sexta-feira, 30 de junho de 2017

ENIGMA EXISTENCIAL





Bastaria existir a Via Láctea no inexplicável Universo para caracterizar o absurdo da existência humana na Terra. Porque todos os conceitos existenciais esbarram nesta invencível constatação do absurdo, tal como é absurdo o suicídio no dizer de Albert Camus; sim, mesmo que tudo seja irrealidade, e que a existência humana não passe de ilusão, nós, mortais, supostamente pensantes, insistimos em distinguir o natural do sobrenatural, ignorando o primeiro por ser complexo e cultuando o segundo por imitação de rebanho. Olvidamos o natural também porque a ciência e a filosofia não ultrapassaram o limite do “só sei que nada sei”. Resta-nos, talvez, o sobrenatural como via de escape. Mas quando nos remetemos a ele em profundidade vemo-lo tão incrível quanto o natural. Alenta-nos, nesta hora de difícil opção, a Fé na existência de uma Entidade criadora do Universo, ou de Multiversos, tanto faz. Mas o absurdo insiste em nos atordoar, e nem sempre a Fé em Deus o supera. Sorte daquele cuja Fé é capaz de transpor todos os absurdos imagináveis e inimagináveis.

Tornando ao enigma de crer ou não crer (quiçá um dilema), imaginar que o Universo sempre existiu ou que teria nascido dum Nada, sem intervenção divina, não dirime a dúvida fundamental, e cá nos mantemos diante o absurdo. Mais enigmático ainda é conceber esse Nada anterior à criação do Universo e aceitar como verdade insofismável a existência de uma Entidade criadora fora desse Nada representado pela ausência de tempo, e espaço, e energia, e matéria e Tudo. Essa Entidade, claro, é nosso Deus ocidental, ou seriam as Entidades de outras denominações que sabemos imperar mundo afora.

Cada qual com sua Verdade!... Enfim, qualquer via de escape sobrenatural nos leva ao absurdo e nos trancafia no maior de todos os absurdos: nossa efêmera existência física por obra de Deus. Ah, não crer na Criação é absurdo! Por outro lado, crer na Criação é também absurdo! Enfim, só nos é dado crer no absurdo ou nos entregarmos a uma Fé tão convicta que dispensa absurdos. Sorte de quem a possui no seu espírito, se é que existe, e eu tendo a crer que sim, para sorte minha. Mas não excluo do meu pensamento o absurdo que permeia esta Verdade em mim, atordoando-me.

Pensar na existência humana a partir da Criação significa aceitar a racionalidade diferenciadora dos animais e dos vegetais e crer em Deus. Tal posicionamento me parece menos absurdo do que crer na Evolução a partir de um Big-Bang cuja teorização somente tem servido para afagar egos científicos muito além do entendimento do povo simples da Terra... Hum, que racionalidade é esta a que me refiro?... Será que é a que conduz este texto sem pé nem cabeça?...

Como saberemos, enfim, se realmente raciocinamos? Quantos movimentos repetitivos executamos enquanto supostamente raciocinamos? Por que há tanta semelhança biofísica entre humanos e animais? Como negar tantas outras similitudes orgânicas entre seres humanos e animais? Bem, a diferença estaria no exercício da razão, apenas, pois a emoção afeta também os animais, e cada qual a manifesta do seu modo repetitivo, que chamamos instinto e também o manifestamos muitas vezes. Sim, a emoção afeta o nosso corpo físico e psíquico, sim, e a repetição dessa emoção é comum aos humanos e aos animais. Ou seria mais um absurdo que aqui grafo em dúvida angustiante?...

Hoje a mecânica quântica absurdamente assegura que a pedra pensa. E agora? Que dizer disso? Será que os cientistas enlouqueceram? Não, não enlouqueceram, somos nada mais que átomos a transmigrarem de um para outro corpo mineral, vegetal ou animal ao longo de sua existência, seja efêmera ou eterna. Sim, para o átomo não há contagem de tempo, parece-me eterno. Aliás, tudo que existe apenas representa o que conceituamos em relação ao que sentimos ou não sentimos, bem como imaginamos que as demais coisas ou pessoas sentem ou não sentem. É tudo, afinal, clichê de comunicação repetitiva, tal como fazem os animais para se comunicar abrindo asas, balançando rabos, emitindo sons etc. É tudo átomo!...

Vivenciamos um mundo absurdo. Praticamos o absurdo desde o nascimento até a morte, com ressalva de que no prelúdio de nossas vidas comemos e borramos como quaisquer animais irracionais. Sim, somos instintivos na maior parte do tempo, este que aparentemente nos transforma em seres pensantes porque o delimitamos em convenção simplória (atavismos) sugerindo que tudo é imitação, e é como nos comportamos: imitando o outro até a morte. Claro que um médico pensa diferente dum engenheiro, se quisermos raciocinar com diferenças. Mas, fundamentalmente, são seres humanos forjados do modo de sempre no mundo animal (racional e irracional). Mas, se o animal não pensa em nada, também nós, humanos, evitamos pensar no absurdo de o nosso planetinha gravitar num sistema tão minúsculo em relação à Via Láctea que nem dá para imaginar que são bilhões de bilhões de Galáxias no Universo infinito. Ou finito?... Ah, quem somos nós?...

Com efeito, não há como não nos descambarmos ao espanto ante o absurdo. E talvez o maior de todos resida no fato de nos situarmos dentro de nós mesmos e nos deliciarmos com o que designamos subjetividade. Vemos coisas e pessoas e as distinguimos segundo nossa aparente vontade. Parece que é o que nos basta, até que miramos o céu distante e nos damos conta de nossa insignificante pequenez diante de nossa absurda existência, se é que existimos...

Bem, não posso negar certa angústia ante a vida e o mundo. Espanta-me o absurdo da ignorância em que vivemos. Não somos nada mais que hipóteses improváveis até materializarmos a hipótese extrema da inexistência: a morte. E mais ainda me espanta a arrogância, o extremismo fanático e a crueldade dos seres humanos, mesmo certos de que, humildes ou arrogantes, sensatos ou extremados, ricos ou pobres, tornar-se-ão pó de estrela tais como no início de tudo... Ou antes do início de tudo.


JULGAMENTO




“A versão brasileira da organização formal do sistema de júri é um bom exemplo de como uma instituição democrática popular e igualitária transformou-se pela cultura jurídica numa instituição autocrática, hierárquica e elitista.” (Roberto Kant de Lima)





O cenário do júri já montado, as personalidades em seus respectivos lugares: sete jurados, mui dignos representantes da formal sociedade, todos em tronos soberbos postados lateralmente ao juiz e ao promotor, estes, porém, entronizados no mais alto lugar do solene ambiente e ombreados em imponentes cadeiras, que, em estilo, remontam aos idos del-rei. Na outra lateral está o advogado de defesa, quase que rés do chão; e, por fim, o réu, figura central da solenidade, sentado em cadeira comum, no patamar mais baixo de todos, olhos cosidos no soalho, queixo colado ao peito, mãos entrelaçadas em meio às pernas, pulsos algemados, pés nus e calçados apenas com sandálias deformadas pelo uso.



É assim que fica o réu, isolado em sua cadeira, diante do juiz, ele bem cá embaixo e o juiz e o promotor bem lá em cima, como se fossem ambos quatro mãos segurando um só martelo em posição de bater num insignificante prego. O réu, para variar, negro, pobre, roto, esfaimado, nada mais que “prego social”.



Atrás, nas arquibancadas, vê-se a entusiástica plateia, como aquela dos tempos romanos das arenas e dos leões, plateia previamente credenciada e selecionada, todas as pessoas recrutadas por algumas prestigiadas ONGs em razão do limitado espaço a ser ocupado. Mais acima, no privilegiado camarote, repórteres voejam como aves de rapina sobre a presa. Pronto, estão todos superpostos e em posição de combate, com o réu reduzido a apenas um ponto negro e insignificante no centro da arena. É hora de começar o espetáculo! Que sejam soltos os leões! Ó respeitável público! Luzes, câmeras, ação!...



O JUIZ: – Qualificado o réu, Manoel Pedro da Silva, negro, sem profissão, endereço incerto e não sabido. Lida a denúncia, ouvida a única testemunha, feito o relatório, tudo conforme a magnânima lei, dê-se início ao julgamento do famigerado réu pela acusação de tentativa de homicídio. Com a palavra a insigne acusação.



O PROMOTOR: – Meritíssimo senhor doutor juiz, magnificentíssimos senhores jurados, lídimos representantes da sociedade, vox populi vox Dei!...



1º JURADO (pensando): “Que eloquência! Que frontispício! Que citação de abertura! A voz do povo é a voz de Deus! Eu sou a sociedade, eu sou a voz do povo, eu sou a voz de Deus! Que homenagem bem posta! Esse garboso jovem deve ser de importante família de juristas.”



O PROMOTOR: – Estamos aqui, longânimes senhores jurados, neste sagrado espaço da justiça, para vos sugerir a condenação deste contumaz criminoso como dever cívico de todos nós! Como lídimo representante do Estado e guardião das leis e da sociedade, peço-vos desde já a punição do réu à pena máxima pelo crime que ele cometeu, pois assim é que tout est bien quui finit bien...



2º JURADO (pensando): “Que capacidade de síntese! Que erudição! Saiu do latim para o francês como quem passa de uma sala para outra! Tudo o que termina bem, está bem! Que inferência! Este belo rapaz deve ter estudado na Sorbone.”



O PROMOTOR: – Magnificentíssimos senhores jurados, o Estado tem a certeza de que o réu é culpado. A vítima, uma nobre e indefesa senhora de oitenta anos, não teve qualquer dúvida em identificá-lo. É certo que a defesa apelará para a falsa ideia de que a vítima usa óculos de grau, que era noite fechada, que esquecera seus óculos em casa, entre outras falácias e sofismas. Não acrediteis! Uma pessoa tão lúcida, tão inteligente, e de tão boa estirpe, como esta senhora, vítima, nunca se enganaria ou se prestaria a ser imprecisa. Também é certo que a defesa de Manoel Pedro da Silva apelará para a alegação de erro de pessoa, como já insinuou no processo. Apelará, é certo, para o in dubio pro reo... Ah, mero sofisma! Pois certo é que in dubio pro societas... Por isso, não acrediteis nas lucubrações da defesa! Nós somos o Estado e a Sociedade unidos contra o mal que nos assola! Tenhamos, pois, o máximo de cautela contra esses argumentos de falsas dúvidas em favor do réu, que certamente virão...



3º JURADO (mulher nova – pensando): “Que elegância! Que terno alinhado! Que pão! Que bonitinho! Que cabelo bem arrumado! Será que ele tem namorada?”



O PROMOTOR (alçando catedraticamente a mão esquerda, e assim brilhando seu belíssimo anel de grau, presente do pai na formatura): ― Como vos estou a dizer, nobilíssimos jurados, a verdade, somente a verdade estamos aqui expondo. E ela é somente uma: o réu é culpado e deve ser condenado! Não vos digo isto apenas em razão de gratia argumentandi, mas por certeza de sua culpabilidade. Credes, veneráveis membros da sociedade, horribile dictu é que o réu é o indiscutível autor do crime. Mas o dever do Estado é o de punir os criminosos, sine ira et studio. Assim o faço desde que iniciei minha brilhante carreira, vitam impendere vero...



4º JURADO (pensando): “Que irresistível intelectualidade! Que discurso! Que citações! Horrível de dizer, mas sem cólera, nem favor! Isto é que é consagrar a vida à verdade! Quem me dera ele fosse meu filho!”



O PROMOTOR: – E mais vos digo, excelentíssimos senhores jurados. A prova testemunhal, trazida pela ilustre vítima, e a firmeza desta não menos eminente testemunha em identificar o réu como o criminoso, não permitirão à defesa a sofística argüição do to be or not to be: that is the question.



5º JURADO (Mulher velha – pensando): “Que maravilhoso! Ser ou não ser, eis a questão! Que lindo! Que menino bem apessoado! Quem dera que eu fosse a sua mãe! Que orgulho ela deve ter desse filho!”



O PROMOTOR: – Vejais bem, veneráveis jurados. Que o criminoso atentou contra a vida da nobilíssima senhora vítima, não há dúvida! Mas a defesa vem alegando que ele não foi ele, que seria impossível sua identificação por parte da vítima, que negros no escuro se confundem... Assim, deste modo grosseiro, tenta a defesa, sem outro argumento mais consistente, desculpar o réu. E, pior, o réu não quer confessar que atentou contra a vítima e muito menos quem o mandou executar a terrível empreitada criminosa... Pois é certo que o homicídio foi encomendado. Também tentará a defesa, como já vem tentando, desmoralizar o testemunho do ilustríssimo doutor que acompanhava a vítima no momento do atentado, sob a singela alegação de que tão nobilíssimo cidadão não poderia identificar o criminoso, com a precisão que o fez, por não enxergar bem. Sim, venerabilíssimos jurados, apelará a defesa para o testis unus, testis nullus. Mas estamos atentos a isso, e espero que os senhores e senhoras também o atenteis.



6º JURADO (pensando): “Que rapaz ex professo! Este conhece a fundo a questão! Que capacidade de antecipação! É lógico que o testemunho é único, mas pesado a ouro de sapiência e de credibilidade... E que posturas e modos de se nos dirigir a palavra! Se me fosse permitido, eu o aplaudiria entusiástico e de pé!”



O PROMOTOR: – Sim, magnificentíssimos senhores jurados. Culmino a minha acusação com a convicção de que o criminoso daqui não sairá impune. Estamos diante de um caso que nos permite declinar a máxima et crimine ab uno disce omnes. Por esse crime particular, pode-se imaginar que em outros crimes esse réu ainda poderá cometer! Deixamos claro o quis, quid, ubi quibus auxillis, cur, quomodo, quando. Não há mais que fazer, a não ser aguardar, sereno, que o réu receba o castigo que merece, em respeito à ilustre vítima, ao Estado e à Sociedade, esta que aqui está tão bem representada pelos nobilíssimos senhores jurados, eis que vox populi vox Dei.



7º JURADO (pensando): “Que espetáculo à parte a acusação! Que citação probatória apropriada: quem, quê, onde, por que meios, por que, como e quando... Duvido que o reles advogado tenha entendido tão solene latinização... E muito menos o réu... Duvido que o pobre-diabo do advogado de defesa do réu, aqui e hoje, consiga alguma coisa! E que elegância do promotor ao apontar o réu! Que gesto magnânimo! Se ele nada falasse... Só apontar o réu como culpado, da forma como o fez, para mim seria suficiente.”



O JUIZ (cumprimentando efusivamente o promotor, agora retornando ao seu assento, ao lado do juiz, lá no alto): – Que a defesa ocupe a tribuna e inicie a sua parte!



O ADVOGADO: – Senhores jurados, serei breve. Estamos aqui para julgar um réu injustamente acusado. Quem está qualificado nos autos é Manoel Pedro da Silva, que na data dos fatos teria atentado contra a vida da vítima. Quero-lhes acrescentar apenas dois argumentos, simples argumentos, bem simples mesmo: o réu que aqui está sendo julgado não é Manoel Pedro da Silva. Seu nome verdadeiro, de registro oficial, em cartório, é Pedro Manoel da Silva. Também as digitais constantes na ficha referente a Manoel Pedro da Silva não conferem com as do réu. Em resumo: um não é o outro! E, para encerrar, juntei no processo a prova de que o réu estava na Bahia na data dos fatos. Portanto não poderia, nunca, estar aqui no Rio, e muito menos atentar contra a vida de ninguém! É só o que lhes tenho a dizer, além de discordar de tudo aquilo que o promotor eloquentemente salientou, que não corresponde à verdade dos autos e nem à realidade dos fatos. E lhes reafirmo: o réu é negro, e não poderia ser reconhecido à noite e no mais completo breu por duas pessoas idosas e que sabidamente enxergam mal. Mas nem precisava apelar para estes argumentos para defender o réu. Pois é certo que o criminoso não é ele!...



OS SETE JURADOS (pensando em uníssono): “Que coitadinho! Que malsucedido na profissão! Com essa roupa puída e deselegante, – e com esse discurso sem vida e despido de intelectualidade, – que pretende esse advogado aqui? Isto é até uma afronta ao meu juiz e ao meu promotor! E que relógio incompatível! Como esse advogado teve a petulância de vir para cá com esse relógio de borracha no pulso? Que cabelo malcuidado! E nem barba fez! Será que tomou banho, pelo menos? Ah, que mau gosto!”



O JUIZ (sem dar a mínima para o advogado): – Que os senhores jurados se retirem à sala secreta, para a votação!



(Pausa de meia hora, retorno dos jurados)



O JUIZ: – Por decisão unânime dos soberanos jurados, o réu foi considerado culpado! Farei a leitura da sentença reprovadora de sua conduta criminosa. Ele deverá ser recolhido à cadeia pública.



Feita a leitura, recolhido o atônito réu, enquanto o promotor dá entrevista à imprensa, sorrindo, vitorioso. Os jurados discretamente se retiram para suas residências, na Zona Sul, com a certeza do dever cumprido. Fecham-se os panos do cenário de mais um inocente, – negro, pobre e sem nome, – na cadeia, como nos velhos tempos... Abrem-se os panos dias depois, ao segundo ato. E nele surge um corpo caído ao chão, inanimado, o sangue escorrendo em torno dele. É a distinta senhora que acaba de ser assassinada pelo verdadeiro criminoso, este que veio consertar a falha anterior...


quinta-feira, 22 de junho de 2017

MÃE DIVIDIDA




“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)





 Aconteceu em Niterói...


Mais um dia ensolarado no alto do Morro dos Marítimos, e a cena de sempre, Tiana descendo com a trouxa de roupa para lavar na bica d’água do chafariz sito no Largo do Bonfim, bem perto do morro, no bairro da Engenhoca. Viúva há três anos, o marido Carlão morrera acidentado na construção da Ponte Rio-Niterói, Tiana  sobrara no mundo com dois filhos menores, o mais velho Carlinhos, o mais novo Marcinho, um já com seis anos e outro com cinco. Era um sofrida lavadeira, a negra Tiana, mas que não desistia de arduamente lutar para dar conforto e educação às suas crianças. Por isso, todos a respeitavam e gostavam de ouvi-la gritando no morro:
– Carlinhos, meu filho! Marcinho, meu filho! É hora do banho, pra casa já, já!
No Morro dos Marítimos, todos conheciam aquela voz de mãe zelosa, que diariamente vibrava a clamar pelos dois peraltas. Tiana nascera no morro e dali nunca saíra, a não ser para a labuta diária. Os meninos mais ainda conheciam aquela sonora voz feminina, quão acostumados estavam com a mãe carinhosa que gritava de amor. Sim, a voz de Tiana era como música aos atentos ouvidos de Carlinhos e Marcinho.


 Antes, a vida era boa. Carlão, o finado, trabalhava como encaixotador de alicerces, era um carpinteiro experimentado na arte de montar na madeira as complicadas estruturas desenhadas por engenheiros. Aprendera cedo a profissão com seu pai, o velho carpinteiro Genésio Ferreira. E cedo começara a trabalhar serrando e cortando a madeira com o pai ao lado ensinando. Aos dezoito anos já era considerado um mestre, mas o quartel interrompeu-lhe a faina. Ele então foi ao serviço militar obrigatório, do qual não se livrou. Enfrentou com galhardia um ano de dureza no Terceiro Regimento de Infantaria (3º RI), que hoje é o Terceiro Batalhão de Infantaria (3º BI), situado no bairro da Venda da Cruz, no limite entre os Municípios de Niterói e São Gonçalo. Sim, hoje é batalhão, mas continua lá, no mesmo lugar, e na mesma rotina de receber e treinar recrutas todos os anos.
Ao dar baixa do Exército, o mestre de carpinteiro tornou logo ao trabalho na Ponte Rio-Niterói. Era início de 1970 quando Carlão, assim chamado por todos os amigos e familiares, na verdade Carlos Ferreira, começou a juntar bom dinheiro. Trabalhava bastante na hora normal e virava na hora extra, mãos coladas à serra circular, ao serrote e ao martelo, a ajudar o pai a encaixotar vigas e colunas. E foi quando também conheceu Tiana, numa festa em casa dela. Tiana tinha 18 anos quando Carlão foi comemorar o aniversário do amigo Paulo Policarpo, irmão dela, que fazia 20 anos, mesma idade de Carlão. Paulo Policarpo, mais conhecido por Policarpo, era hábil também na arte da madeira.
Carlão e Policarpo forjaram uma sincera amizade e saíam juntos às festas em geral. Iam muito aos ensaios da Escola de Samba Onze Unidos, cuja quadra ainda fica no Largo de São Jorge, na Engenhoca, bairro onde Carlão morava, ao pé de outro morro, numa travessa chamada de Sete. Mas depois que conheceu Tiana, Carlão não mais saía do Morro dos Marítimos. Qualquer motivo era bom para ver Tiana e cortejá-la. Carlão se apaixonara e se sentia correspondido. Não demorou muito e a paixão explodiu: Carlão e Tiana se casaram.
No final de 1970 houve o emocionante conúbio na igreja católica da Engenhoca, na Rua Dona Inês, a mesma da quadra da Escola de Samba, tudo perto do Largo de São Jorge. Na verdade, era tudo perto de tudo, como ainda se pode ver hoje. Foi uma bela festa, a noiva de branco, casamento de véu e grinalda, e muitos convidados do bairro e da Ponte Rio-Niterói, todos engrossando as fileiras da parentela do casal. Tiana, católica fervorosa, não cabia em si de felicidade ao entrar na igreja. E lá estavam os pais dela e os de Carlão (o velho Genésio Ferreira e a mulher Domiciana Santos Ferreira), todos vestidos em estilo. O pai de Tiana era funcionário da Prefeitura de Niterói, já aposentado. Não ganhava muito, mas pôde sustentar o casal de filhos – Paulo da Silva Policarpo e Sebastiana da Silva Policarpo – com certo conforto.
A casa da família era bem cuidada, em alvenaria, três quartos, tudo feito na base de muito esforço de João Policarpo e Maria Conceição da Silva Policarpo, pai e mãe de Tiana e Paulo. Dona Conceição, como era chamada, tinha fama de boa lavadeira. Também lavava roupa na bica d’água do Largo do Bonfim, em grande bacia de alumínio, com a qual levava na cabeça a trouxa do dia. Depois voltava com a roupa lavada e a dependurava no seu pequeno quintal a pegar vento e sol. Vento e sol não faltavam: eram de graça lá no Morro dos Marítimos.
Foi assim, no vaivém da bica ao morro e do morro à bica, lavando e passando roupa pra fora, que Dona Conceição ajudou o marido a construir a casa e deu conforto aos filhos Paulo e Tiana. Vida feliz, eles tinham, com certeza tinham, o casal de filhos crescendo, com Tiana aprendendo com a mãe a lavar com precisão as peças finas de famílias da Zona Sul da cidade. Já o jovem Policarpo partiu para a escola técnica Henrique Laje a aprender carpintaria. A escola ficava do lado do Barreto, o Morro dos Marítimos dividindo os bairros do Barreto e da Engenhoca, ambos situados na Zona Norte de Niterói. Assim viveram, assim cresceram, até chegar o grande dia de Tiana, o casamento com Carlão, seu grande amor, primeiro e único.
Os anos seguintes foram de completa felicidade, nascendo Carlinhos ao cabo de um ano do casamento, e Marcinho, no ano seguinte. E a amizade de Carlão e Paulo Policarpo solidificava-se cada vez mais, exceto na hora do futebol. Era programa certo aos domingos a disputa entre o Flamenguinho Futebol Clube e o Cadete Futebol Clube no campo de futebol deste último, situado na Legião Brasileira de Assistência (LBA), um pedaço do bairro da Engenhoca assim chamado em razão das casas construídas pela LBA para o povo carente. E eram dois times de fama, o Flamenguinho Futebol Clube copiava o uniforme do mais querido do Brasil, e o Cadete Futebol Clube envergava as cores do Palmeiras Atlético Clube.
Tanto Carlão como Policarpo eram centroavantes, ambos craques e principais jogadores dos times contrários. De quando em quando cruzavam-se as duas agremiações, com as bordas do campo lotadas de gente, em ambiente de festa e sem brigas. Era um tempo ainda bom naquele bairro da Engenhoca, o povo rarefeito e ocupando dignas moradias nos morros ainda arborizados. Sim, naqueles anos de 1972 e seguintes ainda se viam as árvores frondosas e os descampados verdejantes, as crianças brincando na tosa das pipas, de morro a morro, as pipas ocupando os céus em belos coloridos. Sim, sim, era tudo muito bonito e festivo, principalmente aos domingos, que sempre se iniciavam ao badalar do sino da igreja conclamando o povo para a missa da manhã, a que Tiana e Carlão nunca faltavam.


 Os anos assim transcorreram, as crianças crescendo em harmonia, Carlinhos com dois anos, – e ensaiando as primeiras palavras, – e Marcinho ainda no colo da mãe Tiana, a família começando o domingo na missa. Carlão comprara uma pequena casa no morro e fizera a primeira reforma. A casa era simples, mas cuidada com muito gosto. Pecava por falta da água potável, que ainda chegava ao alto do morro na cabeça das mulheres e dos homens em romarias diárias à bica d’água do Largo do Bonfim. Alguns do morro tiveram a sorte de furar poço com água brotando, mas nem todos logravam igual êxito. Então, o que realmente salvava era a milagrosa bica d’água do chafariz. Ali, a água não faltava. Nem a comida faltava, porque Carlão tinha bom crédito no Armazém Sardinha, um empório à moda antiga, que ainda resiste ao tempo, situado no que restou do Largo do Bonfim.
O velho Francisco Sardinha, dono daquele empório, confiava nas pessoas e nunca se arrependera disso. Está lá, até hoje, hoje tocado pelos filhos do finado Francisco, o Armazém Sardinha, que vence os tempos confiando em novas gerações de fiados que nunca deixam de pagar as contas. Mas o chafariz e a providencial bica d’água sumiram, cobertos pelo asfalto do inevitável progresso, ficando no passado o romantismo dos encontros das pessoas simples a recolher a água e a lavar a roupa naquele lugar. Também sumiu o Largo do Bonfim, hoje reduzido a cruzamento de tráfego intenso, ficando dele, porém, as mais saudáveis lembranças dos antigos moradores da Engenhoca, singelas lembranças do chafariz e da sua bica d’água, ambos sepultados debaixo do piche, e os carros, indiferentes, passando por cima desta linda história comunitária da Engenhoca.


 Era início 1974. Carlão, como sempre, saiu a trabalhar na Ponte Rio-Niterói, já em retoques finais, quase inaugurando. E houve o triste acidente, Carlão despencou lá do alto quando retirava alguns caixotes de madeira que ele mesmo montara, em consertos finais, por baixo da estrutura. Não cuidara de si com a indispensável cautela, diante do perigoso mister que se instara a executar. E lhe veio a tragédia, o seu corpo caído do alto e sumido na água do mar, em dia chuvoso. Foi Policarpo, em prantos, quem levou a notícia à irmã Tiana, enquanto o velho Genésio Ferreira fazia o mesmo com a mulher Domiciana, a mãe de Carlão.
A tristeza ocupou em cheio o lugar da alegria que até então vinha reinando serena na vida de todos. Dois dias... foram dois dias com o Corpo de Bombeiros perscrutando o mar em busca do corpo. No terceiro, o mar devolveu Carlão à praia do Barreto, um lugar em que ele costumava levar os filhos ao divertimento sadio em águas limpas de uma praia tranquila, mas que hoje é apenas mais um triste cenário duma baía criminosamente poluída. Acabou-se a praia do Barreto junto com Carlão; ambos desapareceram, respectivamente, vítimas da poluição e do insano progresso.
Triste, muito triste mesmo foi o enterro de Carlão no Maruí, o cemitério situado no Barreto. Amigos e parentes chorando muito, o caixão coberto com a bandeira do Flamenguinho Futebol Clube, lado a lado com a do Cadete Futebol Clube, que também fizera questão de homenagear o belo centroavante. E a desesperada Tiana no canto, as crianças no colo, todos diante de um incerto futuro. Agarrada aos meninos, Tiana rezava sem parar e chorava. E, ainda incrédula, recebia os lamentos em filas de pessoas amigas que amavam Carlão. Dali para frente ficaria dele apenas a lembrança de sua jovialidade, do seu sorriso de felicidade, dos abraços e dos golaços que fazia aos domingos. Ficaria o amor e a saudade.
O padre encomendava Carlão em missa de corpo presente, igualmente emocionado em perder um servo de Deus e frequentador assíduo da missa aos domingos. Foi triste, muito triste, quando o caixão baixou à sepultura, era o fim da presença física de Carlão na vida terrena. E lá foi ele, antes do tempo, deixando no mundo Tiana e dois filhos, coisas da vida, vontade de Deus, que ninguém compreendeu, especialmente Tiana, – a amada esposa de Carlão, – e seus pequeninos e atônitos rebentos. E foram todos levados para casa no carro do amigo Manoel da padaria. A casa que agora estava vazia de Carlão e cheia de tristeza profunda. Era uma quarta-feira da última semana de Carlão na Terra.
– Mãe, o pai tá no céu? – indagou Carlinhos, ao chegar.
– Está, meu filho! Pode ter a certeza de que está, de lá, olhando por nós.
– Mãe, quando eu crescer, quero trabalhar como ele. Quero ajudar a senhora.
– Oh, meu filho! Meu querido! – exclamou Tiana em desalento, sem conseguir completar o triste diálogo, vencido por incontrolável pranto.
Marcinho nada falava. Estava com os olhinhos arregalados em estupor. A cena do pai morto era-lhe inexplicável. Os pais de Tiana e seu irmão Paulo consolavam-na, mas Paulo também não se continha pela perda do cunhado e melhor amigo. Tanta coisa fizeram juntos, – o trabalho, o futebol, as cervejas, as farras de solteiro, os abraços de compadres quando batizara Carlinhos, – tanta coisa fizeram juntos que o seu coração partira-se ao meio, igual ao da querida irmã Tiana. A saudade de Carlão ficaria para sempre.


As asas do tempo voavam indiferentes ao drama de Tiana e a rotina dela mudara radicalmente. A alegria não mais lhe viera aos olhos, pois o seu coração ficara irremediavelmente partido. O tempo livre de antes dera lugar ao trabalho pesado de lavagem da roupa na bica d’água do Largo do Bonfim. Igual à mãe, – e junto com ela, – Tiana vencia as dificuldades esfregando entre as mãos peças e mais peças das trouxas que pegava na Zona Sul. Antes, porém, levava os filhos ao Colégio Salgado Filho, indo a pé, com ambos seguros no aperto das mãos calejadas do ferro ainda a carvão, de tanto com ele passar montões e montões de roupas finas, lençóis e toalhas de banho, de rosto e de mesa. Trabalho duro, que começava cedo e parava na hora de buscar os filhos no colégio. E estes, logo que chegavam, disparavam morro acima ou morro abaixo, em brincadeiras, até que da mãe ouviam o familiar chamado:
– Carlinhos, meu filho! Marcinho, meu filho! É hora da janta! Pra casa, já, já!...
Assim os anos se foram passando, as crianças crescendo e ouvindo a voz de Tiana em apelos constantes. Carlinhos ajudava a mãe no vaivém da bica ao morro, do morro à bica, ou nas idas e vindas às casas de São Francisco, onde havia muitos clientes de sua desalentada mãe. Marcinho também ajudava, mas sempre com menor vontade. Só saía do morro ao colégio, o morro era o seu lugar. O choque levado na morte do pai deixara-o estranho em seu comportamento. Na escola, atrasava-se ano a ano, com notas insuficientes. O contrário era Carlinhos, que se destacava nos estudos e já ingressara no segundo grau. Estava completando 15 anos e começando a namorar. Tiana gostava daquilo, Carlinhos era cópia fiel de Carlão, também craque de bola e estreando, adolescente, no Flamenguinho Futebol Clube. Tal pai, tal filho.
Marcinho, em vez de descer o morro, subia-o a soltar papagaios, cada irmão buscando o prazer adolescente a desabrochar na vida difícil. Mas os novos tempos foram tornando o morro diferente, os pontos de venda de drogas surgindo no domínio de traficantes. À igreja, Marcinho não mais acompanhava a mãe e o irmão Carlinhos. Preferia o isolamento, um perigoso isolamento, que Tiana e seu tio não podiam mais evitar. Paulo Policarpo casara-se e mudara-se para São Gonçalo. Só vinha aos domingos, e conversava com o sobrinho Marcinho sobre os perigos das más companhias:
– Marcinho, você está entristecendo a sua mãe! Fala aqui para o tio Paulo o que está havendo com você. Sou seu amigo e lhe quero ajudar...
– Tem nada, não, tio! A mãe quer que eu seja igual a Carlinhos, mas não sou, não. Quero outras coisas da vida. Não vê o pai? Trabalhou feito um condenado e morreu antes da hora – retrucava Marcinho, com a arrogância de quem achava que tudo sabia.
Mas Tiana se preocupava cada vez mais, enquanto o tempo corria. Às vezes se sobressaltava com os tiros que surgiam no morro, e Marcinho do lado de fora. A polícia volta e meia subia o morro, pondo a correr os traficantes. Também já havia as disputas entre os morros. Na Legião Brasileira de Assistência a comunidade cresceu desordenada, virando favela, hoje chamada de favela da Brasília. O campo do Cadete Futebol Clube, antes em tamanho oficial, mirrara-se entre novas construções que emergiam céleres na disputa dos novos favelados por um pedaço de chão. E também se sucumbiu a comunidade ao domínio de traficantes, rivais aos do Morro dos Marítimos. A tranquilidade de antes tornara-se um constante e premente perigo, com os moradores acuados por tiroteios entre os bandos inimigos, com a polícia enfrentando-os de espaço em espaço. O que era antes um lugar calmo, virou inferno.
Tiana não mais aguentava as malcriações de Marcinho, agora já com 18 anos. Enquanto Carlinhos seguia o exemplo do pai, inclusive se incorporando como recruta no 3º BI, Marcinho continuava a subir o morro e a andar com os marginais, todos ali mesmo com ele criados. Tiana tornou-se uma mulher com o coração dividido entre um filho exemplar, – como o falecido Carlão, que tanto amara, – e o outro, – que descambava ao descontrole familiar. Mas, por mais incrível que possa parecer, não se diminuía o amor de Marcinho ao irmão Carlinhos, que, por sua vez, também dele muito gostava. Carlinhos, entretanto, já desistira de aconselhar Marcinho a se afastar das más companhias; ou melhor, continuava a fazê-lo, contudo sabendo ser inútil a sua interferência para mudar a vida do único irmão.
– Mano, estou com uns ingressos para o pagode do Clube Mauá. Quer ir comigo? – Carlinhos sugeria.
Pô, mano! Legal! Mas tenho um programa melhor. Tô ficando com a Marina hoje. É uma gatinha de responsa! – retorquia Marcinho, fugindo ao convite.
Estava claro a Carlinhos que Marcinho queria se manter arredio da família. Não estava metido em boa coisa, porém nada falava. Desse modo, o tempo passou, até que Carlinhos, ao terminar o seu compromisso com o Exército, resolveu seguir os conselhos de um sargento que ficara seu amigo e que lhe sugerira ingressar na Polícia Militar. Fez a prova de concurso, para experimentar, e passou em primeiro lugar. Explodiu em contentamento, e, nessa alegria incontida, levou à mãe a notícia. E o problema que isso lhe causaria na vida dali em diante...
– Mãe, passei na PM, em primeiro lugar. Vou ganhar um salário que vai dar pra ajudar a senhora. Não aguento ver nem mais um dia esse seu sacrifício de lavadeira. Pelo menos, vai dar para diminuir a sua luta.
– Oh, meu filho! Eu acho ótimo, e estou muito contente por você. Mas aqui você não pode ficar, sendo um PM, e você sabe disso – preocupou-se Tiana.
– Sei, mãe. Mas já pensei nisso, e tenho um amigo que disse que eu posso ficar na casa dele, lá em São Gonçalo, até poder arrumar um canto. E também já sei como é o quartel. Sei que posso ficar lá no Centro de Formação de Recrutas enquanto estiver cursando. Lá é muito bonito e organizado, mãe.
– Então vá, meu filho. O seu destino manda assim, é vontade de Deus, então vá. Mas, não volte aqui como um PM. É melhor você deixar tudo pronto antes de entrar na PM – atalhou Tiana, pensando no perigo.
Assim os irmão se separaram, Tiana nervosa com os comentários de Marcinho:
– Pô, meu mano um samango! Essa não, mãe!
– Que isso, meu filho! Você sabe que seu mano adora você!
– Sei disso, mãe! Eu também adoro ele, mas não quero mais ver ele, não. E aqui no morro ele num pode vir, senão acaba dançando. O pessoal do movimento diz que PM tem mais é que pular a vala. A mãe sabe o que é isso?
– Sei não, filho!
– É morrer! É dançar na rajada de tiro, mãe! –  atalhou, nervoso, Marcinho. – Num deixa ele aparecer aqui não, mãe! Num deixa ele voltar não, mãe! — acrescentou.
Carlinhos ficou instalado lá no Centro de Formação de Recrutas. E se destacava a cada dia nos treinamentos, demonstrando ter nascido para a carreira que abraçara. No estande de tiro impressionava a todos com sua pontaria certeira. Nas demais provas práticas, Carlinhos também se destacava com louvor, assim como nas provas escritas. Pintava como primeiro colocado e angariava alto conceito. Formou-se um preparado policial-militar, logo convidado a se integrar à mais temida força policial do Estado: o Batalhão de Operações Especiais – o BOPE –, aceitando, orgulhoso, o convite. E para lá se foi, iniciando uma outra fase de treinamento ainda mais extenuante do que aquele que concluíra em primeiro lugar no Centro de Formação de Recrutas. E Carlinhos, – batizado com o nome de guerra Ferreira, – no treinamento de tiro do BOPE espantou os instrutores com a sua pontaria infalível. Tanto fazia o tipo de arma, Carlinhos era preciso em todas, e parecia talhado ao acerto preciso do tiro de carabina. Foi o bastante para receber como missão uma das mais especializadas no BOPE: Atirador de Escol.


 Passou o tempo, e Carlinhos somente via a mãe na casa do tio Paulo Policarpo, em São Gonçalo. Ao irmão, não mais o avistou pessoalmente, eis que Marcinho nunca ia à casa do tio, nem mesmo atendendo aos reiterados apelos do irmão Carlinhos. E Tiana contava a Carlinhos sobre as peripécias de Marcinho, que as sabia perigosas.
– Meu filho, a felicidade nunca é completa. Você indo tão bem e seu irmão desgarrado. Ele continua carinhoso comigo, um filho maravilhoso. Mas não fala pra mim nada do que faz. E pior, meu filho, ele agora anda armado com pistola, revólver, e até uma arma grande, que ele diz que comprou do exterior. Já tentou me dar dinheiro, mas não aceitei e não aceito. Ele anda com muito dinheiro, cheio de joias e não tem namorada certa. Não sei mais que fazer. Ele já está um homem, já fez 24 anos. Não posso mais com ele; só rezo por ele todo dia. E também por você, meu filho, porque sua profissão é perigosa também.
Carlinhos ouvia a mãe desabafar sem nada falar. Com sua experiência na profissão, tinha certeza de que Marcinho já estava envolvido no crime pesado. E nada mais podia fazer pelo irmão, que nunca atendia aos seus chamados. Sua tristeza era sincera. Lembrava-se dos tempos de brincadeiras com Marcinho e do ótimo relacionamento entre ambos, sempre muito unidos na infância. Marcinho piorou depois da morte do pai, mesmo assim os irmãos se entendiam às mil maravilhas. Amavam-se, enfim.
Era uma segunda-feira de manhã. Carlinhos, o PM Ferreira, como era chamado, estava escalado de serviço, mais um dia de perigo no BOPE, sempre saindo a atender situações especiais e de alto risco. Os serviços, – que colocavam sempre o BOPE na dianteira, – eram os assaltos a instituições financeiras, ou as operações de grande envergadura em favelas e os assaltos a residências, entre outras missões complicadas. A tropa cumpria o café da manhã quando veio a corneta chamando os valentes milicianos à formatura, ainda com o toque da estrídula sirene indicando-lhes emergência. Era dia de combate, porém ninguém sabia onde estaria havendo a ocorrência. Em forma, os soldados, o tenente falou:
– Atenção pessoal! Temos uma situação dramática em Niterói, um assalto a residência em São Francisco. Quem conhece aquela região?
– Eu conheço, tenente! – apresentou-se Carlinhos.
– Ótimo Ferreira. Assim, vamos ganhar tempo. É uma casa na Rua Tamoios, uma casa de dois andares. A família está manietada por quatro assaltantes no andar de cima. Há um homem, a mulher dele e as duas filhas. Um dos assaltantes mantém uma das meninas sob a mira da pistola e presa a ele numa gravata. Os outros estão fora das vistas da polícia. Vai ser uma operação simultânea de invasão, após neutralizar o assaltante que está vindo negociar, mas ameaçando a menina com a arma na cabeça dela. A situação é dramática, muito séria mesmo!
– Tenente, qual é o número da casa? – indagou Carlinhos.
– É o número 2.551.
– Meu Deus! Eu conheço a família. Minha mãe é a lavadeira deles, e eu já peguei e levei muita roupa lá. Conheço as meninas! Meu Deus! – exasperou-se Carlinhos, mas logo reassumindo a sua frieza profissional.
– Tudo bem, Ferreira! Com isso, nós vamos chegar mais rápido. Você vai comigo, indicando-me o itinerário. E acho que você será a peça chave, porque para invadir a casa precisamos antes neutralizar o assaltante que manieta a menina. Vá pensando num bom lugar para você se posicionar com vistas ao tiro de precisão. A área está toda cercada e isolada. Vamos nesta!
E partiram, pegando o Viaduto do Santo Cristo, o Cais do Porto e a Ponte Rio-Niterói. Na ponte, Carlinhos não deixou de pensar em Carlão, o seu inesquecível pai que ali se acidentara fatalmente. Naquela hora, suplicou por sua ajuda espiritual. Era a primeira ocorrência na sua cidade natal. E chegaram rápido a São Francisco, queimando pneus no asfalto e sirenes pestanejando no ar. Era o BOPE que vinha, abrindo caminho na raça, como sempre na raça de homens forjados na têmpera do aço. O BOPE é o BOPE! Nada é igual ao BOPE na hora do perigo mortal. E lá estava o PM Ferreira, o nosso Carlinhos, com a carabina especial dotada de luneta, o Atirador de Escol da equipe que avançava.
– Tenente, sei de um lugar, um prédio distante uns cinquenta metros da casa, mas que tem comandamento total sobre a parte da frente. De lá, se o senhor me conseguir colocar no terraço, acerto um mosquito no voo.
– Pode contar com isso, Ferreira. Você sabe o nome do prédio?
– Não precisa, tenente! Só tem ele, de três andares.
– Ótimo! Vou solicitar ao major que comanda o cerco para liberar o local. Em chegando, você vai direto e aguardará minha ordem. Vou deixar junto com você o PM Castro e um rádio. Você só vai atirar depois de avaliar a precisão do disparo em cem por cento e receber ordem para tal, entendido?
– Positivo, tenente.
Era uma situação muito dramática. Os bandidos, escudados nos corpos das vítimas, atiravam nos policiais. Depois vinha um deles, com a garota agarrada e a arma na cabeça dela, ameaçando matá-la. Assim estava a situação quando o BOPE chegou. O prédio já liberado, Carlinhos e Castro subiram ao último andar e adentraram o terraço. Enquanto isso acontecia... lá na Engenhoca uma voz ecoava na porta da casa de Tiana.
– Tiana! Tiana! olha a televisão! é o Marcinho! é o Marcinho! – gritava a vizinha.
– Que houve, meu Deus? que houve? – gritava Tiana, correndo apressada a ligar a televisão.
E se deparou com a cena, a terrível cena, o seu filho Marcinho agarrado à menina que ela vira nascer, e com a ameaçadora arma na cabeça dela.
– Meu Deus! valei-me Nossa Senhora! valei-me!
E nada mais falou. Do jeito que estava, partiu morro abaixo, gritando por socorro e pedindo um carro. Ao pé do morro estava um comerciante com o carro na porta. Era o Manoel, o dono da padaria, e Tiana gritou para ele:
– Seu Manel! seu Manel! me leva no seu carro a São Francisco! é meu filho Marcinho! é a menina da Dona Rosália! me leva! por favor, me leva!...
Manoel estava a assistir a tevê e já vira tudo. Conhecia Marcinho desde que nascera. E veio correndo, já com a chave na mão.
– Dona Tiana, eu vi o Marcinho. E a menina? A senhora a conhece, mesmo? – perguntou, enquanto entrava no carro. – Entra aí, entra aí! – ordenou.
– Sim, seu Manel! É a menina da Dona Rosália! Eu sou a lavadeira dela há anos. O Marcinho não sabe. Meu Deus! Preciso chegar rápido, antes que ele faça uma loucura.
O carro saiu em disparada. Em quinze minutos já chegava ao local, e Tiana correu ao PM, na corda de isolamento, e falou:
– Filho, por favor! Sou a mãe daquele garoto que está ameaçando a moça. Sou a lavadeira da casa, e tenho que evitar uma tragédia. Preciso falar com o meu filho. Por favor, sou mãe de PM também. Me leve ao oficial! – desesperou-se Tiana, em gritos que se ouviam de longe.
Veio o Major e ouviu Tiana. E concordou logo com a ideia de ela interceder junto ao filho bandido para evitar uma tragédia. Afinal, era o filho dela quem oferecia maior perigo à família. Mas, enquanto isso, o capitão e o tenente do BOPE, sem saber de nada, concluíam pela decisão de que teriam de eliminar o perigoso assaltante que manietava a menina. E este, o nervoso marginal, estava a deixar a cabeça em condições de ser acertada. Era o que os oficiais esperavam, que o retorno dele à varanda permitisse o ataque, a invasão da casa. E seria logo após a eliminação do assaltante pelo Atirador de Escol... por Carlinhos, que até então apenas enquadrava sua mira telescópica na varanda vazia, regulando a visão para o tiro mortal que daria...
O tenente já lhe determinara liberdade de ação para executar o tiro. E chegara o momento, o mesmo dramático momento em que Tiana corria em direção à casa, e Marcinho surgia na varanda, e era enquadrado na mira o seu rosto pelo irmão. E foi pela mira da luneta que Carlinhos avistou o rosto do irmão, do assaltante que ameaçava a menina. O dedo petrificou-se no gatilho, Carlinhos não o apertou. O tenente, pelo rádio, vociferava: “Atire! atire! atire!”, enquanto Tiana chegava e gritava: “Não atire, meu filho! não atire, meu filho!”, a voz dela sendo ouvida simultaneamente por Marcinho e por Carlinhos, uma voz que ambos conheceriam em meio a milhões de outras. E Carlinhos, do alto, abaixou sua carabina e fez seu corpo surgir do esconderijo em que se encontrava. E Marcinho viu a mãe, e viu Carlinhos também. E a desesperada mãe, entre ambos, olhava para a varanda e olhava para o alto do prédio. Foram segundos, apenas segundos, com ela olhando os dois filhos amados, e depois caiu no meio da rua...
Carlinhos largou no chão a carabina, e, de onde estava, disparou correndo para baixo, em direção à mãe, e gritando: “Mãe! mãe! mãe!”, enquanto Marcinho largava a menina, e a pistola, e também disparava correndo para fora, e gritando: “Mãe! mãe! mãe!” E o Major bradou ainda mais alto, no comando de todos os policiais-militares presentes: “Ninguém atira! ninguém atira!”
Os dois filhos chegaram quase que juntos até a mãe, ela no chão, caída, sem vida. E ambos os filhos se ajoelharam e se fitaram nos olhos da dor profunda, diante da mãe que jazia morta. O PM do BOPE e o bandido, apenas irmãos unidos em inesperada dor. Diante deles, o coração de Tiana partiu-se para sempre em dois pedaços, em cada pedaço um dos filhos queridos. Tivera um infarto fulminante na extrema emoção.
Os três outros bandidos saíram, sem armas, com as mãos para cima. E houve o silêncio, um pesado silêncio naquele momento de espanto. E veio Rosália, com o marido e as filhas, e se acercaram todos em volta do corpo de Tiana. Ali estava Sebastiana Policarpo Ferreira, mãe de PM, mãe de bandido, os dois abraçados e chorando, com Marcinho prometendo à mãe morta nunca mais transgredir a lei, e pedindo perdão ao irmão, ao seu irmão PM, que não teve coragem de matá-lo.
E ficou o silêncio, um profundo silêncio, em respeito àquela mulher que viveu na dignidade e na fé. Deus decidiu e levou-a para si e para Carlão, salvando antes o seu filho arrependido e as vítimas do sequestro, a família amiga. Tiana não morrera em vão. E deve ter chegado ao céu muito feliz...

Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...