terça-feira, 23 de maio de 2017

VIDA FAVELADA*



“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)



 1



O novilúnio traz um brilho que parece dia; muitas estrelas rutilando no céu completam a bela noite que cobre a favela. Está quente, as pessoas vestem roupas leves; muitos homens e crianças sem camisas e mulheres sumariamente vestidas ocupam as ruas, todos sentados em bancos improvisados do lado de fora dos barracos. Muitos bebericam uma cerveja ou simplesmente sorvem água ou refrigerante ou refresco de limão. Há a descontração e – por que não dizer? – a felicidade.

Sim, parece que todos curtem a paz, e seria a mais completa paz se não fossem aqueles adolescentes portando fuzis e metralhadoras e circulando para lá e para cá. Aquilo lembra insistentemente o perigo que paira naquele ar quase festivo. Mas, enquanto eles apenas circulam, e até aparentemente descontraídos, tudo vai bem.

Os bares estão apinhados de gente; muitos jogam sinuca e totó; outros discutem o último clássico entre Vasco e Flamengo, e há as gozeiras às vezes esquentadas em discussões, porém inócuas. E há, sim, a pobreza, mas isto não desalenta as pessoas que formam aquela imensa comunidade da Vila de Santa Fé. E não há como não sentir o olor da carne-seca fritando em algum lugar, e assim provocando uma salivação coletiva até onde o cheiro do tempero alcança. E todos gostam daquilo, porque logo se evolam outras fragrâncias temperadas de um chouriço ou de uma linguiça fina de porco fritando alhures. E a salivação coletiva não para.

Casais namoram, enquanto se vê o vaivém de viciados, quase todos já conhecidos, os zumbis à busca de cocaína para cheirar, de maconha para fumar, ou estão à procura de um crack para queimar ali mesmo. Mas não incomodam os moradores; perambulam, indiferentes, muitos rapazes arrumados e meninas bonitas, porém há também muitos desafortunados atrás da droga. Mas, apesar disso, a comunidade está em noite de tranquilidade, tudo parece garantir a paz. No íntimo, todos a almejam. Mas vem a polícia!...

Muda-se o ambiente, pessoas correm e se jogam de qualquer maneira no chão, tiros ciscam e arrancam pedaços de madeira velha, os bandidos vão e vêm dando tiros a esmo, foguetes espocam por todos os cantos, confundindo-se com o matraquear das armas automáticas. E logo surgem os policiais em correria e atirando sem parar contra os traficantes, que revidam. Mas Deus está sendo justo com ambos os lados, pois até então ninguém se fere. E se escafedem os bandidos e ficam os policiais para lá e para cá dando geral nos viciados, bolinado as meninas já desavergonhadas pelo efeito da droga, algumas até puxando os policiais para cantos escuros e lhes proporcionando um sexo rápido. Vale tudo para escapar à prisão e ao vexame de parar em delegacia. Não há mais a paz na favela.

Os viciados masculinos também providenciam seus agrados passando para os policiais seus relógios, cordões e dinheiro ou qualquer outra cortesia semelhante e que porventura disponham naquele momento. Para os mal-encarados policiais qualquer coisa serve, menos mãos vazias. E até a droga serve, e é arrecadada e levada. E nesta hora não há mais gente sentada em lugar nenhum, a favela se esvazia totalmente, só há os policiais circulando nervosamente, os vencedores da noite, as silhuetas que se projetam contra a claridade do novilúnio. Agora somente eles avistam as estrelas do céu que cobre a favela de Santa Fé. Até que se vão, e a paz torna a reinar no ambiente agora vazio de gente, sem ruído de vida, e mais parecendo um silêncio de morte. Paz?... Seria paz, aquele silêncio de morte?... Contudo, é a rotina favelada, paz e guerra, guerra e paz, sangue e morte, morte e sangue, falsa calmaria, falsa festividade, falsa segurança, tudo movediço naquela interação comunitária. Até quando?...



2



Clara Luzia está debaixo do seu catre e sai devagarinho, ainda assustada. Traz a filhinha de quatro anos quase que literalmente amassada pelo peso do seu corpo, o qual colocou protegendo-a dos tiros que ciscavam do lado de fora e muitos atravessando, de lado a lado, as tábuas toscas do seu mísero barraco. Mísero, sim, porém seu, o marido Genésio o comprara com suado sacrifício.

Clara Luzia tem os olhos marejados das lágrimas do terror. A filhinha igualmente chora, de espanto e dolorida. Mas o risco maior já passara, e ela agora pode voltar à postura anterior. Porém, o medo crava-a no chão do barraco, de onde ela ainda não tem coragem de se levantar; permanece então sentada e com a filhinha chorando ao seu colo. E torna a se debulhar em lágrimas, agora nem tanto de medo, mas de desalento com aquela situação sem saída, aquela miséria sem fim. E se pergunta dentro de si se fora justo deixar vir ao mundo a filhinha Ana Lúcia.

Genésio não está em casa. Naquela semana conseguira na obra substituir o vigia que se acidentara e dobrava direto as vinte e quatro horas. De dia, pegava no batente normal de ajudante de pedreiro; de noite, aquela chance de ganhar um dinheirinho extra para comprar um fogão de duas bocas lhe caíra do céu.

Clara Luzia, a mulher, tem ainda no rosto os traços marcantes de beleza, e mantém um belo corpo, mesmo oculto na sujeira da miséria. Mas é até uma mulher limpa, mesmo não tendo disponível muita água. Geralmente ela toma banho com a água que primeiro lava a filhinha Ana Lúcia, a mesma água que às vezes reserva para jogar no rosto no dia seguinte, e aí, sim, ela vai com a filhinha no colo e a lata d’água morro abaixo para trazê-la cheia e equilibrada na cabeça, uma rotina a que já se acostumara, mas que, no fundo, detesta.

Contudo, dentro do barraco o seu espanto ainda está misturado ao terror. E ela chora junto com a filha numa sinfonia que parece não ter mais fim, até que se acalma e acalma a filha e ambas, acalmadas, adormecem. Do lado de fora, as estrelas rutilam naquele céu indiferente, um céu acostumado a ver a desgraça das pessoas sem perder sua infinita beleza. Sim, porque em outros lugares, sem perigo, aquele mesmo céu inspira o artista, faz o lobo uivar e desperta a vida noturna que preenche a natureza com os seus encantos. Mas na favela a noite terminara em estupor, e o medo permaneceu até após a retirada dos policiais.

Vem o dia. Clara Luzia se levanta, pega a filha Ana Lúcia e sai. Já usara o resto da água para a precária higiene e agora se desloca rapidamente e pensando ir à casa da mãe. Mas sabe que não será muito bem recebida, como sempre, porque a mãe ignorante nunca aceitara aquela comborçaria entre ela e Genésio. Tudo bem, mas agora ela precisa de apoio para sair da favela, morar em outro lugar. E vai tentar mais uma vez sensibilizar a mãe, não tanto animada, porém o medo a impele. E até já admite largar Genésio, se a mãe ignorante assim lhe determinar, apesar de muito gostar do seu concubino, e apesar de, por vezes, até odiá-lo, posto ele não tirá-la, e à filha, daquela miséria. “Que barra!”, pensa, enquanto deixa a favela para trás.

Nada é bonito em derredor da favela. O morro é feio e sua aba ainda é favelada. Só depois de muito se afastar é que Clara Luzia finalmente enxerga um asfalto limpo e o trânsito organizado. Ela então espera... E vem o ônibus que a levará à casa da mãe num subúrbio asseado. Ela continua resoluta, porém variando ânimo com desânimo. Mas carrega na filhinha a esperança de tocar o coração da mãe ignorante, ao ponto de acolher também Genésio. Mas, se não for possível, o jeito é deixá-lo para trás naquela favela, até que ele consiga vencer a miséria e dar a ela, e à filha, uma vida condigna. Ela pensa ser isto impossível e chora dentro do ônibus, chamando a atenção dos demais passageiros. E a filha chora por osmose, como sempre o faz. E o ônibus pára. Ela pega a filhinha pelo braço e salta, pois finalmente chega ao seu destino incerto: a casa da mãe ignorante.



3



– Bença, mãe!... Vai filha, toma a bença da sua avó!...

– ...

– Tá! tá! tá!... Deus bençoe, Deus bençoe. O que houve; Que você quer aqui?...

– Puxa, mãezinha, a sinhora nem me deixa falar e já me joga pedra...

– Num tou jogando pedra, não!... Só que já te falei que num quero te ver. Você não me obedece nunca, só faz o que quer. E eu fico brava, mesmo!...

– Eu sei, mãezinha, que a sinhora num me perdoa por causa do Genésio. Mas vê sua netinha, mãe. Ela num pode mais ficar naquela favela. Ontem saiu tiroteio lá, todo mundo dando tiro, polícia e bandido, eu tive de me ajogar no chão do barraco com a Aninha. Foi horrível, mãezinha...

– Possa ser, possa ser, mas eu te avisei que num dava pra você sair de casa pra morar com aquele paraíba em favela. Eu avisei...

– Mas, mãezinha, eu num posso ficar mais lá, não. Eu quero que a sinhora me deixe voltar pra cá, por causa da Aninha. O Genésio num pricisa vir, não. É só eu e a menina...

– Antão, tá. Mas se ele pisar aqui, eu boto você pra fora com filha e tudo.

– Tá bem, mãezinha, tá bem!...

Clara Luzia ganha alma nova. No final do dia, contente com o desfecho de sua conversa com a mãe, ela torna à favela. E naquela sua euforia nem mesmo se lembra de que Genésio existe e que pode discordar dela. E tem a filhinha, que Genésio não iria simplesmente abdicar do direito dele de estar com ela. Ademais, Clara Luzia é apaixonada por seu homem, apesar da revolta que tem de morar naquele lugar perigoso. Mas, no fundo, vive dividida entre o gostar e o desgostar. Não é pobreza que a incomoda, mas o risco que sua filha corre quase que diariamente, sem falar nos assédios que sem dúvida começarão tão logo a menininha se desponte para a adolescência. Ela mesma, sem que Genésio saiba, vive se desvencilhando de algumas investidas amorosas em sua dele ausência. E uma está cada vez mais difícil de ela se livrar, pois é o próprio chefão do tráfico que volta e meia olha-a com olhares gulosos e elogios a sua beleza. E ela sabe que na hora em que ele decidir fazer sexo com ela, não haverá como lhe dizer não. E, no seu íntimo, ela não está muito disposta a lhe dizer não. Aquele assédio a envaidece deveras, principalmente porque Genésio chega cansado da obra e nem se lembra de acariciá-la, sem falar que muitas vezes chega sem banho e não há nenhuma água. Dorme sujo de cimento e fedendo, deixando-a raivosa. Por isso, ela mesma já acena discretamente para o traficante a possibilidade de deitar com ele no momento em que ele bem o entender. Ao mesmo tempo, porém, dói-lhe a consciência, porque Genésio, apesar de tudo, é carinhoso e se esforça bastante para dar conforto àquela pequena família. Faz já três anos que ele vem acalentando o sonho de tirar a mulher e a filha da favela, um lugar que antes era bom e ficara ruim. Mas até então não o conseguira, e agora o risco insuportável fizera-a tomar a decisão de buscar apoio em sua mãe. “Conversarei com Genésio logo hoje. Concordando ele, ou não, irei pra a casa da mãe no dia seguinte...”, ela pensa.



4



– Mas, Genésio...

– Nem mais nem talvez. Sem essa de ir pra casa daquela vaca!...

– Pera aí, Genésio! Vaca, não!... Ela é minha mãe...

– É vaca, sim! E minha filha num vai mermo pra lá. Se tu quiser, tu vai, mas a menina num vai, de jeito maneira!...

– É porque tu num tava aqui ontem, na hora dos tiro. Eu num guento mais essa vida. Tu vai ter que aceitar, se não, eu vou embora na marra. E tu num vai poder impedir. Eu vou quando tu tiver na obra!...

– Vai! vai! vai!... Vai, que eu vou lá te trazer de volta na ponta da peixeira. Ou então te deixo lá mermo, com um furo no bucho... E aquela vaca da tua mãe também. Eu passo a peixeira nas duas. Vai só! vai só!... Que se eu num te ver aqui de noite, amanhã, eu vou pro caralho, mas levo todo mundo comigo. E, se bobear, até a Aninha dança nessa!... Pô, Clarinha, eu sempre fui bacano contigo, pô! Cumé que você dá uma dessa!?...



5



Durante aqueles seis anos de convivência nunca houvera uma noite igual e uma discussão como aquela. Ali, sem dúvida, acaba o relacionamento entre Genésio e Clara Luzia, sobrando a filha espantada e chorando em meio àquele arranca-rabo entre ambos.

No dia seguinte à discussão, Genésio vai ao trabalho, não sem antes deixar pairando no ar suas reiteradas e assustadoras ameaças. Fica Clara Luzia chorando e sua filha solidariamente abrindo o berreiro. E ambas elas, na porta do barraco, veem Genésio descer a ladeira levando com ele sua dela esperança de sair da favela naquele mesmo dia. E isso tudo acontece tão cedinho que nem o lusco-fusco ainda dera lugar à claridade. E é assim que o traficante passa e vê a choradeira e logo se aproxima, solerte:

– Oi mulher! Que tá havendo?...

A noite já se faz alta e boceja de sono quando Genésio começa a subir. E nem mesmo rompe os primeiros passos dentro da favela e se vê cercado de bandidos armados que o seguram e o levam morro acima. E ele bem que tenta indagar sobre o que está havendo, e clama que só pode ser engano o que está acontecendo, mas ninguém fala nada e logo lhe calam a boca com uma pancada fortíssima de coronha de fuzil. E o sangue atônito jorra de sua boca, enquanto ele cambaleia. E assim, cambaleando, ele se vê num lugar ermo e nada mais vê na vida: é morto a tiros. E nem nunca pôde saber que Clara Luzia se havia deitado debaixo do chefão e choramingado outra história, depois do que se mandou para a casa da mãe para nunca mais voltar àquele morro da favela da Vila de Santa Fé.

Durante um longo tempo ela continua a se encontrar com o chefão do tráfico para o sexo. E gosta, porque recebe polpudas gratificações, o que lhe permite contribuir à larga com as despesas da mãe ignorante, viúva e sozinha desde quando ela, ingrata, fugira com o finado Genésio. E assim o tempo vai empurrando dias e noites, com Ana Lúcia crescendo, até que, sem aviso, o bandido não mais a solicita. E ela então vai ao pé do morro e nem precisa perguntar para saber que ele morrera em escaramuça com a polícia. Dali para diante ela trabalharia de doméstica e criaria sua filhinha, até que um dia lhe aparecesse um príncipe encantado, um novo amor, que a ajudaria na tarefa de educar Ana Lúcia...

 Ela está no auge da beleza. E o príncipe encantado lhe surge, e dirigindo um táxi novinho de estalar, e dele próprio. E Clara Luzia, enfim, e com a aprovação entusiasmada da mãe ignorante, casa-se de véu e grinalda sem o padre saber que ela já é mãe. Era o desejo do novo marido...

*CONTO, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ ESGOTADO.




“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)


Para Emir e Nilda, meus pais, agora juntos, e eu aqui com muita saudade.
 

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