“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
“No gênero dos contos (...). É gênero
difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma
aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso
eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de
Assis, Crítica Literária, W. M.
Jackson Inc. Editores, 1957)
1
A favela era grande, – uma cidade, pobre,
dentro da outra, rica, – um mundo à parte, quase que isolado de tudo, um
poviléu de senzala, seria a vontade dos senhores da casa-grande, de ontem e de
hoje, sempre vendo-a de longe e impertinente a crescer, crescendo com ela a
miséria e o zé-povinho na miserabilidade do abandono total. Mas a favela era
grande, e a cada dia maior ela ficava, e isto ninguém lhe podia negar, porque
havia na base do morro, – um grande morro, de cume empedrado, abrupto,
inacessível, bem alto, – havia na base do morro e em toda a sua volta, no plano
liso do chão, os barracos. E eram milhares, aqueles barracos, uns agarradinhos
aos outros em paredes-meias feitas de tábuas vagabundas, de restos de
construções abandonadas e de tudo o mais que mantivesse de pé aquelas casinhas
toscas e cheias de gente miserável, de gente nortista e nordestina e de muitos
pretos que nunca venceram os grilhões do passado. E os barracos iam-se
amontoando, geminados, e subindo, e subindo... até atingir as alturas mais
altas do morro. Tudo isto era a favela grande.
Na base do morro estava a população
favelada socialmente mais nobre, porquanto subindo morro acima, indo no esforço
das pernas e dos pulmões às cotas íngremes e perigosas, lá do alto,
apinhavam-se ainda mais barracos, uns firmando-se aos outros em equilíbrio
discutível, e todos abarrotados de arraias-miúdas, enfim, de gente sem a mínima
oportunidade de um dia sair de lá, ao menos descendo até a parte mais baixa,
que já estaria muito bom, como se assim fosse uma ascensão social inversa, ou
seja, descer do morro para subir na vida... Mas, não. Ninguém ou poucos se
moviam na grande favela, todos nela estavam presos a uma curiosa hierarquia
social favelada, pois era certo que um barraco no plano de baixo valia muito
mais dinheiro que um barraco plantado quase no pico do morro; quanto mais alto
no morro, mais barato o barraco, excetuando-se os casos em que os casebres
permitiam a visão do mar, o que lhes servia para valorizar o preço.
No alto e no baixo, os barracos davam forma
habitacional à imensa favela, davam vida, abrigo e perigo a mais de sessenta
mil almas humanas ali esquecidas, o imenso povoléu de rotos e esfarrapados. E
era lá, sim, que havia o montão de famílias, crianças nuas e adolescentes
cariados, sem sorriso e revoltados, homens cansados e mulheres prenhes, velhos
e velhas desinfelizes, todos no sacrifício de andar se desviando de valas
fétidas, de subir, de descer, de escorregar na lama e quebrar o fêmur e partir
o braço, de viver e de morrer sempre muito mal.
Dizendo assim, começando assim, parece que
ali só havia desgraça e infelicidade, choro de tristeza e acessos de raiva.
Mas, não. Havia também o amor, e muito amor, graças a Deus, mas ao lado do amor
havia o ódio, e muito ódio, graças ao Diabo, ambos de braços tão dados que não
dava para saber se era o amor ou o ódio quem falava primeiro. Era forte, porém,
a emoção nos dois extremos, coisa exclusiva de favelado, que dava ao copo de
cerveja um valor transcendental, porque era o único copo de prazer a ser tomado
na simpleza daquela gente paupérrima. Não, não era o único, não, porque muitos
tomavam mesmo era a cachaça ruim e batizada no álcool – a cachaça barata de
favelado.
De longe, a favela mais parecia um
formigueiro de gentalha, no seu vaivém nervoso e no seu corre-corre espantado,
espantado por tiros de bandido e de polícia, até chegar a hora de cada um
deitar no seu vai-volta. E o povoléu sempre no meio do perigo. Sim, no meio, e
era assim que acontecia, de dia e de noite, as crianças correndo no caminho
perigoso do colégio e ficando no chão, com a cabeça rachada por tiro de fuzil.
E, morta a criança, vem a favelada toda a chorar em volta dela, vêm as velas
acesas e as choradeiras mais fortes da família enlutada pelo azar fora de hora.
Mas, com pranto ou sem ele, com Deus ou sem Deus, lá está o corpo da criança
caído no chão, mais um enterro de anjinho, menino ou menina, tanto faz como
tanto fez, porque a criança já está morta mesmo.
Era assim a favela, a grande favela dos
miseráveis, que já vinha emergindo do ventre da cidade dos abastados há muitos
anos, desde quando ali só se via o morro florestado e o vale verde em torno
dele, e a paisagem nativa, e os córregos de águas limpas que desciam das fontes
do morro para banhar a baixada, para o povoléu beber a água limpa, que agora
está suja, mas que ele ainda bebe assim mesmo. Sim, porque a baixada sumiu,
dando lugar a outra paisagem, a de desolação, formada por barracos
desencontrados e feios, e pelos mesmos córregos agora fétidos e exalando o miasma
da miséria, porque a miséria fede água abaixo e adiante, até passar pelo mangue
e desembocar na baía suja, esta que suja o mar e fica tudo fedido.
E há quem diga que favela é coisa bonita,
quando olhada pelas retinas do poeta que a vê de longe (“Barracão, de zinco,
iluminado...” / “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria...”), e sem falar naqueles
que assinam junto com o anônimo autor favelado a poesia que brotara só do
coração da favela, o berço da poesia primitiva. Porque todo mundo que mora bem
longe da favela gosta da favela, acaricia o favelado, dá-lhe importância,
pede-lhe o voto. Sim, pede os votos das muitas Marias que, entra ano sai ano,
sobem e descem com a lata d’água de vinte litros na cabeça e morrem de infarto,
e nem vivem a vida miserável que gostariam de pelo menos vivê-la (“... Sobe o
morro e não se cansa, pelas mãos leva a criança, lá vai Maria...”). É assim?
Não se cansa? Ora! ora! Não é bem assim, não, é como se disse antes...
E depois todo mundo que pede o voto
desaparece, some do mapa da pobreza, e ficam só os favelados e suas valas
fétidas, e os vermes parasitos nas tripas, e o frio, e a fome, e a tragédia, e
a morte. Sim, a tragédia da morte, a morte de muitos na caída implacável da
chuva forte e no desbarranco da lama assoreada do barranco desmatado para
plantar barraco mísero. E a lama solta-se e desce implacavelmente, arrastando
os barracos e misturando-os, feito massa, na masseira da padaria da vida
miserável daquela gente infortunada e ainda morrendo sem saída, misturadas as
suas carnes sangrentas aos pedaços de madeira e de zinco, muita gente com os
pescoços decepados pelo zinco afiado e enferrujado. E, para cada casal de gente
esmigalhada pela tragédia da lama suja, há as crianças, muitas crianças, sempre
em quantidades maiores que os adultos que já viveram, mesmo que pouco e mal.
Não há, porém, mais perigo de tétano nem de doença, morto não pega tétano nem
doença, morto não pega mais nada, morto é morto, mesmo, e nada mais.
Esta é a favela grande, que está fedegosa,
com suas valas de cocô ao vivo, as crianças de pés descalços dentro delas e
soltando pipas como se aquilo fosse a melhor vida da vida. E muitas crianças
com os dedos cortados ao cerol de suas linhas, e nos cortes entrando os
micróbios das valas, e, aí sim, pegam o tétano, ficam duras, e muitas morrem
sem tempo de socorro, na ignorância dos benzedeiros da favela. E, quando
morrem, é aquele lufa-lufa, é aquele corre-corre danado para registrar os
anjinhos e apagá-los do mapa social pelo óbito, tudo a um só tempo, registro e
óbito no tempo do fim, no átimo do existir e do inexistir no mundo de Deus.
Jogo rápido, vai-volta, choro rápido, porque a sobrevivência continua, até a
próxima vítima indigente. E não demora que venha, seja ela um velho ou uma
velha, na precocidade de uma idade ainda de novos, se fossem ricos, ou seja, um
enfartado a cachaça e a torresmo, ou seja, um baleado no peito, enfim, apenas
mais um defunto a enterrar, o fim da festa de mais uma vida miserável entre
milhares ou milhões de outras vidas miseráveis.
Enquanto isso, a galinha é criada no dejeto
do porco, este que é cortado em pedaços e vendido na barraquinha, as tripas
virando chouriço e as peles, torresmo, tudo para empurrar a miséria goela
abaixo junto com a cachaça, a farofa e a cerveja, vindo assim a alegria de
enganar o bucho. E não sobra nada, sobra apenas o colesterol da escória social
que enfarta de artérias entupidas na gordura. Sim, o favelado é gordo porque
come tripas de porco e moelas de galinha no tira-gosto, come o pão dormido e
também leva tiro na barriga pançuda, mesmo sem ter nada com a briga. E morre, e
lá vai mais um féretro de pobre, caixão de última, um vai-volta e cova rasa de
número logo apagado. E fim, e pronto! É mais carne de pobre virando caveira de
pobre, e as demais caveiras de pobres aplaudindo a chegada de mais um
desinfeliz favelado debaixo da terra. Mas, antes que morra um, nascem dez, e a
favela fica mais cheia de arraias-miúdas, de anjinhos que vêm ao mundo de Deus
para morrer cedo demais, ou para comer o pão que o diabo amassou na sua vida
curta.
É ruim de qualquer jeito, é fado adverso
nascer favelado. Mas, quando a mídia dos ricos mostra o sucesso do jogador de
futebol que saiu da favela, parece que todos vão conseguir jogar futebol e
enricar e sair da favela, um sonho impossível e enganador do povoléu, que nunca
vence nenhum sonho para torná-lo realidade. Mas fica sonhando, e sonha já
doente, e sonhando morre antes, da doença; ou não fica doente e morre de tiro,
ou morre criança e nada sonha. É assim o sonho, é a loteria da vida favelada, é
a fé no jogo do bicho do bicheiro ou do governo, o bicho sonhado, jogado e
perdido até a última moeda; é a esperança que vê o tempo passar sem nada mudar.
Mas a favela agora é grande, bem grande, e
tem nome, é a Vila Esperança, graças a Deus, que a protege com as suas muitas
igrejas. Sim, as igrejas, quaisquer igrejas, que dão sapatos de solas furadas e
roupas velhas, e dão remédios vencidos aos pobres-diabos que não sabem ler, e
dão o alimento a alguns poucos, tapando-lhes os buracos dos dentes podres, que
doem, e dão a esperança de dias melhores aos desesperançados; e muitas dão
quinquilharias em nome de políticos que se dizem enviados de Deus, mas não são
sérios, e que ganham as eleições por ordem de Deus e dos ministros astutos e bem-falantes,
mas não são sérios. E o povoléu vota a mando dos ministros e com medo de perder
a salvação. Os favelados saem das urnas como se saíssem de algum
confessionário, e com o dever religioso cumprido. Ou, então, votam atendendo
aos benfeitores bandidos, na ameaça dissimulada em pedido singelo: “Se não
votar, morre!” É assim.
Contudo, justiça seja feita, a favela suja
tem vida própria, se vira argutamente para sobreviver, e se acaba misturando
com os patrões e patroas no dia-a-dia do asfalto limpo. E estes, os patrões, se
pudessem, nunca se curvariam diante dos favelados que lhes invadem o espaço a
servi-los como empregados. Os ricos não gostam, porém não conseguem viver sem
os miseráveis, ou na portaria dos prédios, ou nos postos de gasolina, ou catando
os seus lixos (e muitas vezes devorando, na fome, parte deles), ou lhes
servindo às mesas de repasto doméstico, em seus lares luxuosos, ou às mesas de
repasto público, nos chiques restaurantes onde assiduamente frequentam. E é
assim que os patrões e patroas acabam comendo os vermes parasitos que vão da
favela até eles pela via de mãos malnascidas e mal lavadas, não por maldade,
mas, sim, por ignorância pura de favelados e faveladas que têm as tripas
lotadas de ascarídeos e outros nematódeos que infestam as tripas daquele
povoléu de adultos e crianças, tudo de barriga inchada. Mas a vida continua, e
a cada dia é pior na favela, porque vêm de longe virando moda a cocaína e a
maconha, e vira moda a matança em nome da droga, que rende dinheiro de roldão
para poucos, e muitos favelados não a resistem e a passam a usar e traficar. E
não traficam para viciar, mas para suprir o vício que já existe no mundo, e é
crescente, este que gera o grande negócio. É o capitalismo entrando favela
adentro, é a lei da oferta e da procura sendo manipulada por analfabetos
favelados, agora bandidos, poucos bandidos, porém mandando em muitos pelo poder
das armas automáticas. É assim a cidadela contemporânea, forjada na ideologia
das drogas e da miséria revoltante, juntando-se a fome com a vontade de comer a
comida que inexiste.
Mas a esfomeada favela tem vida social,
festas aniversárias, pagodes e outros divertimentos, muitos até melhores do que
aqueles que acontecem em casas de ricos, estes que também agora vão à favela,
às festas faveladas, no rastro da cocaína e da maconha; e eles até emprestam
suas namoradas bacanas e viciadas aos traficantes em troca de alguns papelotes
ou trouxinhas. E elas gostam de dar o que têm entre as pernas, e todos são
sempre bem-vindos, os comerciantes da droga adoram-nos, eles e elas, porquanto
são os ricos e ricas os principais clientes, que trazem o grosso do capital
para a favela, que gastam a rodo nas biroscas, que consomem a cerveja, que
garantem o lucro da prostituição de drogados, que saem de lá de algibeiras
vazias e sempre deixam mais capital circulando naquele gueto favelado. São os
cocainômanos, trôpegos, incertos, desmoralizados por falta de vontade, que se
proliferam aos montões, e a favela progride na prosperidade da droga maldita, e
é melhor socorrida na doença e na morte por seus novos benfeitores, os
traficantes, isso quando não são eles mesmos que matam os que insistem em não
conviver respeitosamente com eles. Sim, dão de tudo ao povoléu, mas exigem
respeito, e muito respeito; e, se não há respeito... matam. É assim.
E que ninguém pense que a favela é só
assim, porque não o é. É assim e muito mais, porque os favelados rezam, e oram,
e giram roda, e batem cabeças, tambores e palmas atrás de vida melhor, e assim
cumprindo suas romarias particulares dentro da própria favela, que é grande
feito uma cidade; e os favelados cumprem as romarias sem paus-de-arara a
levá-los por veredas distantes e poeirentas, graças a Deus. E a favela ainda
tem muito mais, porque lá tem a xepa da feira do asfalto, da qual sai a sopa
misturada à água de poço infestada de vermes parasitos, porém com muito sal e
pimenta para dar gosto. Mas a favela tem a polícia entrando e saindo, na
correria nervosa e com suas armas ameaçadoras; e tem as crianças passeando na
indiferença ao perigo, e as mulheres ziguezagueando no meio com as crianças em
seus colos de mães aluadas ou autistas, mulheres novas, quase que crianças
também, todas agindo como se aqueles polícias nem mesmo ali estivessem, e nem
os bandidos também existissem, todas fingindo uma paz fictícia em meio à guerra
cruenta e real de polícia contra bandido, de bandido contra bandido, de polícia
contra polícia, ninguém sabe quem de que lado está, e nem quem é quem nessas
tresloucadas escaramuças.
E vão assim, e as mães passam, indiferentes
e carregando os seus filhotes, e lhes vêm as cargas de tiros disparadas a esmo,
mas às vezes vem a bala perdida, sem recado prévio, insidiosa, e pega logo no
meio da cabeça do nenê, que se despedaça em vermelho e amarelo no regaço desvestido
ou esfarrapado da jovem mãe, desatenta antes e desesperada depois. Se foi o
bandido, passa a ser o polícia, porém não mais importa a chiadeira da
turbamulta, a criança está morta e pronta para o vai-volta, que, de tão barato
e industrializado, hoje vai e não volta. Mas tudo podia ser evitado, se a mãe
entrasse no primeiro barraco e se enfiasse junto com os vizinhos nas covas da
vida, cavadas debaixo dos catres de tábuas velhas, feitas para favelados
fugirem dos tiros sem endereço. Sim, o favelado faz a cova da vida dentro do
barraco, e é o meio que improvisa para se livrar da cova da morte prematura, ou
já indo se acostumando com esta, sentindo logo o cheiro da terra funda... É
assim. Podia mesmo ser evitado?... Que nada!... Tem de ser assim!...
A favela de outrora também tinha dono, o
bucólico dono do morro, cantado por Kid Morengueira. E tinha a negrinha do
morro, a negrinha do malandro que dominava o morro, mas nem tanto bucolicamente
assim. Era poético, sim, mas fora de lá da favela, porquanto lá não tinha nada
de poesia, tinha era a navalhada e a punhalada, numa época em que a arma de
fogo era raridade, e coisa de rico, e de polícia, e quando muito tinha a
maconha no modesto varejo. E a favela tinha menos gente, gente que até usava
paletó usado e camisa branca puída e ganhada do patrão; mas aquela gente era
menos gentalha que hoje, e naquela época morria menos gente que hoje; porém,
tinha menos gente, e menos bandidos, e menos crimes, e menos polícias, e,
também por isso, morria menos gente que hoje. Tudo aumentou, o poviléu
aumentou, a fome aumentou, as doenças aumentaram, o crime aumentou, a polícia
aumentou, as balas perdidas aumentaram. E hoje morre mais gentalha, pois veio a
droga barra-pesada trazendo o progresso do banditismo e a desgraça dos novos
tempos. E assim o bandido famoso, que tinha o nome cantado em prosa e verso,
foi morrendo e dando lugar ao pivete feroz sem nome e sem fama. Mas os pivetes
de hoje se ajuntam em grupos organizados, todos vendendo droga e embolsando
fortunas, e despertando a cobiça da polícia, e até antes mesmo de a despertar
para o crime bárbaro a ser combatido, pois a cobiça é que é ainda mais
invencível. E assim se chegou aos tempos de hoje, e é assim a favela da Vila
Esperança de hoje e da história que vamos contar, mas ainda a partir de bem
antes no tempo...
2
Menininho é dono de tudo, é senhor absoluto
da grande favela. E na parte mais alta, que é escalada por meio duma escada de
ferro improvisada em degraus de vergalhão, e presos à escarpa quase vertical, ele
vai ao pico do morro, e, de lá, do lado da sua bandeira, mira o horizonte de
sua cidadela, de seus domínios, e perde-os quase de vista, pois abrangem um
horizonte de poder indiscutível: é toda a favela grande e mais uma boa parte do
asfalto em torno dela, a região da maior clientela, daquela que passa de carro
e de moto também atrás dos saquinhos plásticos de cem gramas. Chamam-nos de
sacolés e vão cheios da branquinha destinada aos narizes ricos da cidade. E
tudo é pago à vista, e é uma hora em que o cidadão chega perto do bandido
armado e nunca é assaltado; em vez disso, é tratado como um cliente
preferencial.
É a elite finalmente dominada pela ralé, a
droga trouxe este progresso às sociedades e às comunidades. É a sociedade pela
primeira vez subjugada pela comunidade, os mais abastados moralmente
circunflexos aos fornicados pelo caiporismo cruel. O que é sociedade e o que é
comunidade, ninguém sabe ao certo, mas sabe-se que não se chama a gente do
asfalto limpo de comunidade, e, sim, de sociedade; e chama-se sempre a favela
de comunidade. A sociedade é forma e ordem, a comunidade é matéria e
substância, assim dizem os estudiosos. E é assim também na prática, e os
societários não podem ser comunitários; e os societários fingem viver a
formalidade e são arrastados por ela ao formalismo incômodo. Em compensação,
não morrem tanto e tão cedo quanto morrem os comunitários. E não são presos em
cadeias de pobres. Sim, não vivem em favelas, e têm planos de saúde, e
hospitais de luxo, e dinheiro no bolso, e comida na mesa; aí, sim, têm os
serviços comunitários e os vermes parasitos de mãos que os carregam sem os ver
ou saber, nas casas e nos hospitais, onde também estão os favelados na faxina e
na cozinha, e alguns até dando injeções, estes com as mãos limpas, mas nem
sempre. É assim, na verdade, é pobre contra rico, ou rico contra pobre, uma
loucura total de desigualdade. É assim.
Contudo, quem manda é o homem, os demais
somente obedecem, ricos e pobres. Quem manda em tudo é Menininho, um cearense
magrelo e baixinho, que não tem força para levantar um saco de sessenta de
nada, nem mesmo de plumas. Olhando-o assim, distraído assim, ele até se parece
com uma criança, mas dizem que tem mais crimes nas costas do que as idades
somadas dos pais, irmãos, mulher, filhos e filhas, e ainda outros tantos. Só de
cortar fora o pescoço alheio na peixeira ele dava quase a volta ao mundo em
cadáveres masculinos e femininos esticados em metro corrido, dizem os favelados
à socapa do medo extremo. É pequenino, sim, o nordestino, isto ele é, porém é
mau feito cinquenta milhões de diabos brigando ente si. Este é o homem, este é
Menininho, que comanda o espetáculo favelado, que comanda o crime e o trabalho
criminoso de muitos, de centenas, incluindo-se adultos e crianças, homens e
mulheres, meninos e meninas. Mas ele não pode mais somar as idades de sua
própria família. Estão todos mortos; e ele, sozinho no mundo.
3
Hoje a favela é grande, e fervilha em
acontecimentos, e se prolifera em bandidos tomando de assalto a privacidade dos
favelados, tomando no peito suas mulheres e filhas, no bico da arma ameaçadora
ou da peixeira que os mata sem dó. E é assim que as meninas são sangradas entre
as pernas, e se emprenham de pais que não sabem quem são, porquanto rodam de
mão em mão e rebolam, chorando, frenéticas, debaixo dos bandidos sexualmente
possessos. Muitas, porém, se fingem de contentes, e até se oferecem antes, mas
apenas para não carregarem o fado do estupro. Nenhuma, porém, pode fugir à
regra da violação sexual, e nem ninguém tem coragem de as contestar. Contudo,
há uma saída, há uma situação que acontece e que as fazem respeitadas: ser da
família de algum bandido da horda de Menininho. Aí, sim, ficam as famílias
protegidas dos demais facínoras. É a regra, é assim. Quem a desobedece, morre
na peixeira, e tem os bagos cortados e enfiados na boca.
Para que não pensem que Menininho já nasceu
no mundo do tráfico e nele cresceu e se desenvolveu, vai a explicação, a
verdade de sua vida miserável, que começou com ele vindo dos confins do Ceará
para o Rio. E trouxe a mulher, uma filha pequena e muita esperança de vida
melhor. E encarou a obra de prédios grandes, como virador de massa, primeiro, e
como auxiliar de carpinteiro, depois. Virou homem de cortar tábuas de pinho de
terceira ou de eucalipto ruim, para escorar o concreto malfeito das colunas e
alicerces de edifícios grandes, que depois caem por obra do homem rico, mas
este que sempre diz que caíram por obra do destino ou dos indefesos operários,
estes que não têm nada com isso.
E, cheio de esperança, Menininho foi para a
favela da Vila Esperança, para o aluguel em meia-parede de um cômodo só. Mas
ele era hábil e econômico; não bebia nem fumava, quase sem vício que não fosse
o de pular a cerca enquanto a mulher embarrigava de novo; e desta vez lhe veio
um menino, saído do bucho da nordestina pequena, porém bonita como a peste. E
Menininho a amava, mas não resistia a um rabo-de-saia, e a favela tinha muitos
rabos-de-saia dando sopa, e Menininho ciscava em torno das raparigas, mas
sempre economizando o seu metal.
E foi assim, de economia em economia, o
casal de filhos crescendo, que Menininho conseguiu comprar um pedacinho de chão
lá no alto do morro. E ninguém entendia aquele nordestino franzino no seu
vaivém da casa ao trabalho sempre sobraçando na volta um embrulho de jornal e
trazendo nele um pedaço de tábua, pequeno, inútil na obra grande, mas que era o
seu “tijolo de madeira” a levantar pacientemente o barraco. E foi assim, de
pedacinho em pedacinho de tábuas emendadas por outros pedacinhos de ripa, que
Menininho deu forma ao seu novo lar, um barraco de três cômodos pequeníssimos,
um funcionando como sala e cozinha, outro como quarto, e mais um quadradinho
com um grande buraco embaixo e com a armação do sanitário em madeira. Era o
banheiro, a água da descarga era a borra da cal que ele também trazia
embrulhada, a cal que cobria a merda da família e não deixava espalhar o cheiro
malcheiroso, e ainda tinha a tampa presa por dobradiças feitas de pedaços de
couro velho de tamancos do lixo. E rodava-se de buraco, – um buraco feito com
zelo e no trado de 150 mm, – e enchia-se um enquanto o outro secava, e a merda
ia sendo guardada até quando Deus quisesse.
Era pequeno, aquele barraco, naquela favela
grande, mas dava para o gasto da família, que se organizava ali dentro em
catres montados na vertical pela habilidade do carpinteiro nordestino. E era
todo bem-arrumado, aquele barraco caiado no branco da limpeza, e atendendo bem
à família, até que um dia veio a chuva maldita que levou de enxurrada todas as vidas
que estavam guardadas naquele barraquinho feito com amor...
Era de dia. Menininho saíra cedo ao
trabalho. Mas o tempo ia virando insidiosamente, como quem nada quer além de
molhar o chão. Mas não era somente isto que o tempo queria. Ele vinha, maldoso,
coleando suas nuvens negras e abaixando-as até quase tocar com suas cargas
elétricas o pico do morro. E foi assim que desceu o aguaceiro destruidor, como
se Deus novamente tivesse aberto as comportas dos céus para um novo dilúvio,
mas sem a arca de Noé. E foi assim que a tempestade desceu arrastando lixo e
lama, barracos e pessoas, e misturando tudo como se estivesse fazendo um bolo
para uma festa de morte e de sangue e de ossos esmigalhados, uma festa maldita.
E foi assim que a nordestina Maria e o casalzinho de filhos se misturaram à
malfadada massa de favelados, de lixo, de lama, de tábuas velhas, de utensílios
baratos, e tudo e todos morrendo na comoriência da tragédia da mãe Natureza.
Menininho, avisado na obra, voltou,
desolado. No lugar do seu lar não havia mais nada, e da família os bombeiros
catavam os pedaços misturados a outros pedaços de carne do bolo trágico de
favelados mortos. E o pequeno nordestino, desatinado, apenas olhava para tudo
aquilo, e não quis mais olhar para tudo aquilo e voltou à obra da cidade, e nem
mesmo quis saber de enterrar os restos putrefatos da família. Não importava,
estavam mortos, não passariam fome nem pegariam doenças. Eram pedaços de
caveiras desconhecidas, sem identidade, porque caveira nunca tem identidade,
ainda mais caveiras de favelados plantadas às pressas em covas rasas e
temporárias.
4
O tempo trapeiro cuidou da limpeza da
favela grande, e Menininho, um dia, e muito tempo depois, voltou até lá para
lembrar. E lá estava o seu pedaço de terra já ocupado por outros, pela lei da
favela, e ele foi reclamar. Mas o morro havia mudado, e ele não sabia; não
sabia que a favela da Vila Esperança estava tomada pelos garotos traficantes e
maldosos. E um deles ocupara o seu espaço de suor e tragédia, e ainda lhe deu
uma surra em regra, mandando-o embora dali. Ele saiu, escorraçado, doído por
dentro e por fora, mas naquela hora jurou vingança cruel. O ódio tomara-lhe o
corpo e o espírito e o coração, mas ele era apenas um nordestino franzino e sem
eira, nem beira, e nem ramo de figueira, e nem arma, e nem nada, e nem
coisíssima nenhuma. Nem favelado ele era, vivia na obra. Mas tinha a coragem
somada ao ódio, dois sentimentos que transformariam aquele homem mirrado num
gigante em ferocidade que a favela nunca poderia supor que um dia pudesse
existir ali.
E foi assim que Menininho começou a
conversar com os outros trabalhadores favelados, como ele, que odiavam os
facínoras que comiam gulosos as mulheres e filhas deles, que comiam suas
dignidades também guardadas entre as pernas das fêmeas que não podiam proteger.
E fora da favela, e liderados por Menininho, eles se começaram a organizar numa
milícia guerrilheira para acabar com os bandidos. E decidiram que os matariam e
expulsariam todas as gerações deles, de antes e de depois.
Era uma guerra que viria feroz, mas tudo no
seu tempo, porque eles tinham ideias mas não tinham armas, e muitos
trabalhadores nem coragem tinham. Mas observariam atentamente o movimento dos
bandidos e traçariam num mapa seus homizios, bocas-de-fumo e depósitos de armas
e drogas, para colocar os polícias nos calcanhares dos desgraçados. Mas os
locais de armas e drogas eles, os trabalhadores, não dariam aos polícias,
seriam ocupados pela própria milícia guerrilheira depois de alguma forte
incursão dos polícias na favela, por eles induzida através de denúncia anônima.
Seria assim.
Tudo estava planeado em minúcias, e eles
foram estabelecendo também suas rígidas regras de proteção, até com pena de
morte para quem denunciasse a formação que surgia como os vigilantes dos
seriados norte-americanos. E foi assim que montaram as senhas e os codinomes,
tudo com inspiração no Diabo e seus devotos: os capetas e belzebus, os exus e
demônios, os satãs e luciferes, os bruxos do inferno e dragões, os espíritos
das trevas e pais do mal, os canhetas e capirotos, os demos e coisas-ruins, o
cão-tinhoso e muitos outros, os malditos codinomes que lhes indicavam a sanguinária
vontade de matar bandidos.
E foi assim que o grupo de revoltosos
cresceu e se foi estabelecendo em hierarquia, tendo Menininho como líder
inconteste, que tinha discurso convincente mesmo com o seu curto vocabulário,
ou até mesmo por isso, porque, aliás, ali todos falavam pouco, porque não
conheciam as palavras e eram analfabetos de pai e mãe. Ademais, na cabeça
daquela gente não havia espaço para guardar palavras, mas havia espaço para o
ódio que se regava ainda com mais ódio, pois cada nova história de aviltamento
à dignidade de um deles era como a chuva que molhava a plantação de todos; e o
ódio, que era de um, era-o de todos.
E foi assim que surgiu a milícia favelada,
na surdina e esperando a hora de agir e acabar definitivamente com os facínoras
do morro e do baixio que formavam a grande favela da Vila Esperança, que ia do
cume ao manguezal da baía, um local condenado pela poluição movediça e
perigosa. Ali ninguém pisava, porque sumia na lama podre e nunca mais via o
sol. E ali os bandidos jogavam suas vítimas, formando um cemitério clandestino,
com caveiras sem nomes e sem números, caveiras rápidas de uma carne logo comida
por caranguejos. Era assim.
Mas era ali, naquele mangue fedegoso, que a
milícia favelada, logo denominada por Milícia da Vingança, pensava jogar também
os bandidos, um a um, dois a dois, dez a dez, muitos a muitos, sem limites, e
quanto mais rápido melhor. Mas, se lhes sobrava a vontade de matar,
faltavam-lhe as armas; todavia, elas viriam no bote da cobra que os fiéis
escudeiros da Milícia da Vingança dariam no arsenal dos bandidos na hora do
ataque dos polícias. Era o bote dos capetas e belzebus e satãs e outros diabos
que se marcavam na tatuagem da cabeça de bode no peito, o símbolo da maldade
que intentavam contra os maldosos facínoras.
Era assim, e foi assim, e lhes vieram as
primeiras armas e munições, logo escondidas para grande hora da vingança, e ela
viria, com certeza viria, e banharia de sangue a favela, como a tempestade
mortífera que de quando em quando também vinha ceifar as miseráveis vidas dos
favelados, mas não as vidas dos bandidos miseráveis, estes sempre bem
protegidos, enquanto os miseráveis honestos se esmigalhavam junto com as tábuas
velhas e as folhas-de-flandres enferrujadas e a lama pegajosa e sinistra.
5
Eram gestos e sinais convencionados, todos
muito simples, porém eficientes, que traziam a Milícia da Vingança em desejos
uníssonos. E assim planearam e executariam a vingança, cortando as sete cabeças
da Hidra de Lerna, matando os chefões que eles sabiam bem quem eram e onde se
homiziavam. Seria a ação feroz contra os facínoras, a um tempo só, a adaga da
vingança cortando-lhes as cabeças, a um tempo só, e os corpos deles afundados
no lamaçal do mangue, a um tempo só. Depois, seria a vez dos asseclas, sem
consideração de idade ou sexo, se criança ou adulto, pouco importava, todos
morreriam e seriam afundados na lama do mangue, a um tempo só. E, finalmente,
viria a liberdade da favela da Vila Esperança. Seria assim, mas demandava tempo
e cuidados, pois os bandidos eram às centenas, incluindo-se as pessoas que
trabalhavam no preparo da droga para venda à imensa clientela viciada.
Tempo e paciência de Penélope, além do ódio
e da sede de vingança. Por isso, quem dava as ordens era Menininho, e ninguém
mais. E mais assim ficou combinado depois que Menininho arrancou o pescoço de
um que queria mandar mais que ele. Então os outros viram que estavam bem
entregues, uma liderança boa, mas de nordestino cabra-de-peia, que agora odiava
o mundo todo, não somente os bandidos. Mas isto só ele sabia; ninguém do grupo,
da Milícia da Vingança, sabia que Menininho era outro homem; não era mais o
ingênuo nordestino cortador de tábuas; era o diabo em figura de gente.
E quando veio o dia da matança, ele não
mais parou de matar, com os bandidos morrendo no espanto dum ataque vindo de
dentro, que eles nunca sonharam e sempre esperavam que viesse de fora. E
morreram sem tempo de compreender que a morte resolvera não os avisar que
chegava com sua adaga afiada. E os corpos iam sendo jogados no mangue, as
caveiras aplaudindo e os caranguejos se fartando de carne podre. Tudo rápido
como a tempestade, e Menininho faxinou a favela e a dominou física e
moralmente. E depois foi catando os que se esconderam no medo, e a nenhum deles
deu perdão; deu-lhes, sim, a morte imediata, e o mangue podre, e o encontro com
suas próprias vítimas de outrora, as caveiras das vítimas aplaudindo a chegada
das carnes de seus algozes dadas aos caranguejos. E logo eram também caveiras
esquecidas. Foi assim.
Mas, quem pensava que a Milícia da
Vingança, da cabeça de bode tatuada no peito, viera para deixar a favela da
Vila Esperança sem crimes, enganara-se, porque isto foi só o início de tudo, o
povoléu aplaudindo os novos heróis, enquanto as famílias dos bandidos mortos se
escafediam em atabalhoadas mudanças para qualquer lugar, mas não sem antes as
mulheres grandes e pequenas serem sangradas entre as pernas. E, dos bandidos,
os heróis lhes ocuparam os barracos e lhes arrecadaram os despojos daquela
guerra cruenta que terminara com a retumbante vitória da Milícia da Vingança
liderada por Menininho, agora um príncipe valente. E, nesta hora, diante da
grande fortuna em dólares, e das armas, e de muita droga valiosa, à Milícia da
Vingança vieram-lhe a cobiça e a vontade de assumir a posição capitalista
daquela lei da oferta e da procura do tráfico. Sim, porque é o uso que faz o
tráfico, e não o tráfico que faz o uso. E foi assim que a cobiça venceu também
o bom senso. Sim, foi assim que a Milícia da Vingança virou banal quadrilha de
traficantes. Afinal, alguém tinha de vender a droga aos milhares de viciados
que a buscavam sofregamente...
6
Mas a favela era grande, nunca se esqueçam
disso, e tinha diversas entradas e saídas onde a droga era vendida no varejo e
a granel. E a droga chegava junto com a credibilidade do novo grupo de
traficantes, pois quem a trazia recebia o pagamento em dólares, e em dia certo,
e pouco lhe importando se era fulano, beltrano ou sicrano quem lhe dava paga.
Nada, portanto, mudara, somente as caras mudaram, mas agora com a promessa de
bem tratar as pessoas da comunidade da Vila Esperança. Ninguém mais se
precisaria preocupar com estupros de filhas e esposas, ninguém mais teria a
dignidade ferida, mas ninguém também podia evitar a ação dos polícias, que
vinham vindo sempre movidos pelo mesmo sentimento de cobiça, esta que
transformara a Milícia da Vingança em apenas mais uma quadrilha organizada de
tráfico em favela, o lugar-comum da força capitalista, da lei da oferta e da
procura, a procura sempre maior que a oferta, a razão do alto negócio que era
vender a droga mais e melhor até que vender comida.
E assim as crianças continuaram a ter suas
cabeças rachadas por balas perdidas, e os favelados, aos reclamos, acusando os
polícias, até que lhes viesse o esquecimento e morresse mais uma criança, e
houvesse mais uma manifestação inócua. E também a cobiça começou a trazer os
cismas e dissentimentos entre os antes trabalhadores e agora bandidos, todos
querendo mais e mais e mais. E foi assim que Menininho pôs mão pesada e partiu
à degola dos dissidentes, e o mangue, sedento de carne, pedindo-a sofregamente,
e assim surgindo mais e mais e mais caveiras, com as demais sempre aplaudindo a
chegada das novas.
E também foi assim que Menininho teve de
capitular em alguns pontos para se manter líder por vontade de todos, estes que
almejavam comer as meninas e as esposas de uns e tomar os barracos de outros. E
assim a Milícia da Vingança foi ficando pior, muito pior a emenda que o soneto.
Mas foi assim, tomando a favela do jeito que fizeram e falaram, que as mulheres
viram e aprenderam com aqueles homens como também um dia iriam fazer contra
eles. E elas se foram ajuntando em ódio ainda maior, as entranhas penetradas e
sangradas por inimigos que se diziam amigos, porque dizem que ira de mulher é
mil vezes pior que de homem. E foi a mulher quem fez o homem perder o Paraíso,
fez o homem morder a maçã do pecado, e fez a cobra colear-se pelo chão e morder
com venenosidade os calcanhares distraídos, graças a um Deus irado com o
primeiro casal do Éden.
7
Sim, é verdade que a favela era grande, mas
havia nela muitas mulheres vingativas, e não valia contar as que se fingiram
entregar para poder dizer depois que deram por vontade própria, e não por
temor. Estas ficaram de fora da confraria do Mal que se formava sob a liderança
de Maria, a mulher que fora rasgada entre as pernas pelo próprio Menininho, sua
Maria Bonita favelada, porque ela era muito bonita, e assim por ele alcunhada
para lembrar a outra, a do cangaceiro de outrora e o herói de Menininho. E a
Maria Bonita favelada era por Menininho ainda muito requisitada, e ia rápido, e
morrendo de medo do nordestino feroz. Mas ia com sede de vingança, porém
vingança de mulher estuprada e irada ao extremo, eis que possuída
voluntariamente pelo Diabo. E foi com esta égide maligna que as mulheres
fundaram a seita das revoltosas, fora da favela, como se fosse o lugar um
terreiro de macumba, só fachada a ocultar em seus subterrâneos a parafernália
do contra-ataque. Sim, porque a vingança era aos poucos engendrada, e o grupo
de mulheres ia crescendo e se armando em astúcia e em fuzis, metralhadoras e
outras armas poderosas. E lá se reuniam, em assembleias normais, e ficavam
deliberando sobre a vindita cruel que encetariam na Vila Esperança. Mas na hora
certa...
A tática seria exatamente a mesma, ou seja,
mandando os polícias contra os traficantes, que antes eram apenas
trabalhadores. E depois elas os matariam, sem pena, e lhes tomariam os
depósitos de armas, dinheiro e droga, já definido que também manteriam o
comércio de entorpecentes, para não contrariar as lei de oferta e da procura, e
não deixar os pobres-diabos dos viciados sem atendimento. Seria assim, já
estava vencida esta questão, mas havia antes a necessidade de vencer a Milícia
da Vingança, que já se tornara pior que os quadrilheiros de antes devido à
cobiça.
Mas elas sabiam disso, e assim deliberaram
que com elas não haveria a cobiça, mas o interesse comunitário e o bem-estar da
favela. Com elas haveria uma verdadeira revolução social a partir da exploração
do negócio com as drogas. E foi assim que instituíram suas regras do ataque e
da vingança, o que, porém, não lhes seria fácil nem rápido. E, se os homens
escolheram o Diabo e seus príncipes das trevas como codinomes individuais, além
da tatuagem do bode no peito, as mulheres instituíram a cruz tatuada na
virilha, bem escondida, e com o compromisso de ali homem nenhum vê-la, apesar de
elas poderem usar aquilo entre as pernas para receber quem bem o quisessem.
E mais fizeram, instituindo também seus
codinomes de mulheres bíblicas, exceto Maria, que se manteve Maria Bonita,
mesmo, que de seu apelido gostava, tal qual Menininho, a quem muito odiava, e
que um dia pensava derrotá-lo em matança cruel. Sim, este novo confronto seria
de muita astúcia e de muita morte, a morte dos homens e a vitória das mulheres,
é o que elas pensavam e diziam e planeavam nas reuniões de terreiro. Contudo,
muita desgraça ainda aconteceria na favela grande antes deste desfecho
histórico; muita lama ainda desceria e soterraria barracos e ainda haveria
muita gentalha amassada por entulhos pesados e misturados às carnes nas
tempestades sem aviso, com os pobres-diabos sempre achando que seu barraco é
seguro e que o barraco ao lado é que é o perigoso. E, na hora da enxurrada,
descem ambos morro abaixo e morrem todos morro abaixo. E, quem pensa que a
baixada está livre de desgraças, engana-se, pois não está, porque para lá vai
coisa pior, vai a lama de cima ou vem o incêndio feroz do bujão de gás
explodindo e o fogo lambendo os pobres-diabos de baixo, o fogaréu comendo tudo,
com os diabos pulando de contentes e comendo gente torrada, sem pena, ai que
delícia!
Mas tudo que é ruim passa, e a favela
renasce das cinzas e das lamas fedidas e volta a reinar a alegria de pobre, que
dura pouco, porque começam as entradas certeiras dos polícias matando os
vigilantes da outrora Milícia da Vingança, mas agora apenas traficantes ferozes
e até mais ambiciosos que os traficantes de antes. E, na surdina, as mulheres
lhes vão roubando armas e munição dos depósitos, e ainda lhes arrebanham na
confusão o dinheiro e a droga, deixando a discórdia disseminada entre os homens
da quadrilha, com Menininho desconfiado e matando seus asseclas que nada de
errado fizeram.
São as mulheres botando os homens para
comer as maçãs da discórdia, como Eva fez Adão comer a maçã do pecado, no
Paraíso, e acabou-se o Paraíso, e sobrou a Serpente se arrastando pelo chão e
mordendo os calcanhares, está dito e repetido. E as mulheres mordem os
calcanhares dos homens, e eles pensam que são mordidos por outros homens, e, no
fim, se matam entre si, ferozmente. E assim vem o descontrole, com Menininho
sem mais saber que fazer para liderar a quadrilha. E as mulheres nunca
aparecem, não se mostram, ficam em quietude cínica, e vão reunindo mais e mais
forças para o golpe final.
Nada de pressa, tudo com muito vagar, tudo
na insídia da Eva e da Serpente. Mas é assim que a cruz vence o bode chifrudo,
aos poucos, bem aos poucos, porque os homens são perigosos, porém morrem e se
matam e entulham o mangue de carne, com as caveiras aplaudindo os novos
hóspedes que não param de chegar, os caranguejos gorduchos esperando e querendo
mais e mais carne putrefata de traficante. E, de vez em quando, vem-lhes uma
carne de polícia incauto, de contrapeso, com os caranguejos adorando os
banquetes sucessivos.
E o tempo vai empurrando a vida na favela
grande, na Vila Esperança. Mas tudo continua sem controle, e vêm os bandidos de
fora e são rechaçados pelo que resta da turma de Menininho, uma horda cada vez
diminuída por mortes e mais mortes de tiros e facadas, e as mulheres morrendo
também, mas de rir deles, dos idiotas, que não percebem que o perigo ronda os
seus passos dentro mesmo da favela. E eles dormem e se enfiam por entre as
pernas gostosas das mulheres, mas não veem as cruzes nas suas virilhas, e são
muitas as cruzes nas virilhas, pois são muitas as virilhas, que só aumentam. E
tanto aumentam que ficam dez cruzes nas virilhas para cada bode no peito, e é a
hora do ataque final, mas nunca ostensivo, cada uma matando o homem que lhe
está gozando entre as pernas, cada homem tendo cravado em seu bode um tiro
certeiro ou uma facada, tanto faz como tanto fez, pois o efeito é o mesmo, é a
morte rápida, é o mangue, e são as caveiras contentes e aplaudindo a chegada
daquele montão de carne nova, e os caranguejos com indigestão de tanta carne
podre enfiada em seu hábitat.
É assim que as mulheres começam o seu
domínio, o primeiro domínio feminil da favela grande da Vila Esperança, que
agora é só das mulheres. Mas quem são elas, além de Maria Bonita, ninguém sabe,
mas todo mundo sabe que Maria Bonita cortara o pescoço de Menininho e pegara o
seu pequeno esqueleto de pouca carne e jogara-o no mangue; e foi o fim do
reinado masculino da Milícia da Vingança de Menininho, que, entretanto, ainda
muito durou. Sim, sim, porque muito tempo se passou até a virada da mesa, muita
tempestade matou muita gente, muito fogo torrou muitos favelados, até que as
mulheres definitivamente dominassem a Vila Esperança. E agora é que começa
mesmo a história; mas, antes, as mulheres tiveram que rechaçar muitas
quadrilhas de fora, que pensavam estar a favela entregue às baratas. Não estava
entregue às baratas, mas entregue às Serpentes de cruzes nas virilhas, e que
matavam sem alarde os que intentavam a tomada daquela cidadela de mulheres. E a
cidadela então se reorganizou...
8
A favela grande virou cidadela de Amazonas,
como o eram as mulheres guerreiras lendárias da Ásia Menor. Se existiram, ou
não, no passado, pouco importa, porque agora elas existem, sim, e têm suas
marcas nas virilhas, e querem mudar a vida do pobre, querem transformar o
comércio de drogas num ganho comunitário, e partem para tal desiderato de forma
organizada e inteligente, sem ambição individual, mas não que algumas não se
dispusessem a ser como fora-o Menininho. Mas morrem logo, e vão dar com seus
corpos inertes no mangue dos caranguejos contentes, e com as caveiras
masculinas aplaudindo as carnes femininas que chegam. E ficam apenas as unidas
em torno daquele objetivo de reorganizar o tráfico de modo discreto, porém tão
protegido dos ataques de fora como antes ou mais até.
E muitas das Amazonas nunca mais pisaram na
favela; ficaram de fora, em casas e apartamentos que funcionavam como lares
comuns e acolhedores. E para ali elas levavam os namorados polícias, e lhes iam
corrompendo ou matando-os na surdina e bem longe da favela que eles estavam a
incomodar com ataques clandestinos. Ninguém morria na favela, somente em casos
extremos e sem outra saída. Por isso, os caranguejos começaram a emagrecer, e
as caveiras choravam a ausência de carnes novas que se demoravam a chegar. Mas,
de longe em longe, caíam no mangue e afundavam algumas carnes de polícias e de
traficantes que tentavam tomar de assalto aquela cidadela. E entravam sem
resistência, até que as meninas bonitas, que os olhavam em flerte,
enfiavam-lhes os estoques na hora do boquete ou do gozo entre as pernas, ou
lhes davam tiros abafados e lhes escondiam as carcaças, até que todas fossem
mandadas aos felizes caranguejos do mangue da favela. E depois vinha a panelada
de caranguejo para o povoléu, agora contente, e sem fome, e sem sede, e sem
doenças, e sem valas negras, e sem mais tempestades ameaçando, pois as águas
antes ferozes agora desciam e corriam ao mar canalizadas em tubos e valas
concretadas pelo dinheiro da cocaína, assim como o fogo era controlado por
milícias de jovens treinados em apagá-lo por bombeiros na folga, muitos deles
moradores ali mesmo na favela.
E a favela parecia que nem tinha venda de
droga, pois as bocas-de-fumo não eram ostensivas, e cada viciado sabia onde
pegar a droga, em lugares diferentes, e muitos deles fora da favela, e que
assim nunca chamavam a atenção de ninguém, e muito menos dos polícias, e muitos
polícias, também drogados, ou comprados, ou também favelados, fingiam nada ver.
E as mulheres comandadas por Maria Bonita foram se tornando poderosas e
ensinando às mulheres de outras favelas como fazer para dominar os homens, ou
melhor, para eliminá-los da face da terra, mandando-os servir ao Diabo, até que
as novas mulheres com cruzes nas virilhas mandassem em muitas outras favelas.
E foi assim que o tempo foi ajuntando
favelas grandes e pequenas em reinados de Amazonas dos tempos modernos, e se
foi formando um império de mulheres na cidade, agora invertendo-se o mando,
porque a cidade se tornou pequena e as favelas grandes demais e dominadoras, as
cidadelas dominando a megalópole asfaltada por conta da droga e da astúcia
feminina. E, por que não dizer, da maldade?... Porque as mulheres eram boas de
matar, e matavam com classe e sem pena, e matavam muitas vezes na hora em que
recebiam suas vítimas entre as pernas e sem ação, o homem idiota e subjugado
pelo mistério feminino. E quanto mais as mulheres mandavam nas favelas, mais
também elas ocupavam a cidade, as casas e os apartamentos, passando de
empregadas a patroas, e as patroas sem empregadas, e tendo que lavar, e passar,
e cozinhar, e chorar. E também os patrões sem mais homens querendo ganhar
pouco, e, sim, querendo ganhar mais vendendo cocaína e maconha para as líderes
mulheres; e sempre muito obedientes, senão simplesmente morriam e iam dar com
seus corpos inanimados no mangue dos caranguejos famintos, estes que depois
vinham às panelas dos não menos esfomeados favelados. Era a lei da vida, da
sobrevivência das espécies. Era a lei da oferta e da procura sagrando-se
novamente vencedora.
Nos dois casos, porém, sobravam restos de
cascas de caranguejos e ossos de favelados, que voltavam ao mangue, e as
caveiras sorriam, meio sem graça pela falta de mais carne, porém sabendo que
muitos anos depois virariam petróleo para abastecer os carros da cidade
dominada pela cidadela de Maria Bonita, esta que não era a de Lampião, mas
igualmente idolatrada, um mito contemporâneo, a única rainha que reinava
paralela aos agora fracos reinados oficiais do asfalto limpo. O dela era o
reino do submundo, do submundo das favelas igualmente limpas e sem mais a
miséria, esta que finalmente fora vencida pelo socialismo da droga vendida e do
lucro transformado em justiça social do favelado, por conta do crime dividido
entre eles e elas das favelas. Só o dinheiro da renovação do estoque era
sagrado, e por isso a droga vinha boa e nunca faltava, assim como nunca faltava
viciado atrás dela, e sempre aumentando em quantidade. Era assim, e foi assim
que Maria Bonita, de lá do pico do morro da Vila Esperança, do lugar predileto
de Menininho, de lá ela mirava toda a cidade subjugada a seus pés. Era de lá
que ela constatava, entorpecida em incontida felicidade, que finalmente as
mulheres venceram os homens e melhoraram tudo. E pensou em Maria da Fé, no idealismo desta guerreira baiana, que, liderando a
sua Milícia do Povo, lutou até a
morte por um mundo melhor para os pobres, como ela, um mundo cujo objetivo “não
é bem a igualdade, é mais a justiça, a liberdade, o orgulho, a dignidade, a boa
convivência”, conforme assim gravou nos anais da História o mestre João Ubaldo
Ribeiro, já dizendo que “isto é uma luta que trespassará os séculos...” E foi
assim, sonhando assim, em devaneio de um espírito fora do corpo e distante, que
Maria Bonita acordou em sobressalto. E, imitando a heroína Maria da Fé, gritou, emocionada: “Viva o Povo Brasileiro!” E se
assustou com um outro grito familiar, que a trouxe de volta à realidade que
estava assim perdida no tempo do sonho sonhado:
– Acorda, Maria Bonita! Levanta, vai fazer
café!.. E esquentar logo minha marmita, pô, que o dia já vem raiando, e eu tô
atrasado pro trabalho, pô!...
Era o marido Menininho, que gritava à
atônita Maria, a nordestina bonita, a mulher amada, que logo pulou fora do seu
catre miserável e foi à trempe improvisada na pedra acender o fogo no pedaço de
pau para esquentar a água, depois de mais uma noite maldormida e cheia de
pesadelos de favelada paupérrima, que ontem vivia no casebre e na senzala, e
hoje vive em seu barraco na favela grande da Vila Esperança ou em outra favela
qualquer de qualquer cidade grande de qualquer lugar do Brasil. Foi assim, é
assim, e será sempre assim, graças a Deus...
*CONTO
TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO, PUBLICADO EM LIVRO (BAIRRO DE LATA) JÁ
ESGOTADO.
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