quarta-feira, 17 de maio de 2017

PORTA-BANDEIRA e MESTRE-SALA





História inspirada em Verônica e Marcílio, primeiro casal de porta-bandeira da Imperatriz Leopoldinense. (Foto de Danielle Cezar)


Esmeralda subia e descia o morro carregando em voluptuosidade o seu corpo escultural. Parecia modelo de passarela ao mostrar os contornos do seu lindo par de pernas. Sim, Esmeralda era mui bela! E reinava no cume do morro que abrigava a favela onde morava: o barraco plantado em local desvalorizado devido à altitude, mas que, por causa dela, era o mais importante. Para ela o morro não passava duma colina que desde a infância ela dominava com desenvoltura e alegria.
Como era linda a moça Esmeralda! Monumento de mulata, olhos verdes, cabelos castanhos e caídos ao longo das costas seminuas e sobre seus ombros à mostra em decote apurado. Um provocativo corte lateral da saia deixava o mundo favelado ver, ao seu caminhar, uns belíssimos pedaços de suas coxas. Enfim, não há mais necessidade de descrevê-la, nenhum adjetivo seria capaz de qualificar tanta beleza!
Sim, alta e esbelta da cabeça aos pés, lá vinha ela desfilando na precisão do salto alto e no menear das cadeiras. Sim, sim, ninguém resistia em mirá-la em olhares dissimulados! Mas Esmeralda, em contrário, distribuía abertamente sua simpatia, mas deixando evidente em sua majestade que um dia ela mesma escolheria o seu príncipe encantado. E nem por isso perdia o brilho do rosto, fazendo inveja aos raios rutilantes do sol que a bronzeavam em solene respeito.
O nome dela, Esmeralda, fora inspiração do pai. Ele vira nos olhos da menina, logo ao nascer, umas luzes que mais pareciam as da pedra resplandecendo em brilho. Eram, sim, maravilhosamente verdes e brilhantes! Daí chamá-la Esmeralda, obra-prima de Paulo e Isabel, mestre-sala e porta-bandeira da Escola de Samba mais querida da Zona da Leopoldina: a Imperatriz Leopoldinense.
Desde criança ela aflorava como substituta da mãe na condução do símbolo maior da Escola de Samba, pois o samba ocupava-lhe os poros, corria em suas veias e artérias e lhe tomava o espírito. Assim ela cresceu e se tornou destaque, enquanto treinava com a mãe, Isabel, para assumir a honraria de um dia ostentar na Avenida Marquês Sapucaí o Pavilhão da Escola de Samba do seu coração em desfile de vitória. E mais treinava, por sua conta, cada passo em graciosidade e apuro de vocação herdada da mãe. Isabel e Paulo exultavam ao ver que a filha querida um dia teria seu momento de glória na Marquês de Sapucaí.
É verdade que levou bom tempo, mas finalmente chegou o dia de Esmeralda mostrar sua graça. Na quadra da agremiação, pela primeira vez, ela treinaria com seu parceiro o papel de segunda porta-bandeira. E ele surgiu na ponta da quadra, negro como o ébano e forte como um touro, corpo de modelo e sorriso infantil. Foi um choque de muitos raios, seus corações se espetaram em flechadas de Cupido e se prenderam em amor à primeira vista. Era Carlos Augusto o nome do passista que a pegou pelas mãos em suavidade e estilo. Esmeralda estremeceu e se viu bailando com seu príncipe encantado na pista dos seus sonhos.
O samba-enredo tocou, e quem estava na quadra não cria no que via: o príncipe e a princesa evoluindo como borboletas voejando em jardins floridos. Cada passo encenado por Carlos Augusto parecia pluma solta suavemente ao vento, enquanto Esmeralda o rodeava, – tão encantadora como um beija-flor adejando em meio a flores prediletas, – desfraldando em perfeição o sagrado símbolo da Escola de Samba do seu coração. Sim ninguém mais duvidava: ali estava o casal do futuro, o mestre-sala e a porta-bandeira do ano seguinte.


Ensaios e mais ensaios, até que chegou o Carnaval. Na Marquês de Sapucaí, a princesa Esmeralda e o príncipe Carlos Augusto lá estavam como segundo casal de mestre-sala e porta-bandeira. Suas fantasias seriam capazes de enciumar príncipes e princesas de verdade e do mundo do faz-de-conta. Nos seus semblantes, a felicidade emergia em deslumbre... Porque havia algo mais: o amor que se firmara entre ambos como o sol a esparramar-se no esplendor do amanhecer: rápido e lindo! E veio a surpresa que eles silenciosamente prepararam: o conúbio em plena Passarela do Samba, antes do desfile, ante milhares de foliões e espectadores como testemunhas, tudo tão lindo como a passagem dum cometa no universo distante.
Paulo e Isabel se abraçaram ao casal em esfuziante alegria. E assim, naquele mágico momento de festa carnavalesca, os casais arrancaram da plateia os mais entusiásticos aplausos. Sim, Esmeralda e Carlos Augusto casaram na batida alternada do bumbo como se fosse o repicar de dois corações amantes. E no ritmo do samba ecoou o grito de guerra cortando o ar: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós!...”
O povo, emocionado, fez-se de pé ao ouvir a frase mágica do Hino da Proclamação da República em ritmo maravilhoso. E a escola adentrou a Avenida Marquês de Sapucaí contagiando o povo, do abre-alas até o último sambista, levando todos ao delírio. E houve a evolução divinal dos casais de porta-bandeira, com a Imperatriz Leopoldinense levando ao êxtase a multidão como jamais se vira naquela pista em que a alegria desfilava sob as bênçãos de Deus.
De repente, quem lá estava via a Marquês de Sapucaí se tornar um colar de esmeraldas tremeluzindo em fulgor divinal. Que lindo! Mas a claridade vinha da alma dos sambistas, todos sambando, cantando e festejando o conúbio de Carlos Augusto e Esmeralda. No dia seguinte, nenhuma surpresa, a Zona da Leopoldina festejava nas ruas o título de Campeã do Carnaval, enquanto Augusto e Esmeralda perpetuavam, a sós, o amor que nascera na quadra da Imperatriz Leopoldinense no ano de ouro de 1989:

Magnífica solução. Liberdade, liberdade completa. Pus-me a cantar estupidamente, batendo os dedos na tábua da mesinha: Liberdade, liberdade/Abre as asas sobre nós...

Eis o refrão de muitas vitórias saído da pena de Graciliano Ramos! Eis o canto de liberdade nascido da inspiração de Cecília Meireles:

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é oposta à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam "Liberdade, Igualdade e Fraternidade!". Nossos avós cantaram: "Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil!"; nossos pais pediam: "Liberdade! Liberdade! – abre as asas sobre nós!", e nós recordamos todos os dias que "o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da Pátria..." – em certo instante.

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