terça-feira, 16 de maio de 2017

FUTEBOL DE VÁRZEA









O campo estava encharcado pela impertinente chuva que caía. A lama completava o cenário de uma noite molhada, porém cheia de emoções fortes. Acontecia um jogo de futebol em São Gonçalo, no campo do Tamoio Futebol Clube. Era o Clube de Regatas Flamengo que naquela noite se defrontava com o Colodino Atlético Clube (ou Desvio de Dona Zizinha Atlético Clube - DDZAC) em memorável contenda que entrou para a história futebolística gonçalense.



COLODINO ATLÉTICO CLUBE ou 
DESVIO DE DONA ZIZINHA ATLÉTICO CLUBE (DDZAC)

 (De pé, da esquerda para a direita: Nonô ao lado do goleito Derval, Bringela na extremidade direita. Agachados da esquerda para a direita: Mimi, Tião da Sá Pinto, Loloca, Carlinhos Danilo e outro)
 
O Flamengo não veio completo, porém trouxe um timaço, com sensacionais craques que brilhavam no plantel principal naquele ano de 1962, se a memória não me está a trair. O Colodino também levou a campo seus melhores jogadores, alguns já profissionalizados em clubes do Rio, mas com as pernas e os corações sempre defendendo o verde-esmeralda da camisa do melhor time de São Gonçalo.

O jogo correndo, na intermediária do Colodino emergia Carlinhos Danilo como um deus mitológico. Um craque, na mais pura e verdadeira acepção, aquele jovem. Até do seu nome emanava a poesia da bola que ele jogava com maestria. E mesmo debaixo de chuva e lama não havia uma jogada qualquer que não se concluísse magistralmente a partir da genialidade e dos maravilhosos pés de Carlinhos Danilo.

Ele era deslumbrante jogando, apesar de simples no toque perfeito da pelota. Aí residia, porém, a genialidade dele: na matada da bola no peito, do jeito que ela viesse, redonda ou quadrada, na subida elegante para o cabeceio, na parada da bola naquele piso encharcado de lama e água, e ela, a bola, submissa a seus mágicos pés e saindo em direção milimétrica à direita, ou à esquerda, ou direto à área, fosse qual fosse a perna.

Naquela noite de indizível emoção, eu, flamenguista doente, torcia para que o Colodino vencesse, eis que já envergara aquela camiseta verde-esmeralda no segundo time, ainda aos 16 anos. Sim, eu via, feliz, o respeito dos craques rubro-negros pelo meio-campista colodinense, um fenômeno que eles, os craques flamenguistas, não esperavam encontrar num time de várzea. Mas encontraram... E admiraram deveras aquele mágico da bola, ela, rolando ou parada, no drible ou no chute, no passe ou no cabeceio, enfim, um poeta da pelota vestido de verde-esmeralda e ensinando aos profissionais do Flamengo o valor de um craque amador.

E no gol? Sim, prezado leitor, no gol estava outro monstro sagrado: Derval, um elástico que se esticava firme no alto e no baixo. Eram muitas as bolas chutadas pelos craques adversários contra a meta do Colodino. Vinham quentes, mas Derval delas não tomava conhecimento: voava veloz, e com precisão, e sempre catava a pelota com carinho, como se ela fosse assim sua namorada, porém com a firmeza de quem sabe o que faz. Ele estava vestido de preto, ostentando o escudo verde do Colodino na altura do coração, aquele que se confundia com este na vibração de um jogo inesquecível. E ainda havia João Batista, goleiraço, cria da casa, que chegou a envergar a camiseta do Botafogo F. C. e também defendeu com amor as cores do Colodino. Revezava com Derval na tarefa de abraçar a bola que com eles dificilmente balançava a rede do verde-esmeralda. Eram barreiras intransponíveis: Joãozinho e Derval.

Estava zero a zero. Assim correu o primeiro tempo, com o Flamengo bombardeando o gol de Derval. Contudo, do outro lado, também vestido de verde-esmeralda, havia Mimi. Sim, caro leitor, havia Mimi, o maior jogador de futebol que São Gonçalo já viu e tem até hoje guardado na memória. E lá estava ele, ponta-de-lança do drible seco, da corrida em diagonal e do chute perigoso, sempre rasteiro e forte, atordoando os goleiros adversários. Mimi lembrava Dida, o estupendo atacante do Flamengo.

Naquela noite, sofriam com Mimi os beques e o goleiro do Flamengo, os primeiros sem conseguir dominar o endiabrado atacante, e o segundo voando nervoso e a toda hora atrás de segurar a bola quente arremessada pelos pés mágicos de Mimi e do seu parceiro Loloca. Sim, Loloca, na dianteira do Colodino, também a levar cabelos brancos às jovens cabeças dos jogadores do Flamengo. Era Loloca o centroavante de ébano, o nosso Pelé gonçalense, sem tirar nem pôr.

Sim, sim, Loloca era um negro que brilhava dentro de campo, brilhava na cor e na bola. Na subida para o cabeceio, dentro da área, ele até se parecia com Pelé, monstro sagrado do futebol. Mas Loloca ficou por São Gonçalo deleitando os torcedores do Colodino A. C. e às vezes do E. C. Peixoto nos domingos de futebol, onde muitas vezes joguei com ele, para minha honra de jogador de várzea. Trabalhava no Departamento de Estrada de Rodagem.

Também Mimi trabalhava no DER, como topógrafo, apesar de ter jogado profissionalmente no Bonsucesso, no Vasco da Gama e na Venezuela. Mimi foi traído por uma contusão no joelho que lhe encerrou a carreira num piscar de olhos. Mas continuou atuando no futebol amador, sempre maravilhoso aos olhos de centenas de assistentes que se apinhavam nas beiradas dos campos somente para vê-lo atuar, como eu muitas vezes o fiz. Que magníficos tempos!

Mas o jogo corria debaixo da chuvarada: Clube de Regatas Flamengo versus Colodino Atlético Clube em noite mágica. O campo estava marrom da lama solta pelas ferozes chuteiras dos vinte jogadores. Debaixo das balizas havia um mar de água barrenta, com os goleiros literalmente nadando e mergulhando atrás da bola molhada e pesada. No campo, a habilidade dos atletas estava explorada ao máximo, com muitos deles vencidos por escorregões inevitáveis. Mas aí é que aqueles craques se superavam proporcionando esplendor à noite chuvosa.

Poderia o leitor imaginar que somente havia em campo esses craques. Não, não! O Colodino colocara outro monstro sagrado no campo: Tião da Sá Pinto. Este, um mulato de mais ou menos 1,70m de altura, voz fininha a gritar: “Vai, Loloca! Vai Mimi! Vai Carlinhos!” Sim, ele fazia da bola sua companheira íntima, tal como os demais que aqui enalteço, Tião da Sá Pinto, nome da rua em que morava, no Barreto, Niterói, jogava como ninguém. Apresentava lindo toque de bola, extraindo suspiros e exclamações de admiração de seus admiradores.

Naquela noite, Tião estava magistral. Deixava atônita a defesa do Flamengo, caindo na direita ou na esquerda do meio do campo, num revezamento que não lhe alterava a qualidade. Em ambas as situações ele era um perigo para a defesa adversária, esta que não sabia como parar seus passes de mágico endereçados aos atacantes Mimi e Loloca, e nos dribles secos que a toda hora aplicava nos atônitos adversários. Eta linha de ataque maravilhosa!

Por amor à verdade, não eram somente esses endiabrados craques que deslumbravam os assistentes. Havia Jorge Calírio, bom de bola e de canto, seresteiro de renome. Mas na bola era maestro, assim como na música. E havia o grandioso zagueiro central Bringela segurando a garotada rubro-negra, ele, o mais velho dentro do campo, o vovô do time, porém com uma saúde de invejar.

Ao lado de Bringela estava Nonô, beque direito. O homem não era de brincadeira. Jogava leal, mas com um rigor de assustar os adversários. Era um touro de tão forte e chegava duro na bola. Não perdia uma dividida, a bola era dele, ganhava-a na marra e saía jogando com classe. Mas a sua cara de poucos amigos assustava. Sim, assustava deveras os incautos atacantes que para ele olhava. Não era cara agradável, mas tudo somente impressão porque Nonô jogava com lealdade. E muito bem, por sinal.

Esse era o time, ou melhor, a espinha dorsal de um plantel estupendo que nunca será esquecido. É certo, porém, que não me lembrei de muitos nomes, e talvez tenha errado na grafia de alguns que nomeei; mas não o suficiente para deixá-los anônimos. O que está escrito, com certeza, basta para que eles sejam reconhecidos por todos quanto os viram jogar. E aqueles que não os viram, saibam o que muito perderam...

O jogo corria suado, o Flamengo de um lado e o Colodino do outro, misturando-se o suor com água e lama. Mas o gol não saía, e eu na beirada do campo torcia, nervoso, e admirando a genialidade daqueles craques. E ocorreu o primeiro gol, do Flamengo, marcado talvez por Espanhol, se a memória me não está a falhar.

Confesso que tremi, achando que aquele um a zero poderia se transformar em goleada. E comecei a sonhar ali mesmo, debaixo da chuva, e de olhos abertos. Sonhava com os reforços gonçalenses que poderiam estar complementando aquele timaço do Colodino A.C. Sonhava com Antônio Carlos, Mimi e Loloca se revezando com Careca, do Nacional Esporte Clube, outro timão de São Gonçalo. Careca lembrava Reinaldo, o maravilhoso craque do Atlético Mineiro, mas com a mesma qualidade. Antonio Carlos jogou no América, um craque.

Careca tinha a velocidade do tufão com a bola nos pés; gingava na frente dos beques e sempre os deixava a ver navios enquanto a bola sacudia a rede adversária. Sim, Careca era um goleador que fazia estremecer as melhores defesas. E, junto com Antônio Carlos, Mimi e Loloca, que quarteto maravilhoso não seria? Ah, não resisto em novamente exclamar: “Que linha de ataque maravilhosa! Que trabalho os defensores rubro-negros teriam naquela memorável noite!”

E foi quando quase ocorreu o gol do empate, através de Mimi, em estupendo petardo que ele mandou contra a meta do Flamengo. O goleiro pegou. Todavia, a vibração foi total. Agora, quem estava a tremer era o timaço do Flamengo, que não esperava encontrar tanta dureza pela frente. Mas eles, os rubro-negros, também eram espetaculares em campo; e sem o reforço por mim sonhado o jogo terminou com mais um gol dos rubro-negros. Dois a zero, no final. Não foi um justo resultado, sem demérito do vencedor.

Em boa hora a lembrança de Careca me fez ver em campo, no meu sonho acordado, outros craques que gravaram seus nomes na memória futebolística gonçalense. Sim, sim, havia Lulinha, cria do Colodino, titular do Fluminense nos anos sessenta ao lado de Denilson, e ainda havia os irmãos Paraquett, – Tunico e Luiz Carlos, – dois maravilhosos craques da bola e jogadores do Esporte Clube Peixoto.


ESPORTE CLUBE PEIXOTO ou PEIXOTINHO

(Em pé, da esquerda para a direita: Célio, Luizinho, Luiz Carlos Paraquett; Agachados, da esquerda para a direita: Tunico Paraquett, Maureci e Emir)

Tunico, na posição de zagueiro central, era um monstro sagrado. Não havia em São Gonçalo beque melhor. No tiro de meta, ao repor a bola em jogo, tanto fazia se ela estivesse em posição de ser chutada pelo pé direito ou pelo esquerdo. Tunico batia igual com as duas pernas e colocava a esfera onde queria. No cabeceio dentro da área, até mesmo o genial Loloca respeitava o baixinho Tunico, cuja impulsão ultrapassava em altura o Pelé gonçalense. Tunico era efetivamente um leão em campo, mas nunca deu pancada em ninguém. Deslizava entre as pernas dos atacantes e lhes tomava a bola. Nunca os tocava em falta. Era, sim, delicado dentro e fora do campo, no seu estilo comparável ao do inesquecível craque de renome nacional Ademir da Guia.

E Luiz Carlos Paraquett?... Este jogava no meio campo, tal como o mestre Carlinhos Danilo, mas sem perder em qualidade para aquele outro. Luiz Carlos era magrelo; formou, quando juntos jogaram, – com Carlinhos Danilo, que também envergou, numa época, a camisa tricolor do Esporte Clube Peixoto, – o mais espetacular meio campo que se pode imaginar existir ou ter existido no futebol de várzea. E não seria demais afirmar que, se ambos tivessem atuado em algum time profissional, seriam destacados como sérios ocupantes da intermediária da Seleção Canarinho.

Luiz Carlos, carinhosamente apelidado por “dez letrinhas”, parecia ter elástico no corpo. Era uma enguia com a bola nos pés, capaz de aplicar nos adversários os dribles mais desconcertantes. No passe era perfeccionista, não escolhendo perna para jogar. Era simplesmente assombroso, e que o digam aqueles que o enfrentaram em campo; ademais, implacável goleador, como o é atualmente o Marcelinho do Coríntians, capaz de destronar qualquer goleiro.

Os atônitos jogadores do Flamengo certamente vieram a São Gonçalo naquela noite pensando golear um timeco qualquer. Estavam enganados, redondamente enganados. Mas, diga-se a bem da verdade, o time rubro-negro não veio a São Gonçalo para levar derrota.

Fim de jogo, dois a zero para o Flamengo, e os comentários nunca mais pararam. Resistem até hoje à passagem dos anos. Alguns dizem que, se o tempo estivesse bom, o Flamengo sairia do Tamoio com uma fragorosa derrota nas algibeiras; já outros ousam afirmar que seria o contrário, que o Flamengo venceria, como de fato venceu, aquele jogo. Eu particularmente acho que não seria bom nem mesmo à Seleção Brasileira enfrentar aqueles craques gonçalenses em noite de inspiração.

Diriam muitos que minto ou exagero, e alguns acrescentariam que os craques de várzea jamais ultrapassariam o brilho efêmero do futebol local, dos jogos em campos ruins e das carreiras curtas, logo trocadas por proeminentes barrigas de bebedores de cerveja. Talvez, talvez... Mas continuo achando que o Flamengo teria levado uma surra naquela noite se estivesse em campo o time gonçalense dos meus sonhos. E se arrependeria de ter vindo a São Gonçalo enfrentar os craques do futebol de várzea daquela terra papa-goiaba. Tanto é assim que até hoje esses jogadores estão vivos na memória popular gonçalense, enquanto que muitos dos profissionais flamenguistas não têm mais seus nomes sequer lembrados.

Loloca, Bringela e os irmãos Luiz Carlos e Tunico Paraquett estão mortos. Mas nunca serão esquecidos naquelas paragens que formam os bairros do Desvio de Dona Zizinha, Engenho Pequeno, Encruzo da Maricá, Fazenda, Jurumenha e Barro Vermelho. E para aqueles que estão vivos deixo aqui minha homenagem e meu agradecimento por tanta alegria que me proporcionaram naquela noite de Flamengo versus Colodino, e em muitas outras fenomenais partidas de futebol que tive o privilégio de assistir. São mais de cinquenta anos passados, mas a minha memória e o meu coração ainda guardam toda aquela emoção em dia de chuva, a síntese da maravilha que era o futebol amador em São Gonçalo.

Naquela memorável noite, diga-se de caminho, acho que somente jogaram Loloca, Carlinhos Danilo, Derval, Mimi, Nonô, Jorge Calírio e Tião da Sá Pinto, os demais aqui homenageei porque sonhei com esses jogadores num mesmo time. Mas não importa se há algum esquecimento, se grafei erradamente alguns nomes, isto depois se conserta; e muito menos importa o fato de muitos não terem conhecido os jogadores que aqui me referi. Porém, é fácil trocar esses nomes por outros, assim como é simples imaginar outras cidades, outros campos e outros times de várzea. Pois o que efetivamente tem importância é o registro de uma época em que o futebol de várzea às vezes revelava um jogador como Garrincha. Sim, havia muitos campos de várzea. Não como hoje: os campos escassearam e os craques de futebol amador ficaram na lembrança dos mais velhos, tal como agora o faço. E quantos craques, como Garrincha, poderiam ser hoje revelados como naqueles tempos em que sobravam campos para o povo simples jogar?... Mas hoje, infelizmente, os campos de várzea desapareceram debaixo de favelas ou conjuntos habitacionais destinados às pessoas simples que tornaram o futebol uma máquina de fazer dinheiro e poucos são os craques revelados.








Um comentário:

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