“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Aconteceu em Niterói...
Mais um dia ensolarado no alto do Morro dos
Marítimos, e a cena de sempre, Tiana descendo com a trouxa de roupa para lavar
na bica d’água do chafariz sito no Largo do Bonfim, bem perto do morro, no
bairro da Engenhoca. Viúva há três anos, o marido Carlão morrera acidentado na
construção da Ponte Rio-Niterói, Tiana
sobrara no mundo com dois filhos menores, o mais velho Carlinhos, o mais
novo Marcinho, um já com seis anos e outro com cinco. Era um sofrida lavadeira,
a negra Tiana, mas que não desistia de arduamente lutar para dar conforto e
educação às suas crianças. Por isso, todos a respeitavam e gostavam de ouvi-la
gritando no morro:
– Carlinhos, meu filho! Marcinho, meu
filho! É hora do banho, pra casa já, já!
No Morro dos Marítimos, todos conheciam
aquela voz de mãe zelosa, que diariamente vibrava a clamar pelos dois peraltas.
Tiana nascera no morro e dali nunca saíra, a não ser para a labuta diária. Os
meninos mais ainda conheciam aquela sonora voz feminina, quão acostumados
estavam com a mãe carinhosa que gritava de amor. Sim, a voz de Tiana era como
música aos atentos ouvidos de Carlinhos e Marcinho.
Antes, a vida era boa. Carlão, o finado,
trabalhava como encaixotador de alicerces, era um carpinteiro experimentado na
arte de montar na madeira as complicadas estruturas desenhadas por engenheiros.
Aprendera cedo a profissão com seu pai, o velho carpinteiro Genésio Ferreira. E
cedo começara a trabalhar serrando e cortando a madeira com o pai ao lado
ensinando. Aos dezoito anos já era considerado um mestre, mas o quartel
interrompeu-lhe a faina. Ele então foi ao serviço militar obrigatório, do qual
não se livrou. Enfrentou com galhardia um ano de dureza no Terceiro Regimento
de Infantaria (3º RI), que hoje é o Terceiro Batalhão de Infantaria (3º BI),
situado no bairro da Venda da Cruz, no limite entre os Municípios de Niterói e
São Gonçalo. Sim, hoje é batalhão, mas continua lá, no mesmo lugar, e na mesma
rotina de receber e treinar recrutas todos os anos.
Ao dar baixa do Exército, o mestre de
carpinteiro tornou logo ao trabalho na Ponte Rio-Niterói. Era início de 1970
quando Carlão, assim chamado por todos os amigos e familiares, na verdade
Carlos Ferreira, começou a juntar bom dinheiro. Trabalhava bastante na hora
normal e virava na hora extra, mãos coladas à serra circular, ao serrote e ao
martelo, a ajudar o pai a encaixotar vigas e colunas. E foi quando também
conheceu Tiana, numa festa em casa dela. Tiana tinha 18 anos quando Carlão foi
comemorar o aniversário do amigo Paulo Policarpo, irmão dela, que fazia 20
anos, mesma idade de Carlão. Paulo Policarpo, mais conhecido por Policarpo, era
hábil também na arte da madeira.
Carlão e Policarpo forjaram uma sincera
amizade e saíam juntos às festas em geral. Iam muito aos ensaios da Escola de
Samba Onze Unidos, cuja quadra ainda fica no Largo de São Jorge, na Engenhoca,
bairro onde Carlão morava, ao pé de outro morro, numa travessa chamada de Sete.
Mas depois que conheceu Tiana, Carlão não mais saía do Morro dos Marítimos.
Qualquer motivo era bom para ver Tiana e cortejá-la. Carlão se apaixonara e se
sentia correspondido. Não demorou muito e a paixão explodiu: Carlão e Tiana se
casaram.
No final de 1970 houve o emocionante
conúbio na igreja católica da Engenhoca, na Rua Dona Inês, a mesma da quadra da
Escola de Samba, tudo perto do Largo de São Jorge. Na verdade, era tudo perto
de tudo, como ainda se pode ver hoje. Foi uma bela festa, a noiva de branco,
casamento de véu e grinalda, e muitos convidados do bairro e da Ponte
Rio-Niterói, todos engrossando as fileiras da parentela do casal. Tiana,
católica fervorosa, não cabia em si de felicidade ao entrar na igreja. E lá
estavam os pais dela e os de Carlão (o velho Genésio Ferreira e a mulher
Domiciana Santos Ferreira), todos vestidos em estilo. O pai de Tiana era
funcionário da Prefeitura de Niterói, já aposentado. Não ganhava muito, mas pôde
sustentar o casal de filhos – Paulo da Silva Policarpo e Sebastiana da Silva Policarpo
– com certo conforto.
A casa da família era bem cuidada, em
alvenaria, três quartos, tudo feito na base de muito esforço de João Policarpo
e Maria Conceição da Silva Policarpo, pai e mãe de Tiana e Paulo. Dona
Conceição, como era chamada, tinha fama de boa lavadeira. Também lavava roupa
na bica d’água do Largo do Bonfim, em grande bacia de alumínio, com a qual
levava na cabeça a trouxa do dia. Depois voltava com a roupa lavada e a
dependurava no seu pequeno quintal a pegar vento e sol. Vento e sol não
faltavam: eram de graça lá no Morro dos Marítimos.
Foi assim, no vaivém da bica ao morro e do
morro à bica, lavando e passando roupa pra fora, que Dona Conceição ajudou o marido
a construir a casa e deu conforto aos filhos Paulo e Tiana. Vida feliz, eles
tinham, com certeza tinham, o casal de filhos crescendo, com Tiana aprendendo
com a mãe a lavar com precisão as peças finas de famílias da Zona Sul da
cidade. Já o jovem Policarpo partiu para a escola técnica Henrique Laje a
aprender carpintaria. A escola ficava do lado do Barreto, o Morro dos Marítimos
dividindo os bairros do Barreto e da Engenhoca, ambos situados na Zona Norte de
Niterói. Assim viveram, assim cresceram, até chegar o grande dia de Tiana, o
casamento com Carlão, seu grande amor, primeiro e único.
Os anos seguintes foram de completa
felicidade, nascendo Carlinhos ao cabo de um ano do casamento, e Marcinho, no
ano seguinte. E a amizade de Carlão e Paulo Policarpo solidificava-se cada vez
mais, exceto na hora do futebol. Era programa certo aos domingos a disputa
entre o Flamenguinho Futebol Clube e o Cadete Futebol Clube no campo de futebol
deste último, situado na Legião Brasileira de Assistência (LBA), um pedaço do
bairro da Engenhoca assim chamado em razão das casas construídas pela LBA para
o povo carente. E eram dois times de fama, o Flamenguinho Futebol Clube copiava
o uniforme do mais querido do Brasil, e o Cadete Futebol Clube envergava as cores
do Palmeiras Atlético Clube.
Tanto Carlão como Policarpo eram
centroavantes, ambos craques e principais jogadores dos times contrários. De
quando em quando cruzavam-se as duas agremiações, com as bordas do campo
lotadas de gente, em ambiente de festa e sem brigas. Era um tempo ainda bom
naquele bairro da Engenhoca, o povo rarefeito e ocupando dignas moradias nos
morros ainda arborizados. Sim, naqueles anos de 1972 e seguintes ainda se viam
as árvores frondosas e os descampados verdejantes, as crianças brincando na tosa
das pipas, de morro a morro, as pipas ocupando os céus em belos coloridos. Sim,
sim, era tudo muito bonito e festivo, principalmente aos domingos, que sempre
se iniciavam ao badalar do sino da igreja conclamando o povo para a missa da
manhã, a que Tiana e Carlão nunca faltavam.
Os anos assim transcorreram, as crianças
crescendo em harmonia, Carlinhos com dois anos, – e ensaiando as primeiras
palavras, – e Marcinho ainda no colo da mãe Tiana, a família começando o
domingo na missa. Carlão comprara uma pequena casa no morro e fizera a primeira
reforma. A casa era simples, mas cuidada com muito gosto. Pecava por falta da
água potável, que ainda chegava ao alto do morro na cabeça das mulheres e dos
homens em romarias diárias à bica d’água do Largo do Bonfim. Alguns do morro
tiveram a sorte de furar poço com água brotando, mas nem todos logravam igual
êxito. Então, o que realmente salvava era a milagrosa bica d’água do chafariz.
Ali, a água não faltava. Nem a comida faltava, porque Carlão tinha bom crédito no
Armazém Sardinha, um empório à moda antiga, que ainda resiste ao tempo, situado
no que restou do Largo do Bonfim.
O velho Francisco Sardinha, dono daquele
empório, confiava nas pessoas e nunca se arrependera disso. Está lá, até hoje,
hoje tocado pelos filhos do finado Francisco, o Armazém Sardinha, que vence os
tempos confiando em novas gerações de fiados que nunca deixam de pagar as
contas. Mas o chafariz e a providencial bica d’água sumiram, cobertos pelo
asfalto do inevitável progresso, ficando no passado o romantismo dos encontros
das pessoas simples a recolher a água e a lavar a roupa naquele lugar. Também
sumiu o Largo do Bonfim, hoje reduzido a cruzamento de tráfego intenso, ficando
dele, porém, as mais saudáveis lembranças dos antigos moradores da Engenhoca,
singelas lembranças do chafariz e da sua bica d’água, ambos sepultados debaixo
do piche, e os carros, indiferentes, passando por cima desta linda história
comunitária da Engenhoca.
Era início 1974. Carlão, como sempre, saiu
a trabalhar na Ponte Rio-Niterói, já em retoques finais, quase inaugurando. E
houve o triste acidente, Carlão despencou lá do alto quando retirava alguns
caixotes de madeira que ele mesmo montara, em consertos finais, por baixo da
estrutura. Não cuidara de si com a indispensável cautela, diante do perigoso
mister que se instara a executar. E lhe veio a tragédia, o seu corpo caído do
alto e sumido na água do mar, em dia chuvoso. Foi Policarpo, em prantos, quem
levou a notícia à irmã Tiana, enquanto o velho Genésio Ferreira fazia o mesmo
com a mulher Domiciana, a mãe de Carlão.
A tristeza ocupou em cheio o lugar da
alegria que até então vinha reinando serena na vida de todos. Dois dias...
foram dois dias com o Corpo de Bombeiros perscrutando o mar em busca do corpo.
No terceiro, o mar devolveu Carlão à praia do Barreto, um lugar em que ele
costumava levar os filhos ao divertimento sadio em águas limpas de uma praia
tranquila, mas que hoje é apenas mais um triste cenário duma baía
criminosamente poluída. Acabou-se a praia do Barreto junto com Carlão; ambos
desapareceram, respectivamente, vítimas da poluição e do insano progresso.
Triste, muito triste mesmo foi o enterro de
Carlão no Maruí, o cemitério situado no Barreto. Amigos e parentes chorando
muito, o caixão coberto com a bandeira do Flamenguinho Futebol Clube, lado a
lado com a do Cadete Futebol Clube, que também fizera questão de homenagear o
belo centroavante. E a desesperada Tiana no canto, as crianças no colo, todos
diante de um incerto futuro. Agarrada aos meninos, Tiana rezava sem parar e
chorava. E, ainda incrédula, recebia os lamentos em filas de pessoas amigas que
amavam Carlão. Dali para frente ficaria dele apenas a lembrança de sua
jovialidade, do seu sorriso de felicidade, dos abraços e dos golaços que fazia
aos domingos. Ficaria o amor e a saudade.
O padre encomendava Carlão em missa de
corpo presente, igualmente emocionado em perder um servo de Deus e frequentador
assíduo da missa aos domingos. Foi triste, muito triste, quando o caixão baixou
à sepultura, era o fim da presença física de Carlão na vida terrena. E lá foi
ele, antes do tempo, deixando no mundo Tiana e dois filhos, coisas da vida,
vontade de Deus, que ninguém compreendeu, especialmente Tiana, – a amada esposa
de Carlão, – e seus pequeninos e atônitos rebentos. E foram todos levados para
casa no carro do amigo Manoel da padaria. A casa que agora estava vazia de
Carlão e cheia de tristeza profunda. Era uma quarta-feira da última semana de
Carlão na Terra.
– Mãe, o pai tá no céu? – indagou
Carlinhos, ao chegar.
– Está, meu filho! Pode ter a certeza de
que está, de lá, olhando por nós.
– Mãe, quando eu crescer, quero trabalhar
como ele. Quero ajudar a senhora.
– Oh, meu filho! Meu querido! – exclamou
Tiana em desalento, sem conseguir completar o triste diálogo, vencido por
incontrolável pranto.
Marcinho nada falava. Estava com os
olhinhos arregalados em estupor. A cena do pai morto era-lhe inexplicável. Os
pais de Tiana e seu irmão Paulo consolavam-na, mas Paulo também não se continha
pela perda do cunhado e melhor amigo. Tanta coisa fizeram juntos, – o trabalho,
o futebol, as cervejas, as farras de solteiro, os abraços de compadres quando
batizara Carlinhos, – tanta coisa fizeram juntos que o seu coração partira-se
ao meio, igual ao da querida irmã Tiana. A saudade de Carlão ficaria para
sempre.
As asas do tempo voavam indiferentes ao
drama de Tiana e a rotina dela mudara radicalmente. A alegria não mais lhe
viera aos olhos, pois o seu coração ficara irremediavelmente partido. O tempo
livre de antes dera lugar ao trabalho pesado de lavagem da roupa na bica d’água
do Largo do Bonfim. Igual à mãe, – e junto com ela, – Tiana vencia as
dificuldades esfregando entre as mãos peças e mais peças das trouxas que pegava
na Zona Sul. Antes, porém, levava os filhos ao Colégio Salgado Filho, indo a
pé, com ambos seguros no aperto das mãos calejadas do ferro ainda a carvão, de
tanto com ele passar montões e montões de roupas finas, lençóis e toalhas de
banho, de rosto e de mesa. Trabalho duro, que começava cedo e parava na hora de
buscar os filhos no colégio. E estes, logo que chegavam, disparavam morro acima
ou morro abaixo, em brincadeiras, até que da mãe ouviam o familiar chamado:
– Carlinhos, meu filho! Marcinho, meu
filho! É hora da janta! Pra casa, já, já!...
Assim os anos se foram passando, as
crianças crescendo e ouvindo a voz de Tiana em apelos constantes. Carlinhos
ajudava a mãe no vaivém da bica ao morro, do morro à bica, ou nas idas e vindas
às casas de São Francisco, onde havia muitos clientes de sua desalentada mãe.
Marcinho também ajudava, mas sempre com menor vontade. Só saía do morro ao
colégio, o morro era o seu lugar. O choque levado na morte do pai deixara-o
estranho em seu comportamento. Na escola, atrasava-se ano a ano, com notas
insuficientes. O contrário era Carlinhos, que se destacava nos estudos e já
ingressara no segundo grau. Estava completando 15 anos e começando a namorar.
Tiana gostava daquilo, Carlinhos era cópia fiel de Carlão, também craque de
bola e estreando, adolescente, no Flamenguinho Futebol Clube. Tal pai, tal
filho.
Marcinho, em vez de descer o morro, subia-o
a soltar papagaios, cada irmão buscando o prazer adolescente a desabrochar na
vida difícil. Mas os novos tempos foram tornando o morro diferente, os pontos
de venda de drogas surgindo no domínio de traficantes. À igreja, Marcinho não
mais acompanhava a mãe e o irmão Carlinhos. Preferia o isolamento, um perigoso
isolamento, que Tiana e seu tio não podiam mais evitar. Paulo Policarpo
casara-se e mudara-se para São Gonçalo. Só vinha aos domingos, e conversava com
o sobrinho Marcinho sobre os perigos das más companhias:
– Marcinho, você está entristecendo a sua
mãe! Fala aqui para o tio Paulo o que está havendo com você. Sou seu amigo e
lhe quero ajudar...
– Tem nada, não, tio! A mãe quer que eu
seja igual a Carlinhos, mas não sou, não. Quero outras coisas da vida. Não vê o
pai? Trabalhou feito um condenado e morreu antes da hora – retrucava Marcinho,
com a arrogância de quem achava que tudo sabia.
Mas Tiana se preocupava cada vez mais,
enquanto o tempo corria. Às vezes se sobressaltava com os tiros que surgiam no
morro, e Marcinho do lado de fora. A polícia volta e meia subia o morro, pondo
a correr os traficantes. Também já havia as disputas entre os morros. Na Legião
Brasileira de Assistência a comunidade cresceu desordenada, virando favela,
hoje chamada de favela da Brasília. O campo do Cadete Futebol Clube, antes em
tamanho oficial, mirrara-se entre novas construções que emergiam céleres na
disputa dos novos favelados por um pedaço de chão. E também se sucumbiu a
comunidade ao domínio de traficantes, rivais aos do Morro dos Marítimos. A
tranquilidade de antes tornara-se um constante e premente perigo, com os
moradores acuados por tiroteios entre os bandos inimigos, com a polícia
enfrentando-os de espaço em espaço. O que era antes um lugar calmo, virou
inferno.
Tiana não mais aguentava as malcriações de
Marcinho, agora já com 18 anos. Enquanto Carlinhos seguia o exemplo do pai,
inclusive se incorporando como recruta no 3º BI, Marcinho continuava a subir o
morro e a andar com os marginais, todos ali mesmo com ele criados. Tiana
tornou-se uma mulher com o coração dividido entre um filho exemplar, – como o
falecido Carlão, que tanto amara, – e o outro, – que descambava ao descontrole
familiar. Mas, por mais incrível que possa parecer, não se diminuía o amor de
Marcinho ao irmão Carlinhos, que, por sua vez, também dele muito gostava.
Carlinhos, entretanto, já desistira de aconselhar Marcinho a se afastar das más
companhias; ou melhor, continuava a fazê-lo, contudo sabendo ser inútil a sua
interferência para mudar a vida do único irmão.
– Mano, estou com uns ingressos para o
pagode do Clube Mauá. Quer ir comigo? – Carlinhos sugeria.
– Pô, mano! Legal! Mas
tenho um programa melhor. Tô ficando com a Marina hoje. É uma gatinha de
responsa! – retorquia Marcinho, fugindo ao convite.
Estava claro a Carlinhos que Marcinho
queria se manter arredio da família. Não estava metido em boa coisa, porém nada
falava. Desse modo, o tempo passou, até que Carlinhos, ao terminar o seu
compromisso com o Exército, resolveu seguir os conselhos de um sargento que
ficara seu amigo e que lhe sugerira ingressar na Polícia Militar. Fez a prova
de concurso, para experimentar, e passou em primeiro lugar. Explodiu em
contentamento, e, nessa alegria incontida, levou à mãe a notícia. E o problema
que isso lhe causaria na vida dali em diante...
– Mãe, passei na PM, em primeiro lugar. Vou
ganhar um salário que vai dar pra ajudar a senhora. Não aguento ver nem mais um
dia esse seu sacrifício de lavadeira. Pelo menos, vai dar para diminuir a sua
luta.
– Oh, meu filho! Eu acho ótimo, e estou
muito contente por você. Mas aqui você não pode ficar, sendo um PM, e você sabe
disso – preocupou-se Tiana.
– Sei, mãe. Mas já pensei nisso, e tenho um
amigo que disse que eu posso ficar na casa dele, lá em São Gonçalo, até poder
arrumar um canto. E também já sei como é o quartel. Sei que posso ficar lá no
Centro de Formação de Recrutas enquanto estiver cursando. Lá é muito bonito e
organizado, mãe.
– Então vá, meu filho. O seu destino manda
assim, é vontade de Deus, então vá. Mas, não volte aqui como um PM. É melhor
você deixar tudo pronto antes de entrar na PM – atalhou Tiana, pensando no
perigo.
Assim os irmão se separaram, Tiana nervosa
com os comentários de Marcinho:
– Pô, meu mano um samango! Essa não, mãe!
– Que isso, meu filho! Você sabe que seu
mano adora você!
– Sei disso, mãe! Eu também adoro ele, mas
não quero mais ver ele, não. E aqui no morro ele num pode vir, senão acaba
dançando. O pessoal do movimento diz que PM tem mais é que pular a vala. A mãe
sabe o que é isso?
– Sei não, filho!
– É morrer! É dançar na rajada de tiro,
mãe! – atalhou, nervoso, Marcinho. – Num
deixa ele aparecer aqui não, mãe! Num deixa ele voltar não, mãe! — acrescentou.
Carlinhos ficou instalado lá no Centro de
Formação de Recrutas. E se destacava a cada dia nos treinamentos, demonstrando
ter nascido para a carreira que abraçara. No estande de tiro impressionava a
todos com sua pontaria certeira. Nas demais provas práticas, Carlinhos também
se destacava com louvor, assim como nas provas escritas. Pintava como primeiro
colocado e angariava alto conceito. Formou-se um preparado policial-militar,
logo convidado a se integrar à mais temida força policial do Estado: o Batalhão
de Operações Especiais – o BOPE –, aceitando, orgulhoso, o convite. E para lá
se foi, iniciando uma outra fase de treinamento ainda mais extenuante do que
aquele que concluíra em primeiro lugar no Centro de Formação de Recrutas. E
Carlinhos, – batizado com o nome de guerra Ferreira, – no treinamento de tiro
do BOPE espantou os instrutores com a sua pontaria infalível. Tanto fazia o
tipo de arma, Carlinhos era preciso em todas, e parecia talhado ao acerto
preciso do tiro de carabina. Foi o bastante para receber como missão uma das
mais especializadas no BOPE: Atirador de Escol.
Passou o tempo, e Carlinhos somente via a
mãe na casa do tio Paulo Policarpo, em São Gonçalo. Ao irmão, não mais o
avistou pessoalmente, eis que Marcinho nunca ia à casa do tio, nem mesmo
atendendo aos reiterados apelos do irmão Carlinhos. E Tiana contava a Carlinhos
sobre as peripécias de Marcinho, que as sabia perigosas.
– Meu filho, a felicidade nunca é completa.
Você indo tão bem e seu irmão desgarrado. Ele continua carinhoso comigo, um
filho maravilhoso. Mas não fala pra mim nada do que faz. E pior, meu filho, ele
agora anda armado com pistola, revólver, e até uma arma grande, que ele diz que
comprou do exterior. Já tentou me dar dinheiro, mas não aceitei e não aceito. Ele
anda com muito dinheiro, cheio de joias e não tem namorada certa. Não sei mais
que fazer. Ele já está um homem, já fez 24 anos. Não posso mais com ele; só
rezo por ele todo dia. E também por você, meu filho, porque sua profissão é
perigosa também.
Carlinhos ouvia a mãe desabafar sem nada
falar. Com sua experiência na profissão, tinha certeza de que Marcinho já
estava envolvido no crime pesado. E nada mais podia fazer pelo irmão, que nunca
atendia aos seus chamados. Sua tristeza era sincera. Lembrava-se dos tempos de
brincadeiras com Marcinho e do ótimo relacionamento entre ambos, sempre muito
unidos na infância. Marcinho piorou depois da morte do pai, mesmo assim os
irmãos se entendiam às mil maravilhas. Amavam-se, enfim.
Era uma segunda-feira de manhã. Carlinhos,
o PM Ferreira, como era chamado, estava escalado de serviço, mais um dia de
perigo no BOPE, sempre saindo a atender situações especiais e de alto risco. Os
serviços, – que colocavam sempre o BOPE na dianteira, – eram os assaltos a
instituições financeiras, ou as operações de grande envergadura em favelas e os
assaltos a residências, entre outras missões complicadas. A tropa cumpria o
café da manhã quando veio a corneta chamando os valentes milicianos à
formatura, ainda com o toque da estrídula sirene indicando-lhes emergência. Era
dia de combate, porém ninguém sabia onde estaria havendo a ocorrência. Em
forma, os soldados, o tenente falou:
– Atenção pessoal! Temos uma situação
dramática em Niterói, um assalto a residência em São Francisco. Quem conhece
aquela região?
– Eu conheço, tenente! – apresentou-se
Carlinhos.
– Ótimo Ferreira. Assim, vamos ganhar
tempo. É uma casa na Rua Tamoios, uma casa de dois andares. A família está
manietada por quatro assaltantes no andar de cima. Há um homem, a mulher dele e
as duas filhas. Um dos assaltantes mantém uma das meninas sob a mira da pistola
e presa a ele numa gravata. Os outros estão fora das vistas da polícia. Vai ser
uma operação simultânea de invasão, após neutralizar o assaltante que está
vindo negociar, mas ameaçando a menina com a arma na cabeça dela. A situação é
dramática, muito séria mesmo!
– Tenente, qual é o número da casa? –
indagou Carlinhos.
– É o número 2.551.
– Meu Deus! Eu conheço a família. Minha mãe
é a lavadeira deles, e eu já peguei e levei muita roupa lá. Conheço as meninas!
Meu Deus! – exasperou-se Carlinhos, mas logo reassumindo a sua frieza
profissional.
– Tudo bem, Ferreira! Com isso, nós vamos
chegar mais rápido. Você vai comigo, indicando-me o itinerário. E acho que você
será a peça chave, porque para invadir a casa precisamos antes neutralizar o
assaltante que manieta a menina. Vá pensando num bom lugar para você se
posicionar com vistas ao tiro de precisão. A área está toda cercada e isolada.
Vamos nesta!
E partiram, pegando o Viaduto do Santo
Cristo, o Cais do Porto e a Ponte Rio-Niterói. Na ponte, Carlinhos não deixou
de pensar em Carlão, o seu inesquecível pai que ali se acidentara fatalmente.
Naquela hora, suplicou por sua ajuda espiritual. Era a primeira ocorrência na
sua cidade natal. E chegaram rápido a São Francisco, queimando pneus no asfalto
e sirenes pestanejando no ar. Era o BOPE que vinha, abrindo caminho na raça,
como sempre na raça de homens forjados na têmpera do aço. O BOPE é o BOPE! Nada
é igual ao BOPE na hora do perigo mortal. E lá estava o PM Ferreira, o nosso
Carlinhos, com a carabina especial dotada de luneta, o Atirador de Escol da
equipe que avançava.
– Tenente, sei de um lugar, um prédio
distante uns cinquenta metros da casa, mas que tem comandamento total sobre a
parte da frente. De lá, se o senhor me conseguir colocar no terraço, acerto um
mosquito no voo.
– Pode contar com isso, Ferreira. Você sabe
o nome do prédio?
– Não precisa, tenente! Só tem ele, de três
andares.
– Ótimo! Vou solicitar ao major que comanda
o cerco para liberar o local. Em chegando, você vai direto e aguardará minha
ordem. Vou deixar junto com você o PM Castro e um rádio. Você só vai atirar
depois de avaliar a precisão do disparo em cem por cento e receber ordem para
tal, entendido?
– Positivo, tenente.
Era uma situação muito dramática. Os
bandidos, escudados nos corpos das vítimas, atiravam nos policiais. Depois
vinha um deles, com a garota agarrada e a arma na cabeça dela, ameaçando
matá-la. Assim estava a situação quando o BOPE chegou. O prédio já liberado,
Carlinhos e Castro subiram ao último andar e adentraram o terraço. Enquanto
isso acontecia... lá na Engenhoca uma voz ecoava na porta da casa de Tiana.
– Tiana! Tiana! olha a televisão! é o
Marcinho! é o Marcinho! – gritava a vizinha.
– Que houve, meu Deus? que houve? – gritava
Tiana, correndo apressada a ligar a televisão.
E se deparou com a cena, a terrível cena, o
seu filho Marcinho agarrado à menina que ela vira nascer, e com a ameaçadora
arma na cabeça dela.
– Meu Deus! valei-me Nossa Senhora! valei-me!
E nada mais falou. Do jeito que estava,
partiu morro abaixo, gritando por socorro e pedindo um carro. Ao pé do morro
estava um comerciante com o carro na porta. Era o Manoel, o dono da padaria, e
Tiana gritou para ele:
– Seu Manel! seu Manel! me leva no seu
carro a São Francisco! é meu filho Marcinho! é a menina da Dona Rosália! me
leva! por favor, me leva!...
Manoel estava a assistir a tevê e já vira
tudo. Conhecia Marcinho desde que nascera. E veio correndo, já com a chave na
mão.
– Dona Tiana, eu vi o Marcinho. E a menina?
A senhora a conhece, mesmo? – perguntou, enquanto entrava no carro. – Entra aí,
entra aí! – ordenou.
– Sim, seu Manel! É a menina da Dona
Rosália! Eu sou a lavadeira dela há anos. O Marcinho não sabe. Meu Deus!
Preciso chegar rápido, antes que ele faça uma loucura.
O carro saiu em disparada. Em quinze
minutos já chegava ao local, e Tiana correu ao PM, na corda de isolamento, e
falou:
– Filho, por favor! Sou a mãe daquele
garoto que está ameaçando a moça. Sou a lavadeira da casa, e tenho que evitar
uma tragédia. Preciso falar com o meu filho. Por favor, sou mãe de PM também.
Me leve ao oficial! – desesperou-se Tiana, em gritos que se ouviam de longe.
Veio o Major e ouviu Tiana. E concordou
logo com a ideia de ela interceder junto ao filho bandido para evitar uma
tragédia. Afinal, era o filho dela quem oferecia maior perigo à família. Mas,
enquanto isso, o capitão e o tenente do BOPE, sem saber de nada, concluíam pela
decisão de que teriam de eliminar o perigoso assaltante que manietava a menina.
E este, o nervoso marginal, estava a deixar a cabeça em condições de ser
acertada. Era o que os oficiais esperavam, que o retorno dele à varanda
permitisse o ataque, a invasão da casa. E seria logo após a eliminação do
assaltante pelo Atirador de Escol... por Carlinhos, que até então apenas
enquadrava sua mira telescópica na varanda vazia, regulando a visão para o tiro
mortal que daria...
O tenente já lhe determinara liberdade de
ação para executar o tiro. E chegara o momento, o mesmo dramático momento em
que Tiana corria em direção à casa, e Marcinho surgia na varanda, e era
enquadrado na mira o seu rosto pelo irmão. E foi pela mira da luneta que
Carlinhos avistou o rosto do irmão, do assaltante que ameaçava a menina. O dedo
petrificou-se no gatilho, Carlinhos não o apertou. O tenente, pelo rádio,
vociferava: “Atire! atire! atire!”, enquanto Tiana chegava e gritava: “Não
atire, meu filho! não atire, meu filho!”, a voz dela sendo ouvida
simultaneamente por Marcinho e por Carlinhos, uma voz que ambos conheceriam em
meio a milhões de outras. E Carlinhos, do alto, abaixou sua carabina e fez seu
corpo surgir do esconderijo em que se encontrava. E Marcinho viu a mãe, e viu
Carlinhos também. E a desesperada mãe, entre ambos, olhava para a varanda e olhava
para o alto do prédio. Foram segundos, apenas segundos, com ela olhando os dois
filhos amados, e depois caiu no meio da rua...
Carlinhos largou no chão a carabina, e, de
onde estava, disparou correndo para baixo, em direção à mãe, e gritando: “Mãe!
mãe! mãe!”, enquanto Marcinho largava a menina, e a pistola, e também disparava
correndo para fora, e gritando: “Mãe! mãe! mãe!” E o Major bradou ainda mais
alto, no comando de todos os policiais-militares presentes: “Ninguém atira!
ninguém atira!”
Os dois filhos chegaram quase que juntos
até a mãe, ela no chão, caída, sem vida. E ambos os filhos se ajoelharam e se
fitaram nos olhos da dor profunda, diante da mãe que jazia morta. O PM do BOPE
e o bandido, apenas irmãos unidos em inesperada dor. Diante deles, o coração de
Tiana partiu-se para sempre em dois pedaços, em cada pedaço um dos filhos
queridos. Tivera um infarto fulminante na extrema emoção.
Os três outros bandidos saíram, sem armas,
com as mãos para cima. E houve o silêncio, um pesado silêncio naquele momento
de espanto. E veio Rosália, com o marido e as filhas, e se acercaram todos em
volta do corpo de Tiana. Ali estava Sebastiana Policarpo Ferreira, mãe de PM,
mãe de bandido, os dois abraçados e chorando, com Marcinho prometendo à mãe
morta nunca mais transgredir a lei, e pedindo perdão ao irmão, ao seu irmão PM,
que não teve coragem de matá-lo.
E ficou o silêncio, um profundo silêncio,
em respeito àquela mulher que viveu na dignidade e na fé. Deus decidiu e
levou-a para si e para Carlão, salvando antes o seu filho arrependido e as
vítimas do sequestro, a família amiga. Tiana não morrera em vão. E deve ter
chegado ao céu muito feliz...