sábado, 20 de maio de 2017

FRATRICÍDIO*

 Há um lado da vida que retrata dramas e tragédias; já outro cuida de narrativas adocicadas e alegres. Quanto ao primeiro lado, muitos escritores se recusam a narrá-lo; já outros gostam de enfrentar a realidade, mesmo que leve as pessoas à reflexão e até ao pranto. Cuido de ambos, pois a vida é assim. Dito, vamos à história...

O bairro do Fonseca, em Niterói, amanheceu chocado naquele domingo diante do brutal assassinato de uma jovem. Ela fora na véspera esfaqueada por um rapaz que namorava, tendo morte horrível. O assassino perfurara o corpo da moça dezenas de vezes, deixando-a retalhada por completo. Assim ela foi encontrada pelo padrasto dela quando chegou a sua casa pela manhã, vindo do trabalho de vigia noturno. E logo a rua apinhou-se de gentes e policiais, todos consternados com o desespero daquele segundo pai ao ver a enteada morta de maneira animalesca.

A moça chamava-se Ismélia. Vivia somente ela e o pai numa casa modesta, próximo à sede do Fonseca Atlético Clube, no final da Alameda São Boaventura, local que ela frequentava desde a mais tenra infância. Ismélia contava 17 anos quando teve sua vida brutalmente ceifada. Os primeiros comentários indicavam algum ato passional praticado por seu namorado.

 Não havia nenhuma dúvida, em princípio, sobre a autoria do crime, eis que Ismélia e seu namorado foram vistos poucas horas antes no Clube Fonseca, conversando naturalmente numa mesa, até que de lá saíram tarde da noite. Mas tudo parecia normal entre eles, disseram as testemunhas que estavam no clube.

“Por que teria havido, então, o brutal assassinato?”, especulavam os atônitos curiosos que sempre se aglomeram a observar tragédias alheias como se fossem suas... “Sim, por que Mário, o namorado de Ismélia, a matara daquele jeito?”, também cogitavam os policiais, até que o padrasto de Ismélia os surpreendeu com a notícia de que Ismélia e Mário eram irmãos. Então a triste história do casal foi sendo desvelada pelo delegado encarregado do inquérito. Através do depoimento do padrasto de Ismélia, que se chamava Raul Santos Silva, o delegado começou a reconstituir a história que culminaria naquele trágico desfecho...

Há dezoito anos vivia em Itaboraí um casal nordestino que para cá viera, como muitos outros, a tentar a vida na cidade grande. Não encontrando trabalho no Rio, José Francisco decidiu ir com a mulher, Raimunda, buscar emprego de caseiro nos roçados do interior. E veio para Itaboraí, onde encontrou trabalho numa indústria de tijolos, indo morar em bairro pobre na periferia daquela cidade.

Tudo transcorria tranquilo na vida do casal, que no ano seguinte viu nascer o primeiro filho. Batizaram-no com o nome de Mário. O nascimento do garoto foi objeto de enorme alegria. José Francisco estava firme no seu trabalho e possuía vida organizada, apesar de pobre. E mal o menino ganhara seus primeiros quilos Raimunda novamente engravidou. Tudo bem. Outro filho seria bem-vindo.

Os meses se passaram, com Raimunda carregando um rebento no colo e outro no bucho, ainda assim cuidando de seus afazeres domésticos com alegria e disposição. E sempre encontrava tempo de aguardar José Francisco para o jantar após um árduo dia de trabalho, até que, finalmente, chegou o esperado dia do parto.

Raimunda e José Francisco haviam decidido que dois filhos lhes bastavam. A cesariana foi feita, para que as trompas uterinas de Raimunda fossem ligadas, e ela não mais engravidasse. Mas ocorreu o desastre, o choque anafilático que levou Raimunda para sempre. Ficou José Francisco viúvo e cuidando do filho Mário, de um ano, e da filha Ismélia, que acabara de nascer. Foi triste, muito triste, o enterro de Raimunda no cemitério de Itaboraí. Toda a gente do bairro compareceu, chocada com a tragédia que se abatera sobre José Francisco.

As crianças ficaram na casa de Antônio, padrinho de Mário e vizinho de José Francisco, enquanto transcorria o dramático sepultamento, que atingiria o ápice do assombro em razão de outra tragédia exatamente na hora que o caixão de Raimunda baixava à sepultura... Sim, ocorreu o inesperado: José Francisco, urrando de dor, foi ao chão, duro como pedra. Morto. Fora atingido por fulminante infarto do miocárdio. Coisas do Destino.

O desfecho não poderia ter sido pior. Duas mortes, dois enterros dramáticos e duas crianças perdidas no mundo. O padrinho de Mário, atônito, reuniu-se com os amigos do infortunado casal para deliberar sobre as crianças. E decidiram que elas deveriam ser oferecidas aos casais dali mesmo, do bairro, dando-se preferência àqueles que ainda não tivessem filhos.

Antônio, que era o padrinho de Mário, com ele ficou, adotando-o como se fora filho. Ismélia foi adotada por Raul Santos Silva e sua mulher, Maria da Graça, que tempos depois também morreria. Raul foi então residir em Niterói, levando consigo a filha Ismélia, já com três anos de idade.

Assim se separaram para sempre os irmãos Mário e Ismélia, até que ambos, já adolescentes, se reencontraram num baile no clube Fonseca, onde Mário comparecera levado por colegas de trabalho da cerâmica na qual trabalhava. Ele nunca saíra de Itaboraí. Continuara vivendo com o padrinho e padrasto Antônio, que o tratava como se fosse filho legítimo, evitando comentar sobre o seu triste passado. O mesmo ocorria com Ismélia, cujo pai adotivo ocultava-lhe também a verdade.

Mas o inflexível Destino uniu os irmãos em amor incontrolável. Quando eles depararam um com o outro, no clube, foi como se um raio descesse e os atingisse em cheio nos corações. Explodiu a paixão sem dar tempo a qualquer explicação para aquela afinidade entre ambos. E com a paixão veio o sexo e a gravidez, tudo muito rápido, num tempo que voava veloz em favor do aprofundamento do incestuoso relacionamento, porém não sabido.

Ismélia não pôde ocultar do padrasto que esperava um filho de Mário. E ele, Mário, com total responsabilidade e apaixonado, foi até Raul e assumiu o compromisso de se casar com Ismélia imediatamente. Tudo acertado, Raul pediu a Mário que lhe trouxesse os documentos para dar entrada em cartório. Ele entregou a Raul sua certidão de nascimento original, surgindo então a inesperada revelação: ele era irmão de Ismélia.

Destino implacável, que, desta maneira, marcava duas gerações. Ali estavam, Ismélia e Mário, atônitos e conhecendo, através de Raul, a triste história de um passado não muito distante no tempo. Romperam ambos em pranto, sem saber que fazer. Mário então sugeriu que a relação prosseguisse, mas Ismélia colocou-se contrária. Afinal, agora sabia que ele era seu irmão e não poderia consolidar aquele relacionamento incestuoso, mas que já gerara em seu ventre um novo ser, sua única preocupação. Nasceria defeituoso?...

– Oh, Mário! Que vamos fazer? Não podemos ficar juntos! Oh, meu Deus!...

– Calma Ismélia! Não vamos decidir nada apressado, não. Você tá esperando um filho meu. O problema tá criado. Não temos culpa...

– Eu sei, Mário. Mas não podemos esquecer que somos irmãos. Estou com medo de ver nascer uma criança defeituosa. Amanhã vou ao médico. Não sei o que vou fazer se nascer um bebê com problemas...

– Tá certa. A maior preocupação deve ser a criança. Vamos resolver tudo com calma! – aquiesceu Mário.

Depois de muito conversarem, Mário finalmente cedeu aos argumentos de Ismélia de que deveriam aguardar um tempo, até que as cabeças de ambos buscassem uma saída para aquela dramática situação. E pensavam na complicada travessura do Destino, que produzira a gravidez de um bebê que nasceria filho e ao mesmo tempo sobrinho de ambos...

Mário se foi para Itaboraí. Sua cabeça girava em turbilhão. Ele nem mesmo podia comentar com o padrasto o seu drama, eis que Antônio estava esclerosado, assim alternando momentos de lucidez com outros de total deslembrança. “Que situação!”, ia pensando, sem saber que faria. Porém, não se conseguia desvencilhar de sua paixão por Ismélia. Não a via como irmã, recusava-se a perdê-la para outro, passando da condição de marido à de cunhado de algum novo parceiro da amada. “Não, não aceito isso!”, pensava atordoado, enquanto o ônibus rodava em direção a sua casa.

Em chegando à cidade, Mário resolveu ficar num bar e beber. Bebeu até perder a noção de tudo. Tomou um porre homérico, sozinho e sentado na mesa daquele bar amigo. Falasse aquela mesa e ela diria que nunca acolhera uma pessoa tão desesperada. E ali ele ficou, até que o bar desceu as portas, já de madrugada, quando então ele se foi, tentando encontrar o caminho de casa. Não o achou, caiu debaixo de uma marquise e adormeceu ali mesmo.

O dia amanheceu com ele deitado numa fila de ônibus, com as pessoas olhando-o, curiosas, eis que suas roupas não indicavam ser ele um mendigo. Não fora roubado, nada sumira de seus bolsos. Lá estavam seus documentos, intactos, entre eles a certidão de nascimento, prova incontestável do seu drama: era irmão de sua amada, e Antônio, num rasgo de lembrança, tudo lhe confirmou.

– Meu filho, nunca pensei te contar sobre o passado porque não queria te magoar. Até hoje lembro a cena do meu amigo e compadre caindo morto no cemitério diante do caixão de sua mãe. Você e sua irmã ficaram aqui em casa com a vizinha tomando conta. Na volta, falei com os mais chegados e decidimos que você ia ficar comigo como se fosse filho, e sua irmã foi adotada por Raul e a mulher dele. Não dava pra imaginar uma situação como esta.

– É, pai, ninguém podia imaginar, mas foi o que aconteceu. E agora ela não me quer mais. Não tô aceitando isso, não! Não vejo Ismélia como irmã. Vou casar com ela mesmo assim.

– Vai com calma, filho! Você deve dar tempo ao tempo. Não decida assim. Sei que seu jeito é estourado, mas desta vez você tem que se comportar como adulto. Não vai fazer nenhuma bobagem, ouviu?

– Ora, pai, não sou criança! Não penso fazer nada de errado. Mas não posso deixar de lado esse problema. Não posso me ver sem Ismélia na minha vida, como minha mulher...

A semana se passou em tormento para as duas famílias que a fatalidade novamente uniu, até que chegou o sábado. Mário então partiu para Niterói, indo direto à casa de Ismélia, encontrando-a chorosa num canto da sala. Raul havia ido ao seu labor de vigia noturno. Ismélia estava sozinha, perdida em pensamentos enlouquecidos por uma realidade assustadora: esperava um filho do irmão. “Não sei que fazer”, assim pensava, quando Mário chegou. E chegou desconsiderando ou tentando desconsiderar qualquer realidade: agarrou Ismélia e a beijou, mas dela recebeu um empurrão e a desaprovação. Ela decidira que não ficaria com o irmão como sua namorada, e menos ainda como esposa...

– Olha, Mário, veja bem, você é meu irmão de sangue. Fui ao médico e ele não me garantiu que o bebê vai nascer perfeito. É cedo ainda. Eu não consigo mais ver você sem que seja como irmão...

– Não fale assim, Ismélia! Você não pode esquecer que esse filho que você carrega é fruto do nosso amor. Não um amor entre irmãos. Não aceito que você me descarte. Sou pai da criança e continuo querendo ser seu marido...

Disse-o assim e dela recebeu imediata discordância, ficando ambos discutindo asperamente. Depois de um tempo, porém, procuraram se acalmar, quando então Mário optou por ir até o Clube Fonseca tomar uma cerveja. Ismélia incentivou-o e o acompanhou, sugerindo-lhe que poderiam conversar com mais calma.

– Mário, você está bebendo demais. Não está dando nem mesmo pra gente chegar a uma conclusão. Vê se bebe menos!... – atalhou Ismélia já preocupada.

– Ah, Ismélia, e eu tô muito maluco com tudo isso! Deixa eu beber pra me acalmar – retrucou Mário.

Mário passou da conta na bebida, sem que Ismélia conseguisse evitar. No clube, ele não aceitou conversar com ninguém além dela. Os amigos que lá estavam dele receberam um passa-fora mal-educado quando se aproximaram. Estranharam o hostil comportamento de Mário e se afastaram.

Depois de três horas bebendo sem parar, Mário sugeriu a Ismélia tornar a casa. Estava desvairado e decidido de que a teria na cama novamente. Pensava que assim quebraria o gelo que se formara entre eles. Quando chegaram, ele nem conversou, avançou sobre ela e tentou fazer sexo abusando da força bruta.

– Vem cá, amor! Quero você, hoje! Se nós transarmos, você nem vai lembrar que é minha irmã...

– Não, não, Mário! Não faça isto, não! Não quero! Nem adianta insistir!...

Estava ele totalmente embriagado e possesso. Ismélia tentava dele se desvencilhar, mas não conseguia. E ele, cada vez mais desesperado, começou a agredi-la sem mais parar. Ela passou a arranhá-lo no rosto, deixando-o ainda mais alucinado. Foi quando ele partiu à cozinha e se armou de uma faca, com a qual passaria a golpeá-la até a morte.

Tudo aconteceu numa sucessão de gestos tresloucados e animalescos. No final, Ismélia jazia ensanguentada, com Mário fitando-a, atônito, a faca assassina ainda na mão. Ele a jogou ao chão e saiu em disparada.

Era tarde da noite, a rua vazia de gente, mas entre as frestas de algumas janelas vizinhas havia muitos olhos testemunhando o que todos estavam já a ouvir: a discussão, os gritos de dor, o silêncio e a fuga do assassino. E foram essas pessoas que logo esclareceram à polícia que o cruel matador de Ismélia fora aquele que ainda pensavam ser apenas namorado dela.

Com as informações já devidamente registradas, o delegado partiu para Itaboraí na manhã seguinte. No cartório da cidade, localizou o registro de nascimento dos irmãos Mário e Ismélia, mas nenhuma outra referência havia que lhe pudesse facilitar a localização do fugitivo. Mas o experiente delegado teve a brilhante ideia de pesquisar, na paróquia local, os registros de batizados. Estava com razão, pois trouxe à luz o nome dos padrinhos, especialmente de Antônio, que ele sabia ser o pai adotivo de Mário. E lá estava o endereço, na Reta Velha de Itaboraí. O delegado partiu para lá e deparou com um homem velho e momentaneamente atacado por deslembrança.

– Olá, seu Antônio! Como vai? – insinuou-se o delegado, tentando tirar proveito do miolo mole do interlocutor.

– Quem é o senhor? – indagou Antônio.

– Que isso, seu Antônio? Fui criado aqui...

– Ah, você é filho do Marreco? – confundiu-se o velho.

– Sou! O senhor não está me reconhecendo porque estou ficando velho – mentiu o delegado.

– É verdade, meu filho. Minha cabeça tá falhando muito...

– Mas, seu Antônio, como é que está o meu amigo Mário? Tem muito tempo que eu não o vejo... – mentiu novamente o delegado.

– O Mário tá bem. É bom filho, vem todos os dias dormir aqui.

Pronto, agora somente bastava ao astuto delegado esperar a noite e prender Mário ali mesmo, o que ocorreu sem qualquer contratempo. Ele se entregou docilmente e foi condenado pelo crime que cometera em total desespero.



*Esta história é real. Os personagens, porém, são fictícios. O delegado de polícia, Dr. Romen José Vieira, foi quem me contou. Meu grande amigo, ele infelizmente faleceu.

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