Honório
veio ao mundo para sonhar. Seus olhos, desde a tenra infância, penetravam muito
mais nas coisas que via e delas extraía muitos sonhos. Sempre lindos, os sonhos
de Honório, o inverso da vida real que levava. Mas, segundo sua ótica
particular infantil, o que seria real? A favela? A miséria? A fome? Os perigos
comunitários, que ele nem mesmo assim entendia, mas sentia um gosto bom quando
ocorriam.
Sim,
nem mesmo os tiros faiscando no morro, e as gritarias do lado de fora do seu
barraco, – ele às vezes deitado no chão e com os corpos da mãe e do pai sobre
ele, – nem mesmo assim Honório parava de sonhar. Sentia-se o herói de uma
batalha, imaginava-se um dia lutando contra o Mal, quando ele soubesse quem
representava o Mal naquela guerra constante que escutava. Mas ele ainda não
sabia.
Não
havia em Honório qualquer noção ou senso de perigo, sua inventividade inata
salvava-o de pensar no terror que muitos outros meninos externavam em
comentários acelerados nas horas seguintes aos tiroteios e durante a calmaria
que se antecedia à escaramuça seguinte. Honório ouvia os meninos e sorria,
apenas sorria, pois nada daquilo que seus coleguinhas diziam ele sentira, não
experimentara medo nenhum, para ele tudo fora apenas um sonho.
Honório
nascera ali, dentro da favela, e em parto normal feito por Dona Maria da
Conceição, a aparadeira de anjinhos favelados. E tão logo nascera veio-lhe este
nome por ideia do pai para homenagear o patrão. E disso não passara, posto
Honório nunca ter sido registrado em cartório nenhum. Enfim, existia no mundo
natural mas não constava do oficial. Mas finalmente, aos quase cinco anos, foi
registrado, uma exigência da escola para a primeira matrícula.
Sempre
sonhando, o menino foi então matriculado. E que alegria sentiu quando se enfiou
pela primeira vez naquele uniforme! E lá foi ele, seguro nas mãos da mãe,
caminhando pelas vielas da favela em direção ao primeiro dia de aula, ainda o
Jardim de Infância. E ia feliz, sonhando com a professora que conheceria logo,
logo. Via-a como a fada da tevê que amava as criancinhas e a elas ensinava
coisas bonitas.
Honório
estava orgulhoso. Fitava sua mãe de lá de baixo do seu poucochinho tamanho e
via-a também contente com a sua felicidade. E ele não cabia em si de alegria. E
assim se olhava, de soslaio, para admirar aquele uniforme que vestia. E mirava
em sua mão esquerda a primeira maçã que já vira em sua ainda precoce
existência, aquela fruta bonita, vermelhinha, que logo estaria comendo. E
sonhou com o Chapeuzinho Vermelho, com a Vovó e com o Lobo Mau. E viu os PMs na
curva da rua atirando nos bandidos; e viu os bandidos atirando nos PMs; e nada
mais viu neste mundo...
*Abertura do livro
de contos Bairro de Lata
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