Há um lado da vida que retrata dramas e tragédias; já outro cuida de narrativas adocicadas e alegres. Quanto ao primeiro lado, muitos escritores se recusam a narrá-lo; já outros gostam de enfrentar a realidade, mesmo que leve as pessoas à reflexão e até ao pranto. Cuido de ambos, pois a vida é assim. Dito, vamos à história...
O bairro do Fonseca, em Niterói, amanheceu chocado naquele domingo diante do brutal assassinato de uma jovem. Ela fora na véspera esfaqueada por um rapaz que namorava, tendo morte horrível. O assassino perfurara o corpo da moça dezenas de vezes, deixando-a retalhada por completo. Assim ela foi encontrada pelo padrasto dela quando chegou a sua casa pela manhã, vindo do trabalho de vigia noturno. E logo a rua apinhou-se de gentes e policiais, todos consternados com o desespero daquele segundo pai ao ver a enteada morta de maneira animalesca.
O bairro do Fonseca, em Niterói, amanheceu chocado naquele domingo diante do brutal assassinato de uma jovem. Ela fora na véspera esfaqueada por um rapaz que namorava, tendo morte horrível. O assassino perfurara o corpo da moça dezenas de vezes, deixando-a retalhada por completo. Assim ela foi encontrada pelo padrasto dela quando chegou a sua casa pela manhã, vindo do trabalho de vigia noturno. E logo a rua apinhou-se de gentes e policiais, todos consternados com o desespero daquele segundo pai ao ver a enteada morta de maneira animalesca.
A moça chamava-se Ismélia. Vivia somente ela e o pai
numa casa modesta, próximo à sede do Fonseca Atlético Clube, no final da
Alameda São Boaventura, local que ela frequentava desde a mais tenra infância. Ismélia
contava 17 anos quando teve sua vida brutalmente ceifada. Os primeiros
comentários indicavam algum ato passional praticado por seu namorado.
Não havia
nenhuma dúvida, em princípio, sobre a autoria do crime, eis que Ismélia e seu namorado
foram vistos poucas horas antes no Clube Fonseca, conversando naturalmente numa
mesa, até que de lá saíram tarde da noite. Mas tudo parecia normal entre eles,
disseram as testemunhas que estavam no clube.
“Por que teria havido, então, o brutal assassinato?”,
especulavam os atônitos curiosos que sempre se aglomeram a observar tragédias
alheias como se fossem suas... “Sim, por que Mário, o namorado de Ismélia, a
matara daquele jeito?”, também cogitavam os policiais, até que o padrasto de
Ismélia os surpreendeu com a notícia de que Ismélia e Mário eram irmãos. Então
a triste história do casal foi sendo desvelada pelo delegado encarregado do
inquérito. Através do depoimento do padrasto de Ismélia, que se chamava Raul
Santos Silva, o delegado começou a reconstituir a história que culminaria
naquele trágico desfecho...
Há dezoito anos vivia em Itaboraí um casal nordestino
que para cá viera, como muitos outros, a tentar a vida na cidade grande. Não
encontrando trabalho no Rio, José Francisco decidiu ir com a mulher, Raimunda, buscar
emprego de caseiro nos roçados do interior. E veio para Itaboraí, onde
encontrou trabalho numa indústria de tijolos, indo morar em bairro pobre na
periferia daquela cidade.
Tudo transcorria tranquilo na vida do casal, que no ano
seguinte viu nascer o primeiro filho. Batizaram-no com o nome de Mário. O
nascimento do garoto foi objeto de enorme alegria. José Francisco estava firme
no seu trabalho e possuía vida organizada, apesar de pobre. E mal o menino
ganhara seus primeiros quilos Raimunda novamente engravidou. Tudo bem. Outro
filho seria bem-vindo.
Os meses se passaram, com Raimunda carregando um
rebento no colo e outro no bucho, ainda assim cuidando de seus afazeres
domésticos com alegria e disposição. E sempre encontrava tempo de aguardar José
Francisco para o jantar após um árduo dia de trabalho, até que, finalmente,
chegou o esperado dia do parto.
Raimunda e José Francisco haviam decidido que dois
filhos lhes bastavam. A cesariana foi feita, para que as trompas uterinas de
Raimunda fossem ligadas, e ela não mais engravidasse. Mas ocorreu o desastre, o
choque anafilático que levou Raimunda para sempre. Ficou José Francisco viúvo e
cuidando do filho Mário, de um ano, e da filha Ismélia, que acabara de nascer.
Foi triste, muito triste, o enterro de Raimunda no cemitério de Itaboraí. Toda
a gente do bairro compareceu, chocada com a tragédia que se abatera sobre José
Francisco.
As crianças ficaram na casa de Antônio, padrinho de
Mário e vizinho de José Francisco, enquanto transcorria o dramático
sepultamento, que atingiria o ápice do assombro em razão de outra tragédia
exatamente na hora que o caixão de Raimunda baixava à sepultura... Sim, ocorreu
o inesperado: José Francisco, urrando de dor, foi ao chão, duro como pedra.
Morto. Fora atingido por fulminante infarto do miocárdio. Coisas do Destino.
O desfecho não poderia ter sido pior. Duas mortes, dois
enterros dramáticos e duas crianças perdidas no mundo. O padrinho de Mário,
atônito, reuniu-se com os amigos do infortunado casal para deliberar sobre as
crianças. E decidiram que elas deveriam ser oferecidas aos casais dali mesmo,
do bairro, dando-se preferência àqueles que ainda não tivessem filhos.
Antônio, que era o padrinho de Mário, com ele ficou,
adotando-o como se fora filho. Ismélia foi adotada por Raul Santos Silva e sua
mulher, Maria da Graça, que tempos depois também morreria. Raul foi então
residir em Niterói, levando consigo a filha Ismélia, já com três anos de idade.
Assim se separaram para sempre os irmãos Mário e
Ismélia, até que ambos, já adolescentes, se reencontraram num baile no clube
Fonseca, onde Mário comparecera levado por colegas de trabalho da cerâmica na
qual trabalhava. Ele nunca saíra de Itaboraí. Continuara vivendo com o padrinho
e padrasto Antônio, que o tratava como se fosse filho legítimo, evitando
comentar sobre o seu triste passado. O mesmo ocorria com Ismélia, cujo pai
adotivo ocultava-lhe também a verdade.
Mas o inflexível Destino uniu os irmãos em amor
incontrolável. Quando eles depararam um com o outro, no clube, foi como se um
raio descesse e os atingisse em cheio nos corações. Explodiu a paixão sem dar
tempo a qualquer explicação para aquela afinidade entre ambos. E com a paixão
veio o sexo e a gravidez, tudo muito rápido, num tempo que voava veloz em favor
do aprofundamento do incestuoso relacionamento, porém não sabido.
Ismélia não pôde ocultar do padrasto que esperava um
filho de Mário. E ele, Mário, com total responsabilidade e apaixonado, foi até
Raul e assumiu o compromisso de se casar com Ismélia imediatamente. Tudo
acertado, Raul pediu a Mário que lhe trouxesse os documentos para dar entrada
em cartório. Ele entregou a Raul sua certidão de nascimento original, surgindo
então a inesperada revelação: ele era irmão de Ismélia.
Destino implacável, que, desta maneira, marcava duas
gerações. Ali estavam, Ismélia e Mário, atônitos e conhecendo, através de Raul,
a triste história de um passado não muito distante no tempo. Romperam ambos em
pranto, sem saber que fazer. Mário então sugeriu que a relação prosseguisse,
mas Ismélia colocou-se contrária. Afinal, agora sabia que ele era seu irmão e
não poderia consolidar aquele relacionamento incestuoso, mas que já gerara em
seu ventre um novo ser, sua única preocupação. Nasceria defeituoso?...
– Oh, Mário! Que vamos fazer? Não podemos ficar juntos!
Oh, meu Deus!...
– Calma Ismélia! Não vamos decidir nada apressado, não.
Você tá esperando um filho meu. O problema tá criado. Não temos culpa...
– Eu sei, Mário. Mas não podemos esquecer que somos
irmãos. Estou com medo de ver nascer uma criança defeituosa. Amanhã vou ao
médico. Não sei o que vou fazer se nascer um bebê com problemas...
– Tá certa. A maior preocupação deve ser a criança.
Vamos resolver tudo com calma! – aquiesceu Mário.
Depois de muito conversarem, Mário finalmente cedeu aos
argumentos de Ismélia de que deveriam aguardar um tempo, até que as cabeças de
ambos buscassem uma saída para aquela dramática situação. E pensavam na
complicada travessura do Destino, que produzira a gravidez de um bebê que
nasceria filho e ao mesmo tempo sobrinho de ambos...
Mário se foi para Itaboraí. Sua cabeça girava em
turbilhão. Ele nem mesmo podia comentar com o padrasto o seu drama, eis que
Antônio estava esclerosado, assim alternando momentos de lucidez com outros de
total deslembrança. “Que situação!”, ia pensando, sem saber que faria. Porém,
não se conseguia desvencilhar de sua paixão por Ismélia. Não a via como irmã,
recusava-se a perdê-la para outro, passando da condição de marido à de cunhado
de algum novo parceiro da amada. “Não, não aceito isso!”, pensava atordoado,
enquanto o ônibus rodava em direção a sua casa.
Em chegando à cidade, Mário resolveu ficar num bar e
beber. Bebeu até perder a noção de tudo. Tomou um porre homérico, sozinho e
sentado na mesa daquele bar amigo. Falasse aquela mesa e ela diria que nunca
acolhera uma pessoa tão desesperada. E ali ele ficou, até que o bar desceu as
portas, já de madrugada, quando então ele se foi, tentando encontrar o caminho
de casa. Não o achou, caiu debaixo de uma marquise e adormeceu ali mesmo.
O dia amanheceu com ele deitado numa fila de ônibus,
com as pessoas olhando-o, curiosas, eis que suas roupas não indicavam ser ele
um mendigo. Não fora roubado, nada sumira de seus bolsos. Lá estavam seus
documentos, intactos, entre eles a certidão de nascimento, prova incontestável
do seu drama: era irmão de sua amada, e Antônio, num rasgo de lembrança, tudo lhe
confirmou.
– Meu filho, nunca pensei te contar sobre o passado
porque não queria te magoar. Até hoje lembro a cena do meu amigo e compadre
caindo morto no cemitério diante do caixão de sua mãe. Você e sua irmã ficaram
aqui em casa com a vizinha tomando conta. Na volta, falei com os mais chegados
e decidimos que você ia ficar comigo como se fosse filho, e sua irmã foi
adotada por Raul e a mulher dele. Não dava pra imaginar uma situação como esta.
– É, pai, ninguém podia imaginar, mas foi o que
aconteceu. E agora ela não me quer mais. Não tô aceitando isso, não! Não vejo Ismélia
como irmã. Vou casar com ela mesmo assim.
– Vai com calma, filho! Você deve dar tempo ao tempo.
Não decida assim. Sei que seu jeito é estourado, mas desta vez você tem que se
comportar como adulto. Não vai fazer nenhuma bobagem, ouviu?
– Ora, pai, não sou criança! Não penso fazer nada de
errado. Mas não posso deixar de lado esse problema. Não posso me ver sem
Ismélia na minha vida, como minha mulher...
A semana se passou em tormento para as duas famílias
que a fatalidade novamente uniu, até que chegou o sábado. Mário então partiu
para Niterói, indo direto à casa de Ismélia, encontrando-a chorosa num canto da
sala. Raul havia ido ao seu labor de vigia noturno. Ismélia estava sozinha,
perdida em pensamentos enlouquecidos por uma realidade assustadora: esperava um
filho do irmão. “Não sei que fazer”, assim pensava, quando Mário chegou. E
chegou desconsiderando ou tentando desconsiderar qualquer realidade: agarrou
Ismélia e a beijou, mas dela recebeu um empurrão e a desaprovação. Ela decidira
que não ficaria com o irmão como sua namorada, e menos ainda como esposa...
– Olha, Mário, veja bem, você é meu irmão de sangue.
Fui ao médico e ele não me garantiu que o bebê vai nascer perfeito. É cedo
ainda. Eu não consigo mais ver você sem que seja como irmão...
– Não fale assim, Ismélia! Você não pode esquecer que
esse filho que você carrega é fruto do nosso amor. Não um amor entre irmãos.
Não aceito que você me descarte. Sou pai da criança e continuo querendo ser seu
marido...
Disse-o assim e dela recebeu imediata discordância,
ficando ambos discutindo asperamente. Depois de um tempo, porém, procuraram se
acalmar, quando então Mário optou por ir até o Clube Fonseca tomar uma cerveja.
Ismélia incentivou-o e o acompanhou, sugerindo-lhe que poderiam conversar com
mais calma.
– Mário, você está bebendo demais. Não está dando nem
mesmo pra gente chegar a uma conclusão. Vê se bebe menos!... – atalhou Ismélia
já preocupada.
– Ah, Ismélia, e eu tô muito maluco com tudo isso! Deixa
eu beber pra me acalmar – retrucou Mário.
Mário passou da conta na bebida, sem que Ismélia
conseguisse evitar. No clube, ele não aceitou conversar com ninguém além dela. Os
amigos que lá estavam dele receberam um passa-fora mal-educado quando se aproximaram.
Estranharam o hostil comportamento de Mário e se afastaram.
Depois de três horas bebendo sem parar, Mário sugeriu a
Ismélia tornar a casa. Estava desvairado e decidido de que a teria na cama
novamente. Pensava que assim quebraria o gelo que se formara entre eles. Quando
chegaram, ele nem conversou, avançou sobre ela e tentou fazer sexo abusando da
força bruta.
– Vem cá, amor! Quero você, hoje! Se nós transarmos,
você nem vai lembrar que é minha irmã...
– Não, não, Mário! Não faça isto, não! Não quero! Nem
adianta insistir!...
Estava ele totalmente embriagado e possesso. Ismélia
tentava dele se desvencilhar, mas não conseguia. E ele, cada vez mais
desesperado, começou a agredi-la sem mais parar. Ela passou a arranhá-lo no
rosto, deixando-o ainda mais alucinado. Foi quando ele partiu à cozinha e se
armou de uma faca, com a qual passaria a golpeá-la até a morte.
Tudo aconteceu numa sucessão de gestos tresloucados e
animalescos. No final, Ismélia jazia ensanguentada, com Mário fitando-a,
atônito, a faca assassina ainda na mão. Ele a jogou ao chão e saiu em
disparada.
Era tarde da noite, a rua vazia de gente, mas entre as
frestas de algumas janelas vizinhas havia muitos olhos testemunhando o que
todos estavam já a ouvir: a discussão, os gritos de dor, o silêncio e a fuga do
assassino. E foram essas pessoas que logo esclareceram à polícia que o cruel
matador de Ismélia fora aquele que ainda pensavam ser apenas namorado dela.
Com as informações já devidamente registradas, o
delegado partiu para Itaboraí na manhã seguinte. No cartório da cidade,
localizou o registro de nascimento dos irmãos Mário e Ismélia, mas nenhuma outra
referência havia que lhe pudesse facilitar a localização do fugitivo. Mas o
experiente delegado teve a brilhante ideia de pesquisar, na paróquia local, os
registros de batizados. Estava com razão, pois trouxe à luz o nome dos
padrinhos, especialmente de Antônio, que ele sabia ser o pai adotivo de Mário.
E lá estava o endereço, na Reta Velha de Itaboraí. O delegado partiu para lá e
deparou com um homem velho e momentaneamente atacado por deslembrança.
– Olá, seu Antônio! Como vai? – insinuou-se o delegado,
tentando tirar proveito do miolo mole do interlocutor.
– Quem é o senhor? – indagou Antônio.
– Que isso, seu Antônio? Fui criado aqui...
– Ah, você é filho do Marreco? – confundiu-se o velho.
– Sou! O senhor não está me reconhecendo porque estou
ficando velho – mentiu o delegado.
– É verdade, meu filho. Minha cabeça tá falhando
muito...
– Mas, seu Antônio, como é que está o meu amigo Mário?
Tem muito tempo que eu não o vejo... – mentiu novamente o delegado.
– O Mário tá bem. É bom filho, vem todos os dias dormir
aqui.
Pronto, agora somente bastava ao astuto delegado
esperar a noite e prender Mário ali mesmo, o que ocorreu sem qualquer
contratempo. Ele se entregou docilmente e foi condenado pelo crime que cometera
em total desespero.
*Esta história é real. Os personagens, porém, são
fictícios. O delegado de polícia, Dr. Romen José Vieira, foi quem me contou. Meu
grande amigo, ele infelizmente faleceu.
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