mas, ao mesmo tempo em que pregavam a multiplicação dos seus membros, a Tribo defendia a eliminação dos pecados do mundo através do desaparecimento dos pecadores. E para tal desiderato é que apregoavam a proliferação dos puros, enquanto os pecadores, inclusive e principalmente os criminosos, envelhecessem e morressem. Não pensavam em matá-los, não se preocupavam com o tempo terreno, não tinham pressa de nada, a não ser de ampliar o número de seguidores purificados, enquanto os ruins fossem naturalmente desaparecendo.

Tudo, porém, ainda se encontrava no nível filosófico. Havia um conjunto de táticas sendo alinhavado, sim, nas reuniões fechadas da seita, mas estas apenas forjavam o conteúdo da grande estratégia futura de purificação da humanidade. Aí, decerto, os homens e as mulheres do mundo viveriam a paz e a harmonia tão enaltecidas pelos hippies do passado. Em outra dimensão do entendimento, e segundo os membros da seita, não poderia haver paz sem que antes houvesse a guerra. E eles também vinham se preparando para a guerra, só que a da procriação célere dos purificados. E a outra guerra, contra os pecadores, o passar do tempo resolveria...



3



O líder da Tribo era um sujeito muitíssimo estranho, o único que se vestia de preto da cabeça aos pés e mantinha uma barba cultivada há muitos anos. Apresentava uma aparência sinistra, e por isso era tido como louco pela maioria dos favelados, que riam à sua passagem, algo porém muito raro: ele não costumava sair, ficava recolhido à fortaleza, que, por sua vez, aumentara sua área física em muitos metros, já se destacando como uma comunidade dentro da outra, como assim grosseiramente comparando se apresenta ao mundo o Vaticano dentro da Itália.

E aquele líder, homem de muitas mulheres, era referido entre os sectários e os próprios favelados como Mestre Irvarum. E até de certo modo lembrava a figura mítica do cearense Antônio Conselheiro, pois havia nele, no Mestre Irvarum, um certo modo de copiar a legendária figura que liderou um movimento camponês e construiu sua fortaleza em Canudos, sertão da Bahia, a partir de 1893, e comandou a estupenda resistência armada lá pelos idos de 1896 e ano seguintes. Pois o Mestre Irvarum, mesmo que não contrariasse abertamente os políticos e nem aventasse as diferenças sociais e econômicas do presente como causas concorrentes para o aumento da criminalidade, pregava a “igualdade das massas” e defendia veementemente que para elas, as massas populares, haveria de haver “um só pastor e um só rebanho”. Mas, pastor representando quem?... Deus ou o diabo?...

No caso do Mestre Irvarum, tudo ocorria em outros tempos e dentro de uma favela urbana. Todavia, não se podia negar que aquela comunidade sectária crescia assustadoramente e com características peculiares à outra seita ou movimento político e social do passado, porém tudo ainda muito embaciado... Mas isto não guardava em si muita importância, porque, como já dito, o foco filosófico que impulsionava hodiernamente a seita de Mestre Irvarum era a purificação da espécie humana, ou seja, a ausência de pecadores numa nova sociedade. Mas, afinal, quem seria o pecador?... Nada disso era muito bem entendido pelos traficantes e principalmente por Nego Pinduca, o manda-chuva daquela favela onde estava a Tribo plantada, e já com fortes raízes fincadas naquele chão.

Mas chegaria o dia em que Nego Pinduca teria o primeiro aviso de que a seita representava perigo para os seus negócios. Um dos membros tornara-se dissidente e informara detalhadamente ao traficante os planos “filosóficos” de Mestre Irvarum. Assim, e mesmo sem nada entender de “filosofia”, o bandido se sentiu ameaçado. Daí mandou uma ordem direta ao líder sectário para que lhe viesse ao encontro num ponto qualquer da favela. E Mestre Irvarum, sem ainda saber que seus planos eram malvistos pelos marginais, veio como se estivesse em missão de paz, num domingo de manhã.

O sol já dera os seus bons-dias a todos que pularam cedo da cama e ganharam o lado de fora dos barracos. A favela fervilhava de gente indo e vindo e parando e bebericando; mulheres lavavam roupas rotas e as dependuravam em varais que enfeitavam (ou enfeavam) o espaço favelado; crianças empinavam suas pipas e furavam búricas no chão para jogar baleba, e outras rodavam pião, quando aquele ser estranho surgiu caminhado pesadamente pela favela. E logo despertou a curiosidade geral, com muita gente a olhar das portas, janelas e frestas dos barracos, além de logo se formar atrás dele um numeroso séquito de adultos e crianças, todos matando pela primeira vez a curiosidade que guardavam dentro de si sobre aquela misteriosa figura que agora lhes surgia inusitadamente. E a caminhada do Mestre Irvarum logo se tornou festiva, ele na frente e aquele poviléu lhe seguindo os passos.

Em poucos minutos Mestre Irvarum já se colocava diante de Nego Pinduca e seus principais asseclas, que nenhum tempo perderam e, para surpresa dos que assistiam ao encontro, passaram a agredir violentamente o pobre-diabo. E depois de surrá-lo impiedosamente, os enraivecidos bandidos o prostraram desmaiado ao chão. E nele continuaram a bater, agora pontapeando-o sem dó e nem piedade, até que o sangue lhe ensopasse as vestes e o pó do chão se lhe grudasse ao sangue, formando no pano a massa tétrica, o resultado daquela covardia sem limites. E, se ainda não bastasse, os bandidos passaram a urinar sobre o pobre-diabo, todos ao mesmo tempo e às gargalhadas, levando ao delírio os assistentes, como se ali, de repente, se tivesse transformado numa arena romana com os leões devorando os cristãos. Mas algumas pessoas, silenciosas, e com um nítido temor, não gracejavam diante da terrificante cena; apenas olhavam Mestre Irvarum se contorcer de dor, porém sem soltar um só gemido. Queriam que ele suplicasse a clemência, mas ele não o fez. E esta fora a razão, talvez, que levara aqueles facínoras ao extremo da covarde surra e da humilhação a que submeteram o indefeso homem.

Caído, desmaiado, ensanguentado, e todo mijado, Mestre Irvarum assim ficou durante mais de uma hora; e ninguém ousava dele se aproximar: os bandidos ainda tomavam conta do ambiente que cercava aquele cenário animalesco. Mas depois, já satisfeitos com a maldade que gratuitamente encetaram, se retiraram. E foi a partir deste momento que algumas pessoas da seita vieram e, improvisando a maca com dois caibros velhos, e neles enfiando os paletós de três dos sectários que ali estavam, puseram então o corpo desmaiado de Mestre Irvarum e o levaram embora, logo adentrando a fortaleza da Tribo.

Aquele domingo transformara-se em dia de espanto e temor, e as pessoas se recolheram ao silêncio de seus barracos, todas apavoradas diante de tamanha covardia. Afinal, aqueles sectários ficavam abrigados dentro das muralhas da fortaleza e nunca incomodavam ninguém. Mas houvera a desmoralização do mais importante membro da seita, do seu fundador, do único líder, do misterioso Mestre Irvarum, e havia um certo presságio de vingança no ar, ar que se tornou pesado pelas nuvens pretas que desceram e escureceram o céu. E logo os riscos de metal se anteciparam ao ribombar dos trovões, tudo sem que caísse uma só gota d’água, parecendo que o diabo demonstrava sua zanga por ver Mestre Irvarum vítima daquela insólita e violenta agressão, ou então era coisa do Todo-Poderoso, que naquele exato momento lançava sua ira em solidariedade ao aviltado líder espiritual terreno, assim especulavam indistintamente os favelados, que não sabiam se o fenômeno vinha vindo de decisão do primeiro ou do Segundo.

Mas, na medida em que o céu despejava sua assombrosa descarga elétrica sobre a favela, o poviléu cada vez mais se enfiava nas profundezas do silêncio, enquanto os próprios meliantes, também apavorados, sumiam feito ratos em buracos cavados para ocultação de seus corpos e armas e drogas na chegada da polícia. E de repente, do mesmo modo que o tempo fechou, abriu, vindo de volta o sol brilhando no infinito agora azulado como antes. Coincidentemente, os raios solares tocaram o chão da favela no exato momento em que Mestre Irvarum reabria os seus olhos inchados. E o silêncio permaneceu até chegar o lusco-fusco do entardecer, e entrou pela noite e se estendeu ao dia seguinte. Fora o pior domingo já visto por aquela comunidade ordeira da favela do Roncador...



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Houve o passar de uma semana e se chegou novamente ao domingo. Mestre Irvarum rapidamente se recuperou, coisa que também ninguém entendeu lá na fortaleza. E muito menos entenderiam os moradores da favela, ao contrário, se horrorizaram, quando viram o incêndio lamber a fortaleza e incinerar todos os que lá estavam, enquanto cá fora o dissidente e delator amanhecia dependurado pelo pescoço, enforcado, ensanguentado e todo mijado. Morto. E lá dentro o fogo consumiu o prédio e matou centenas de seguidores de Mestre Irvarum. E não que não viessem os bombeiros trabalhar arduamente para tentar apagar o fogaréu, que de tão forte parecia sair das profundezas infernais. Mas o fogo não pôde mesmo ser controlado, porque era o que jorrava das cachoeiras do Leteu. Não dava para nenhum homem apagá-lo. E ali muita gente finalmente entendeu que o fenômeno anterior fora provocado pelo único príncipe espiritual daquela seita: o Satanás. Mas o que também ninguém viu foi que do meio do crepitar horrendo das brasas que sobraram, do meio do carvão incandescente que ainda insistia em vencer as águas dos bombeiros, daquele meio tenebroso alçou voo uma ave predominantemente azul-marinho e de tamanho médio: uma Gralha...



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Correu o tempo de mais uma semana e veio o domingo seguinte, e qual não foi a surpresa dos favelados quando se depararam com um corpo de traficante em cada poste, todos dependurados em laços de enforcamento de corda trançada em vermelho e preto. E os corpos ensanguentados e mijados, tal e qual fizeram com Mestre Irvarum. E no poste mais alto da parte mais elevada da favela estava o cadáver de Nego Pinduca, este ainda retalhado e igualmente banhado em seu próprio sangue e no mijo de seu misterioso matador. Mas nele havia algo mais: uma pena azul-marinho enfiada em sua testa, brotando dali como se fosse nascida de dentro dele.

Ninguém entendia como aquela pena de tubo córneo tão fino fora cravada na testa do manda-chuva, como se fosse um unicórnio, nem mesmo os apavorados peritos, que nunca haviam visto cena tão terrificante, mais ainda que a do domingo anterior, na fortaleza, na qual se sabia que muitos sectários sucumbiram, porém deles somente sobraram as cinzas humanas misturadas às outras, variadas, tornando-se impossível separar o joio do trigo, e muito menos identificar quem quer que fosse. Por isso, nem sepultamento dos sectários houvera, mas apenas um simbólico enterrar de cinzas de defuntos desconhecidos misturadas às de madeira e demais materiais juntamente incinerados. Na verdade, tudo ao pó voltara, não fazendo ali muita diferença, se carne humana ou não.

E assim, mortos todos os asseclas de Nego Pinduca, e ele próprio, na favela do Roncador, não muito tempo se passou e outros bandidos ocuparam a comunidade. E logo o cenário tornou ao de sempre e comum às demais favelas, ou seja, traficantes para todos os lados, armados até os dentes e vendendo cocaína para milhares de viciados. Mas logo também a favela foi assistindo à morte estranha de cada um deles, em dias diferentes, porém todos sempre com a marca da Gralha: uma pena azul-marinho cravada na testa de cada defunto. E o corpo ensanguentado, furado por faca e enforcado, além de mijado...

E as mortes naquele estilo foram virando moda sem que conseguissem desvendar a autoria delas, e nem poderiam fazê-lo, posto que vinham vindo da ave azul-marinho que se materializava na forma humana diante da vítima, sangrava-a, cravava-lhe a pena na testa, se desmaterializava e tornava à forma animal: a da Gralha. Mas quem via a ave? Ninguém, ou melhor, os alcançados pela ira da Gralha viam-na, sim, mas nunca poderiam dizer que a viam, porque logo morriam levando para as trevas a imagem daquela Gralha virando gente e matando-os sem qualquer contemplação. E o homem que surgia da Gralha era nada mais nada menos que Mestre Irvarum...



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Meses se passaram, e a polícia e os bandidos perdidos e sem saber quem estava matando quem naquela sucessão de matanças. E os bandidos acusavam a polícia, e a polícia dizia que eram os bandidos disputando os rendosos pontos de venda de drogas, e a imprensa aperreava os políticos, e estes acusavam supostos grupos de extermínio, e acusavam a polícia para fazer média com os bandidos e se manterem como os prediletos deles na hora do voto; enfim, todo mundo se acusava mutuamente, e nem por isso a matança de traficantes e demais facínoras diminuía. Ao contrário, aumentava, porque das acusações mútuas dos bandidos emergiam as vinditas entre eles, e mais corpos caíam ensanguentados nas favelas; porém, esses defuntos vinham desprovidos da marca registrada da Gralha: a pena azul-marinho cravada na testa.

A confusão estava formada, e nem mesmo a pena azul-marinho incomodava mais ninguém; de tanto que morria bandido, a criminalidade na cidade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, com as pessoas já podendo circular sem o temor de assaltos, e até já gostando de assistir de camarote às intermináveis contendas entre marginais, como se fossem dois escorpiões em luta mortal. Era coisa sobrenatural, assim diziam, e sem o saber acertavam, posto que era de fato a vingança vinda das profundezas e de alguém que fora cerceado por mãos humanas em sua missão de recolher almas penadas e espíritos imundos para o príncipe das trevas. Sim, pois não era outra a missão de Mestre Irvarum, apenas um demônio encarnado e a serviço do seu verdadeiro senhor: o Lúcifer. E os facínoras humilharam e desdenharam o seu poder sobrenatural. Estavam pagando caro por isso...



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Esta era a razão de tanto bandido estar reunido naquela favela sob a égide eventual do mais poderoso deles: Tora. E liderado por esse terrível marginal, os demais discutiam e se acusavam entre si num clima difícil de se controlar. Mas aos poucos Tora foi dominando a situação e fazendo suas avaliações sobre aquela sucessão de mortes, todos buscando entendê-las, porém sem conseguir. Contudo, depois de muito discutirem e confessarem entre eles que protagonizaram muitas daquelas mortes, e de concluírem, ao final, que se mataram gratuitamente, posto que ninguém ali tomara a iniciativa de matar ninguém por interesses pecuniários ou de poder, conseguiram provar para si próprios que aquelas mortes da pena azul-marinho eram de origem desconhecida. E como venceram as desconfianças entre eles, passaram a culpabilizar a polícia e juraram vingança, todos ao mesmo tempo matando policiais durante um mês, até que de novo se reuniriam para deliberar sobre o mesmo tema que os preocupava. Não perceberam, porém, que lá no alto da laje do prédio, oculta nas sombras, uma Gralha crocitava surdamente...

Foi um mês de muitas matanças, com os assassinatos de policiais batendo recordes jamais imagináveis. Eles eram emboscados e covardemente mortos em blitze promovidas por bandos fortemente armados. E sempre os bandidos os pegavam de folga e com suas famílias nos carros, e não perdoavam ninguém: eliminavam sumariamente todos os que eram apanhados.

As mortes de policiais e familiares, inclusive de crianças, passaram então a ocupar as páginas dos jornais, enquanto bandidos e mais bandidos apareciam mortos e dependurados em postes. E ninguém se lembrava ou nada associava àquele líder espiritual da favela do Roncador que fora surrado e tivera o seu corpo dilacerado e mijado por traficantes. Mas, quem poderia lembrar, se todos aqueles que o viram morreram na hora e já estavam nas trevas e em companhia do Belzebu?...

Um mês depois, os marginais novamente se reuniram e concluíram que em todos os casos de comparsas assassinados havia a pena azul-marinho cravada em suas testas; e seus corpos, além de ensanguentados, estavam todos mijados; enfim, tudo indicava que o autor dos assassinatos era o mesmo. Mas a população, apesar de lamentar as mortes dos policiais, não se sabendo se hipocritamente ou não, vibrava com as mortes dos bandidos, estas em quantidades muito maiores. E as pessoas, satisfeitas por não correrem tanto perigo nas ruas e em suas casas, declaravam aos trezentos e tantos ventos que o ideal seria a continuidade daquelas mortes, mesmo que de ambos os lados, e mesmo com inocentes atingidos, assim igualando policiais e seus familiares a bandidos, para gáudio de muitos políticos que se arvoravam de contestadores das diferenças sociais e econômicas, e que diziam sempre que era aquilo mesmo, que eram policiais matando bandidos e bandidos matando policiais, e com isso a população só saía ganhando. E eram aplaudidos por bandidos e por favelados, estes que, entre obedecer ao bandido ou defender uma polícia que não os respeitava, preferiam a primeira hipótese, pois, “se correr o bicho pega, se parar o bicho come”... Sim, porque ninguém poderia em sã consciência imaginar que um anjo do Mal encarnado numa Gralha, e que se materializava num homem matador provido de poderes diabólicos, era esse anjo do Mal o verdadeiro assassino serial...

Mas a segunda reunião dos bandidos estava determinada a ser o mais tétrico espetáculo jamais imaginado pela mente humana acontecer em plena cidade e numa favela. E se naquela noite da reunião, e antes do seu início, se alguém tivesse ido à favela do Roncador, se depararia com o Mestre Irvarum circulando pelas vielas, cumprimentando as pessoas, afagando as crianças, distribuindo doces e moedas e levando os favelados ao delírio. E ninguém ali se preocupava em saber como o Mestre Irvarum escapara do grande incêndio em sua fortaleza, e muitos já se comportavam como seus novos seguidores, prometendo-lhe lealdade e lhe pedindo a “salvação”... E para aquelas pessoas ele apenas dizia que formaria outras seitas, porém agora dissimuladas em lugares e pessoas santas, cabendo a cada um identificar dentre elas os seus verdadeiros porta-vozes...

Quem e quantos seriam eles?... O Mestre Irvarum deixava esse ponto em dubiedade, pois dizia que seus porta-vozes estariam sempre enaltecendo o seu maior Inimigo, estariam pregando o inverso da Verdade... Mas, o que seria o inverso da Verdade, se não se sabia qual era a Verdade?... E deveria ser assim por quê?... Ora, ora, é lógico que para levar os seus seguidores ao fanatismo e à cegueira comunitária, societária e espiritual, através da arguta exploração da boa-fé daquela gente simples, que poderia estar caminhando tranquila e fervorosamente para o diabo, mas pensando o contrário... como na dúvida que sempre se tem se se é comunitário ou societário, ou vice-versa, sendo difícil entender que possa haver qualquer concomitância, como em religião é sempre difícil saber quem é o legítimo representante da Palavra de Deus e quem é o preposto do diabo que se oculta na roupagem do primeiro...

E de repente, como se todos estivessem entorpecidos diante de tantas dúvidas, Mestre Irvarum desapareceu. Mas a sua mensagem ficou martelando os espíritos daqueles favelados, pois o Mestre Irvarum não lhes deixara uma pista clara no sentido de identificar, entre tantas seitas que existem, quais seriam as que o representariam e onde estavam instaladas. Pelo visto, esse recado viria depois... pois na verdade ninguém ali desconfiava de que o Mestre Irvarum era o próprio Lúcifer encarnado em corpo de gente e de uma Gralha...



8



O traficante Tora custou a acalmar os ânimos dos presentes. Mas, depois de muito esforço, e até mediante ameaças, conseguiu o seu intento. E aquela reunião finalmente começou, com os bandidos em acaloradas discussões e já concluindo que as matanças entre eles não mais pareciam obra de policiais, mas de gente de fora, de outros municípios, e até talvez de outros estados. Na verdade, já percebiam que matando policiais, como o fizeram, não resolveram o problema e apenas arranjaram uma sarna a mais para administrar. E cheios de dúvidas se enfiaram naquela polêmica sem início, meio ou fim, e assim não perceberam que a Gralha mais uma vez lhes observava os movimentos de lá de cima, do canto escuro de uma pilastra que a ocultava das vistas daqueles facínoras, estes que se perdiam em suas próprias e desencontradas conclusões.

Sim, todos os bandidos e seus lugar-tenentes e comparsas se foram ajuntando e se espremendo no ambiente para ouvir a palavra final do líder Tora. E o bandido, do alto de sua autoridade sobre os demais, entrou a orientar os passos seguintes que dariam. E, distraídos, os bandoleiros não perceberam que as portas da associação de moradores se foram fechando sem que mãos as tivessem movimentando. Era um discreto vento que fazia o trabalho, mas aquele vento não era um vento comum, eram os anjos do inferno que agiam...

Enquanto as portas silenciosamente trancavam os bandidos lá dentro, as nuvens pretas cobriam o céu da favela e desciam quase ao chão do lado de fora. Mas não havia nenhum barulho, tudo ocorria no mais absoluto silêncio, até que aconteceu o primeiro estrondo, assustador estrondo, que fez os favelados se escafederem para dentro de seus barracos e casas simples. E fez estremecer a bandidagem, que imediatamente tentou alcançar o lado de fora, porém dando de cara com as portas trancadas. E foi neste momento que houve o segundo ribombar do trovão, e a ave sobrevoou o ambiente amplo da associação de moradores, sendo vista pelos atônitos marginais. E depois de sobrevoar o ambiente, pousou no pequeno palco onde estava o famigerado Tora, que ainda a tentou pontapear. Mas tanto ele, que falhou em seu intento, como os demais, de súbito associaram a ave diabólica às penas azuis-marinhos cravadas nas testas de seus parceiros no crime. E ainda pensando assim assistiram ao mais impressionante espetáculo que nunca um dia sonhariam ver: a Gralha transformar-se em homem diante deles, metamorfosear-se em Mestre Irvarum, que abriu os braços e lhes falou numa linguagem ininteligível: a fala do demônio... E veio então outro estrondo dos céus, o mais violento de todos, antecedido, porém, de uma faísca elétrica que bateu em cheio no telhado do prédio. Neste momento, Mestre Irvarum tornou à forma de Gralha e grasnou num som terrivelmente assustador. E alguns bandidos, de armas nas mãos, tentaram nela atirar, enquanto ela sobrevoava em círculos satânicos o espaço fechado e via o prédio ser lambido pelo fogaréu. E enquanto a Gralha rompia por um pequeno buraco para o lado de fora, o fogo fez o seu trabalho trapeiro, não deixando nenhum bandido para contar nenhuma história posterior. Todos viraram cinzas...



9



No dia seguinte, o Morro da Felicidade amanheceu seco como de véspera, porque dos trovões nenhuma chuva resultou. E somente se via aquele local restrito totalmente incinerado, a exemplo do que ocorrera com a fortaleza na favela do Roncador, onde se abrigava a seita do Mestre Irvarum. Mas, e daí? Onde estava aquele misterioso personagem? Onde se escondia, afinal? E como crer que uma Gralha se transformasse em homem e vice-versa? Ora, não havia como acreditar em tamanha bobagem!... Por isso, a conclusão era mais uma vez muito simples: os policiais finalmente se vingaram das mortes de seus companheiros... Souberam da reunião, fecharam o local por fora e o incendiaram... Era esta a versão oficial, logo absorvida e estrondosamente estimulada pela imprensa, com algumas autoridades prometendo rigorosa apuração, outras já trancafiando administrativamente diversos policiais e apresentando-os como os responsáveis por aquela chacina, enquanto aqueles políticos defensores das causas sociais festejavam o espaço na mídia para cobrar responsabilidades de todo mundo e afirmando que tudo não passava de resquícios da ditadura finda, que era preciso prender mais policiais, expulsá-los de suas corporações, condená-los na Justiça, etecétera, etecétera, etecétera, e as atônitas autoridades, sem mais saber o que fazer, danando a prender seus suspeitos e a apresentá-los como os responsáveis por todas as matanças e dizendo que eles mataram daquela maneira para desestabilizar o governo, etecétera, etecétera, etecétera. E até criaram para os inocentes já presos à moda manu militari e política a antonomásia de Gralhas Voadoras. E a imprensa adorando as manchetes, indo nas águas fétidas do sistema e publicando suas mentiras sem se preocupar com verdade nenhuma, como sempre, aliás... Típica mídia terceiro-mundista...

Depois de alguns dias voltou a calmaria a reinar na cidade, com o assunto já atropelado por outros mais urgentes. E na manhã ensolarada de um domingo qualquer, surgiu mais uma vez Mestre Irvarum na favela do Roncador, agora com o semblante feliz de quem cumpriu muito bem a missão. E após circular festivamente pela favela cumprimentando os moradores e recomendando aos mesmos que soubessem escolher com acerto os seus candidatos nas próximas eleições, inclusive sugerindo alguns nomes de políticos defensores das causas sociais, depois disso ele se despediu e pegou uma viela que levava a um matagal delimitador da favela, à beira dum riacho assoreado por muito lixo favelado, lixo de pobre, o lixo do lixo do lixo, o pior de todos os lixos porque é o que representa a sobra do nada que os miseráveis favelados não usam. E, em chegando à beira do matagal, acenou para muitos dos seus novos seguidores e se virou de costas... e foi aí que todos puderam ver aquele rabo tenebroso que lhe brotava por baixo das vestes, o rabo do demônio. E em seguida ao balanço que fez daquele rabo de dragão, Mestre Irvarum se transformou novamente numa Gralha e num fade lento e enevoado desapareceu no ar vazio...


* CONTO, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ ESGOTADO.





“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)


Para Emir e Nilda, meus pais, agora juntos, e eu aqui com muita saudade.


VIDA FAVELADA*



“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)



 1



O novilúnio traz um brilho que parece dia; muitas estrelas rutilando no céu completam a bela noite que cobre a favela. Está quente, as pessoas vestem roupas leves; muitos homens e crianças sem camisas e mulheres sumariamente vestidas ocupam as ruas, todos sentados em bancos improvisados do lado de fora dos barracos. Muitos bebericam uma cerveja ou simplesmente sorvem água ou refrigerante ou refresco de limão. Há a descontração e – por que não dizer? – a felicidade.

Sim, parece que todos curtem a paz, e seria a mais completa paz se não fossem aqueles adolescentes portando fuzis e metralhadoras e circulando para lá e para cá. Aquilo lembra insistentemente o perigo que paira naquele ar quase festivo. Mas, enquanto eles apenas circulam, e até aparentemente descontraídos, tudo vai bem.

Os bares estão apinhados de gente; muitos jogam sinuca e totó; outros discutem o último clássico entre Vasco e Flamengo, e há as gozeiras às vezes esquentadas em discussões, porém inócuas. E há, sim, a pobreza, mas isto não desalenta as pessoas que formam aquela imensa comunidade da Vila de Santa Fé. E não há como não sentir o olor da carne-seca fritando em algum lugar, e assim provocando uma salivação coletiva até onde o cheiro do tempero alcança. E todos gostam daquilo, porque logo se evolam outras fragrâncias temperadas de um chouriço ou de uma linguiça fina de porco fritando alhures. E a salivação coletiva não para.

Casais namoram, enquanto se vê o vaivém de viciados, quase todos já conhecidos, os zumbis à busca de cocaína para cheirar, de maconha para fumar, ou estão à procura de um crack para queimar ali mesmo. Mas não incomodam os moradores; perambulam, indiferentes, muitos rapazes arrumados e meninas bonitas, porém há também muitos desafortunados atrás da droga. Mas, apesar disso, a comunidade está em noite de tranquilidade, tudo parece garantir a paz. No íntimo, todos a almejam. Mas vem a polícia!...

Muda-se o ambiente, pessoas correm e se jogam de qualquer maneira no chão, tiros ciscam e arrancam pedaços de madeira velha, os bandidos vão e vêm dando tiros a esmo, foguetes espocam por todos os cantos, confundindo-se com o matraquear das armas automáticas. E logo surgem os policiais em correria e atirando sem parar contra os traficantes, que revidam. Mas Deus está sendo justo com ambos os lados, pois até então ninguém se fere. E se escafedem os bandidos e ficam os policiais para lá e para cá dando geral nos viciados, bolinado as meninas já desavergonhadas pelo efeito da droga, algumas até puxando os policiais para cantos escuros e lhes proporcionando um sexo rápido. Vale tudo para escapar à prisão e ao vexame de parar em delegacia. Não há mais a paz na favela.

Os viciados masculinos também providenciam seus agrados passando para os policiais seus relógios, cordões e dinheiro ou qualquer outra cortesia semelhante e que porventura disponham naquele momento. Para os mal-encarados policiais qualquer coisa serve, menos mãos vazias. E até a droga serve, e é arrecadada e levada. E nesta hora não há mais gente sentada em lugar nenhum, a favela se esvazia totalmente, só há os policiais circulando nervosamente, os vencedores da noite, as silhuetas que se projetam contra a claridade do novilúnio. Agora somente eles avistam as estrelas do céu que cobre a favela de Santa Fé. Até que se vão, e a paz torna a reinar no ambiente agora vazio de gente, sem ruído de vida, e mais parecendo um silêncio de morte. Paz?... Seria paz, aquele silêncio de morte?... Contudo, é a rotina favelada, paz e guerra, guerra e paz, sangue e morte, morte e sangue, falsa calmaria, falsa festividade, falsa segurança, tudo movediço naquela interação comunitária. Até quando?...



2



Clara Luzia está debaixo do seu catre e sai devagarinho, ainda assustada. Traz a filhinha de quatro anos quase que literalmente amassada pelo peso do seu corpo, o qual colocou protegendo-a dos tiros que ciscavam do lado de fora e muitos atravessando, de lado a lado, as tábuas toscas do seu mísero barraco. Mísero, sim, porém seu, o marido Genésio o comprara com suado sacrifício.

Clara Luzia tem os olhos marejados das lágrimas do terror. A filhinha igualmente chora, de espanto e dolorida. Mas o risco maior já passara, e ela agora pode voltar à postura anterior. Porém, o medo crava-a no chão do barraco, de onde ela ainda não tem coragem de se levantar; permanece então sentada e com a filhinha chorando ao seu colo. E torna a se debulhar em lágrimas, agora nem tanto de medo, mas de desalento com aquela situação sem saída, aquela miséria sem fim. E se pergunta dentro de si se fora justo deixar vir ao mundo a filhinha Ana Lúcia.

Genésio não está em casa. Naquela semana conseguira na obra substituir o vigia que se acidentara e dobrava direto as vinte e quatro horas. De dia, pegava no batente normal de ajudante de pedreiro; de noite, aquela chance de ganhar um dinheirinho extra para comprar um fogão de duas bocas lhe caíra do céu.

Clara Luzia, a mulher, tem ainda no rosto os traços marcantes de beleza, e mantém um belo corpo, mesmo oculto na sujeira da miséria. Mas é até uma mulher limpa, mesmo não tendo disponível muita água. Geralmente ela toma banho com a água que primeiro lava a filhinha Ana Lúcia, a mesma água que às vezes reserva para jogar no rosto no dia seguinte, e aí, sim, ela vai com a filhinha no colo e a lata d’água morro abaixo para trazê-la cheia e equilibrada na cabeça, uma rotina a que já se acostumara, mas que, no fundo, detesta.

Contudo, dentro do barraco o seu espanto ainda está misturado ao terror. E ela chora junto com a filha numa sinfonia que parece não ter mais fim, até que se acalma e acalma a filha e ambas, acalmadas, adormecem. Do lado de fora, as estrelas rutilam naquele céu indiferente, um céu acostumado a ver a desgraça das pessoas sem perder sua infinita beleza. Sim, porque em outros lugares, sem perigo, aquele mesmo céu inspira o artista, faz o lobo uivar e desperta a vida noturna que preenche a natureza com os seus encantos. Mas na favela a noite terminara em estupor, e o medo permaneceu até após a retirada dos policiais.

Vem o dia. Clara Luzia se levanta, pega a filha Ana Lúcia e sai. Já usara o resto da água para a precária higiene e agora se desloca rapidamente e pensando ir à casa da mãe. Mas sabe que não será muito bem recebida, como sempre, porque a mãe ignorante nunca aceitara aquela comborçaria entre ela e Genésio. Tudo bem, mas agora ela precisa de apoio para sair da favela, morar em outro lugar. E vai tentar mais uma vez sensibilizar a mãe, não tanto animada, porém o medo a impele. E até já admite largar Genésio, se a mãe ignorante assim lhe determinar, apesar de muito gostar do seu concubino, e apesar de, por vezes, até odiá-lo, posto ele não tirá-la, e à filha, daquela miséria. “Que barra!”, pensa, enquanto deixa a favela para trás.

Nada é bonito em derredor da favela. O morro é feio e sua aba ainda é favelada. Só depois de muito se afastar é que Clara Luzia finalmente enxerga um asfalto limpo e o trânsito organizado. Ela então espera... E vem o ônibus que a levará à casa da mãe num subúrbio asseado. Ela continua resoluta, porém variando ânimo com desânimo. Mas carrega na filhinha a esperança de tocar o coração da mãe ignorante, ao ponto de acolher também Genésio. Mas, se não for possível, o jeito é deixá-lo para trás naquela favela, até que ele consiga vencer a miséria e dar a ela, e à filha, uma vida condigna. Ela pensa ser isto impossível e chora dentro do ônibus, chamando a atenção dos demais passageiros. E a filha chora por osmose, como sempre o faz. E o ônibus pára. Ela pega a filhinha pelo braço e salta, pois finalmente chega ao seu destino incerto: a casa da mãe ignorante.



3



– Bença, mãe!... Vai filha, toma a bença da sua avó!...

– ...

– Tá! tá! tá!... Deus bençoe, Deus bençoe. O que houve; Que você quer aqui?...

– Puxa, mãezinha, a sinhora nem me deixa falar e já me joga pedra...

– Num tou jogando pedra, não!... Só que já te falei que num quero te ver. Você não me obedece nunca, só faz o que quer. E eu fico brava, mesmo!...

– Eu sei, mãezinha, que a sinhora num me perdoa por causa do Genésio. Mas vê sua netinha, mãe. Ela num pode mais ficar naquela favela. Ontem saiu tiroteio lá, todo mundo dando tiro, polícia e bandido, eu tive de me ajogar no chão do barraco com a Aninha. Foi horrível, mãezinha...

– Possa ser, possa ser, mas eu te avisei que num dava pra você sair de casa pra morar com aquele paraíba em favela. Eu avisei...

– Mas, mãezinha, eu num posso ficar mais lá, não. Eu quero que a sinhora me deixe voltar pra cá, por causa da Aninha. O Genésio num pricisa vir, não. É só eu e a menina...

– Antão, tá. Mas se ele pisar aqui, eu boto você pra fora com filha e tudo.

– Tá bem, mãezinha, tá bem!...

Clara Luzia ganha alma nova. No final do dia, contente com o desfecho de sua conversa com a mãe, ela torna à favela. E naquela sua euforia nem mesmo se lembra de que Genésio existe e que pode discordar dela. E tem a filhinha, que Genésio não iria simplesmente abdicar do direito dele de estar com ela. Ademais, Clara Luzia é apaixonada por seu homem, apesar da revolta que tem de morar naquele lugar perigoso. Mas, no fundo, vive dividida entre o gostar e o desgostar. Não é pobreza que a incomoda, mas o risco que sua filha corre quase que diariamente, sem falar nos assédios que sem dúvida começarão tão logo a menininha se desponte para a adolescência. Ela mesma, sem que Genésio saiba, vive se desvencilhando de algumas investidas amorosas em sua dele ausência. E uma está cada vez mais difícil de ela se livrar, pois é o próprio chefão do tráfico que volta e meia olha-a com olhares gulosos e elogios a sua beleza. E ela sabe que na hora em que ele decidir fazer sexo com ela, não haverá como lhe dizer não. E, no seu íntimo, ela não está muito disposta a lhe dizer não. Aquele assédio a envaidece deveras, principalmente porque Genésio chega cansado da obra e nem se lembra de acariciá-la, sem falar que muitas vezes chega sem banho e não há nenhuma água. Dorme sujo de cimento e fedendo, deixando-a raivosa. Por isso, ela mesma já acena discretamente para o traficante a possibilidade de deitar com ele no momento em que ele bem o entender. Ao mesmo tempo, porém, dói-lhe a consciência, porque Genésio, apesar de tudo, é carinhoso e se esforça bastante para dar conforto àquela pequena família. Faz já três anos que ele vem acalentando o sonho de tirar a mulher e a filha da favela, um lugar que antes era bom e ficara ruim. Mas até então não o conseguira, e agora o risco insuportável fizera-a tomar a decisão de buscar apoio em sua mãe. “Conversarei com Genésio logo hoje. Concordando ele, ou não, irei pra a casa da mãe no dia seguinte...”, ela pensa.



4



– Mas, Genésio...

– Nem mais nem talvez. Sem essa de ir pra casa daquela vaca!...

– Pera aí, Genésio! Vaca, não!... Ela é minha mãe...

– É vaca, sim! E minha filha num vai mermo pra lá. Se tu quiser, tu vai, mas a menina num vai, de jeito maneira!...

– É porque tu num tava aqui ontem, na hora dos tiro. Eu num guento mais essa vida. Tu vai ter que aceitar, se não, eu vou embora na marra. E tu num vai poder impedir. Eu vou quando tu tiver na obra!...

– Vai! vai! vai!... Vai, que eu vou lá te trazer de volta na ponta da peixeira. Ou então te deixo lá mermo, com um furo no bucho... E aquela vaca da tua mãe também. Eu passo a peixeira nas duas. Vai só! vai só!... Que se eu num te ver aqui de noite, amanhã, eu vou pro caralho, mas levo todo mundo comigo. E, se bobear, até a Aninha dança nessa!... Pô, Clarinha, eu sempre fui bacano contigo, pô! Cumé que você dá uma dessa!?...



5



Durante aqueles seis anos de convivência nunca houvera uma noite igual e uma discussão como aquela. Ali, sem dúvida, acaba o relacionamento entre Genésio e Clara Luzia, sobrando a filha espantada e chorando em meio àquele arranca-rabo entre ambos.

No dia seguinte à discussão, Genésio vai ao trabalho, não sem antes deixar pairando no ar suas reiteradas e assustadoras ameaças. Fica Clara Luzia chorando e sua filha solidariamente abrindo o berreiro. E ambas elas, na porta do barraco, veem Genésio descer a ladeira levando com ele sua dela esperança de sair da favela naquele mesmo dia. E isso tudo acontece tão cedinho que nem o lusco-fusco ainda dera lugar à claridade. E é assim que o traficante passa e vê a choradeira e logo se aproxima, solerte:

– Oi mulher! Que tá havendo?...

A noite já se faz alta e boceja de sono quando Genésio começa a subir. E nem mesmo rompe os primeiros passos dentro da favela e se vê cercado de bandidos armados que o seguram e o levam morro acima. E ele bem que tenta indagar sobre o que está havendo, e clama que só pode ser engano o que está acontecendo, mas ninguém fala nada e logo lhe calam a boca com uma pancada fortíssima de coronha de fuzil. E o sangue atônito jorra de sua boca, enquanto ele cambaleia. E assim, cambaleando, ele se vê num lugar ermo e nada mais vê na vida: é morto a tiros. E nem nunca pôde saber que Clara Luzia se havia deitado debaixo do chefão e choramingado outra história, depois do que se mandou para a casa da mãe para nunca mais voltar àquele morro da favela da Vila de Santa Fé.

Durante um longo tempo ela continua a se encontrar com o chefão do tráfico para o sexo. E gosta, porque recebe polpudas gratificações, o que lhe permite contribuir à larga com as despesas da mãe ignorante, viúva e sozinha desde quando ela, ingrata, fugira com o finado Genésio. E assim o tempo vai empurrando dias e noites, com Ana Lúcia crescendo, até que, sem aviso, o bandido não mais a solicita. E ela então vai ao pé do morro e nem precisa perguntar para saber que ele morrera em escaramuça com a polícia. Dali para diante ela trabalharia de doméstica e criaria sua filhinha, até que um dia lhe aparecesse um príncipe encantado, um novo amor, que a ajudaria na tarefa de educar Ana Lúcia...

 Ela está no auge da beleza. E o príncipe encantado lhe surge, e dirigindo um táxi novinho de estalar, e dele próprio. E Clara Luzia, enfim, e com a aprovação entusiasmada da mãe ignorante, casa-se de véu e grinalda sem o padre saber que ela já é mãe. Era o desejo do novo marido...

*CONTO, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ ESGOTADO.




“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)


Para Emir e Nilda, meus pais, agora juntos, e eu aqui com muita saudade.
 

Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...