O VELHO PM: UMA HISTÓRIA ANTIGA
Sou do século passado, disso tenho certeza. Venci os
anos e vi muita coisa em mais de 120 primaveras que hoje conto. Tive também a
felicidade de conviver com meus antepassados, todos vindo de longe no tempo,
porém hoje já mortos, como também meus irmãos e irmãs, que ficaram no corte da
cana e depois foram enterrados debaixo de algum verdejante canavial tornando a
terra mais feraz. Não importa, “os mortos ficam bem onde caem”, disse um dia o
mais importante mestre das letras pátrias...
Muitas coisas meus ancestrais viram e sentiram, e a mim
me contaram antes da partida definitiva de seus espíritos para as planícies da
África e para a liberdade. Mas eu nasci nas planícies dos índios goitacases, em
meio ao trabalho árduo de muitos negros, como eu, no corte da cana-de-açúcar.
Sim, trabalho duro, suado, escravo, a jararaca e a coral ameaçando-me os pés, o
pico e a morte, a morte de muitos escravos e de seus descendentes na tenra
idade ou em qualquer tempo de uma vida quase selvagem, mordidos por cobras
traiçoeiras serpenteando nervosas nos canaviais à procura de gente para matar,
bastando nelas pisar. Muitas, porém, morreram sob os pés negros e calejados no
atrito da carne bruta no chão, pés nus que pisavam direto e amassavam até os
mais duros espinhos.
Assim era a planície dos índios então afastados pelos
brancos para dar lugar à ganância, com muitos caminhos riscando as passagens
entre os imensos canaviais que se perdiam no horizonte infinito, suas pontas
roçando o céu campista. Tudo muito verde, até que o fogo surgisse queimando os
quadrantes da cana no ponto do corte e matando as cobras, os colmos enegrecidos
da fuligem caindo aos montes no talho de amolados facões, muitos facões, alguns
tão gastos que vinham do tempo da escravidão.
A escravidão acabara, sim, mas o trabalho sistemático
do corte da cana e das moendas nem parecia tomar conhecimento da mudança. No
fim de contas, nada mais havia a fazer, nem ontem e nem hoje, além de decepar a
cana e transformá-la em riquezas da casa-grande. Pois a abolição não mandara
ninguém de volta à única liberdade que almejavam: os campos da África. Como
antes, ficaram todos fecundando as mulheres e o chão, e plantando mudas da doce
gramínea, e procriando mais filhos, e roçando o canavial, e alimentando os
rebentos, e decepando a cana, e enfeixando-a, e carregando no range-range do
carro de boi o bagaço verde ou no silencioso bangüê os cadáveres, e enterrando
escravos e fazendo a gramínea crescer indiferente aos corpos que cobria de
quando em quando.
Mas antes os negros eram muitos, e cortavam a
cana-de-açúcar sem parar. Batiam os primeiros e frios raios solares na terra
úmida e lá estavam eles, ainda em silhuetas tristonhas, no vaivém e no sobe e
desce dos fios amolados e ferozes ceifando a base da plantação. E comiam lá mesmo
a ração: a farinha, a rapadura e a carne-seca; comiam também as cobras e as
caças pequenas; comiam os peixes pescados em riachos, muitos deles apanhados
nas locas por mãos experimentadas. Sobreviviam assim, pensando na África,
lembrando os antepassados, sonhando com a liberdade perdida.
Aos 16 anos, creio eu, rumei para outros mundos. Saí da
roça a caminho de Niterói, a capital da Província Fluminense. Vim vencendo
caminhos distantes, eu e minha mula cansada, meu valente animal. De passagem,
vi a Mata Atlântica ainda perene e colada ao céu azul; vi a liberdade e a esperança
em busca de outra vida em lugar melhor; vi o povo sofrido, do mato, pegando as
mesmas trilhas a buscar a cidade grande e o trabalho, na coragem férrea rumo ao
incerto futuro. Eu era um deles, também trilhando na incerteza e saindo do nada
para o desconhecido.
Finalmente cheguei, passei defronte do quartel da
Guarda Policial da Província Fluminense e ouvi a corneta. Meu coração disparou,
e pensei: “A farda cáqui, os botões, as guarnições de couro, os bonés
enfeitando os soldados. Seria eu um deles?” Sim, vendi a mula, entrei e não
mais saí daquele quartel. Assentei praça ainda no tempo do laço caçando
milicianos. Fui olhado nos dentes e no corpo como se fosse um cavalo, como se
estivessem assim medindo a minha idade. Mas eu era jovem e forte, criado na
caça, na pesca, no melado, na farinha e na rapadura; nadava no rio Paraíba,
tinha ombros largos, braços e pernas fortes; comia o robalo pescado na isca da
aletria. Se eu fosse um cavalo, seria um corredor de grandes distâncias. E veio
o sargento que me fitou e disse:
— Vosmecê é homem forte. Será bom soldado.
Cheguei no ano de 1900, bem depois da Guerra do
Paraguai. Mas no quartel ainda contavam os feitos heróicos do 12º de
Voluntários da Pátria nas terras alienígenas, nos idos de 1865 a 1870. Eu ouvia
as falas, curioso; quem me contava era um deles, o velho sargento Cedro. Ele
foi àquela guerra na viagem de navio e depois em lombos de burros socando o
chão, seco ou molhado, os acampamentos no caminho, uma tropa de guerreiros
improvisados. Eram homens do mato e escravos, todos acostumados à luta de
sobreviver na natureza. Nada sentiam, eram fortes. E cada homem ia com o
embornal cheio de balas, o fuzil no ombro, a baioneta armada. E havia a boiada
e as prostitutas e o facão a ceifar vidas inimigas... E não havia
aristocratas...
Ninguém pensava morrer; pensava só nas batalhas, nas
vitórias e nas mentiras. Aos vencedores, as honrarias e os créditos, até aos
mais mentirosos (“ao vencedor as batatas”). E o sargento Cedro era um honrado
defensor da pátria e vencedor da guerra. Eu o ouvia. Se eu fosse à guerra,
também medo não teria. Mas nem soube dela...
Entrosado ao militarismo, veio o meu nome de guerra, o
do batismo, herdado do nhonhô da casa-grande campista da cana-de-açúcar: Silva,
meu batizado na farda. Anotaram o meu nome, Sebastião da Silva. Eu dizia,
somente dizia, porque certidão eu não tinha, documentos eu não tinha, mas
apenas um papel do nhonhô que ficou patrão do pai ao fim da escravidão.
As batalhas da guerra, o sargento Cedro contava, tinham
sido infernais. Ceifaram vidas e vidas, não deixaram paraguaios adultos de pé,
muitos meninos morreram, até as mulheres morreram, a maioria depois de
violentadas. Guerra infernal, batalhas terríveis, em Curuzu, Curupaiti,
Corrientes, Lomas Valentinas, Humaitá, Itororó, Angostura, e, finalmente, Cerro
Corá, onde tombou morto Solano López, não sem antes ver um exército de pobres e
negros invadindo Assunção. Nessas terríveis batalhas, muitos corpos caíram com
as vísceras expostas a talho de baioneta ou de facão, o mesmo que antes cortava
a cana. O facão era a alma daquelas gentes simples tornadas soldados.
Sangue, muito sangue nas águas dos rios e riachos
tingindo-as em vermelho. Mas, depois de
avanços e recuos, veio a vitória; suada e sangrenta, sim, porém a vitória, e o
heróico retorno da tropa nos braços da glória, a promoção a sargento, a mancha
do dedo no papel era a sua assinatura, e assim o miliciano Cedro chegou a
sargento, no heroísmo, com muitas medalhas enfeitando a farda. Eu tudo ouvia,
fascinado.
No quartel, fiquei de cavalariço do comandante. Seu
cavalo, um crioulo dos pampas rio-grandenses-do-sul, baio e forte, era o melhor
de todos. Mas havia o medo das ruas, das gentes que passavam em vaivéns
operosos; eu olhava, ressabiado, e sentia saudade do mato, da vida selvagem,
dos parentes distantes. O quartel era meu refúgio, ali eu ficava sem quase
sair. Saí sim, depois de um tempo, em busca de aventuras, de moças que se
mostravam e deitavam a dinheiro. Mas eu logo voltava, e o tempo passava,
moroso...
Assim, em lentidão, muitos milicianos eu vi passar,
sentado no mesmo banco do quartel, de onde nunca precisei sair para saber de
muitas batalhas fratricidas havidas em solo pátrio: novidades assustadoras. Mas
hoje, na reserva da tropa, descanso, não mais saio do quartel. Antes, eu
ajudava na faina diária, superiores agradados, vício de escravo. Na virada do
século, muito depois de passada a República, eu vi intentonas, revoluções e
outras comoções intestinas, tudo entre irmãos. E ouvi dizer das guerras
mundiais que eu não entendia. Sim, porque o meu lugar era o quartel de Niterói
e as pessoas de dentro que pude observar por anos e anos, muitas iguais a mim.
E vários episódios alegres, alguns jocosos, e outros dramáticos, eu também os
vi. E tragédias.
Os sinais da mudança dos tempos, entretanto, surgiam me
atordoando a cabeça já branca, porém num corpo teimosamente saudável. Foi
vontade de Deus a minha longa duração na vida terrena. Assim cheguei ao hoje,
mas não gosto; e me volto ao dia em que adentrei o portal do quartel pela
primeira vez. O corpo tremia no temor de um mundo estranho diante de mim, e o
quartel foi meu refúgio.
Eu era um caso raro, voluntário em meio aos caçados a
pau e corda, gente de toda a lonjura e de todos os naipes, porém miseráveis e
sem destino. A milícia era a mãe gentil que surgia na hora da luta pela vida
que começava no isolamento do mundo familiar, que começava e terminava no
quartel. E ali eu vivi, como os meus antepassados africanos e campistas,
esperando a morte chegar e meu espírito viajar nas asas da liberdade para os
campos da África de meus ancestrais. Afinal, são apenas corpos mortos, e “os
mortos ficam bem onde caem”...
PM DA VELHA-GUARDA
Sou PM, sim, senhor!
Da velha guarda, sou sim!
Dos tempos idos e vividos
Do tresoitão, da escopeta
Da metralhadora emperrada
Do fuzil, da baioneta.
Sou PM, sim, senhor!
Dos tempos românticos, sou sim!
Da camaradagem sadia
Do soldado sendo gente
Do amigo coronel
Do abraço em alegria.
Sou PM, sim, senhor!
Guardo em mim boas lembranças
Da corneta e do clarim
Da marcha batida em orgulho
Da farda que não era fardo
Da corporação dentro de mim.
Sou PM, sim, senhor!
Ontem, hoje e amanhã
Canto o hino e a canção
Bato no peito e proclamo:
Morro por minha pátria
E vivo com muita razão!
Sou PM, sim, senhor!
Hoje mui desalentado...
Por ver morrerem os novatos
Como patos na caçada
Sem direito a defesa
Morrendo a troco de nada.
O RECRUTA DE ONTEM E HOJE
É ainda madrugada. O irritante tilintar do despertador
fere-me os tímpanos e faz o martelo bater forte na bigorna. Irra!... Levanto-me
rápido, vou ao banheiro, escovo os dentes, faço a barba, “reflito” e retorno ao
quarto. Visto-me correndo e saio, ainda no lusco-fusco, até a parada do ônibus.
Chove. Não tenho guarda-chuva, mas lá vou eu assim mesmo. Na parada, a
ansiedade da falta do ônibus, que está atrasado. Sempre atrasado... A chuva
aperta; a minha afobação também, pois o maldito não desponta no fim da rua
roncando seu velho motor e oscilando ao passar pelos enormes buracos alagados.
Nada posso fazer, só tem ele, que finalmente surge,
espirrando lama nas pessoas, e como se não tivesse nenhum compromisso comigo.
Estico o braço, agitado, afasto-me da lama aérea e ele pára. Entro e me vou
esfregando, molhado, nas pessoas que se apinham num apertado espaço. Ninguém
quer perder o único ônibus, nem a hora, nem o emprego, por chegar atrasado. Nem
eu, que espero castigo maior. E sou obrigado a ouvir, em incômoda quietude, as
imprecações dos passageiros que inadvertidamente molhei com minha roupa
molhada. É o nervosismo, o cansaço antecipado dos trabalhadores logo na
primeira hora, e antes de se iniciarem na faina, ainda no crepúsculo de um
alvorecer que nem começou.
O ônibus roda e pára muitas vezes, sem pressa. A pressa
está dentro de mim, que não posso sair na véspera. E, no dia, só há aquele
maldito meio de transporte. Em cada parada, entram e saem passageiros afobados.
Minha parada final está longe, e não chega, e a hora passa, e me atormenta a
idéia do atraso. Mas, como tudo tem um fim, chego ao meu destino. E salto, e
corro, e entro no quartel atabalhoadamente, e vou ao alojamento, e me fardo, e
me disparo à formatura na quadra coberta ainda debaixo de chuva.
Entro na quadra, a tropa está formada, o sargento conta
os homens. Vou até ele e lhe peço permissão para me incluir entre aqueles
soldados formados, sou um deles, mas um retardatário, por culpa de
circunstâncias alheias a minha vontade. O sargento sorri, e me diz que cheguei
atrasado, e me diz que ficarei no castigo de pernoitamento em quartel, e me diz
que estou muito mais molhado do que realmente estou, e me diz que por isso
também serei dobrado no serviço de fim de semana. Abaixo a cabeça enquanto me encaminho
ao meu lugar na formatura. Noto meus companheiros solidários comigo. São todos
como eu, recrutas. Mas eu cheguei um minuto atrasado...
O PM DE HOJE
Sou PM já formado, sim, senhor. Saio de casa, no
subúrbio, ainda no lusco-fusco do amanhecer, como nos tempos de recruta; fui
acordado, antes do tilintar do despertador, pelo impertinente cantar do galo no
quintal do vizinho. “Ainda mato esse galo!”, penso raivosamente, enquanto pulo
da cama, travo o despertador, sigo a rotina e ando até o ponto do ônibus. Na
banca de jornal, logo vejo as manchetes e me aborreço: “PM mata!”, “PM morre!”,
“PM é preso!”... É sempre assim. Embarco no ônibus cheio de gente e ouço os
comentários daqueles que não sabem quem sou: “PM tem mais é que se fornicar!”
No princípio, eu reagia, me identificava, discutia com
o inadvertido e dele discordava. Ou então lhe dava uma peitada de polícia,
mesmo, e o fazia calar na marra. Em torno de mim, porém, via todos me odiando
em quietude incômoda. “Ah, que se danem!”, eu pensava. Afinal, sei que quem
gosta de PM é família e poucos amigos, mas alguns apenas por interesse.
Incrível é que, embora socialmente insignificante, nós, PMs, ainda temos
prestígio pra quebrar um ou outro galho, pequeno, é lógico. E talvez PM goste
de PM; porém, nem sempre...
Esta é minha “nobre” profissão. Chego ao quartel e me
dirijo ao alojamento. O banheiro fede, mas todos estão lá, ou defecando ou
tomando banho em algaravia nervosa. Os narizes não se afetam. Não há papo
comum, cada um pensa em si e por si. No máximo, pode haver algum grupo
conversando em sintonia, o que é raro. Geralmente esses papos sintonizados não
ocorrem em alojamentos nem em banheiros: são espaços perigosos, há amigos e
inimigos, as paredes têm ouvidos...
Mas começo a vestir a farda, exercício que faço
desconfortavelmente sentado em cama beliche, com a de cima me obrigando a
curvar a espinha, mesmo assim buscando ser rápido. Agora é hora de calçar os
botins, o pior momento, um peso a mais a estourar as varizes e a feder os pés
no suor de um dia de trabalho.
Os superiores dizem que é mais barato calçar soldado
com botim do que com sapato. Bem prático, é verdade, mas que se danem os PMs
que detestam o botim, como eu, é assim que pensam os superiores e fim! E quando
se trabalha de capacete? Ai, meu Todo-Poderoso, que merda! O capacete é feio,
incômodo, é provoca dor de cabeça, mas nada disso importa, cabeça de PM nada
vale, sei disso.
Olho a barba. Está boa. Hoje é dia de formatura geral.
Estou em dia de folga, mas folga de PM é vontade de superior, e esta é a de
realizar a formatura geral pra discursar o que já sabemos. Geralmente é pra
anunciar punição ou serviço extra. E depois, claro, a ordem-unida pra “cimentar
a disciplina militar”, conforme diz o regulamento, não sei qual. Mas, sabendo
ou não, marcha-se pra lá e pra cá, num vaivém em pátio apertado que nem dá pra
andar ou correr ou marchar. Mas vem o comando e todos saem batendo o botim no
chão em impoluta docilidade, os superiores olhando a tropa pra ver quem está
enrolando na marcha, hora boa de punir.
É tempo de ouvir a escala do serviço extra, é almoço,
meio-dia perdido. Há, então, o toque de rancho, nova formatura, agora um pouco
bagunçada, dependendo do oficial-de-dia. Às vezes é um tenente chato. Pior
ainda quando é subtenente, que fica nervoso e aperta demais a gente.
E a comida? Simples, temperada, quantidade boa, mas com
aspecto de comida de porco. E daí?... Nós somos meio porcos, mesmo! O que
interessa é comer, encher a pança, lamber os beiços e buscar um canto pra
descansar enquanto não há o anúncio do serviço. Mas já temos idéia do que seja,
é sexta-feira e domingo tem Fla-Flu no Maraca, final de campeonato. É isso.
De tarde, sai finalmente a escala do policiamento
extra. Era o que se pensava, o Maraca cheio de gente e nós, de costas pro jogo,
olhando aquele mundão de torcedores vibrando. Dá inveja, dá vontade de arriar a
porrada neles e nos superiores. Não poderiam pelo menos revezar os babacas dos
PMs, a metade vendo o jogo enquanto a outra vê a torcida? Depois, é só
inverter. Mas, não. Fica é todo mundo sem ver nada, com raiva de tudo e saudade
dos filhos. Eu sou Flamengo e tenho de ver meu timaço de costas, porra!
Vai finalmente todo mundo embora. Há assalto do lado de
fora e um torcedor é morto, baleado. Mas é torcedor do Fluminense, então
foda-se! Eu quero é me mandar pra casa e pelo menos pegar um rango melhor com a
patroa. Mas, custa-se a sair, a noite começa a esfriar, chove fino. Até chegar
ao quartel e ser liberado leva um penoso tempo, isto sem falar naquela preleção
do garoto oficial-de-dia, que me enche o saco. Ô vida! Puta que pariu! Mas,
finalmente, sou liberado, e o relógio do quartel bate lentamente 22 horas...
Que domingo!...
Pego um ônibus de pessoas cansadas. Olho bem se há
suspeitos, minha carteira está dentro do sapato, bem camuflada. Mas o meu
revólver 38 está afiado na cinta. Sento-me lá atrás pra não ser surpreendido,
porém nem sempre há lugar e tenho de me arriscar e ocupar qualquer um. Ainda
fico de olho em quem embarca no caminho. Se entrar galera esquisita, pulo fora
e pego outro ônibus, melhor não arriscar.
Não é mole, não! Mas, enfim, chego a casa. Passa das 23
horas. Tudo apagado, abro a porta devagar e vejo a patroa dormitando na
poltrona, a tevê desligada. Ela está num sono profundo, eu a acordo
cuidadosamente. Mesmo assim, há o sobressalto e o reclamo, que logo passam. Ela
sabe que estou com os meus nervos à flor da pele, e, carinhosamente, diz que me
esperava pra jantar. E vai à cozinha...
Vou ao banho quente pra descontrair; visto um calção
velho e ponho as chinelas nos pés doloridos. Sinto-me bem, vou à cozinha. A
mesa está posta, tudo simples, arrumadinho. Há carinho, sem dúvida, fito a
patroa retribuindo. Sentamos e comemos sem conversa. Há cansaço em ambos. A
comida traz o sono. Ainda tentamos resistir e nos acariciamos buscando o sexo.
Impossível, só dou por mim no dia seguinte, ao repetitivo cantar do galo
trazendo o lusco-fusco de um novo alvorecer. Não sei se a patroa apagou antes
de mim. Pulo fora da cama e corro à cozinha pra fazer café. Faço-o, engulo-o
com uns biscoitos e me mando à rua. Tenho de andar rápido e pegar o ônibus
sempre perigoso, estou de serviço a partir das oito. Sim, senhor, eu sou PM.
A FARDA DO PM
A farda do PM não deveria ser um fardo, e, sim, motivo
de orgulho. Como outrora, em que o PM era um “bom partido” e as meninas o
rodeavam nas ruas... Hoje, não mais... Hoje, a farda do PM significa vida
pauperizada, risco de morte e desgaste moral.
Muitas vezes a farda do PM envergonha seus familiares
nos bairros, ruas e escolas. Basta a falha de um PM que esteja dentro da farda,
por azar ou desídia, não importa, a culpa será de todos.
Hoje, a farda do PM equivale ao pecado e à
desconfiança; já até foi considerada, por um jornalista malicioso, uma “prisão
onde só cabe um ladrão”.
E não falta quem não queira engrossar a fileira dos que
detestam a farda do PM e odeiam indistintamente quem está dentro dela.
Não lhes importam o corpo e a alma do anônimo que veste
o seu fardo hodierno, como traduziu o poeta Salgado Maranhão, prêmio Jabuti de
Poesia (Câmara Brasileira do Livro, 1999):
FARDA
Melhor se se chamasse fardo,
em vez de farda, – esse travel
cheque para o sacrifício –
a defender o indefensável.
Melhor se se chamasse alvo:
mural da ira acusadora
contra os próprios personagens
que lhe julgam protetora.
São, normalmente, pretos, pardos,
Pobres, sobras de etnias:
gente fabricada em série,
que ao perder, tira se outra via.
E prossegue o ritual
desse espetáculo de horrores,
de Caim matando Abel
numa guerra sem vencedores.
E prossegue essa torrente
do sangue que não socorre,
o drama de ser ver morrer,
do lado de onde sempre morre.
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