“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
1
O novilúnio traz um brilho que parece dia;
muitas estrelas rutilando no céu completam a bela noite que cobre a favela.
Está quente, as pessoas vestem roupas leves; muitos homens e crianças sem
camisas e mulheres sumariamente vestidas ocupam as ruas, todos sentados em
bancos improvisados do lado de fora dos barracos. Muitos bebericam uma cerveja
ou simplesmente sorvem água ou refrigerante ou refresco de limão. Há a
descontração e – por que não dizer? – a felicidade.
Sim, parece que todos curtem a paz, e seria
a mais completa paz se não fossem aqueles adolescentes portando fuzis e
metralhadoras e circulando para lá e para cá. Aquilo lembra insistentemente o
perigo que paira naquele ar quase festivo. Mas, enquanto eles apenas circulam,
e até aparentemente descontraídos, tudo vai bem.
Os bares estão apinhados de gente; muitos
jogam sinuca e totó; outros discutem o último clássico entre Vasco e Flamengo,
e há as gozeiras às vezes esquentadas em discussões, porém inócuas. E há, sim,
a pobreza, mas isto não desalenta as pessoas que formam aquela imensa
comunidade da Vila de Santa Fé. E não há como não sentir o olor da carne-seca
fritando em algum lugar, e assim provocando uma salivação coletiva até onde o
cheiro do tempero alcança. E todos gostam daquilo, porque logo se evolam outras
fragrâncias temperadas de um chouriço ou de uma linguiça fina de porco fritando
alhures. E a salivação coletiva não para.
Casais namoram, enquanto se vê o vaivém de
viciados, quase todos já conhecidos, os zumbis à busca de cocaína para cheirar,
de maconha para fumar, ou estão à procura de um crack para queimar ali mesmo.
Mas não incomodam os moradores; perambulam, indiferentes, muitos rapazes
arrumados e meninas bonitas, porém há também muitos desafortunados atrás da
droga. Mas, apesar disso, a comunidade está em noite de tranquilidade, tudo
parece garantir a paz. No íntimo, todos a almejam. Mas vem a polícia!...
Muda-se o ambiente, pessoas correm e se
jogam de qualquer maneira no chão, tiros ciscam e arrancam pedaços de madeira
velha, os bandidos vão e vêm dando tiros a esmo, foguetes espocam por todos os
cantos, confundindo-se com o matraquear das armas automáticas. E logo surgem os
policiais em correria e atirando sem parar contra os traficantes, que revidam.
Mas Deus está sendo justo com ambos os lados, pois até então ninguém se fere. E
se escafedem os bandidos e ficam os policiais para lá e para cá dando geral nos
viciados, bolinado as meninas já desavergonhadas pelo efeito da droga, algumas
até puxando os policiais para cantos escuros e lhes proporcionando um sexo
rápido. Vale tudo para escapar à prisão e ao vexame de parar em delegacia. Não
há mais a paz na favela.
Os viciados masculinos também providenciam
seus agrados passando para os policiais seus relógios, cordões e dinheiro ou
qualquer outra cortesia semelhante e que porventura disponham naquele momento.
Para os mal-encarados policiais qualquer coisa serve, menos mãos vazias. E até
a droga serve, e é arrecadada e levada. E nesta hora não há mais gente sentada
em lugar nenhum, a favela se esvazia totalmente, só há os policiais circulando
nervosamente, os vencedores da noite, as silhuetas que se projetam contra a
claridade do novilúnio. Agora somente eles avistam as estrelas do céu que cobre
a favela de Santa Fé. Até que se vão, e a paz torna a reinar no ambiente agora
vazio de gente, sem ruído de vida, e mais parecendo um silêncio de morte.
Paz?... Seria paz, aquele silêncio de morte?... Contudo, é a rotina favelada,
paz e guerra, guerra e paz, sangue e morte, morte e sangue, falsa calmaria,
falsa festividade, falsa segurança, tudo movediço naquela interação
comunitária. Até quando?...
2
Clara Luzia está debaixo do seu catre e sai
devagarinho, ainda assustada. Traz a filhinha de quatro anos quase que
literalmente amassada pelo peso do seu corpo, o qual colocou protegendo-a dos
tiros que ciscavam do lado de fora e muitos atravessando, de lado a lado, as
tábuas toscas do seu mísero barraco. Mísero, sim, porém seu, o marido Genésio o
comprara com suado sacrifício.
Clara Luzia tem os olhos marejados das
lágrimas do terror. A filhinha igualmente chora, de espanto e dolorida. Mas o
risco maior já passara, e ela agora pode voltar à postura anterior. Porém, o
medo crava-a no chão do barraco, de onde ela ainda não tem coragem de se
levantar; permanece então sentada e com a filhinha chorando ao seu colo. E
torna a se debulhar em lágrimas, agora nem tanto de medo, mas de desalento com
aquela situação sem saída, aquela miséria sem fim. E se pergunta dentro de si
se fora justo deixar vir ao mundo a filhinha Ana Lúcia.
Genésio não está em casa. Naquela semana
conseguira na obra substituir o vigia que se acidentara e dobrava direto as
vinte e quatro horas. De dia, pegava no batente normal de ajudante de pedreiro;
de noite, aquela chance de ganhar um dinheirinho extra para comprar um fogão de
duas bocas lhe caíra do céu.
Clara Luzia, a mulher, tem ainda no rosto
os traços marcantes de beleza, e mantém um belo corpo, mesmo oculto na sujeira
da miséria. Mas é até uma mulher limpa, mesmo não tendo disponível muita água.
Geralmente ela toma banho com a água que primeiro lava a filhinha Ana Lúcia, a
mesma água que às vezes reserva para jogar no rosto no dia seguinte, e aí, sim,
ela vai com a filhinha no colo e a lata d’água morro abaixo para trazê-la cheia
e equilibrada na cabeça, uma rotina a que já se acostumara, mas que, no fundo,
detesta.
Contudo, dentro do barraco o seu espanto
ainda está misturado ao terror. E ela chora junto com a filha numa sinfonia que
parece não ter mais fim, até que se acalma e acalma a filha e ambas, acalmadas,
adormecem. Do lado de fora, as estrelas rutilam naquele céu indiferente, um céu
acostumado a ver a desgraça das pessoas sem perder sua infinita beleza. Sim,
porque em outros lugares, sem perigo, aquele mesmo céu inspira o artista, faz o
lobo uivar e desperta a vida noturna que preenche a natureza com os seus
encantos. Mas na favela a noite terminara em estupor, e o medo permaneceu até
após a retirada dos policiais.
Vem o dia. Clara Luzia se levanta, pega a
filha Ana Lúcia e sai. Já usara o resto da água para a precária higiene e agora
se desloca rapidamente e pensando ir à casa da mãe. Mas sabe que não será muito
bem recebida, como sempre, porque a mãe ignorante nunca aceitara aquela
comborçaria entre ela e Genésio. Tudo bem, mas agora ela precisa de apoio para
sair da favela, morar em outro lugar. E vai tentar mais uma vez sensibilizar a
mãe, não tanto animada, porém o medo a impele. E até já admite largar Genésio,
se a mãe ignorante assim lhe determinar, apesar de muito gostar do seu
concubino, e apesar de, por vezes, até odiá-lo, posto ele não tirá-la, e à
filha, daquela miséria. “Que barra!”, pensa, enquanto deixa a favela para trás.
Nada é bonito em derredor da favela. O
morro é feio e sua aba ainda é favelada. Só depois de muito se afastar é que
Clara Luzia finalmente enxerga um asfalto limpo e o trânsito organizado. Ela
então espera... E vem o ônibus que a levará à casa da mãe num subúrbio asseado.
Ela continua resoluta, porém variando ânimo com desânimo. Mas carrega na
filhinha a esperança de tocar o coração da mãe ignorante, ao ponto de acolher
também Genésio. Mas, se não for possível, o jeito é deixá-lo para trás naquela
favela, até que ele consiga vencer a miséria e dar a ela, e à filha, uma vida condigna.
Ela pensa ser isto impossível e chora dentro do ônibus, chamando a atenção dos
demais passageiros. E a filha chora por osmose, como sempre o faz. E o ônibus
pára. Ela pega a filhinha pelo braço e salta, pois finalmente chega ao seu
destino incerto: a casa da mãe ignorante.
3
– Bença, mãe!... Vai filha, toma a bença da
sua avó!...
– ...
– Tá! tá! tá!... Deus bençoe, Deus bençoe.
O que houve; Que você quer aqui?...
– Puxa, mãezinha, a sinhora nem me deixa
falar e já me joga pedra...
– Num tou jogando pedra, não!... Só que já
te falei que num quero te ver. Você não me obedece nunca, só faz o que quer. E
eu fico brava, mesmo!...
– Eu sei, mãezinha, que a sinhora num me
perdoa por causa do Genésio. Mas vê sua netinha, mãe. Ela num pode mais ficar
naquela favela. Ontem saiu tiroteio lá, todo mundo dando tiro, polícia e
bandido, eu tive de me ajogar no chão do barraco com a Aninha. Foi horrível,
mãezinha...
– Possa ser, possa ser, mas eu te avisei
que num dava pra você sair de casa pra morar com aquele paraíba em favela. Eu
avisei...
– Mas, mãezinha, eu num posso ficar mais
lá, não. Eu quero que a sinhora me deixe voltar pra cá, por causa da Aninha. O
Genésio num pricisa vir, não. É só eu e a menina...
– Antão, tá. Mas se ele pisar aqui, eu boto
você pra fora com filha e tudo.
– Tá bem, mãezinha, tá bem!...
Clara Luzia ganha alma nova. No final do
dia, contente com o desfecho de sua conversa com a mãe, ela torna à favela. E
naquela sua euforia nem mesmo se lembra de que Genésio existe e que pode discordar
dela. E tem a filhinha, que Genésio não iria simplesmente abdicar do direito
dele de estar com ela. Ademais, Clara Luzia é apaixonada por seu homem, apesar
da revolta que tem de morar naquele lugar perigoso. Mas, no fundo, vive
dividida entre o gostar e o desgostar. Não é pobreza que a incomoda, mas o
risco que sua filha corre quase que diariamente, sem falar nos assédios que sem
dúvida começarão tão logo a menininha se desponte para a adolescência. Ela
mesma, sem que Genésio saiba, vive se desvencilhando de algumas investidas
amorosas em sua dele ausência. E uma está cada vez mais difícil de ela se
livrar, pois é o próprio chefão do tráfico que volta e meia olha-a com olhares
gulosos e elogios a sua beleza. E ela sabe que na hora em que ele decidir fazer
sexo com ela, não haverá como lhe dizer não. E, no seu íntimo, ela não está
muito disposta a lhe dizer não. Aquele assédio a envaidece deveras,
principalmente porque Genésio chega cansado da obra e nem se lembra de
acariciá-la, sem falar que muitas vezes chega sem banho e não há nenhuma água.
Dorme sujo de cimento e fedendo, deixando-a raivosa. Por isso, ela mesma já
acena discretamente para o traficante a possibilidade de deitar com ele no
momento em que ele bem o entender. Ao mesmo tempo, porém, dói-lhe a
consciência, porque Genésio, apesar de tudo, é carinhoso e se esforça bastante
para dar conforto àquela pequena família. Faz já três anos que ele vem
acalentando o sonho de tirar a mulher e a filha da favela, um lugar que antes
era bom e ficara ruim. Mas até então não o conseguira, e agora o risco
insuportável fizera-a tomar a decisão de buscar apoio em sua mãe. “Conversarei
com Genésio logo hoje. Concordando ele, ou não, irei pra a casa da mãe no dia
seguinte...”, ela pensa.
4
– Mas, Genésio...
– Nem mais nem talvez. Sem essa de ir pra
casa daquela vaca!...
– Pera aí, Genésio! Vaca, não!... Ela é
minha mãe...
– É vaca, sim! E minha filha num vai mermo
pra lá. Se tu quiser, tu vai, mas a menina num vai, de jeito maneira!...
– É porque tu num tava aqui ontem, na hora
dos tiro. Eu num guento mais essa vida. Tu vai ter que aceitar, se não, eu vou
embora na marra. E tu num vai poder impedir. Eu vou quando tu tiver na obra!...
– Vai! vai! vai!... Vai, que eu vou lá te
trazer de volta na ponta da peixeira. Ou então te deixo lá mermo, com um furo
no bucho... E aquela vaca da tua mãe também. Eu passo a peixeira nas duas. Vai
só! vai só!... Que se eu num te ver aqui de noite, amanhã, eu vou pro caralho,
mas levo todo mundo comigo. E, se bobear, até a Aninha dança nessa!... Pô,
Clarinha, eu sempre fui bacano contigo, pô! Cumé que você dá uma dessa!?...
5
Durante aqueles seis anos de convivência
nunca houvera uma noite igual e uma discussão como aquela. Ali, sem dúvida,
acaba o relacionamento entre Genésio e Clara Luzia, sobrando a filha espantada
e chorando em meio àquele arranca-rabo entre ambos.
No dia seguinte à discussão, Genésio vai ao
trabalho, não sem antes deixar pairando no ar suas reiteradas e assustadoras
ameaças. Fica Clara Luzia chorando e sua filha solidariamente abrindo o
berreiro. E ambas elas, na porta do barraco, veem Genésio descer a ladeira
levando com ele sua dela esperança de sair da favela naquele mesmo dia. E isso
tudo acontece tão cedinho que nem o lusco-fusco ainda dera lugar à claridade. E
é assim que o traficante passa e vê a choradeira e logo se aproxima, solerte:
– Oi mulher! Que tá havendo?...
A noite já se faz alta e boceja de sono
quando Genésio começa a subir. E nem mesmo rompe os primeiros passos dentro da
favela e se vê cercado de bandidos armados que o seguram e o levam morro acima.
E ele bem que tenta indagar sobre o que está havendo, e clama que só pode ser
engano o que está acontecendo, mas ninguém fala nada e logo lhe calam a boca
com uma pancada fortíssima de coronha de fuzil. E o sangue atônito jorra de sua
boca, enquanto ele cambaleia. E assim, cambaleando, ele se vê num lugar ermo e
nada mais vê na vida: é morto a tiros. E nem nunca pôde saber que Clara Luzia
se havia deitado debaixo do chefão e choramingado outra história, depois do que
se mandou para a casa da mãe para nunca mais voltar àquele morro da favela da
Vila de Santa Fé.
Durante um longo tempo ela continua a se
encontrar com o chefão do tráfico para o sexo. E gosta, porque recebe polpudas
gratificações, o que lhe permite contribuir à larga com as despesas da mãe
ignorante, viúva e sozinha desde quando ela, ingrata, fugira com o finado
Genésio. E assim o tempo vai empurrando dias e noites, com Ana Lúcia crescendo,
até que, sem aviso, o bandido não mais a solicita. E ela então vai ao pé do
morro e nem precisa perguntar para saber que ele morrera em escaramuça com a
polícia. Dali para diante ela trabalharia de doméstica e criaria sua filhinha,
até que um dia lhe aparecesse um príncipe encantado, um novo amor, que a
ajudaria na tarefa de educar Ana Lúcia...
Ela
está no auge da beleza. E o príncipe encantado lhe surge, e dirigindo um táxi
novinho de estalar, e dele próprio. E Clara Luzia, enfim, e com a aprovação
entusiasmada da mãe ignorante, casa-se de véu e grinalda sem o padre saber que
ela já é mãe. Era o desejo do novo marido...
*CONTO, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA
FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ ESGOTADO.
“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Para
Emir e Nilda, meus pais, agora juntos, e eu aqui com muita saudade.
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