A primeira impressão que se tem do título é a de que
vou narrar alguma história de santo. Mas, não! Não vou. Vou, sim, contar as
peripécias de uma dupla de PMs que a coincidência uniu em determinada época de
suas carreiras na Polícia Militar. João Cosme Fernandes e Damião Capistrano
Ferreira, nascidos distantes um do outro, mas que a vida policial acabou unindo
em amizade.
Ainda recrutas receberam seus nomes de guerra Cosme e
Damião, porém em épocas diferentes. Cosme, – dez anos mais velho de idade e de
corporação, – e Damião, – recruta
recém-formado, – acabaram se encontrando no 7º Batalhão da PMERJ, em São
Gonçalo. Curiosamente, Damião tinha tudo para se radicar em Nova Friburgo, sua
terra natal. Contudo, preferiu ficar por São Gonçalo, a fim de conhecer novos
lugares, dando asas ao seu espírito irrequieto de moço jovem, de vinte e dois
anos. E lá encontrou Cosme, PM experimentado e gonçalense de origem.
A chegada de Damião ao quartel provocou verdadeira
algazarra entre os colegas, que logo associaram ambos aos santos gêmeos Cosme e
Damião. E começaram as gozações, que ambos aceitavam de bom grado. E talvez por
causa dessa coincidência acabaram juntos em radiopatrulha, formando uma dupla
que se tornaria inseparável.
Segundo as normas internas da corporação, o recruta, –
carinhosamente chamado pelos antigos por bola-de-ferro, – sempre acompanha PM
mais experiente. Contudo, o comandante teve a feliz ideia de formar uma literal
dupla de Cosme e Damião, como assim é ela denominada em linguagem de quartel
desde muitos anos. Qualquer que tenha sido a verdadeira razão, – que talvez
nunca se saiba, – e que pode ter sido obra do Destino, lá estavam eles, o PM
Cosme e o PM Damião, formando uma guarnição de radiopatrulha no 7º BPM.
Cosme era mulato, de 32 anos, casado com Ana Paula, e
pai de um casal de filhos – Renata e Rodrigo. Morava com a família lá mesmo, em
São Gonçalo, no bairro do Paraíso. Damião era solteiro e fazia do quartel
residência. Era “percevejo”, como assim era tratado quem servia e morava em
quartel. E mantinham ambos um papo animado desde quando se conheceram, como se
fossem amigos de longa data. Gostavam muito um do outro, eram almas gêmeas.
Toda essa coincidência ocorreu no ano de 1985.
Cosme e Damião concorriam a uma escala de serviço de 24
por 48 horas. E, nas 24, descansavam oito delas, ou no quartel ou dispensados
para desfrutá-las em casa, o que se chama na briosa de “picadinho”. Isto porque
o serviço de radiopatrulha é deveras movimentado, além de varar a madrugada. É,
portanto, muito cansativo. Mas eles nunca reclamavam, gostavam do que faziam,
eram dois PMs de autêntica vocação.
Certo dia, numa sexta-feira de manhã, quase que a dupla
se desfaz. Faltou pouco, muito pouco mesmo, para que Damião visitasse mais
rápido o além-túmulo. Estava a dupla de serviço no Centro Comercial de São
Gonçalo quando entrou no rádio o chamado:
– Atenção, RP 2766! Atenção RP do setor alfa! Atenção!
Assalto em andamento no Banco do Brasil! – comunicou a Central de Operações do
Comando de Policiamento do Interior (CPI), costumeiramente designada por
maré-três-meia.
– Positivo, maré-três-meia! positivo! RP 2766
procedendo ao local! Informe se entendido! – respondeu Cosme ao chamado, com
Damião ao volante da patrulha.
– Entendido! Proceda rápido! Policial trocando tiros
com três assaltantes!
– Positivo! RP 2766 procedendo!...
Chegaram rápido, ambos fremidos por natural nervosismo,
principalmente Damião, que enfrentava sua primeira prova de fogo. O tiroteio
estava intenso, as pessoas correndo a se abrigarem, e o PM que fazia a
segurança no banco sustentando sozinho o confronto.
A chegada da dupla deu-se em hora certa. O pobre-diabo
do PM estava ficando sem munição quando recebeu o providencial reforço de Cosme
e Damião, que partiram à escaramuça em valentia, fazendo com que os bandidos
recuassem da audácia inicial e se refugiassem no interior do banco, onde os
três PMs adentraram. E foi nesta hora que Damião, na empolgação, esqueceu-se de
recarregar o revólver, estacando sem ação diante de um dos assaltantes que lhe
apontava a pistola. Damião direcionara a sua arma contra o meliante, apertara o
gatilho e nada saíra... O bandido, com um sorriso de raiva no canto da boca,
gritou-lhe: “Você já era!”
Neste átimo Cosme atirou ferindo gravemente o
assaltante, com Damião perplexo e sem reação. Os outros facínoras, ao verem o
comparsa ferido, preferiram se entregar, sendo imobilizados pelo PM segurança
do banco. Damião saiu do torpor e se dirigiu ao parceiro:
– Puxa, Cosme! Se não fosse você eu agora estaria
morto!...
– Ora, Damião, isto acontece! Mas sei que com você
nunca mais ocorrerá distração nenhuma...
– É verdade, amigo! Reagi em empolgação e me esqueci de
recarregar o revólver. Que susto! Obrigado!
Depois das formalidades na delegacia, a dupla retornou
ao quartel. Foram recebidos como heróis pelo comandante e pelos colegas. No
resto do dia, no descanso do picadinho,
não se falava outra coisa que não fosse: “O Cosme salvou o Damião!”
O meliante ferido não morreu, o que de certa forma
deixou contente o PM Cosme. Sim, tão contente ele estava, – e mais por ter
salvo o amigo, – que o convidou a almoçar em sua casa, no domingo, dia da
segunda folga de ambos.
– Damião, domingo quero você lá em casa pra almoçar
comigo e a patroa. Vamos dar uma variada na boia, principalmente você, que não
dispensa esse rango do quartel. Domingo você vai comer comida de primeira,
feita por Ana Paula. Vê se não atrasa, OK?
– Poxa, amigo! Você me salva e ainda vai me
proporcionar um almoço especial?... Obrigado, mais uma vez! Chegarei na hora,
pode deixar.
De noite, lá estava a dupla novamente circulando no
setor alfa. A viatura era um fusca bem conservado, mas bastante antigo. Não
tinha problema o carro ser velho; eles gostavam do carrinho e dele cuidavam com
zelo. Tudo parecia tranquilo, com eles percorrendo as vias públicas do roteiro
fitando com olhares atentos o ambiente, quando entrou a mensagem no rádio:
– Atenção, RP 2766! Atenção! Diga se está na escuta...
– Positivo! positivo! RP 2766 na escuta! Pode
transmitir! – respondeu Cosme operando no rádio, com Damião atento e ao volante
da viatura.
– Correto! Socorro a idosa com mal súbito ao pé do
morro do Menino Deus. Proceda rápido ao local. Diga se entendido!
– Positivo! Entendido! Viatura procedendo!
Sirene e giroscópio ligados, lá se foi a patrulhinha
socorrer a idosa. Neste momento a dupla pouco falava, mas Cosme resolveu
alertar Damião sobre os perigos do lugar:
– Damião, preste atenção, ali é lugar de traficantes.
Eles geralmente não atacam a patrulha quando ela vai socorrer alguém da
comunidade. Mas fique de olho aberto. Todo cuidado é pouco...
– Positivo, Cosme! Mas é esquisito isso, né? Na hora
que estamos socorrendo alguém nas favelas do setor os bandidos não incomodam;
mas se chegarmos pra dar uma geral num viciado eles vêm pesado ao confronto.
Como é que pode?...
– Ora Damião, cada lugar tem regras naturais, e são as
mais obedecidas. Já notou que no quartel é igual?...
– Igual? Como igual?
– Depois eu explico! Lá está a mulher. Vamos nesta!
Desceram rápido da viatura, com a moça, que parecia ser
a filha, suplicando:
– Ai, moço! A mãe tá morrendo! Ajude-nos! Ajude-nos!...
– Calma! calma! Vamos colocá-la no carro. Você vai
junto, no banco de trás – determinou Cosme, iniciando a manobra de acomodar a
idosa no interior da patrulha...
E partiram velozes para o Hospital Luiz Palmier, sirene
rasgando o ar e giroscópio espalhando fachos de luz vermelha e laranja em torno
do nervoso carrinho durante o trajeto. E chegaram, vindo logo a equipe médica
socorrer a idosa, levando-a para o interior do hospital. Eles ficaram anotando
no Talão de Registro de Ocorrência (TRO) o auxílio à cidadã em via pública,
colhendo os dados com a filha da paciente:
– Nome e endereço – indagou Damião à moça.
– Meu nome é Sheila Maria Ferreira da Silva, mas com
agá...
– Bonito nome! – comentou Damião, achando graça do
detalhe que a moça fizera questão de declinar. – E o endereço?
– Bom... Põe Morro do Menino Deus... Põe Associação de
Moradores, que todo mundo sabe...
– A sua idade, por favor?
– Vinte anos. Sou filha dela.
– E o nome e a idade dela?
– Ela se chama Maria das Graças Ferreira da Silva; tem
cinquenta anos.
– Sua mãe é nova, mas parece bem mais velha...
– É verdade! Vida de favelado é assim mesmo! Mamãe
ficou viúva muito cedo e batalhou muito pra me criar. Tadinha dela! Não sei que
fazer se ela me faltar – choramingou Sheila.
– Calma Sheila! Vai dar tudo certo! Os médicos a socorreram
muito rápido. Ela vai ficar boa.
– Tomara Damião! Engraçado... Só agora notei que o
outro é Cosme e você é Damião... Os santos gêmeos...
– É coincidência. Mas somos, sim, Cosme e Damião, como
os santos...
– Pra mim, não é coincidência! Se mamãe sair dessa, vou
fazer uma homenagem aos santos. Vou distribuir doces em vinte e sete de
setembro...
– Isto
eu faço sempre, ou então peço a alguém pra fazer por mim quando estou de
serviço. Olha, lá vem o médico...
Pela fisionomia do doutor, foi fácil perceber que
ficara tudo bem, a paciente estava fora de perigo. Tivera apenas um mal-estar,
talvez consequência de estresse. Mas estava medicada e liberada. Sheila se
emocionou e abraçou-se a Damião agradecendo. Foi quando seus olhares se
cruzaram e Damião pôde perceber que por trás daqueles olhos de azeviche havia
um rosto lindo.
“Sim, Sheila era uma bela morena”, pensava, enquanto
recebia com alegria o abraço de agradecimento. Em seguida, Sheila abraçou
também o miliciano Cosme, com Damião ainda enlevado: “Que isso, Damião? Sua
roseira balançou com essa garota?”, cogitava Damião de si para si enquanto via
a moça abraçar seu parceiro Cosme. Depois se despediram, com Sheila dispensando
o retorno na patrulha, eis que preferira a oferta do presidente da Associação
de Moradores, que para lá se deslocara e se oferecera para pagar a corrida do
táxi.
– Cosme, viu que garota bonita? – comentou Damião ao
entrar no carro.
– Ih! Será que o amigo gamou pela favelada? – gracejou
Cosme.
– Não sei, não sei... Mas confesso que gostei muito
daquele olhar. Ela me pareceu ser boa moça. Viu como se preocupou com a mãe?
– É verdade! Também tive dela ótima impressão. O
difícil será vê-la novamente. Nossa rotina é infernal! A não ser que você vá lá
pra ver Sheila e acabe recebendo uma saraivada de tiros...
– Eu sei, eu sei! Lá não dá pra ir, muito menos na
folga. Mas acho que ela gostou de mim. Eu lhe dei o telefone do quartel... Quem
sabe liga?...
– É... Quem sabe liga? Cá entre nós, já é hora de você
deixar de ser percevejo – gracejou Cosme, arrancando do amigo uma gostosa
gargalhada.
Naquela noite, – antes de amanhecer o dia de sábado, –
Cosme e Damião ainda atenderam a um acidente de trânsito sem vítima e ajudaram
a acalmar os ânimos dos acidentados. Depois correram atrás de uma dupla de
suspeitos, que partiu em disparada ao ver a patrulhinha.
Noite movimentada, como sempre, com situações variadas
e inusitadas, como a última ocorrência que a dupla enfrentou: uma confusão num
ônibus decorrente de flagrante de adultério. E lá foram eles para a delegacia,
levando o marido, a mulher infiel e o amante, eis que o casal adulterino fora
flagrado pelo marido traído. Na delegacia, o marido e a mulher discutiam
asperamente, em obscenas e mútuas agressões verbais, que de quando em quando
obrigavam aos PMs a interferência no sentido de acalmá-los. Mas não adiantava:
– Você é safada! Sem-vergonha! Descarada! – vociferava
o marido traído.
– E você? Tá pensando que não sei da sua amante, seu
safado de uma figa! – retrucava a mulher.
– Pior é você, namorando no ônibus esse babaca como se
fosse a esposa dele. Tá pensando que sou o quê?
– Corno sabido e babaca, é o que você é! – retorquia a
mulher.
– Olha aqui, camarada! Babaca é você! Eu tô quieto
aqui, e você me chamou de babaca! Pois saiba que babaca é você! E corno também,
pois você é que é casado com essa vaca! – estrilou, ofendido, o amante.
– Olha aqui, seu babaca! Que você seja o amante da
patroa, tudo bem, não posso evitar... Mas não xinga palavrão na frente dela,
não, que é desrespeito!
Todos ouviam atentamente a discussão do trio, inclusive
o delegado, os detetives, e a dupla de patrulheiros. E ninguém mais aguentou
prender a sonora gargalhada que até então estava sufocada na garganta de todos
que assistiam àquela inusitada cena...
Tudo mais calmo, os PMs anotaram tudo no TRO (Talão de
Registro de Ocorrência) e partiram ao quartel. Era final de serviço. E que
serviço!... Desfeita a dupla, tanto na casa de Cosme como no alojamento do
quartel, Cosme e Damião, respectivamente, roncavam no sono dos justos... Mas
Damião sonhava com Sheila...
No domingo, por volta de onze horas, Damião chegou a
casa de Cosme, no bairro do Paraíso. Era uma casa de fundos, meiágua, porém bem
cuidada. Na frente moravam os pais de Ana Paula, que cederam o terreno dos
fundos para a construção da casa da filha.
O quintal entre uma casa e outra era comum e local de
brincadeiras das crianças de Cosme e Ana Paula. Renata, a filha, estava com
seis anos; Rodrigo, o filho, com quatro anos de idade. Era uma família feliz.
Vivam modestamente, porém com dignidade.
Em toda a frente da meiágua havia uma varanda
confortável e ampla, o melhor lugar da casa. E ali estava posta a mesa para o
almoço, na direção da porta da cozinha. No outro extremo, os bancos de madeira
rodeavam uma pequena mesa onde estavam apoiados os copos e a cerveja gelada dos
parceiros Cosme e Damião, que rememoravam as peripécias da sexta-feira.
– E o corno? – gracejou Cosme, provocando a primeira
gargalhada do dia, com Ana Paula ouvindo de longe...
– Puxa, Damião! Cosme me contou a do corno; que coisa
estranha, o camarada admitir ser corno, mas não permitir que o Ricardão
xingasse perto da infiel mesmo sendo corno sabido! – comentou Ana Paula, da
porta da cozinha. – Conta aí, Damião... e a história da garota favelada? Cosme
também me contou que seu coração balançou pela menina. Tá na hora de você
pensar em arranjar uma namorada; senão, você vai começar a passar por... Ou
então vai ter filho chamando o pai de vovô...
– Passar por quê, Paula?...
– Ora, parceiro... Quem não se define é o quê? –
gracejou Cosme. – Precisa dizer? – completou.
– Claro que não! Mas é ruim, hein? Você acha que levo
jeito?... E como vou fazer para reencontrar Sheila? Não me foi possível saber
nada dela. Só se ela ligar...
– Se ela estiver a fim de você, ligará! – comentou Ana
Paula lá da cozinha, de ouvidos cosidos na conversa entre os parceiros.
O almoço transcorreu em clima de descontração. Vieram
os pais de Ana Paula participar e todos permaneceram numa boa cavaqueada até
quase anoitecer, quando então Damião resolveu retirar-se. Ele estava com ideia
de ir ao bairro do Pita para ver um show de samba e pagode do grupo Clarão da
Lua na casa de espetáculos conhecida como Segunda Sem Lei, local sempre lotado aos
domingos.
Era próximo de vinte e uma horas, ainda cedo, quando
Damião chegou. O ambiente ainda estava com poucas gentes e ele buscou uma mesa
bem situada em relação ao palco. Veio-lhe o garçom e ele pediu uma cerveja, que
ficou bebericando bem lentamente, a fim de esticar o líquido e a grana curta
que levava na algibeira.
Às vezes a cerveja esquentava no copo, mas, fazer o
quê, com aquele salário que mal dava para empurrar o mês? Ele até que esticava
bem a grana, porque era “percevejo”. Também não se desgastava para aumentar seu
ganho em segurança particular, como fazia Cosme nos dias de folga. Tudo bem. Estava
satisfeito e tranquilo naquele ambiente saudável, quando de repente viu em
frente dele aquela figura feminina que fez seus olhos brilharem. Ele não
acreditou: era Sheila, sorrindo, e a ele se dirigindo:
– Olá, Damião! Que bom encontrá-lo aqui!... Hoje liguei
lá pro quartel, por volta de cinco horas da tarde, pra convidar você a vir aqui
comigo. Mas me disseram que você não estava. Fiquei frustrada...
– Poxa, que sorte encontrar você aqui! Eu estava
almoçando na casa do Cosme, e falei muito sobre você. Você foi o assunto do
dia. Inclusive Ana Paula, a mulher dele, ficou doida para conhecer você...
– Falou mal ou falou bem? – gracejou Sheila, satisfeita
em se saber lembrada.
– Falei bem, claro! E muito bem, por sinal. Eu estava
preocupado de não mais lhe ver. Você sabe como é... Lá na favela eu não posso
ir a não ser pra socorrer alguém. Caso contrário, você sabe como é...
– Eu sei. Que coisa chata a gente morar num lugar, e
não poder receber uma pessoa em casa! Mas eu também ia ficar com vergonha...
Minha casa não passa de um pobre barraco.
– Isso não é problema pra mim. A minha casa não passa
de um pobre quartel... Sente-se aqui comigo, Sheila – convidou Damião a garota
que ele não mais duvidava ter roubado seu coração.
O resto da noite foi inolvidável. Damião contou toda a
sua vida para Sheila e vice-versa. Dançaram e acabaram namorados. Ali o cupido
flechou a ambos bem no alvo. Sheila então pôde informar a Damião que trabalhava
no Rodo de São Gonçalo, numa loja de sapatos femininos, e que estudava o
Supletivo na Escola Estadual Nilo Peçanha, na Praça do Zé Garoto. E a partir
desse dia Damião passou a se encontrar com ela na saída do colégio e a levá-la
até próximo à favela, de onde retornava de distância segura. E no final da
semana pôde apresentá-la à Ana Paula. Ambas ficaram grandes amigas.
Num certo fim de semana, Damião levou Sheila até Nova
Friburgo, juntamente com a mãe dela, para apresentá-las à família dele. Elas
foram muito bem recepcionadas pelos pais e os dois irmãos de Damião, ambos
adolescentes e estudando o segundo grau.
A família de Damião vivia razoavelmente bem, em casa
própria, no bairro de Conselheiro Paulino, um pouco afastado do centro da
cidade. O pai de Damião, de nome Laurindo, era antigo funcionário da Caixa
Econômica, já aposentado. Muito controlado, pôde adquirir bom lote de terreno
para cada filho no próprio bairro, bom começo para Damião, que pensava
construir uma casa, ainda mais agora que seu relacionamento com Sheila firmara-se
sério e ele estava realmente apaixonado.
Na verdade, Damião não desejava que Sheila ficasse por
muito tempo na favela. Conversou com seu pai, este que lhe prometeu ajuda na
construção de uma meiágua nos fundos do terreno para quando se casasse. Depois
faria uma casa maior na parte da frente.
A mãe de Damião, Dona Claudiomar, adorou a futura nora
e a mãe dela. Conversaram muito naquele fim de semana, com as duas famílias
totalmente integradas. Dali, ninguém mais duvidava: os frutos de uma nova
família brotariam em pujança. Mas na segunda-feira lá estava Damião, em dupla com
Cosme, na radiopatrulha, para mais um dia de serviço em São Gonçalo, no setor
alfa.
– RP 2766! RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta, maré-três-meia, na escuta! – respondeu
Cosme.
– Positivo! Proceda ao clube Mauá, pessoa acidentada
com queimadura.
– Positivo! Procedendo ao local.
Um funcionário do clube acabara de se acidentar com o
fogo da explosão de uma lata de cera. Ele colocara gasolina na cera e acendera
o fósforo para fazer com que a parafina derretesse. Sua desatenção provocara o
acidente, a combustão descontrolada queimara-lhe boa parte do corpo. Ele estava
sem a camisa e recebera em cheio o fogaréu resultante da combustão.
Cosme e Damião chegaram rápido e socorreram o
pobre-diabo até o hospital, sendo ele imediatamente atendido. Parecia passar
bem durante o trajeto, chegando inclusive a conversar normal com os
patrulheiros. Mas uma hora depois de dar entrada no hospital estava morto.
Final triste para a dupla de patrulheiros, que ainda encerrava a ocorrência
aguardando o acidentado para lhe anotar os dados pessoais. Entristeceram-se
deveras, ainda mais por saber que o trabalhador morrera apenas devido à sua
falta de orientação.
– Puxa, Cosme, esse tipo de ocorrência acaba comigo! É
isto e acidente de trânsito. Quando a gente consegue salvar o acidentado, dá um
prazer danado. Mas quando ele morre é muito chato!...
– É verdade, Damião! Venho de longe socorrendo pessoas.
Vá se acostumando porque aqui em São Gonçalo o que mais acontece é atendimento
a pessoas doentes ou acidentadas! Para cada dez ocorrências há no mínimo oito
assistenciais. Somente duas são de natureza criminosa. Geralmente é assim, é a
miséria do povo, Damião, é a miséria...
O resto do dia foi de desagradável sensação. Cosme e Damião
estavam consternados com a morte do trabalhador. No horário do picadinho
procuraram descansar, mas não conseguiram dormir, como sempre faziam à tarde,
para poder virar a noite em atividade. À meia-noite, porém, já estavam nas ruas,
atentos ao serviço, ligados à rotina dos imprevistos que caracterizam o árduo e
perigoso serviço de patrulhamento. E, não demorou muito a entrar no rádio:
– Atenção, RP 2766! Atenção! Maré-três-meia chamando,
câmbio!
– Na escuta, maré-três-meia!
– Positivo! Tiroteio no setor beta, patrulheiros
precisando de apoio. Troca de tiros com assaltantes de ônibus. Proceda rápido!
– Positivo!
O tiroteio acontecia no setor beta, que abrangia o
bairro do Rocha. E para lá partiram os patrulheiros, sirene e giroscópio
ligados e a toda velocidade. Não chegaram. De caminho, Damião perdeu a direção
do fusca e abalroou um ônibus que lhe surgira à frente na dobra de uma esquina.
Não deu tempo de desviar e lá ficou o fusca todo amassado e com um pneu
dianteiro estourado.
– Maré-três-meia! Maré-três-meia! Acidente com viatura!
Impossível proceder ao local para apoio aos companheiros.
– Positivo, RP 2766! Há outros companheiros acionados
no apoio. A supervisão irá proceder até vocês. Informe se tem alguém ferido...
– Negativo! Nenhum ferido!
– Prioridade! Prioridade! Maré-três-meia na escuta!
Aguarde, RP 2766.
– Positivo! Aguardando.
Cinco minutos após:
– Maré-três-meia chamando RP 2766!
– Na escuta! Informe!
– Positivo! Aguarde apoio. Vai demorar. Companheiro
gravemente ferido em decorrência do confronto. Prioridade máxima! Aguarde!...
– Positivo! Informe qual RP que teve o companheiro
ferido?
– Positivo! Foi a RP do setor beta. Os bandidos
morreram no local, mas o companheiro faleceu a caminho do hospital. É o PM
Castro, positivo?...
– Positivo!...
Cosme olhou para Damião já com os olhos marejando em
lágrimas. O PM Castro era grande amigo de ambos...
– Que merda! – bradou Cosme. – Logo o Castro, com
aqueles filhos pequenos...
– Calma Cosme! Calma! – tentou Damião confortar o
companheiro.
– Como me acalmar, amigo? Você sabe o que é ter filhos
e pensar no futuro deles? Ainda não sabe, mas vai saber. Não é fácil imaginar a
aflição da família. Castro era um garoto, apenas pouco mais velho que você. E
você sabe como ele era dedicado ao trabalho e à família!... Agora está morto! Quem
se lembrará de sua família? É fogo, irmão! É fogo!...
– Sei disso, amigo! Mas é assim a vida de PM. É perigo
a toda hora e muita incompreensão. Também é certo que neste momento há outros
companheiros nossos, principalmente no Rio, se ferindo em confronto ou até
morrendo. Sei que é duro, mas é assim...
– É verdade! Eu confesso que hoje não tenho mais
condições de trabalhar. Ainda bem que não tem viatura extra. Nós seremos
dispensados, talvez. Mas vou pedir ao tenente para deixar a gente dar apoio à
família do Castro quando a gente chegar ao quartel.
– Tem razão, Cosme. Vou com você...
Foi de tristeza o dia seguinte. O sepultamento do patrulheiro
assassinado ocorreu no final da tarde. Cosme e Damião permaneceram durante todo
o tempo apoiando a esposa do companheiro. Ana Paula e Sheila ajudavam a
confortar a viúva, que se mantinha abraçada aos dois filhos menores, um de três
e outro de dois anos de idade.
Luto no batalhão. Silêncio, reflexão isolada dos PMs,
cada qual especulando sobre suas incógnitas. Ninguém falava com ninguém.
Passeavam no pátio com os olhos cosendo o chão em tristeza profunda e certo
temor individual.
O vazio deixado por mais um companheiro morto
ultrapassava os limites da ausência e preenchia os pensamentos com desalento e
apreensão. Era momento de presságio, de constatação dos riscos por vezes
esquecidos no dia a dia do serviço de patrulhamento. Porém, a vida perigosa e
dinâmica do patrulheiro logo lhes levantaria o ânimo, porque os bandidos não
descansam e se proliferam, o quartel não pode parar e as ruas não podem
esperar...
Assim amanheceu a quarta-feira, dia de descanso para
Cosme e Damião. Eles resolveram passar o dia com a esposa e a noiva, Ana Paula
e Sheila respectivamente. Estavam consternados e comentando a morte do PM
Castro. As horas transcorreram pesadas, ainda mais por ser em meio de semana,
com poucos atrativos para quem fica em casa.
– Sabe de uma coisa, Damião, folga em meio de semana é
sem graça. Mesmo quando nada ocorre, mesmo quando as coisas vão bem, ficar em
casa é um saco! A gente acaba interferindo na rotina da patroa e perturbando o
ambiente. Aos sábados e domingos, tudo bem, mas as folgas da semana são
realmente chatas. Eu até minimizo a chatice porque corro atrás do complemento
salarial na segurança. Mas quando fico sem ter o que fazer sinto um vazio que
me incomoda deveras.
– Pior sou eu, Cosme, que não posso ir pra casa, e
tenho de ficar no batalhão. Lá tem sempre oficial me pedindo pra pagar alguma
prestação na rua ou outro incômodo qualquer. E não sou doido de dizer que estou
de folga, que preciso descansar, isto é arranjar inimigo certo. Você sabe como
é soldado no quartel. Ele quer serviço... Acho que inventaram isso só pra
percevejo...
– Ah, é verdade. Acho sua situação mais chata que a
minha. Por isso é que eu lhe disse que no quartel também existe o lado natural,
que você tem que se adaptar para não aborrecer os superiores. Não basta somente
cumprir o regulamento, que é marreta de cima para baixo... Mas, mudando de
assunto, você tem de desencalhar. Tá passando da hora com Sheila...
– Oh, tão falando de mim? – interrompe a garota
tentando animar os companheiros. – Olha, amor, quando a gente se casar não vou
deixar você ficar sem nada pra fazer, não. Vou arranjar algo pra você fazer
junto comigo, tipo um trabalho que você possa participar. Outro dia, conheci
Marialda, casada com o sargento Farias Ela me disse que os dois fazem bolos e
salgadinhos pra fora. Ganham um bom dinheiro e estão sempre animados – concluiu
Sheila.
– É, amor. Quem sabe se eu não daria um bom
confeiteiro... Mas acho que pra isso não levo jeito, não. Talvez eu faça um
curso de cabeleireiro...
– Opa! opa! Será que ouvi bem? – gracejou Cosme sobre o
comentário de Damião.
– Que isso, Cosme! Tô só brincando porque Sheila quer
me botar confeitando bolo, que é mais ou menos a mesma coisa, coisa de
mulher... Na verdade, acho que tenho de inventar profissão, talvez relojoeiro
ou técnico de rádio e tevê. O que não quero é me meter em segurança, ficar
acordado trabalhando em noite de folga. Você mesmo tem de se preocupar com
isso, que assim a sua saúde vai pro espaço...
– Pô, Damião, é verdade! Tem vez que fico caindo aos
pedaços durante o serviço porque virei a noite na segurança. Sei que é
perigoso, que me diminui o reflexo, e que me pode ser fatal numa hora qualquer.
Mas que vou fazer, se não sei trabalhar em nada diferente da atividade
policial?... E ainda corro o risco de dar azar e ser desligado da PMERJ. Vou
ter de trabalhar de servente de pedreiro...
– Ah, vira essa boca pra lá! É melhor ficar no aperto e
tentar fazer curso pra sargento! – comentou Ana Paula, ao chegar à roda da
conversa.
– Ana Paula tá certa! – completou Sheila.
– É, mas vocês tão enganadas. Não pensem que ser
sargento tira a barriga da miséria, porque não tira mesmo! A diferença de
salário é pequena e sargento comanda PATAMO, que é muito pior. Na verdade não
comanda nada e coisa alguma, porque na PATAMO tem de jogar com o grupo senão
até morre. Não gosto de trabalhar em PATAMO! – comentou Cosme.
– Mas tem muita gente boa nas guarnições de PATAMO –
discordou Damião.
– Sei disso, Damião. Não estou generalizando. Mas é
serviço muito mais arriscado que de radiopatrulha. As guarnições de PATAMO só
encaram barra-pesada; por isso os colegas são mais audaciosos. Mas às vezes
eles exageram, e aí o sargento nada pode fazer para contê-los. A natureza
violenta do serviço acaba por afetar os homens, pondo-os mais violentos.
– Isso é verdade! Lá mesmo, no CEFAP, durante o curso
de recrutas, o tenente explicava que o regulamento diz que o patameiro tem que
ter mais aptidão no uso de armas e vocação para o combate. Queria com isso
dizer que o patameiro tem que ser guerreiro, e eles são!
– É, são, sim! Mas às vezes eles não conseguem medir o
grau ideal de pressão contra as pessoas. Você já viu que nós, da radiopatrulha,
abordamos suspeitos com mais calma, com mais educação? Quando chega a PATAMO,
só a descida dos homens já assusta! Aliás, assusta até a nós mesmos, quando
acontece de estarmos na folga e recebermos alguma dura de PATAMO em área de
outro batalhão – completou Cosme.
– Nisso você tem razão. Já aconteceu comigo, mas quando
a gente se identifica como companheiro, eles agem legal – insinuou Damião.
– Nem sempre, companheiro, nem sempre... Mas a gente
está sempre dependendo deles. Na hora do sufoco, são eles que vêm socorrer
quando o bicho pega. Contudo, prefiro nas ruas mais radiopatrulhas como a
nossa, e que viessem três delas em vez de uma PATAMO. Seria a mesma coisa e o
nosso setor seria menor pra policiar. Já notou que a gente faz uma verdadeira
viagem pra ir de um extremo a outro do nosso roteiro, no setor alfa?
– É verdade, Cosme. O setor é muito extenso pra uma só
radiopatrulha. E haja gasolina pra queimar, sem falar no tempo que a gente
perde pra chegar e atender a alguma ocorrência – comentou Damião.
– Então, você não acha que se existissem mais
radiopatrulhas nas ruas também o povo se sentiria mais seguro, vendo mais
carros de polícia circulando?
– É, acho que você tá certo. Mas a realidade é que nós
nem carro temos agora. Ficamos a pé, com a batida. Será que o capitão
providenciará carro pra gente amanhã?
– Não sei, mas é certo que, se não tiver carro
disponível, vamos encarar uma de Cosme e Damião no Rodo de São Gonçalo. Vamos
ter que queimar sola de botim durante oito horas. Mas, em compensação, depois
seremos liberados. O pessoal do policiamento a pé gosta daquele serviço. Eles
dizem que se podem organizar melhor na folga. Eu também acho isso, mas onde é
que tá a emoção? Se eu tirasse guarda ou policiamento a pé, acho que já teria
dado baixa. Eu gosto mesmo é de radiopatrulha – falou, convicto, o PM Cosme.
Damião e Sheila saíram por volta de nove horas da
noite. Depois de deixar a namorada perto do morro, ele dirigiu-se ao quartel. O
morro Menino Deus fica a meio caminho, próximo ao Rodo de São Gonçalo (assim
denominado o principal centro comercial da cidade), entre o bairro do Paraíso e
o quartel, que se situa no bairro de Alcântara. Tudo relativamente perto, com
trajeto rápido em ônibus. Ao chegar ao quartel, o ambiente ainda era de
consternação e de comentários a respeito da trágica morte do PM Castro. Mas
Damião foi direto ao alojamento para tentar dormir. Sabia que o dia seguinte
seria agitado, como sempre...
Logo cedo, Cosme e Damião foram chamados pelo capitão
comandante da companhia, que deles muito gostava. Eram bons policiais, zelosos
cumpridores dos deveres, e nunca se haviam envolvido com nada de errado. E
foram premiados:
– Mandei chamar vocês dois para lhes dar uma boa
notícia. Hoje vocês estrearão carro novo, um Santana, que o comandante do
batalhão conseguiu, ontem, lá no Quartel-General. Já está na garagem, e vocês
podem assumir o serviço. Agora, cautela pra não amassarem a viatura. Ela é
zero-quilômetro, está estalando de nova. Boa sorte para vocês!
– Puxa vida, capitão! Valeu mesmo! A melhor notícia do
dia! Vou sentir saudade do fusquinha. Coitadinho dele... Mas também tava na
hora de aposentar o carrinho! – exclamou Cosme, contente com a grata surpresa.
– Vamos nessa, Damião! – completou, puxando Damião, que não abriu a boca e nada
falou, apesar de também vibrar com a notícia.
De caminho à garagem, os colegas felicitavam a dupla
pelo presente. Todos gostavam de Cosme e Damião, que eram mestres em travar
bons relacionamentos. Damião, mesmo na folga, sempre apoiava os companheiros de
serviço e trocava uma boa prosa com eles para passar o tempo. Fizera excelente
amizade no quartel, no seu dia-a-dia de percevejo. E lá foram eles policiar o
setor alfa.
– Atenção, RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta! Transmita! – respondeu Cosme, com Damião
ao volante.
– Positivo! Parabéns pela viatura nova! Vamos estreá-la
agora... Menor ferido no morro Menino Deus. Queda de árvore, fratura da perna.
Diga se entendido?
– Positivo! Procedendo ao local.
Era uma criança de oito anos que caíra de uma árvore em
travessura normal. A dupla recolheu o garoto e levou-o direto ao Hospital
Antônio Pedro, em Niterói, local mais equipado na época para atender a esse
tipo de ocorrência.
O garotinho chamava-se Paulo e chorava com muita dor. A
mãe dele, desesperada, acompanhava-o na viatura. No hospital, o atendimento foi
rápido. Não houve necessidade de cirurgia, e logo o menino estava de volta, com
a perna gessada, mas passando bem e sem dor.
A mãe, feliz da vida com o desfecho, agradecia sem
parar à dupla de patrulheiros. E eles levaram os dois de volta ao pé do morro,
onde desembarcaram esbanjando felicidade. As pessoas olhavam os PMs
agradecidas. Eles se sentiam satisfeitos pela boa ação praticada. Já se
aproximava do meio-dia quando retornaram ao quartel para o almoço. De caminho,
comentavam:
– Puxa, valeu pra começar o dia! – Damião disse.
– É verdade!... Mais uma vez demos uma de ambulância,
mas o garotinho se safou numa boa. Em compensação, o setor ficou sem cobertura
policial. É gozada esta nossa profissão... Existimos pra prevenir o crime pela
presença da radiopatrulha nas ruas, e ao mesmo tempo, e a toda hora, servimos
de ambulância pra socorrer as pessoas que vivem na miséria, deixando as ruas sem
policiamento. Só tem um jeito, Damião: toda vez que formos socorrer alguém
vamos pedir aos bandidos pra não assaltar! – gracejou Cosme.
– É mesmo, Cosme! Isto é pura incoerência, mas confesso
que gosto mais de socorrer um garotinho a trocar tiros com bandidos – anunciou
Damião.
– É verdade. Mas talvez tenha sido por isto que Castro
bobeou e morreu, e como você quase gelou os pés no assalto a banco. Nós vamos
ficando menos cautelosos, desacostumados com os riscos, destreinados no tiro...
Na hora que o bicho pega não é parto que temos de fazer pra trazer vida ao
mundo, é tiro que temos de dar pra tirar vida do mundo e não perdermos as
nossas. Eta profissão complicada!...
Profissão complicada, cheia de surpresas, sem dúvida,
mas eles gostavam. Num dia, era mal-estar de alguém em via pública; noutro, era
controlando o trânsito na saída das crianças de algum colégio; ou então
prestando socorro a pessoas acidentadas em colisões de veículos; ou vigiando
locais de crimes até a liberação pela perícia; ou carregando alguma criança que
engolira um prego; ou pegando a unha um maluco solto na cidade.
Aliás, sempre às sextas-feiras era certo pegar doentes
mentais nas ruas. De tanto ocorrer esse “fenômeno” eles buscavam entender os
motivos pelos quais aumentava o número deles nas vias públicas às
sextas-feiras. Ficaram pasmos ao constatar que as famílias os largavam nas ruas
para que a polícia os recolhesse em estabelecimentos apropriados. Desse modo
esperto se livravam do problema e, assim, podiam passear tranquilamente nos
fins de semana. Na verdade, a maioria alegava que nunca conseguia internar seus
parentes psiquiátricos por vias normais, não adiantava ir com eles aos locais
de internação. Com a polícia levando-os, eles tinham de ser recolhidos. E tome
de preencher TRO (Talão de Registro de Ocorrências), às sextas-feiras, com o
código de alienado mental em via pública.
Além disso, havia as ocorrências mais graves e
arriscadas: ora um assaltante de ônibus, ora um assalto a banco, ora uma troca
de tiros com traficantes, ora uma perseguição a motoristas alcoolizados, ora
uma briga de bêbados num bar, ora um flagrante de adultério, ora uma
perseguição a algum homicida, enfim, uma diversidade de situações que
invariavelmente desembocavam na chamada, via rádio, de maré-três-meia. Enfim,
sempre uma nova surpresa.
Na verdade, o patrulheiro nunca sabe antes ao que irá
atender; somente na hora da chamada e da ordem para proceder à ocorrência é que
ele toma conhecimento do que enfrentará. Desta maneira, a dupla de Cosme e
Damião, que coincidentemente se chamava Cosme e Damião, levava a vida, tocava o
dia a dia do serviço de patrulheiros do 7º Batalhão da Polícia Militar, em São
Gonçalo.
Era já setembro. A brisa fresca indicava a presença da
primavera e o sol começava a aquecer o ar com mais vigor. Na radiopatrulha sem
ar-refrigerado Cosme e Damião patrulhavam o setor alfa. Dia tranquilo, apesar
do calor indicando que o verão seria um incômodo a mais. Tudo bem, a dupla
estava de bom humor naquele dia: desde que chegaram ao quartel, estavam ambos
recebendo as gozações dos companheiros, os “parabéns pra vocês!” por uma data
que não era aniversária de nenhum dos dois. Mas era 27 de setembro, o dia de
São Cosme e São Damião.
Sim, era aniversário dos santos gêmeos! E parecia que
os santos contribuíam para um serviço sem grandes transtornos, até que
anoiteceu, com eles em quartel descansando no picadinho. À meia-noite, porém,
lá estavam os milicianos novamente nas ruas, policiando em ronda, quando entrou
no rádio da viatura:
– Atenção, RP 2766! Maré-três-meia chamando, câmbio!
– Na escuta! Prossiga! – retornou Cosme ao chamado.
– Positivo! Mulher passando mal no morro Menino Deus.
Emergência de parto. Proceda ao socorro!
– Positivo! Procedendo!
Lá foram eles para mais uma novidade. Em chegando ao pé
do morro, já aguardavam a mulher em gritos desesperados de dor e seu marido não
menos aflito. Era a dor do parto e parecia que a hora chegara.
Rápido como quem rouba, os patrulheiros acomodaram a
grávida no banco traseiro do Santana, tendo o marido ao lado, e partiram ao
hospital Luiz Palmier, sirene e giroscópio ligados, cortando as ruas em
velocidade de ambulância. De caminho, porém, a mulher gritou: “Tá saindo! Tá
saindo!”
Damião parou e encostou o carro. Cosme acorreu à mulher
e cuidou de aparar a criança que nascia no meio da rua e da viagem. Com frieza,
o patrulheiro foi orientando a mulher no primeiro parto dela e na primeira
experiência dele em lidar com aquela situação. Mas ele sabia, por ouvir de
muitos companheiros, como agir numa situação como aquela. E foi cumprindo com
calma o seu papel de parteiro, até que um berro saudável indicou-lhe a vida
chegando ao mundo na radiopatrulha.
Damião assistia a tudo, emocionado, quando então Cosme
lhe deu ordem de partir ao hospital, o que ele fez bem rápido. A mulher não
parava de sentir dores, com o bebê ainda preso ao cordão umbilical e seguro por
Cosme, que trocara de lugar com o aflito pai. Assim chegaram, vindo logo uma
equipe para conduzir a parturiente à enfermaria.
O tempo passou, com Cosme e Damião, apreensivos e
aguardando o desfecho do atendimento hospitalar, e a volta do marido da
parturiente que com ela estava do lado de dentro. Esperavam para anotar os
dados deles no TRO e aí então veio o papai, sorridente, junto com ele o médico
que atendera à sua mulher. O médico falou:
– Meus amigos, vocês estão de parabéns!
– Sei disso doutor. Já recebemos hoje muitos
parabéns!... – brincou Damião interrompendo o médico, que nada entendeu.
– Olha só, se vocês não tivessem aparado aquele bebê lá
no carro, a caminho daqui, poderia tudo ter terminado em tragédia. Poderiam ter
morrido a mãe e as duas crianças –completou o médico. – É por isso que vocês
estão de parabéns. Nasceram dois lindos meninos. – Mas não entendi o motivo de
você dizer que ambos já receberam hoje muitos parabéns – completou o médico,
intrigado e se dirigindo a Damião.
– Ué?... Dois?... Nasceu outro? – assustou-se Damião. –
Ah, doutor!... Hoje é dia de Cosme e Damião, os santos gêmeos. Acontece que eu
me chamo Damião e o meu parceiro, ou parteiro, aqui presente, se chama Cosme.
Por isso é que eu brinquei com o senhor. Mas estamos contentes por saber que
transcorreu tudo bem com a mamãe. Pela cara de felicidade do papai é lógico que
tudo está bem. E havia de ser dois meninos... Nossa missão está cumprida! –
completou Damião, ao que respondeu o agradecido pai:
– A missão está cumprida e quero muito agradecer a
vocês! Mas gostaria que vocês esperassem um pouco, que minha patroa Maristela
também lhes quer agradecer pessoalmente. Por favor, vamos até lá! – suplicou o
pai dos meninos, dirigindo-se ao interior do hospital com os PMs seguindo-o.
Logo avistaram a mamãe e os bebês, um em cada braço dela,
que assim falou aos milicianos:
– Muito obrigada! Sei que hoje é dia de São Cosme e São
Damião. E foram os santos que trouxeram vocês pra me socorrer. Sei que por obra
do Destino vocês dois se chamam Cosme e Damião. Em homenagem a vocês, e em
agradecimento aos santos, os meus gêmeos serão também batizados como Cosme e
Damião. E se vocês dois aceitarem estão convidados a apadrinhar as crianças...
– Poxa! Isto é uma honra pra mim, e acredito que também
pro meu parceiro Damião! – externou Cosme com a imediata e emocionada aprovação
de Damião.
– Ótimo! Então está decidido, por mim, por meu marido e
por vocês! Muito obrigada a vocês, meus compadres, meus anjos da guarda!...
Assim surgiram no mundo mais uma dupla de Cosme e
Damião, que hoje devem estar adolescentes.
O PM Damião foi servir em Nova Friburgo. Casou-se com
Sheila e vive feliz. Tiveram dois filhos, que a avó, mãe de Sheila, ajuda a
cuidar.
Cosme continua em São Gonçalo e já está indo à reforma.
Cumpriu a sua parte, honrou a profissão, é sargento. Hoje a dupla está
desfeita, mas não nos corações das gentes gonçalenses e daquelas famílias de patrulheiros,
pois Cosme é padrinho de um dos filhos de Damião e ambos são padrinhos de Cosme
e de Damião, os gêmeos do morro Menino Deus.
Todos sempre se reúnem em amizade e com muitas outras
histórias a relembrar, como estas poucas que aqui foram contadas e que poderiam
ser de muitas duplas de patrulheiros da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro e de outras corporações coirmãs brasileiras. Aliás, vocês já perceberam
que na palavra “CORPORAÇÃO” há um “corpo”, um “CORAÇÃO” e uma “ORAÇÃO”?...
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