quarta-feira, 17 de maio de 2017

BALA PERDIDA*




Honório veio ao mundo para sonhar. Seus olhos, desde a tenra infância, penetravam muito mais nas coisas que via e delas extraía muitos sonhos. Sempre lindos, os sonhos de Honório, o inverso da vida real que levava. Mas, segundo sua ótica particular infantil, o que seria real? A favela? A miséria? A fome? Os perigos comunitários, que ele nem mesmo assim entendia, mas sentia um gosto bom quando ocorriam.

Sim, nem mesmo os tiros faiscando no morro, e as gritarias do lado de fora do seu barraco, – ele às vezes deitado no chão e com os corpos da mãe e do pai sobre ele, – nem mesmo assim Honório parava de sonhar. Sentia-se o herói de uma batalha, imaginava-se um dia lutando contra o Mal, quando ele soubesse quem representava o Mal naquela guerra constante que escutava. Mas ele ainda não sabia.

Não havia em Honório qualquer noção ou senso de perigo, sua inventividade inata salvava-o de pensar no terror que muitos outros meninos externavam em comentários acelerados nas horas seguintes aos tiroteios e durante a calmaria que se antecedia à escaramuça seguinte. Honório ouvia os meninos e sorria, apenas sorria, pois nada daquilo que seus coleguinhas diziam ele sentira, não experimentara medo nenhum, para ele tudo fora apenas um sonho.

Honório nascera ali, dentro da favela, e em parto normal feito por Dona Maria da Conceição, a aparadeira de anjinhos favelados. E tão logo nascera veio-lhe este nome por ideia do pai para homenagear o patrão. E disso não passara, posto Honório nunca ter sido registrado em cartório nenhum. Enfim, existia no mundo natural mas não constava do oficial. Mas finalmente, aos quase cinco anos, foi registrado, uma exigência da escola para a primeira matrícula.

Sempre sonhando, o menino foi então matriculado. E que alegria sentiu quando se enfiou pela primeira vez naquele uniforme! E lá foi ele, seguro nas mãos da mãe, caminhando pelas vielas da favela em direção ao primeiro dia de aula, ainda o Jardim de Infância. E ia feliz, sonhando com a professora que conheceria logo, logo. Via-a como a fada da tevê que amava as criancinhas e a elas ensinava coisas bonitas.

Honório estava orgulhoso. Fitava sua mãe de lá de baixo do seu poucochinho tamanho e via-a também contente com a sua felicidade. E ele não cabia em si de alegria. E assim se olhava, de soslaio, para admirar aquele uniforme que vestia. E mirava em sua mão esquerda a primeira maçã que já vira em sua ainda precoce existência, aquela fruta bonita, vermelhinha, que logo estaria comendo. E sonhou com o Chapeuzinho Vermelho, com a Vovó e com o Lobo Mau. E viu os PMs na curva da rua atirando nos bandidos; e viu os bandidos atirando nos PMs; e nada mais viu neste mundo...

*Abertura do livro de contos Bairro de Lata




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