quarta-feira, 17 de maio de 2017

MARICOTA, A GARÇA NITEROIENSE



Dezembro de 1999*



Desde que operei o coração venho caminhando no calçadão de São Francisco e Charitas, num percurso de seis quilômetros entre a cabine da Polícia Militar (início da praia de São Francisco) e o Clube Naval. Faço-o de manhã, quando no horizonte surge o sol ainda tímido e frio. Não faz muito tempo cruzei com uma linda garça. Ela pousara num tronco encravado na água suja, bem entre São Francisco e Charitas, naquele arremedo de pracinha na curva que delimita uma e outra praia.
A garça, em quietude naquele pedaço de pau fincado na água, parecia indiferente aos filetes poluídos e fétidos que impertinentemente avançam mar adentro, pintando suas águas em cor de petróleo e fazendo distanciar e desaparecer o azul cristalino de outrora. Achei estranho que ela não estivesse a procurar lugar menos profanado para ficar, e olhei firme para aquela teimosa ave, branca como a neve, formando um belo contraste com as águas escuras da baía. Ela correspondeu ao meu intrigado olhar com outro, adocicado e acompanhado de um cordial e telepático: “Bom-dia!”
Assustei-me, surpreso, mas logo me refiz e lhe retribuí com meu espantado cumprimento o gentil e inesperado aceno, claro que telepaticamente, senão as pessoas que passavam poderiam pensar que sou louco. Coitadas, elas não têm o dom de se comunicar com as aves como eu, que, de súbito, descobri que o tenho...
No primeiro dia, o meu trato com a garça não passou de um respeitoso aceno entre dois viventes educados, com ela sempre empinada naquele pedaço de pau fincado na água escura. Mas, com o transcorrer de minhas sistemáticas caminhadas, fui tendo melhores oportunidades de dialogar mentalmente com a garça, que a mim se apresentou como Maricota. Respondi-lhe dizendo que me chamava Emir, e indaguei-lhe sobre a escolha do seu nome, tendo ela respondido que o adotou ao ser assim chamada por uma linda menina que por ela passara. Eu lhe disse: “Lindo nome!”, com ela batendo as asas em sinal de agradecimento.
Logo nos primeiros dias, perguntei a Maricota por que ela insistia em frequentar águas tão fétidas, mas tão fétidas que às vezes não havia nem como caminhar no calçadão, por ser difícil, às vezes, suportar o miasma emanando-se impertinentemente das poluentes valetas que se arremessam contra as águas da baía tornando-as ainda mais terríveis...
Maricota, singelamente, respondeu-me que ali estava para tentar mostrar às pessoas que muitas garças poderiam ainda ficar embelezando as águas da baía, que, por sua vez, poderiam estar apinhadas de peixes, alimento preferencial de garças e gaivotas. Mas, infelizmente, a presença dela na praia suja era apenas simbólica, um protesto, uma lembrança de que muitas garças já estiveram ali num passado não muito longínquo.
Concordei com ela e fiquei imaginando por que ainda existe, à beira da praia, quase que defronte ao quartel dos bombeiros, aquele canteiro de obras da CEDAE fingindo que servirá para despoluir as águas da baía de Guanabara. Por ironia do destino, aquele é um dos locais que mais fedem e que mais é visitado pelos urubus...
Comentei o assunto com Maricota, e ela me lembrou de que em 1991 o governo estadual encaminhou ao poder legislativo um pedido de autorização para contrair um empréstimo de U$ 980.000.000,00 (novecentos e oitenta milhões de dólares) destinados à despoluição da baía de Guanabara. Recordei-me na hora do fato, porque, também por ironia do destino, eu lá estava como deputado, todo animado e ajudando a aprovar o empréstimo, que viria do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), se não me engano. Com efeito, eu acreditei que a baía seria finalmente despoluída. E foi quando a garça me disse que conhecia a questão através de informação a ela repassada por diversos pardais e pombos que assistiram de camarote à histórica votação.
Fiquei impressionado em perceber que Maricota sabia mais do que algum humano poderia conceber em relação a uma simples ave. Ela também me informou que o único lugar onde não se arriscava pousar era exatamente naquele enganoso canteiro de obras, porque seus responsáveis (?) jogavam pedras a espantá-la.
Resolvi, – diante da constatação de que aquela garça representava bem mais que uma simples, viva e constante presença na praia, a tentar embelezar sua feiura e minimizar a fetidez da baía, – resolvi indagar-lhe qual seria o motivo de sua insistência numa causa perdida, sendo logo por ela admoestado:
– Não tento minimizar fetidez ou feiura nenhuma. Sinto-me mal diante desse miasma, mas tenho de marcar na consciência das pessoas a necessidade de uma reação para salvar a baía enquanto é tempo. Tento ser uma rosa num jardim tomado por ervas daninhas, mas que, mesmo assim, consegue exalar o seu perfume e transmitir aos humanos o sentido do belo. Tomara que as pessoas se sintam animadas em plantar muitas outras rosas para sentir com mais intensidade a flagrância de todas ao mesmo tempo, enquanto admiram a beleza do canteiro florido...
Fiquei embasbacado! Nem precisei muito para compreender que Maricota não era uma ave qualquer, além de estar imbuída duma nobre, porém espinhosa missão: estimular a salvação das águas da baía de Guanabara. E não estava nisso sozinha, posto que, num outro dia, lá estava ela, brincando na areia suja da praia com seus dois filhotes, que voejavam e perneavam ainda desajeitados e com as plumagens acinzentadas pela sujeira inevitável. E com a água marcando suas compridas pernas, ela me olhava e pedia a minha compreensão. De longe, porém, era um belíssimo espetáculo, chamando pela primeira vez a atenção dos passantes, todos despertados pela beleza dos movimentos trigueiros daquelas pequenas aves, sempre sob os olhares atentos da mamãe Maricota. Senti vergonha de mim mesmo, assim como vi outras pessoas constrangidas...
Pela primeira vez, depois de muitos dias de caminhada, e de encontros com Maricota, já minha dileta amiga, pude perceber que as pessoas também se despertavam para a dura realidade de que a baía de Guanabara está agonizante. E não deixei de comentar, bem alto, - para que Maricota bem ouvisse, - que era chegada a hora da reação. No fim de contas, para as gentes de Niterói, - uma das mais educadas e politizadas do país, - conviver passivamente com a sujeira e a poluição de suas praias é o mesmo que aceitar o subdesenvolvimento como norma de vida.
A cidade está bonita, de fato está. Porém, não me posso deixar de dar razão a Maricota e de lembrar que quase dez anos já se passaram desde que aquele vultoso empréstimo foi aprovado. Com a minha ajuda... E o que foi feito até agora, além daquele falso canteiro de obras? Nada, absolutamente nada, a não ser a montagem esperta de inúmeros outros “canteiros-de-obra-nenhuma”, como aquele outro com o qual cruzo diariamente. E me vem à mente a indagação: “E os US$ 980.000.000,00? Já foram gastos? Onde? Ou será que estão sendo desviados por alguém?” Ah, ninguém poderá saber...
Maricota tem razão em insistir, apesar de eu reconhecer que suas chances de conscientizar o povo de Niterói e algures a reagir são ínfimas, especialmente porque nenhum governo se interessou em atuar nesse sentido, sob a singela alegação de que o problema da despoluição da baía de Guanabara é federal e estadual, não é municipal. Sem dúvida, mas, e os nossos narizes e a nossa saúde? São ou não municipais?...
É mesmo! Acho que seria preferível que as águas da baía fossem límpidas e que tivessem muitos peixes, garças e gaivotas, como assim o eram no passado, nos velhos tempos do trampolim de três andares, em Icaraí, sempre lotado de banhistas felizes e de garças, peixes e gaivotas.
Hoje não existe mais trampolim, nem garças, nem gaivotas, nem peixes, nem nada. Em compensação, quem quiser ver bandos e mais bandos de urubus ciscando nas areias sujas das praias é só se arriscar a um passeio matinal entre Icaraí e Charitas, parando lá no Clube Naval. E, se estiver disposto a contar os urubus, que se prepare, pois são centenas. Eles não têm culpa de nada: só estão limpando a sujeira deixada pelos humanos, enquanto as garças e as gaivotas estão em outras paragens. Contudo, em respeito a Maricota e a seus dois filhotes, – e ao que representam, – devemos reagir e estrilar. Porque, melhor do que conviver com uma única rosa num único jardim é receber o perfume de todas em muitos canteiros a nos rodear.


Sim, Maricota! Não desista! Continue no toco de pau a nos repreender com a sua presença. Vá em frente com a sua lindíssima plumagem branca a mostrar ao povo de Niterói que o mar que o contorna está na cor errada. E não pode continuar fétido e escurecido pela poluição, mas deve tornar a ser azul como o céu, que está sobre nós e que também nos pertence por direito divino...

*Obs.: grafo aqui esta singela história para acrescentar que de 1999 para cá me ficou tudo mais claro: a baía de Guanabara não foi despoluída porque os ladrões do erário público já existiam e agiam ocultados pelo forte alarde de suas ideologias socialistas e comunistas desviando a atenção do povo (ignaro e culto).

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