terça-feira, 16 de maio de 2017

O VELHO E A BAÍA DE GUANABARA



 
Faz tempo vi um velho sentado numa pedra entre as praias de São Francisco e Charitas, olhos fixos no mar, alheio a tudo. Apenas mirava as águas, absorto em pensamentos que muitos dariam a vida para saber quais. Nos dias seguintes, de caminho pelo mesmo lugar em minha sistemática ginástica de conservação, pude rever aquele silencioso velho ali sentado, imóvel, de boné na cabeça, roupa surrada, mantendo impecável postura de estátua.
Minha curiosidade aumentava dia a dia, até que, numa oportunidade em que eu andava ao lado de um simpático senhor, talvez tão velho como o outro que me estava a intrigar com sua enigmática permanência em mirar um nada no horizonte, pude discretamente indagar se ele conhecia aquela estátua de cabeça branca. Ele me respondeu que sim, que conhecia o velho havia muitos anos.
Chamava-se Pedro, o velho da beira da baía. Tudo retrogradava a 1920, época ainda de pujança da mãe-natureza. Naqueles tempos não havia calçadão nem asfalto, muito menos a orla da baía ostentava os desorganizados prédios de hoje. Mas havia Pedro, garoto de seis anos, correndo na areia branca, mergulhando e nadando em águas tão cristalinas que os raios solares se refletiam fortemente sobre o espelho d’água e faziam doer a vista. Era, todavia, uma dor de alegria.
Pedro se acostumara a ver o outro lado da baía de Guanabara tomado do verde da mata que quase invadia as praias. Aqueles pedaços de terra, de água e de florestas, lá e cá, serviam de nicho a Pedro, que amava a natureza. Nas águas da baía ele pescava de caniço e de barco, trazendo peixes para o repasto do lar. Naquelas águas Pedro nadava, e nas areias, corria, enquanto o tempo passava e o progresso ia atropelando insensivelmente a paisagem.
Pedro via a mãe-natureza dando lugar em tristeza ao concreto. O asfalto substituía o chão e as primeiras águas escuras e fétidas invadiam a baía. Entristecia-se Pedro ao perceber que somente ele se preocupava, enquanto as gentes todas desfrutavam das águas e da areia deixando-as impraticáveis ao final de mais um dia. Era lazer para muitos e sofrimento para ele, que não mais sentia o sol bater na água e rebrilhar fulgurante em seus olhos, que agora lacrimejavam num desalento que não mais teria fim: era a dor da desesperança no futuro.
O tempo a mais e mais apinhou de gentes a orla da baía. A ocupação tornou-se desenfreada, ambiciosa e inconsequente. Não houve planejamento urbano nem prevenção da poluição. E o resultado se foi tornando nefasto para aquelas gentes a sujarem o lugar onde pisavam e repisavam sem pensar no futuro. Pedro viveu e chegou ao presente vendo cada momento de destruição passar ante seus olhos, incapaz de impedir que o belo de antanho se tornasse o fétido de hoje.
Quando eu passeava pelo calçadão e via o velho Pedro a olhar o mar, cumprimentava-o respeitosamente. Não sei se tinha pena dele ou de mim. Mantinha-me, porém, impassível e teimoso em minha caminhada matinal, desviando-me dos dejetos de muitos cães vadios e de outros, chiques, que circulavam em correntes douradas; e também me desvencilhava de garrafas quebradas e deixadas na calçada por algum bêbado. Fugia, sim, do lixo espalhado por todos os lados, apesar do esforço dos garis que diariamente tentavam vencer a sujeira. Parece até que havia uma disputa entre os garis que limpavam e a multidão que sujava tudo: aquela que somente vem à praia para jogar seu lixo pessoal como se gostasse de nele se chafurdar.
Mas voltemos ao nosso desalentado Pedro, que lá estava olhando um pedaço de mar sem a graça de outrora. Ele, porém, não desistia, no fim de sua vida, de olhar a sua baía. Insistia em vê-la morrer ante seus olhos tristes que morriam com ela. Olhava-a, sim, e sentia vontade de conversar com ela; mas não via como ultrapassar o limite do envergonhado cumprimento que lhe dirigia no silêncio de si mesmo. Também, nada havia a falar! Bastava-lhe mirar em torno para perceber que a mãe-natureza perdera a batalha para o “homem civilizado”.
Não existem mais como antes as praias de Icaraí, São Francisco, Charitas e Jurujuba. Existem, sim, a poluição, as línguas fétidas do esgoto in natura, o lixo, o miasma e os urubus. E existem a gentem teimosam que caminham no calçadão prendendo a respiração em pontos tão fedidos como insuportáveis, mas se deliciando, às vezes, com a aparição de alguma garça ou gaivota perdida no tempo, mas que logo são espantadas pelos milhares de urubus.
Coitado do velho Pedro! Apostara na felicidade de ver a paisagem se eternizar e perdera a aposta. Chegara ao crepúsculo da vida junto com o ocaso da baía. Não somente ele perdera a batalha, mas aquelas gentes todas, que, em vez de tentarem recuperar a natureza, continuavam a impertinentemente danificá-la como sua inimiga mortal, deixando para as gerações futuras a infelicidade. Pois, sem uma mãe-natureza feliz, não haverá a felicidade do ser humano, especialmente a das crianças que não mais podem desfrutar da baía de Guanabara como Pedro o fizera na infância e na juventude. Assim pensando, e numa única vez, tomei coragem e me dirigi ao velho Pedro: “Diga-me, velho Pedro, como será o fim disso tudo?” Ele me fitou... Nada falou. E volveu o seu olhar para as águas sujas da baía de Guanabara...

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