sábado, 13 de maio de 2017

COSME E DAMIÃO








A primeira impressão que se tem do título é a de que vou narrar alguma história de santo. Mas, não! Não vou. Vou, sim, contar as peripécias de uma dupla de PMs que a coincidência uniu em determinada época de suas carreiras na Polícia Militar. João Cosme Fernandes e Damião Capistrano Ferreira, nascidos distantes um do outro, mas que a vida policial acabou unindo em amizade.
Ainda recrutas receberam seus nomes de guerra Cosme e Damião, porém em épocas diferentes. Cosme, – dez anos mais velho de idade e de corporação, –  e Damião, – recruta recém-formado, – acabaram se encontrando no 7º Batalhão da PMERJ, em São Gonçalo. Curiosamente, Damião tinha tudo para se radicar em Nova Friburgo, sua terra natal. Contudo, preferiu ficar por São Gonçalo, a fim de conhecer novos lugares, dando asas ao seu espírito irrequieto de moço jovem, de vinte e dois anos. E lá encontrou Cosme, PM experimentado e gonçalense de origem.
A chegada de Damião ao quartel provocou verdadeira algazarra entre os colegas, que logo associaram ambos aos santos gêmeos Cosme e Damião. E começaram as gozações, que ambos aceitavam de bom grado. E talvez por causa dessa coincidência acabaram juntos em radiopatrulha, formando uma dupla que se tornaria inseparável.
Segundo as normas internas da corporação, o recruta, – carinhosamente chamado pelos antigos por bola-de-ferro, – sempre acompanha PM mais experiente. Contudo, o comandante teve a feliz ideia de formar uma literal dupla de Cosme e Damião, como assim é ela denominada em linguagem de quartel desde muitos anos. Qualquer que tenha sido a verdadeira razão, – que talvez nunca se saiba, – e que pode ter sido obra do Destino, lá estavam eles, o PM Cosme e o PM Damião, formando uma guarnição de radiopatrulha no 7º BPM.
Cosme era mulato, de 32 anos, casado com Ana Paula, e pai de um casal de filhos – Renata e Rodrigo. Morava com a família lá mesmo, em São Gonçalo, no bairro do Paraíso. Damião era solteiro e fazia do quartel residência. Era “percevejo”, como assim era tratado quem servia e morava em quartel. E mantinham ambos um papo animado desde quando se conheceram, como se fossem amigos de longa data. Gostavam muito um do outro, eram almas gêmeas. Toda essa coincidência ocorreu no ano de 1985.
Cosme e Damião concorriam a uma escala de serviço de 24 por 48 horas. E, nas 24, descansavam oito delas, ou no quartel ou dispensados para desfrutá-las em casa, o que se chama na briosa de “picadinho”. Isto porque o serviço de radiopatrulha é deveras movimentado, além de varar a madrugada. É, portanto, muito cansativo. Mas eles nunca reclamavam, gostavam do que faziam, eram dois PMs de autêntica vocação.
Certo dia, numa sexta-feira de manhã, quase que a dupla se desfaz. Faltou pouco, muito pouco mesmo, para que Damião visitasse mais rápido o além-túmulo. Estava a dupla de serviço no Centro Comercial de São Gonçalo quando entrou no rádio o chamado:
– Atenção, RP 2766! Atenção RP do setor alfa! Atenção! Assalto em andamento no Banco do Brasil! – comunicou a Central de Operações do Comando de Policiamento do Interior (CPI), costumeiramente designada por maré-três-meia.
– Positivo, maré-três-meia! positivo! RP 2766 procedendo ao local! Informe se entendido! – respondeu Cosme ao chamado, com Damião ao volante da patrulha.
– Entendido! Proceda rápido! Policial trocando tiros com três assaltantes!
– Positivo! RP 2766 procedendo!...
Chegaram rápido, ambos fremidos por natural nervosismo, principalmente Damião, que enfrentava sua primeira prova de fogo. O tiroteio estava intenso, as pessoas correndo a se abrigarem, e o PM que fazia a segurança no banco sustentando sozinho o confronto.
A chegada da dupla deu-se em hora certa. O pobre-diabo do PM estava ficando sem munição quando recebeu o providencial reforço de Cosme e Damião, que partiram à escaramuça em valentia, fazendo com que os bandidos recuassem da audácia inicial e se refugiassem no interior do banco, onde os três PMs adentraram. E foi nesta hora que Damião, na empolgação, esqueceu-se de recarregar o revólver, estacando sem ação diante de um dos assaltantes que lhe apontava a pistola. Damião direcionara a sua arma contra o meliante, apertara o gatilho e nada saíra... O bandido, com um sorriso de raiva no canto da boca, gritou-lhe: “Você já era!”
Neste átimo Cosme atirou ferindo gravemente o assaltante, com Damião perplexo e sem reação. Os outros facínoras, ao verem o comparsa ferido, preferiram se entregar, sendo imobilizados pelo PM segurança do banco. Damião saiu do torpor e se dirigiu ao parceiro:
– Puxa, Cosme! Se não fosse você eu agora estaria morto!...
– Ora, Damião, isto acontece! Mas sei que com você nunca mais ocorrerá distração nenhuma...
– É verdade, amigo! Reagi em empolgação e me esqueci de recarregar o revólver. Que susto! Obrigado!
Depois das formalidades na delegacia, a dupla retornou ao quartel. Foram recebidos como heróis pelo comandante e pelos colegas. No resto do dia, no descanso do picadinho,  não se falava outra coisa que não fosse: “O Cosme salvou o Damião!”
O meliante ferido não morreu, o que de certa forma deixou contente o PM Cosme. Sim, tão contente ele estava, – e mais por ter salvo o amigo, – que o convidou a almoçar em sua casa, no domingo, dia da segunda folga de ambos.
– Damião, domingo quero você lá em casa pra almoçar comigo e a patroa. Vamos dar uma variada na boia, principalmente você, que não dispensa esse rango do quartel. Domingo você vai comer comida de primeira, feita por Ana Paula. Vê se não atrasa, OK?
– Poxa, amigo! Você me salva e ainda vai me proporcionar um almoço especial?... Obrigado, mais uma vez! Chegarei na hora, pode deixar.
De noite, lá estava a dupla novamente circulando no setor alfa. A viatura era um fusca bem conservado, mas bastante antigo. Não tinha problema o carro ser velho; eles gostavam do carrinho e dele cuidavam com zelo. Tudo parecia tranquilo, com eles percorrendo as vias públicas do roteiro fitando com olhares atentos o ambiente, quando entrou a mensagem no rádio:
– Atenção, RP 2766! Atenção! Diga se está na escuta...
– Positivo! positivo! RP 2766 na escuta! Pode transmitir! – respondeu Cosme operando no rádio, com Damião atento e ao volante da viatura.
– Correto! Socorro a idosa com mal súbito ao pé do morro do Menino Deus. Proceda rápido ao local. Diga se entendido!
– Positivo! Entendido! Viatura procedendo!
Sirene e giroscópio ligados, lá se foi a patrulhinha socorrer a idosa. Neste momento a dupla pouco falava, mas Cosme resolveu alertar Damião sobre os perigos do lugar:
– Damião, preste atenção, ali é lugar de traficantes. Eles geralmente não atacam a patrulha quando ela vai socorrer alguém da comunidade. Mas fique de olho aberto. Todo cuidado é pouco...
– Positivo, Cosme! Mas é esquisito isso, né? Na hora que estamos socorrendo alguém nas favelas do setor os bandidos não incomodam; mas se chegarmos pra dar uma geral num viciado eles vêm pesado ao confronto. Como é que pode?...
– Ora Damião, cada lugar tem regras naturais, e são as mais obedecidas. Já notou que no quartel é igual?...
Igual? Como igual?
– Depois eu explico! Lá está a mulher. Vamos nesta!
Desceram rápido da viatura, com a moça, que parecia ser a filha, suplicando:
– Ai, moço! A mãe tá morrendo! Ajude-nos! Ajude-nos!...
– Calma! calma! Vamos colocá-la no carro. Você vai junto, no banco de trás – determinou Cosme, iniciando a manobra de acomodar a idosa no interior da patrulha...
E partiram velozes para o Hospital Luiz Palmier, sirene rasgando o ar e giroscópio espalhando fachos de luz vermelha e laranja em torno do nervoso carrinho durante o trajeto. E chegaram, vindo logo a equipe médica socorrer a idosa, levando-a para o interior do hospital. Eles ficaram anotando no Talão de Registro de Ocorrência (TRO) o auxílio à cidadã em via pública, colhendo os dados com a filha da paciente:
– Nome e endereço – indagou Damião à moça.
– Meu nome é Sheila Maria Ferreira da Silva, mas com agá...
– Bonito nome! – comentou Damião, achando graça do detalhe que a moça fizera questão de declinar. – E o endereço?
– Bom... Põe Morro do Menino Deus... Põe Associação de Moradores, que todo mundo sabe...
– A sua idade, por favor?
– Vinte anos. Sou filha dela.
– E o nome e a idade dela?
– Ela se chama Maria das Graças Ferreira da Silva; tem cinquenta anos.
– Sua mãe é nova, mas parece bem mais velha...
– É verdade! Vida de favelado é assim mesmo! Mamãe ficou viúva muito cedo e batalhou muito pra me criar. Tadinha dela! Não sei que fazer se ela me faltar – choramingou Sheila.
– Calma Sheila! Vai dar tudo certo! Os médicos a socorreram muito rápido. Ela vai ficar boa.
– Tomara Damião! Engraçado... Só agora notei que o outro é Cosme e você é Damião... Os santos gêmeos...
– É coincidência. Mas somos, sim, Cosme e Damião, como os santos...
– Pra mim, não é coincidência! Se mamãe sair dessa, vou fazer uma homenagem aos santos. Vou distribuir doces em vinte e sete de setembro...
Isto eu faço sempre, ou então peço a alguém pra fazer por mim quando estou de serviço. Olha, lá vem o médico...
Pela fisionomia do doutor, foi fácil perceber que ficara tudo bem, a paciente estava fora de perigo. Tivera apenas um mal-estar, talvez consequência de estresse. Mas estava medicada e liberada. Sheila se emocionou e abraçou-se a Damião agradecendo. Foi quando seus olhares se cruzaram e Damião pôde perceber que por trás daqueles olhos de azeviche havia um rosto lindo.
“Sim, Sheila era uma bela morena”, pensava, enquanto recebia com alegria o abraço de agradecimento. Em seguida, Sheila abraçou também o miliciano Cosme, com Damião ainda enlevado: “Que isso, Damião? Sua roseira balançou com essa garota?”, cogitava Damião de si para si enquanto via a moça abraçar seu parceiro Cosme. Depois se despediram, com Sheila dispensando o retorno na patrulha, eis que preferira a oferta do presidente da Associação de Moradores, que para lá se deslocara e se oferecera para pagar a corrida do táxi.
– Cosme, viu que garota bonita? – comentou Damião ao entrar no carro.
– Ih! Será que o amigo gamou pela favelada? – gracejou Cosme.
– Não sei, não sei... Mas confesso que gostei muito daquele olhar. Ela me pareceu ser boa moça. Viu como se preocupou com a mãe?
– É verdade! Também tive dela ótima impressão. O difícil será vê-la novamente. Nossa rotina é infernal! A não ser que você vá lá pra ver Sheila e acabe recebendo uma saraivada de tiros...
– Eu sei, eu sei! Lá não dá pra ir, muito menos na folga. Mas acho que ela gostou de mim. Eu lhe dei o telefone do quartel... Quem sabe liga?...
– É... Quem sabe liga? Cá entre nós, já é hora de você deixar de ser percevejo – gracejou Cosme, arrancando do amigo uma gostosa gargalhada.
Naquela noite, – antes de amanhecer o dia de sábado, – Cosme e Damião ainda atenderam a um acidente de trânsito sem vítima e ajudaram a acalmar os ânimos dos acidentados. Depois correram atrás de uma dupla de suspeitos, que partiu em disparada ao ver a patrulhinha.
Noite movimentada, como sempre, com situações variadas e inusitadas, como a última ocorrência que a dupla enfrentou: uma confusão num ônibus decorrente de flagrante de adultério. E lá foram eles para a delegacia, levando o marido, a mulher infiel e o amante, eis que o casal adulterino fora flagrado pelo marido traído. Na delegacia, o marido e a mulher discutiam asperamente, em obscenas e mútuas agressões verbais, que de quando em quando obrigavam aos PMs a interferência no sentido de acalmá-los. Mas não adiantava:
– Você é safada! Sem-vergonha! Descarada! – vociferava o marido traído.
– E você? Tá pensando que não sei da sua amante, seu safado de uma figa! – retrucava a mulher.
– Pior é você, namorando no ônibus esse babaca como se fosse a esposa dele. Tá pensando que sou o quê?
– Corno sabido e babaca, é o que você é! – retorquia a mulher.
– Olha aqui, camarada! Babaca é você! Eu tô quieto aqui, e você me chamou de babaca! Pois saiba que babaca é você! E corno também, pois você é que é casado com essa vaca! – estrilou, ofendido, o amante.
– Olha aqui, seu babaca! Que você seja o amante da patroa, tudo bem, não posso evitar... Mas não xinga palavrão na frente dela, não, que é desrespeito!
Todos ouviam atentamente a discussão do trio, inclusive o delegado, os detetives, e a dupla de patrulheiros. E ninguém mais aguentou prender a sonora gargalhada que até então estava sufocada na garganta de todos que assistiam àquela inusitada cena...
Tudo mais calmo, os PMs anotaram tudo no TRO (Talão de Registro de Ocorrência) e partiram ao quartel. Era final de serviço. E que serviço!... Desfeita a dupla, tanto na casa de Cosme como no alojamento do quartel, Cosme e Damião, respectivamente, roncavam no sono dos justos... Mas Damião sonhava com Sheila...
No domingo, por volta de onze horas, Damião chegou a casa de Cosme, no bairro do Paraíso. Era uma casa de fundos, meiágua, porém bem cuidada. Na frente moravam os pais de Ana Paula, que cederam o terreno dos fundos para a construção da casa da filha.
O quintal entre uma casa e outra era comum e local de brincadeiras das crianças de Cosme e Ana Paula. Renata, a filha, estava com seis anos; Rodrigo, o filho, com quatro anos de idade. Era uma família feliz. Vivam modestamente, porém com dignidade.
Em toda a frente da meiágua havia uma varanda confortável e ampla, o melhor lugar da casa. E ali estava posta a mesa para o almoço, na direção da porta da cozinha. No outro extremo, os bancos de madeira rodeavam uma pequena mesa onde estavam apoiados os copos e a cerveja gelada dos parceiros Cosme e Damião, que rememoravam as peripécias da sexta-feira.
– E o corno? – gracejou Cosme, provocando a primeira gargalhada do dia, com Ana Paula ouvindo de longe...
– Puxa, Damião! Cosme me contou a do corno; que coisa estranha, o camarada admitir ser corno, mas não permitir que o Ricardão xingasse perto da infiel mesmo sendo corno sabido! – comentou Ana Paula, da porta da cozinha. – Conta aí, Damião... e a história da garota favelada? Cosme também me contou que seu coração balançou pela menina. Tá na hora de você pensar em arranjar uma namorada; senão, você vai começar a passar por... Ou então vai ter filho chamando o pai de vovô...
– Passar por quê, Paula?...
– Ora, parceiro... Quem não se define é o quê? – gracejou Cosme. – Precisa dizer? – completou.
– Claro que não! Mas é ruim, hein? Você acha que levo jeito?... E como vou fazer para reencontrar Sheila? Não me foi possível saber nada dela. Só se ela ligar...
– Se ela estiver a fim de você, ligará! – comentou Ana Paula lá da cozinha, de ouvidos cosidos na conversa entre os parceiros.
O almoço transcorreu em clima de descontração. Vieram os pais de Ana Paula participar e todos permaneceram numa boa cavaqueada até quase anoitecer, quando então Damião resolveu retirar-se. Ele estava com ideia de ir ao bairro do Pita para ver um show de samba e pagode do grupo Clarão da Lua na casa de espetáculos conhecida como Segunda Sem Lei, local sempre lotado aos domingos.
Era próximo de vinte e uma horas, ainda cedo, quando Damião chegou. O ambiente ainda estava com poucas gentes e ele buscou uma mesa bem situada em relação ao palco. Veio-lhe o garçom e ele pediu uma cerveja, que ficou bebericando bem lentamente, a fim de esticar o líquido e a grana curta que levava na algibeira.
Às vezes a cerveja esquentava no copo, mas, fazer o quê, com aquele salário que mal dava para empurrar o mês? Ele até que esticava bem a grana, porque era “percevejo”. Também não se desgastava para aumentar seu ganho em segurança particular, como fazia Cosme nos dias de folga. Tudo bem. Estava satisfeito e tranquilo naquele ambiente saudável, quando de repente viu em frente dele aquela figura feminina que fez seus olhos brilharem. Ele não acreditou: era Sheila, sorrindo, e a ele se dirigindo:
– Olá, Damião! Que bom encontrá-lo aqui!... Hoje liguei lá pro quartel, por volta de cinco horas da tarde, pra convidar você a vir aqui comigo. Mas me disseram que você não estava. Fiquei frustrada...
– Poxa, que sorte encontrar você aqui! Eu estava almoçando na casa do Cosme, e falei muito sobre você. Você foi o assunto do dia. Inclusive Ana Paula, a mulher dele, ficou doida para conhecer  você...
– Falou mal ou falou bem? – gracejou Sheila, satisfeita em se saber lembrada.
– Falei bem, claro! E muito bem, por sinal. Eu estava preocupado de não mais lhe ver. Você sabe como é... Lá na favela eu não posso ir a não ser pra socorrer alguém. Caso contrário, você sabe como é...
– Eu sei. Que coisa chata a gente morar num lugar, e não poder receber uma pessoa em casa! Mas eu também ia ficar com vergonha... Minha casa não passa de um pobre barraco.
– Isso não é problema pra mim. A minha casa não passa de um pobre quartel... Sente-se aqui comigo, Sheila – convidou Damião a garota que ele não mais duvidava ter roubado seu coração.
O resto da noite foi inolvidável. Damião contou toda a sua vida para Sheila e vice-versa. Dançaram e acabaram namorados. Ali o cupido flechou a ambos bem no alvo. Sheila então pôde informar a Damião que trabalhava no Rodo de São Gonçalo, numa loja de sapatos femininos, e que estudava o Supletivo na Escola Estadual Nilo Peçanha, na Praça do Zé Garoto. E a partir desse dia Damião passou a se encontrar com ela na saída do colégio e a levá-la até próximo à favela, de onde retornava de distância segura. E no final da semana pôde apresentá-la à Ana Paula. Ambas ficaram grandes amigas.
Num certo fim de semana, Damião levou Sheila até Nova Friburgo, juntamente com a mãe dela, para apresentá-las à família dele. Elas foram muito bem recepcionadas pelos pais e os dois irmãos de Damião, ambos adolescentes e estudando o segundo grau.
A família de Damião vivia razoavelmente bem, em casa própria, no bairro de Conselheiro Paulino, um pouco afastado do centro da cidade. O pai de Damião, de nome Laurindo, era antigo funcionário da Caixa Econômica, já aposentado. Muito controlado, pôde adquirir bom lote de terreno para cada filho no próprio bairro, bom começo para Damião, que pensava construir uma casa, ainda mais agora que seu relacionamento com Sheila firmara-se sério e ele estava realmente apaixonado.
Na verdade, Damião não desejava que Sheila ficasse por muito tempo na favela. Conversou com seu pai, este que lhe prometeu ajuda na construção de uma meiágua nos fundos do terreno para quando se casasse. Depois faria uma casa maior na parte da frente.
A mãe de Damião, Dona Claudiomar, adorou a futura nora e a mãe dela. Conversaram muito naquele fim de semana, com as duas famílias totalmente integradas. Dali, ninguém mais duvidava: os frutos de uma nova família brotariam em pujança. Mas na segunda-feira lá estava Damião, em dupla com Cosme, na radiopatrulha, para mais um dia de serviço em São Gonçalo, no setor alfa.
– RP 2766! RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta, maré-três-meia, na escuta! – respondeu Cosme.
– Positivo! Proceda ao clube Mauá, pessoa acidentada com queimadura.
– Positivo! Procedendo ao local.
Um funcionário do clube acabara de se acidentar com o fogo da explosão de uma lata de cera. Ele colocara gasolina na cera e acendera o fósforo para fazer com que a parafina derretesse. Sua desatenção provocara o acidente, a combustão descontrolada queimara-lhe boa parte do corpo. Ele estava sem a camisa e recebera em cheio o fogaréu resultante da combustão.
Cosme e Damião chegaram rápido e socorreram o pobre-diabo até o hospital, sendo ele imediatamente atendido. Parecia passar bem durante o trajeto, chegando inclusive a conversar normal com os patrulheiros. Mas uma hora depois de dar entrada no hospital estava morto. Final triste para a dupla de patrulheiros, que ainda encerrava a ocorrência aguardando o acidentado para lhe anotar os dados pessoais. Entristeceram-se deveras, ainda mais por saber que o trabalhador morrera apenas devido à sua falta de orientação.
– Puxa, Cosme, esse tipo de ocorrência acaba comigo! É isto e acidente de trânsito. Quando a gente consegue salvar o acidentado, dá um prazer danado. Mas quando ele morre é muito chato!...
– É verdade, Damião! Venho de longe socorrendo pessoas. Vá se acostumando porque aqui em São Gonçalo o que mais acontece é atendimento a pessoas doentes ou acidentadas! Para cada dez ocorrências há no mínimo oito assistenciais. Somente duas são de natureza criminosa. Geralmente é assim, é a miséria do povo, Damião, é a miséria...
O resto do dia foi de desagradável sensação. Cosme e Damião estavam consternados com a morte do trabalhador. No horário do picadinho procuraram descansar, mas não conseguiram dormir, como sempre faziam à tarde, para poder virar a noite em atividade. À meia-noite, porém, já estavam nas ruas, atentos ao serviço, ligados à rotina dos imprevistos que caracterizam o árduo e perigoso serviço de patrulhamento. E, não demorou muito a entrar no rádio:
– Atenção, RP 2766! Atenção! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta, maré-três-meia!
– Positivo! Tiroteio no setor beta, patrulheiros precisando de apoio. Troca de tiros com assaltantes de ônibus. Proceda rápido!
– Positivo!
O tiroteio acontecia no setor beta, que abrangia o bairro do Rocha. E para lá partiram os patrulheiros, sirene e giroscópio ligados e a toda velocidade. Não chegaram. De caminho, Damião perdeu a direção do fusca e abalroou um ônibus que lhe surgira à frente na dobra de uma esquina. Não deu tempo de desviar e lá ficou o fusca todo amassado e com um pneu dianteiro estourado.
– Maré-três-meia! Maré-três-meia! Acidente com viatura! Impossível proceder ao local para apoio aos companheiros.
– Positivo, RP 2766! Há outros companheiros acionados no apoio. A supervisão irá proceder até vocês. Informe se tem alguém ferido...
– Negativo! Nenhum ferido!
– Prioridade! Prioridade! Maré-três-meia na escuta! Aguarde, RP 2766.
– Positivo! Aguardando.
Cinco minutos após:
– Maré-três-meia chamando RP 2766!
– Na escuta! Informe!
– Positivo! Aguarde apoio. Vai demorar. Companheiro gravemente ferido em decorrência do confronto. Prioridade máxima! Aguarde!...
– Positivo! Informe qual RP que teve o companheiro ferido?
– Positivo! Foi a RP do setor beta. Os bandidos morreram no local, mas o companheiro faleceu a caminho do hospital. É o PM Castro, positivo?...
– Positivo!...
Cosme olhou para Damião já com os olhos marejando em lágrimas. O PM Castro era grande amigo de ambos...
– Que merda! – bradou Cosme. – Logo o Castro, com aqueles filhos pequenos...
– Calma Cosme! Calma! – tentou Damião confortar o companheiro.
– Como me acalmar, amigo? Você sabe o que é ter filhos e pensar no futuro deles? Ainda não sabe, mas vai saber. Não é fácil imaginar a aflição da família. Castro era um garoto, apenas pouco mais velho que você. E você sabe como ele era dedicado ao trabalho e à família!... Agora está morto! Quem se lembrará de sua família? É fogo, irmão! É fogo!...
– Sei disso, amigo! Mas é assim a vida de PM. É perigo a toda hora e muita incompreensão. Também é certo que neste momento há outros companheiros nossos, principalmente no Rio, se ferindo em confronto ou até morrendo. Sei que é duro, mas é assim...
– É verdade! Eu confesso que hoje não tenho mais condições de trabalhar. Ainda bem que não tem viatura extra. Nós seremos dispensados, talvez. Mas vou pedir ao tenente para deixar a gente dar apoio à família do Castro quando a gente chegar ao quartel.
– Tem razão, Cosme. Vou com você...
Foi de tristeza o dia seguinte. O sepultamento do patrulheiro assassinado ocorreu no final da tarde. Cosme e Damião permaneceram durante todo o tempo apoiando a esposa do companheiro. Ana Paula e Sheila ajudavam a confortar a viúva, que se mantinha abraçada aos dois filhos menores, um de três e outro de dois anos de idade.
Luto no batalhão. Silêncio, reflexão isolada dos PMs, cada qual especulando sobre suas incógnitas. Ninguém falava com ninguém. Passeavam no pátio com os olhos cosendo o chão em tristeza profunda e certo temor individual.
O vazio deixado por mais um companheiro morto ultrapassava os limites da ausência e preenchia os pensamentos com desalento e apreensão. Era momento de presságio, de constatação dos riscos por vezes esquecidos no dia a dia do serviço de patrulhamento. Porém, a vida perigosa e dinâmica do patrulheiro logo lhes levantaria o ânimo, porque os bandidos não descansam e se proliferam, o quartel não pode parar e as ruas não podem esperar...
Assim amanheceu a quarta-feira, dia de descanso para Cosme e Damião. Eles resolveram passar o dia com a esposa e a noiva, Ana Paula e Sheila respectivamente. Estavam consternados e comentando a morte do PM Castro. As horas transcorreram pesadas, ainda mais por ser em meio de semana, com poucos atrativos para quem fica em casa.
– Sabe de uma coisa, Damião, folga em meio de semana é sem graça. Mesmo quando nada ocorre, mesmo quando as coisas vão bem, ficar em casa é um saco! A gente acaba interferindo na rotina da patroa e perturbando o ambiente. Aos sábados e domingos, tudo bem, mas as folgas da semana são realmente chatas. Eu até minimizo a chatice porque corro atrás do complemento salarial na segurança. Mas quando fico sem ter o que fazer sinto um vazio que me incomoda deveras.
– Pior sou eu, Cosme, que não posso ir pra casa, e tenho de ficar no batalhão. Lá tem sempre oficial me pedindo pra pagar alguma prestação na rua ou outro incômodo qualquer. E não sou doido de dizer que estou de folga, que preciso descansar, isto é arranjar inimigo certo. Você sabe como é soldado no quartel. Ele quer serviço... Acho que inventaram isso só pra percevejo...
– Ah, é verdade. Acho sua situação mais chata que a minha. Por isso é que eu lhe disse que no quartel também existe o lado natural, que você tem que se adaptar para não aborrecer os superiores. Não basta somente cumprir o regulamento, que é marreta de cima para baixo... Mas, mudando de assunto, você tem de desencalhar. Tá passando da hora com Sheila...
– Oh, tão falando de mim? – interrompe a garota tentando animar os companheiros. – Olha, amor, quando a gente se casar não vou deixar você ficar sem nada pra fazer, não. Vou arranjar algo pra você fazer junto comigo, tipo um trabalho que você possa participar. Outro dia, conheci Marialda, casada com o sargento Farias Ela me disse que os dois fazem bolos e salgadinhos pra fora. Ganham um bom dinheiro e estão sempre animados – concluiu Sheila.
– É, amor. Quem sabe se eu não daria um bom confeiteiro... Mas acho que pra isso não levo jeito, não. Talvez eu faça um curso de cabeleireiro...
– Opa! opa! Será que ouvi bem? – gracejou Cosme sobre o comentário de Damião.
– Que isso, Cosme! Tô só brincando porque Sheila quer me botar confeitando bolo, que é mais ou menos a mesma coisa, coisa de mulher... Na verdade, acho que tenho de inventar profissão, talvez relojoeiro ou técnico de rádio e tevê. O que não quero é me meter em segurança, ficar acordado trabalhando em noite de folga. Você mesmo tem de se preocupar com isso, que assim a sua saúde vai pro espaço...
– Pô, Damião, é verdade! Tem vez que fico caindo aos pedaços durante o serviço porque virei a noite na segurança. Sei que é perigoso, que me diminui o reflexo, e que me pode ser fatal numa hora qualquer. Mas que vou fazer, se não sei trabalhar em nada diferente da atividade policial?... E ainda corro o risco de dar azar e ser desligado da PMERJ. Vou ter de trabalhar de servente de pedreiro...
– Ah, vira essa boca pra lá! É melhor ficar no aperto e tentar fazer curso pra sargento! – comentou Ana Paula, ao chegar à roda da conversa.
– Ana Paula tá certa! – completou Sheila.
– É, mas vocês tão enganadas. Não pensem que ser sargento tira a barriga da miséria, porque não tira mesmo! A diferença de salário é pequena e sargento comanda PATAMO, que é muito pior. Na verdade não comanda nada e coisa alguma, porque na PATAMO tem de jogar com o grupo senão até morre. Não gosto de trabalhar em PATAMO! – comentou Cosme.
– Mas tem muita gente boa nas guarnições de PATAMO – discordou Damião.
– Sei disso, Damião. Não estou generalizando. Mas é serviço muito mais arriscado que de radiopatrulha. As guarnições de PATAMO só encaram barra-pesada; por isso os colegas são mais audaciosos. Mas às vezes eles exageram, e aí o sargento nada pode fazer para contê-los. A natureza violenta do serviço acaba por afetar os homens, pondo-os mais violentos.
– Isso é verdade! Lá mesmo, no CEFAP, durante o curso de recrutas, o tenente explicava que o regulamento diz que o patameiro tem que ter mais aptidão no uso de armas e vocação para o combate. Queria com isso dizer que o patameiro tem que ser guerreiro, e eles são!
– É, são, sim! Mas às vezes eles não conseguem medir o grau ideal de pressão contra as pessoas. Você já viu que nós, da radiopatrulha, abordamos suspeitos com mais calma, com mais educação? Quando chega a PATAMO, só a descida dos homens já assusta! Aliás, assusta até a nós mesmos, quando acontece de estarmos na folga e recebermos alguma dura de PATAMO em área de outro batalhão – completou Cosme.
– Nisso você tem razão. Já aconteceu comigo, mas quando a gente se identifica como companheiro, eles agem legal – insinuou Damião.
– Nem sempre, companheiro, nem sempre... Mas a gente está sempre dependendo deles. Na hora do sufoco, são eles que vêm socorrer quando o bicho pega. Contudo, prefiro nas ruas mais radiopatrulhas como a nossa, e que viessem três delas em vez de uma PATAMO. Seria a mesma coisa e o nosso setor seria menor pra policiar. Já notou que a gente faz uma verdadeira viagem pra ir de um extremo a outro do nosso roteiro, no setor alfa?
– É verdade, Cosme. O setor é muito extenso pra uma só radiopatrulha. E haja gasolina pra queimar, sem falar no tempo que a gente perde pra chegar e atender a alguma ocorrência – comentou Damião.
– Então, você não acha que se existissem mais radiopatrulhas nas ruas também o povo se sentiria mais seguro, vendo mais carros de polícia circulando?
– É, acho que você tá certo. Mas a realidade é que nós nem carro temos agora. Ficamos a pé, com a batida. Será que o capitão providenciará carro pra gente amanhã?
– Não sei, mas é certo que, se não tiver carro disponível, vamos encarar uma de Cosme e Damião no Rodo de São Gonçalo. Vamos ter que queimar sola de botim durante oito horas. Mas, em compensação, depois seremos liberados. O pessoal do policiamento a pé gosta daquele serviço. Eles dizem que se podem organizar melhor na folga. Eu também acho isso, mas onde é que tá a emoção? Se eu tirasse guarda ou policiamento a pé, acho que já teria dado baixa. Eu gosto mesmo é de radiopatrulha – falou, convicto, o PM Cosme.
Damião e Sheila saíram por volta de nove horas da noite. Depois de deixar a namorada perto do morro, ele dirigiu-se ao quartel. O morro Menino Deus fica a meio caminho, próximo ao Rodo de São Gonçalo (assim denominado o principal centro comercial da cidade), entre o bairro do Paraíso e o quartel, que se situa no bairro de Alcântara. Tudo relativamente perto, com trajeto rápido em ônibus. Ao chegar ao quartel, o ambiente ainda era de consternação e de comentários a respeito da trágica morte do PM Castro. Mas Damião foi direto ao alojamento para tentar dormir. Sabia que o dia seguinte seria agitado, como sempre...
Logo cedo, Cosme e Damião foram chamados pelo capitão comandante da companhia, que deles muito gostava. Eram bons policiais, zelosos cumpridores dos deveres, e nunca se haviam envolvido com nada de errado. E foram premiados:
– Mandei chamar vocês dois para lhes dar uma boa notícia. Hoje vocês estrearão carro novo, um Santana, que o comandante do batalhão conseguiu, ontem, lá no Quartel-General. Já está na garagem, e vocês podem assumir o serviço. Agora, cautela pra não amassarem a viatura. Ela é zero-quilômetro, está estalando de nova. Boa sorte para vocês!
– Puxa vida, capitão! Valeu mesmo! A melhor notícia do dia! Vou sentir saudade do fusquinha. Coitadinho dele... Mas também tava na hora de aposentar o carrinho! – exclamou Cosme, contente com a grata surpresa. – Vamos nessa, Damião! – completou, puxando Damião, que não abriu a boca e nada falou, apesar de também vibrar com a notícia.
De caminho à garagem, os colegas felicitavam a dupla pelo presente. Todos gostavam de Cosme e Damião, que eram mestres em travar bons relacionamentos. Damião, mesmo na folga, sempre apoiava os companheiros de serviço e trocava uma boa prosa com eles para passar o tempo. Fizera excelente amizade no quartel, no seu dia-a-dia de percevejo. E lá foram eles policiar o setor alfa.
– Atenção, RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta! Transmita! – respondeu Cosme, com Damião ao volante.
– Positivo! Parabéns pela viatura nova! Vamos estreá-la agora... Menor ferido no morro Menino Deus. Queda de árvore, fratura da perna. Diga se entendido?
– Positivo! Procedendo ao local.
Era uma criança de oito anos que caíra de uma árvore em travessura normal. A dupla recolheu o garoto e levou-o direto ao Hospital Antônio Pedro, em Niterói, local mais equipado na época para atender a esse tipo de ocorrência.
O garotinho chamava-se Paulo e chorava com muita dor. A mãe dele, desesperada, acompanhava-o na viatura. No hospital, o atendimento foi rápido. Não houve necessidade de cirurgia, e logo o menino estava de volta, com a perna gessada, mas passando bem e sem dor.
A mãe, feliz da vida com o desfecho, agradecia sem parar à dupla de patrulheiros. E eles levaram os dois de volta ao pé do morro, onde desembarcaram esbanjando felicidade. As pessoas olhavam os PMs agradecidas. Eles se sentiam satisfeitos pela boa ação praticada. Já se aproximava do meio-dia quando retornaram ao quartel para o almoço. De caminho, comentavam:
– Puxa, valeu pra começar o dia! – Damião disse.
– É verdade!... Mais uma vez demos uma de ambulância, mas o garotinho se safou numa boa. Em compensação, o setor ficou sem cobertura policial. É gozada esta nossa profissão... Existimos pra prevenir o crime pela presença da radiopatrulha nas ruas, e ao mesmo tempo, e a toda hora, servimos de ambulância pra socorrer as pessoas que vivem na miséria, deixando as ruas sem policiamento. Só tem um jeito, Damião: toda vez que formos socorrer alguém vamos pedir aos bandidos pra não assaltar! – gracejou Cosme.
– É mesmo, Cosme! Isto é pura incoerência, mas confesso que gosto mais de socorrer um garotinho a trocar tiros com bandidos – anunciou Damião.
– É verdade. Mas talvez tenha sido por isto que Castro bobeou e morreu, e como você quase gelou os pés no assalto a banco. Nós vamos ficando menos cautelosos, desacostumados com os riscos, destreinados no tiro... Na hora que o bicho pega não é parto que temos de fazer pra trazer vida ao mundo, é tiro que temos de dar pra tirar vida do mundo e não perdermos as nossas. Eta profissão complicada!...
Profissão complicada, cheia de surpresas, sem dúvida, mas eles gostavam. Num dia, era mal-estar de alguém em via pública; noutro, era controlando o trânsito na saída das crianças de algum colégio; ou então prestando socorro a pessoas acidentadas em colisões de veículos; ou vigiando locais de crimes até a liberação pela perícia; ou carregando alguma criança que engolira um prego; ou pegando a unha um maluco solto na cidade.
Aliás, sempre às sextas-feiras era certo pegar doentes mentais nas ruas. De tanto ocorrer esse “fenômeno” eles buscavam entender os motivos pelos quais aumentava o número deles nas vias públicas às sextas-feiras. Ficaram pasmos ao constatar que as famílias os largavam nas ruas para que a polícia os recolhesse em estabelecimentos apropriados. Desse modo esperto se livravam do problema e, assim, podiam passear tranquilamente nos fins de semana. Na verdade, a maioria alegava que nunca conseguia internar seus parentes psiquiátricos por vias normais, não adiantava ir com eles aos locais de internação. Com a polícia levando-os, eles tinham de ser recolhidos. E tome de preencher TRO (Talão de Registro de Ocorrências), às sextas-feiras, com o código de alienado mental em via pública.
Além disso, havia as ocorrências mais graves e arriscadas: ora um assaltante de ônibus, ora um assalto a banco, ora uma troca de tiros com traficantes, ora uma perseguição a motoristas alcoolizados, ora uma briga de bêbados num bar, ora um flagrante de adultério, ora uma perseguição a algum homicida, enfim, uma diversidade de situações que invariavelmente desembocavam na chamada, via rádio, de maré-três-meia. Enfim, sempre uma nova surpresa.
Na verdade, o patrulheiro nunca sabe antes ao que irá atender; somente na hora da chamada e da ordem para proceder à ocorrência é que ele toma conhecimento do que enfrentará. Desta maneira, a dupla de Cosme e Damião, que coincidentemente se chamava Cosme e Damião, levava a vida, tocava o dia a dia do serviço de patrulheiros do 7º Batalhão da Polícia Militar, em São Gonçalo.


 Era já setembro. A brisa fresca indicava a presença da primavera e o sol começava a aquecer o ar com mais vigor. Na radiopatrulha sem ar-refrigerado Cosme e Damião patrulhavam o setor alfa. Dia tranquilo, apesar do calor indicando que o verão seria um incômodo a mais. Tudo bem, a dupla estava de bom humor naquele dia: desde que chegaram ao quartel, estavam ambos recebendo as gozações dos companheiros, os “parabéns pra vocês!” por uma data que não era aniversária de nenhum dos dois. Mas era 27 de setembro, o dia de São Cosme e São Damião.
Sim, era aniversário dos santos gêmeos! E parecia que os santos contribuíam para um serviço sem grandes transtornos, até que anoiteceu, com eles em quartel descansando no picadinho. À meia-noite, porém, lá estavam os milicianos novamente nas ruas, policiando em ronda, quando entrou no rádio da viatura:
– Atenção, RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta! Prossiga! – retornou Cosme ao chamado.
– Positivo! Mulher passando mal no morro Menino Deus. Emergência de parto. Proceda ao socorro!
– Positivo! Procedendo!
Lá foram eles para mais uma novidade. Em chegando ao pé do morro, já aguardavam a mulher em gritos desesperados de dor e seu marido não menos aflito. Era a dor do parto e parecia que a hora chegara.
Rápido como quem rouba, os patrulheiros acomodaram a grávida no banco traseiro do Santana, tendo o marido ao lado, e partiram ao hospital Luiz Palmier, sirene e giroscópio ligados, cortando as ruas em velocidade de ambulância. De caminho, porém, a mulher gritou: “Tá saindo! Tá saindo!”
Damião parou e encostou o carro. Cosme acorreu à mulher e cuidou de aparar a criança que nascia no meio da rua e da viagem. Com frieza, o patrulheiro foi orientando a mulher no primeiro parto dela e na primeira experiência dele em lidar com aquela situação. Mas ele sabia, por ouvir de muitos companheiros, como agir numa situação como aquela. E foi cumprindo com calma o seu papel de parteiro, até que um berro saudável indicou-lhe a vida chegando ao mundo na radiopatrulha.
Damião assistia a tudo, emocionado, quando então Cosme lhe deu ordem de partir ao hospital, o que ele fez bem rápido. A mulher não parava de sentir dores, com o bebê ainda preso ao cordão umbilical e seguro por Cosme, que trocara de lugar com o aflito pai. Assim chegaram, vindo logo uma equipe para conduzir a parturiente à enfermaria.
O tempo passou, com Cosme e Damião, apreensivos e aguardando o desfecho do atendimento hospitalar, e a volta do marido da parturiente que com ela estava do lado de dentro. Esperavam para anotar os dados deles no TRO e aí então veio o papai, sorridente, junto com ele o médico que atendera à sua mulher. O médico falou:
– Meus amigos, vocês estão de parabéns!
– Sei disso doutor. Já recebemos hoje muitos parabéns!... – brincou Damião interrompendo o médico, que nada entendeu.
– Olha só, se vocês não tivessem aparado aquele bebê lá no carro, a caminho daqui, poderia tudo ter terminado em tragédia. Poderiam ter morrido a mãe e as duas crianças –completou o médico. – É por isso que vocês estão de parabéns. Nasceram dois lindos meninos. – Mas não entendi o motivo de você dizer que ambos já receberam hoje muitos parabéns – completou o médico, intrigado e se dirigindo a Damião.
– Ué?... Dois?... Nasceu outro? – assustou-se Damião. – Ah, doutor!... Hoje é dia de Cosme e Damião, os santos gêmeos. Acontece que eu me chamo Damião e o meu parceiro, ou parteiro, aqui presente, se chama Cosme. Por isso é que eu brinquei com o senhor. Mas estamos contentes por saber que transcorreu tudo bem com a mamãe. Pela cara de felicidade do papai é lógico que tudo está bem. E havia de ser dois meninos... Nossa missão está cumprida! – completou Damião, ao que respondeu o agradecido pai:
– A missão está cumprida e quero muito agradecer a vocês! Mas gostaria que vocês esperassem um pouco, que minha patroa Maristela também lhes quer agradecer pessoalmente. Por favor, vamos até lá! – suplicou o pai dos meninos, dirigindo-se ao interior do hospital com os PMs seguindo-o.
Logo avistaram a mamãe e os bebês, um em cada braço dela, que assim falou aos milicianos:
– Muito obrigada! Sei que hoje é dia de São Cosme e São Damião. E foram os santos que trouxeram vocês pra me socorrer. Sei que por obra do Destino vocês dois se chamam Cosme e Damião. Em homenagem a vocês, e em agradecimento aos santos, os meus gêmeos serão também batizados como Cosme e Damião. E se vocês dois aceitarem estão convidados a apadrinhar as crianças...
– Poxa! Isto é uma honra pra mim, e acredito que também pro meu parceiro Damião! – externou Cosme com a imediata e emocionada aprovação de Damião.
– Ótimo! Então está decidido, por mim, por meu marido e por vocês! Muito obrigada a vocês, meus compadres, meus anjos da guarda!...
Assim surgiram no mundo mais uma dupla de Cosme e Damião, que hoje devem estar adolescentes.
O PM Damião foi servir em Nova Friburgo. Casou-se com Sheila e vive feliz. Tiveram dois filhos, que a avó, mãe de Sheila, ajuda a cuidar.
Cosme continua em São Gonçalo e já está indo à reforma. Cumpriu a sua parte, honrou a profissão, é sargento. Hoje a dupla está desfeita, mas não nos corações das gentes gonçalenses e daquelas famílias de patrulheiros, pois Cosme é padrinho de um dos filhos de Damião e ambos são padrinhos de Cosme e de Damião, os gêmeos do morro Menino Deus.
Todos sempre se reúnem em amizade e com muitas outras histórias a relembrar, como estas poucas que aqui foram contadas e que poderiam ser de muitas duplas de patrulheiros da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e de outras corporações coirmãs brasileiras. Aliás, vocês já perceberam que na palavra “CORPORAÇÃO” há um “corpo”, um “CORAÇÃO” e uma “ORAÇÃO”?...

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