Faz tempo vi um velho sentado numa pedra entre as
praias de São Francisco e Charitas, olhos fixos no mar, alheio a tudo. Apenas
mirava as águas, absorto em pensamentos que muitos dariam a vida para saber
quais. Nos dias seguintes, de caminho pelo mesmo lugar em minha sistemática
ginástica de conservação, pude rever aquele silencioso velho ali sentado,
imóvel, de boné na cabeça, roupa surrada, mantendo impecável postura de estátua.
Minha curiosidade aumentava dia a dia, até que, numa
oportunidade em que eu andava ao lado de um simpático senhor, talvez tão velho como
o outro que me estava a intrigar com sua enigmática permanência em mirar um
nada no horizonte, pude discretamente indagar se ele conhecia aquela estátua de
cabeça branca. Ele me respondeu que sim, que conhecia o velho havia muitos
anos.
Chamava-se Pedro, o velho da beira da baía. Tudo
retrogradava a 1920, época ainda de pujança da mãe-natureza. Naqueles tempos não
havia calçadão nem asfalto, muito menos a orla da baía ostentava os desorganizados
prédios de hoje. Mas havia Pedro, garoto de seis anos, correndo na areia
branca, mergulhando e nadando em águas tão cristalinas que os raios solares se refletiam
fortemente sobre o espelho d’água e faziam doer a vista. Era, todavia, uma dor
de alegria.
Pedro se acostumara a ver o outro lado da baía de
Guanabara tomado do verde da mata que quase invadia as praias. Aqueles pedaços
de terra, de água e de florestas, lá e cá, serviam de nicho a Pedro, que amava
a natureza. Nas águas da baía ele pescava de caniço e de barco, trazendo peixes
para o repasto do lar. Naquelas águas Pedro nadava, e nas areias, corria,
enquanto o tempo passava e o progresso ia atropelando insensivelmente a
paisagem.
Pedro via a mãe-natureza dando lugar em tristeza ao
concreto. O asfalto substituía o chão e as primeiras águas escuras e fétidas
invadiam a baía. Entristecia-se Pedro ao perceber que somente ele se
preocupava, enquanto as gentes todas desfrutavam das águas e da areia
deixando-as impraticáveis ao final de mais um dia. Era lazer para muitos e
sofrimento para ele, que não mais sentia o sol bater na água e rebrilhar
fulgurante em seus olhos, que agora lacrimejavam num desalento que não mais
teria fim: era a dor da desesperança no futuro.
O tempo a mais e mais apinhou de gentes a orla da baía.
A ocupação tornou-se desenfreada, ambiciosa e inconsequente. Não houve
planejamento urbano nem prevenção da poluição. E o resultado se foi tornando
nefasto para aquelas gentes a sujarem o lugar onde pisavam e repisavam sem
pensar no futuro. Pedro viveu e chegou ao presente vendo cada momento de
destruição passar ante seus olhos, incapaz de impedir que o belo de antanho se
tornasse o fétido de hoje.
Quando eu passeava pelo calçadão e via o velho Pedro a
olhar o mar, cumprimentava-o respeitosamente. Não sei se tinha pena dele ou de
mim. Mantinha-me, porém, impassível e teimoso em minha caminhada matinal,
desviando-me dos dejetos de muitos cães vadios e de outros, chiques, que
circulavam em correntes douradas; e também me desvencilhava de garrafas
quebradas e deixadas na calçada por algum bêbado. Fugia, sim, do lixo espalhado
por todos os lados, apesar do esforço dos garis que diariamente tentavam vencer
a sujeira. Parece até que havia uma disputa entre os garis que limpavam e a
multidão que sujava tudo: aquela que somente vem à praia para jogar seu lixo
pessoal como se gostasse de nele se chafurdar.
Mas voltemos ao nosso desalentado Pedro, que lá estava
olhando um pedaço de mar sem a graça de outrora. Ele, porém, não desistia, no
fim de sua vida, de olhar a sua baía. Insistia em vê-la morrer ante seus olhos
tristes que morriam com ela. Olhava-a, sim, e sentia vontade de conversar com
ela; mas não via como ultrapassar o limite do envergonhado cumprimento que lhe
dirigia no silêncio de si mesmo. Também, nada havia a falar! Bastava-lhe mirar
em torno para perceber que a mãe-natureza perdera a batalha para o “homem
civilizado”.
Não existem mais como antes as praias de Icaraí, São
Francisco, Charitas e Jurujuba. Existem, sim, a poluição, as línguas fétidas do
esgoto in natura, o lixo, o miasma e
os urubus. E existem a gentem teimosam que caminham no calçadão prendendo a
respiração em pontos tão fedidos como insuportáveis, mas se deliciando, às
vezes, com a aparição de alguma garça ou gaivota perdida no tempo, mas que logo
são espantadas pelos milhares de urubus.
Coitado do velho Pedro! Apostara na felicidade de ver a
paisagem se eternizar e perdera a aposta. Chegara ao crepúsculo da vida junto
com o ocaso da baía. Não somente ele perdera a batalha, mas aquelas gentes todas,
que, em vez de tentarem recuperar a natureza, continuavam a impertinentemente
danificá-la como sua inimiga mortal, deixando para as gerações futuras a
infelicidade. Pois, sem uma mãe-natureza feliz, não haverá a felicidade do ser
humano, especialmente a das crianças que não mais podem desfrutar da baía de
Guanabara como Pedro o fizera na infância e na juventude. Assim pensando, e
numa única vez, tomei coragem e me dirigi ao velho Pedro: “Diga-me, velho
Pedro, como será o fim disso tudo?” Ele me fitou... Nada falou. E volveu o seu
olhar para as águas sujas da baía de Guanabara...
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