quarta-feira, 17 de maio de 2017

JOÃO CAÇADOR DE ESTRELAS



 
 A noite estrelada era para João uma tentação irresistível. Deitado na relva do seu pequeno roçado, ele se maravilhava ao mirar as cintilantes luzes da abóbada celeste. Deveras extasiado, ficava horas e horas apreciando aquelas luzes mágicas de brilho intenso, até que sua esposa, Maria, o chamasse à realidade: “Ó, João, hora de dormir!”
João nascera na roça e lá permanecera sem conhecer cidades grandes. Pouco saía, a não ser em raras ocasiões, tendo o sol por testemunha, sol que, aliás, o aborrecia porque não o deixava ver as estrelas. Mas ele ia, sim, esporadicamente, – caminhando durante poucas horas, – ao lugarejo próximo: pequeno núcleo de comércio e serviços destinado a atender às necessidades mínimas dos roceiros que viviam naquelas cercanias apinhadas de plantios nas várzeas e poucas matas virgens nas colinas. Mas à noite, no roçado contíguo à sua palhoça, bastava um céu límpido para uma ânsia arrebatar o espírito de João: ver as estrelas cintilando como diamantes iluminados... Até que Maria o trouxesse de volta à realidade da labuta no dia seguinte: “Ó, João, hora de dormir!”
Amuado e cabisbaixo, João se recolhia à palhoça e ao catre para dormir e sonhar com seus enfeites agarrados aos céus. Havia anos que era assim... Mas o prazer dele, – deveras perturbado em virtude dos reclamos de Maria (ela ralhava com ele dizendo-o meio louco), – o prazer dele tornou-se ira contra os luzeiros celestiais. E foi assim, indignado, que ele decidiu de si para si caçar as impertinentes luzinhas até apagá-las todas. Todas?... Sim, todas, matar as estrelas tornara-se-lhe idéia fixa, ele não mais pensava em outra coisa ao mirar o céu. As luzes, porém, parecendo adivinhar seus pensamentos, cintilavam a mais e mais, perturbando-o tanto que nem a esposa o precisava chamar ao descanso, ele antes se levantava da relva e picava o passo até a palhoça sem sequer se despedir de suas ex-amigas.
Assim escorreu o tempo, vendo o amor de João se transformar em ódio, até que ele finalmente se dispôs a caçar as estrelas... Partiu ao lugarejo, comprou uma espingarda e demais aprestos necessários ao disparo: cartucho, balim, bucha, pólvora e espoleta. Agora sim, devidamente preparado, ele tornou à palhoça e entrou a preparar as cargas que dispararia contra todas as estrelas, até contra as que corriam pelo céu, como velozes pássaros, deixando-o ainda mais alucinado... Não sabia ele que aquelas fracas luzes em movimento eram os cometas...
Tornou-se João, deste modo, um lunático, logo apodado por todas as gentes simples que o conheciam como “João Caçador de Estrelas”. E tal como a vingança na qual teimava com todas as suas energias, vingou-se-lhe também o apelido. Mas, ao começar sua empreitada insana, sobreveio-lhe a frustração: seus tiros jamais alcançavam os alvos, estes que, em resposta, insistiam em tremeluzir a desafiá-lo.
Eis como a fama do inusitado caçador de estrelas espalhou-se pela região... E com a pecha de preguiçoso: ele não mais roçava, ficava a montar cartuchos e mais cartuchos e disparava seus tiros a torto e a direito, até exaurir totalmente suas parcas economias. E não houve como evitar: sem mais moedas, ele substituiu a espingarda pelo estilingue e continuou a atirar pedras contra as estrelas que brilhavam nos céus do sertão ignorando-o.

***

Certo dia, estando João em seu atordoado devaneio, sentado à beira da estradinha que cortava os roçados, viu passar um menino indo à escola. O sol brilhava num céu azul. Ele mirou o menino e dele recebeu a saudação e a indagação:
– Bom-dia, João Caçador de Estrelas! – até as crianças já assim o chamavam.
– Bom-dia, garoto!
– O senhor sabia que o sol é uma estrela? – disparou o menino a pergunta acompanhada de amistoso sorriso.
João se espantou e também indagou:
– Como? O sol é estrela?... Mas estrelas brilham à noite...
– Não, Caçador, as estrelas brilham sempre. Mas o sol, que também é estrela, e por ser a mais próxima de nós, dá-nos o seu brilho e nos garante o dia. Também sustenta a vida de tudo: das florestas, dos mares e rios, dos animais, e também a nossa vida. Sem o sol, que é nossa estrela, tudo seria escuridão, nada existiria. O sol é o lampião que Deus acendeu pra clarear a Terra.
– Hum?...
– É sim, Caçador! Todas as estrelas são como o sol, mas o brilho do sol não deixa a gente ver as demais estrelas de dia porque a Terra gira e esconde um dos seus lados desse brilho. Aí vem a noite e a gente pode ver o luzir distante de outros sóis, pois todas as estrelas são sóis distantes.
– Hum, como você, tão novinho, sabe disso?...
– Ora, Caçador, eu aprendo na escola com a professora. Outro dia ela disse que as estrelas moram muito longe. Não podemos alcançá-las a não ser com os olhos.
– Ah, então é por isso que não consegui matar nenhuma delas! Atirei, atirei, e nada. Mandei pedra nelas, e nada. Agora sei por que não acertei nenhuma estrela...
– É verdade, Caçador. A professora diz que as estrelas ficam tão longe que quando morrem a gente continua a ver o brilho delas no céu.
– Ora, garoto, como pode isso? Se ela apaga, a gente não pode ver brilho nenhum.
– Mas vê, sim, Caçador. O brilho delas é a luz que viaja até nós por muitos e muitos milhões de anos.
– Que isso, garoto? Como pode a estrela brilhar depois de apagar? Como pode ficar acesa?
– Mas fica, Caçador. A professora diz que é muito difícil a gente saber como isso acontece, a gente só vai saber quando crescer e estudar muito. Mas a professora diz que é fácil entender se a gente pensar que isso é um recado de Deus pra nós...
– Recado?
– Sim, Caçador, deixando a gente ver a luz das estrelas mortas Deus nos mostra que a morte não é o fim. A luz é a alma da estrela que viaja eternamente pelo universo infinito. A professora diz que nós também temos um brilho dentro de nós que um dia viajará até Deus. Esse brilho é a nossa alma.
– Ah, garoto, que explicação bonita! E eu aqui querendo matar as estrelas, querendo apagar o brilho das minhas amigas. Que burro!
– Não, Caçador, você não é burro! Você só não sabia. Mas agora você sabe.
– É verdade! Obrigado, meu amiguinho! Hoje eu vou deitar no campo e pedir perdão a Deus e às estrelas. Puxa vida, como fui mau!
– Não, Caçador, você não foi nem é mau! É que você não teve professora, não foi à escola. Mas agora, que você aprendeu, só precisa amar as estrelas e elas ficarão felizes...
João tornou ao deleite de mirar as estrelas, até que o sol, ao amanhecer, jorrasse seus raios sobre ele, que se levantava e parta direto ao roçado. Trabalhava como jamais antes o fizera e a terra tornou-se novamente feraz, eis vencida a ira do Caçador de Estrelas!
Deste modo feliz, o tempo foi vencendo o tempo, com João Caçador de Estrelas admirando-as todas as noites, mas apenas para agradecê-las pela vida que suas luzes representavam. E agradecia especialmente ao Astro-Rei, ao nosso Sol, que dá luz e vida à Terra. E como a morte é trapeira da vida, um dia o Caçador de Estrelas partiu aos céus que amava. Chegara a hora de sua alma conhecer o Criador e eternamente brilhar junto com suas estrelas...

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