segunda-feira, 12 de junho de 2017

CORISCO





DA SÉRIE PUBLICADA EM LIVRO (BAIRRO DE LATA, JÁ ESGOTADO): CONTOS VARIADOS, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO,





“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)


– Tá passando um corisco no morro! – gritava a Velha Cigana Maluca, com voz gutural que se ouvia longe.



 Ela vivia no morro. De onde veio, ninguém nunca soube. Apareceu de repente, – e anos antes, – com aquelas suas vestes esfarrapadas e em pedaços aproveitados de qualquer tecido maltrapilho que lhe davam. Mas lembrava a figura da antiga e enfeitada cigana, de roupas coloridas e joias doiradas, tirando nas ruas a sorte do povo. De ornamento atual, porém, a Velha Cigana Maluca usava de tudo que encontrasse: um pedaço de arame enferrujado, e em voltas diversas, imitando um cordão, e nele dependurava uma lata de cerveja amassada e recortada em estrela, que combinava com os inusitados artesanatos espalhados pelos dois braços, em voltas e mais voltas do mesmo arame enferrujado e indo tudo quase aos cotovelos.

Era uma figura sinistra, a Velha Cigana Maluca, que andava morro abaixo e morro acima, parando em horas certas para comer a comida doada. Nunca lhe negavam nada, ou por medo ou por pena. E ela também nunca pedia; apenas parava em frente de algum barraco e esperava o que vinha, e vinha sempre, o café com pão, o prato de comida e as roupas surradas que ela mesma ajeitava com mãos habilidosas. Para dormir, era um cantinho nos fundos do prédio da associação de moradores, onde também tomava o seu banho e se perfumava com o perfume barato que ganhava. E lavava suas roupas com carinho, como nos velhos tempos de moça bonita. Mas nunca se dirigia a ninguém, nunca falava com ninguém, a não ser com Marluce, uma só vez, para pedir o perfume. Mas, na verdade, não falava, apenas lhe mostrava o vidro vazio e esperava, e sempre vinha o outro perfume, que Marluce lhe providenciava com carinho. A Velha Cigana Maluca era assim, estranha, e parecia que chegara ao morro apenas com aquela missão de gritar: “Tá passando um corisco no morro!” E Marluce era a mãe de Corisco.

Era o morro do Corre-Longe, na verdade uma cadeia de três elevações interligadas, todas mais ou menos se equivalendo em altitude e formando uma esplanada, porém com um ponto ligeiramente mais alto e empedrado, onde estava plantada a capela, uma bonita capela toda branquinha. E, do alto do campanário, da torre do pequeno sino, via-se a maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, linda, especialmente à noite, com as luzes formando colares de brilhantes tremeluzindo sem parar. De dia, nem tanto, porque aparecia a sujeira, tanto do morro quanto de baixo. E, para variar, todo aquele conjunto geológico compunha apenas mais um cenário de pobreza: uma monumental favela, conhecida como Nossa Senhora da Encarnação. Mas o que predominava na boca do povoléu era o nome de morro do Corre-Longe. E ali havia a solidariedade dos pobres, estes que sustentavam a Velha Cigana maluca.

Os três picos se desfaziam numa chapada de consideráveis proporções, o que acabou transformando aquele alto numa verdadeira cidade, onde floresceu o comércio e o lazer. Um caso raro, naquele morro era comum as pessoas subirem em vez de descerem ao divertimento. E é lógico que ali somente frequentava o povo do morro. De fora, só com o conhecimento e a autorização de Zé-Medonho, o chefão do tráfico... Mas isto não era problema, porque o perigoso marginal sempre autorizava as visitações de parentes e amigos do pessoal morador. Entretanto, mantinha-os sob a mais estreita vigilância, papel geralmente desempenhado por inúmeros meninos da quadrilha. Todavia, Zé-Medonho também respeitava a Velha Cigana Maluca, sempre a gritar: “Tá passando um corisco no morro!”

O morro, porém, era calmo. Sua estratégica conformação e as poucas vias de acesso por carros, estes que mesmo assim conseguiam chegar ao topo e ao planalto, não sem uma certa dificuldade, garantiam ao traficante o mais absoluto controle de tudo e de todos. Sem a senha do dia somente chegava, esporadicamente, a polícia.  Bem, não é o caso de se saber ou contar histórias de polícia, porque a tragédia que emergirá nestas linhas ocorreu apenas entre um morador do morro e os bandidos. E foi uma história de terror e de muita morte...

Corisco era um negrinho espevitado, como muitos daquele morro. Mas cumpria um rigoroso ritual de educação, eis que seus pais não lhe davam trégua, mas no bom sentido da educação esmerada, é claro. Por isso, ele estava sempre bem encaminhado nos estudos, além de viver restrito ao ambiente do lar, somente frequentando a escolinha de futebol patrocinada pela associação de moradores. Lá, o professor era um ex-jogador, que recebia um salário pago pela associação. E ali era um lugar que o traficante respeitava, um núcleo comunitário que buscava melhorias para os moradores e não lhe atrapalhava os negócios. Na verdade, cada qual ficava “na sua”, como diziam na gíria.

Corisco era o mais velho das crianças da casa dele, um barraco de bom tamanho e muito bem cuidado. Havia ainda Cenira e Eldimeia, suas duas irmãs mais novas, numa escadinha de ano a ano. E todos ali cresceram estudando o primário na escola pública situada no pé do morro. Os pais, Genésio e Marluce, estavam casados fazia dez anos, formando uma família de cinco, entre milhares de outras iguais que habitavam o morro do Corre-Longe. E Corisco, – antonomásia de Luiz Carlos Tavares, consagrado Luiz na pia batismal, – surgira devido a uma sua habilidade que se acentuara bem cedo: era um magnífico corredor, já se destacando em diversas competições, das quais sempre se sagrava vencedor. Sim, o menino voava, era um corisco, daí a variação do nome ao apelido dado pela Velha Cigana Maluca, quando pela primeira vez ele disparou morro acima. Ele parecia, sim, um corisco ciscando o chão do morro, e ela gritava à sua passagem: “Tá passando um corisco no morro!” Corisco não ligava, e até gostava de ver a alegria da Velha Cigana Maluca quando gritava a homenageá-lo: “Tá passando um corisco no morro!”

Corisco levava vida saudável. E foi adiante nos estudos, concluindo o segundo grau ainda aos 17 anos e em bom colégio particular, tudo custeado pelo próprio estabelecimento de ensino, que investira naquela rara habilidade do jovem nas pistas de atletismo. E foi nesta época que Corisco também se inclinou para uma outra modalidade de esporte: as artes marciais. No colégio, ele se iniciou nos árduos treinamentos, angariando logo a simpatia do mestre, que o convidou a treinar profissionalmente em academia, dada a sua dedicação. Mas aquilo tudo para Corisco era motivo de muito prazer, ele nascera para os esportes. E nem precisa dizer que Corisco, aos 18 anos, já era um rapaz de 1,84m de altura e detentor de monumental físico. E já alcançara a faixa-preta no judô e no jiu-jítsu, além de continuar a acumular prêmios nas pistas de atletismo. Mas não se livrou do serviço militar obrigatório, ao qual foi a contragosto.

Contudo, em pouco tempo não almejava mais nada na vida que não fosse a caserna. Adaptou-se a ela, e passou do desânimo e da irritação à alegria esfuziante. Na verdade, e segundo pensava, Corisco encontrara a sua vocação: a farda. Lá, ele não era Corisco, e muito menos Luiz Carlos, mas Tavares, o seu nome de guerra. Começava a surgir o homem, que no morro, porém, continuava Corisco, tanto nas ruas como em casa, com suas irmãs despontando para a vida adulta, ambas dotadas de rara beleza. Sim, tanto Cenira, a mais velha, quanto Edilmeia, a mais nova, desabrocharam para a adolescência como lindas flores, deslumbrando a turma do morro. E é lógico que nelas brotara a vaidade de se verem cortejadas, além de agraciadas com prêmios em concurso de beleza nas festas da associação de moradores, aonde iam sempre. E começaram a se despertar para os primeiros flertes, todavia discretos, eis que Marluce, a mãe, marcava-as bem de perto. Ela sabia que no morro era fácil suas meninas escorregarem em dia de chuva e em noite de namoro. Nos dois casos, os resultados não eram muito alvissareiros; no segundo, ainda pior, porque geravam barrigadas precoces. E eram muitas no morro.

Enquanto ganhavam a fase adulta, também Zé-Medonho via seus filhos crescerem soltos no morro, ambos já militando no movimento de drogas. E eles herdaram do pai toda aquela índole malévola, pelo mau exemplo que tinham. Eram dois, cujos nomes verdadeiros ninguém ali nunca soubera, conheciam-nos por Tranca-Rua e Cospe-Sangue. Dava medo só dos nomes, e ainda muito mais deles próprios, que só não ultrapassavam dos limites com os moradores por obediência ao pai. E eram filhos de mulheres diferentes, ambas prostitutas, que espertamente garantiram o futuro deitando no sexo com Zé-Medonho.

Esquisitos, Tranca-Rua e Cospe-Sangue não falavam com ninguém fora do bando. Eram arrogantes no trato das pessoas e independentemente de sexo ou idade. Na verdade, não acatavam a nada e a ninguém, apenas ao pai. Mas não era respeito, era medo. E invejavam Corisco, que viam passar ciscando nas vielas como um corcel alado, algo mágico, enquanto que eles, com aquela vida perigosa e sedentária de bandidos viciados no que vendiam, mal conseguiam descer e subir o morro. Ficavam muito mais lá na chapada, ou então subiam no campanário para demonstrar a todos que eram ali os senhores absolutos daquele reino favelado. Zé-Medonho, mal comparando, era o el-rei do morro... Mas todos eles, pai e filhos, tremiam de medo da Velha Cigana Maluca; achavam que ela tinha parte com sete milhões de diabos rabudos e fedorentos. E não podiam pensar diferente, porque naquele morro ela era a única que espetava firme suas almas com um penetrante olhar. Era verde, verdíssimo como esmeraldas reluzentes, os olhos que os fisgavam com aquele semblante ameaçador, e que os bandidos diziam que pertencia a uma pomba-gira qualquer. Mas não era assim com o menino Corisco, com o qual ela sempre se enternecia; e, ao vê-lo passar como um bólide, no seu treinamento diário, gritava: “Tá passando um corisco no morro!”

E veio o Exército na vida de Corisco, ou Luiz Carlos, ou finalmente Tavares, o soldado pára-quedista que logo se destacou entre os pares como o melhor de todos. Também, já chegara lá um ninja formado, um perigoso especialista na máxima arte da defesa e do ataque. E foi engraçado no dia em que o sargento monitor de artes marciais levou os recrutas para a aula prática. Quando chegou a vez de Corisco, só pelo gesto de cumprimento o sargento percebeu que estava em frente de um mestre conhecedor da luta muito além do que ele próprio conhecia. E logo se inverteram os papéis, o sargento como um mero aprendiz diante do mestre Corisco, algo muito levado a sério entre os lutadores. E é lógico que ele também colocou Corisco como seu auxiliar, para ensinar aos demais. Em compensação, nos treinamentos de paraquedismo e táticas de guerra, é que Corisco percebeu que nada sabia. Mas aprenderia, como de fato aprendeu, e ainda foi mais longe, pedindo o engajamento, enquanto seus colegas pulavam fora da vida militar. Ele ficou por gosto, e logo partiu para fazer o curso de sargento de infantaria. E fê-lo rompendo todas as dificuldades, até que, depois de três anos, veio-lhe a formatura.

E ele não parou aí. Empolgado com a vida militar, e em sendo um ninja formado, partiu para os cursos de guerra na selva, indianismo, sobrevivência na selva e no mar, alpinismo, tiro de arma curta, lançamentos de faca e de flecha, etc. E foi acumulando brevês no seu peito, chegando assim a segundo-sargento em pouco tempo, perto de cinco anos de farda.

Toda essa maratona fez Corisco afastar-se do morro. Mas ele não resistia em realizar, de longe em longe, uma loucura, que era a escalada do seu morro pelo lado da pedra, quase duzentos metros de perigosa altura, parando detrás da igreja. E fazia isto na maior tranquilidade e sempre à noite. E a Velha Cigana Maluca gritava lá de baixo e do outro lado do morro: “Tá passando um corisco no morro!” Como podia?...

Impressionante é que Corisco nunca sabia como ela lhe percebia a presença, só ela, a cigana, mesmo sem o ver, como se corpo e espírito da velha estivessem distantes um do outro. E Corisco estremecia de medo daquela mulher, porém sabia que ela não lhe desejava nenhum mal. E quando ele sumia do morro, ela silenciava. Subia e descia sempre com o semblante fechado, não falava com ninguém. E sempre terminava o dia subindo ao ponto mais elevado, e, lá no alto, abria os braços ao céu e o ficava fitando por muito tempo. Ninguém dela se aproximava; tinham medo de interrompê-la naquele momento em que sua silhueta, no lusco-fusco do anoitecer, formava uma imagem medonha. Ela sabia disso, e provocava os bandidos assim, desta forma, mas acabava atemorizando também os moradores.

Corisco, agora o segundo-sargento Tavares, pôde finalmente retornar ao serviço no Rio de Janeiro. Era um Força Especial dos mais respeitados no Exército, ficando inclusive como instrutor. Mas foi ruim ele se afastar do morro e da família, porque suas irmãs acabaram caindo na vida mundana, tornando-se namoradeiras e não mais respeitando os pais. Justificava-se, pois, o temor de Marluce, que de tudo fizera para evitar os desvios das filhas, porém não o conseguira. E muito menos Genésio, que deixou com a mulher a educação de ambas e lhes perdeu o controle. Demais, estava velho e doente.

Foi isso que Corisco encontrou na volta, para sua tristeza. E se decidiu que quando terminasse o próximo curso na Amazônia retornaria e retiraria a família do morro. E estava feia a coisa naquele morro, eis que a quadrilha de Zé-Medonho crescera aos setenta bandidos, todos armados com material bélico sofisticado e organizados como se assim fossem uma milícia mercenária.

Essas circunstâncias obrigaram Zé-Medonho a ampliar os poderes de seus dois endiabrados filhos, Cospe-Sangue e Tranca-Rua, que agora davam ordens e o pai não mais se metia. E foram esses dois que passaram a violentar as meninas do morro, a matar trabalhadores e a implantar um ambiente dos infernos. Só não se metiam com a Velha Cigana Maluca. Pensaram em matá-la, isto pensaram, e mais de uma vez; mas temiam que o espírito dela os viesse atormentar e a deixavam em paz no seu silêncio, quebrado mais uma vez quando via subir o morro aquele sargento fardado de Exército: “Tá passando um corisco no morro!”

– Pai, ouça-me bem, e você também, mãe. Eu comprei uma casa na Zona Oeste, perto do quartel. Os proprietários que me a venderam sairão dentro de sessenta dias. É o tempo em que passarei em outro curso. Quando eu retornar, quero que tudo aqui esteja pronto; vou encostar um caminhão e levar vocês comigo. Vamos tirar as duas dessa vida doida que estão levando aqui. Não é o caso de brigar com elas. Já cresceram o bastante, exceto em matéria de juízo. Mas creio que irão tomar pé em uma nova vida, tão logo saiamos daqui...

Ficou, assim, tudo acertado. E Corisco partiu ao seu mister na Amazônia. Contudo, não pôde completar nem duas semanas. Lá, no meio do mato, recebeu ordem de se preparar para o resgate. Estremeceu. “Alguma coisa ruim aconteceu”, assim pensou, enquanto o helicóptero trazia-o de volta ao Batalhão de Selva, em Manaus. O piloto nada falava. Corisco sabia que nem adiantava perguntar-lhe algo; ele cumpria apenas a missão de resgatá-lo e nada falaria. Chegou à sede do CIGS (Centro de Instrução e Guerra na Selva), indo direto ao comandante, que o aguardava com a catadura fechada como um céu tampado de nuvens ameaçando trovoada.

– Sargento Tavares, não lhe tenho notícia boa...

– Diga-me, comandante, por favor! É alguma coisa com alguém da minha família? Diga-me logo, comandante! – exasperou-se Corisco.

– Tavares, há um avião já lhe aguardando, para voar direto ao Rio. Realmente aconteceu uma tragédia sem precedentes com a sua família, toda ela, sem exceção. Aqui não temos delongas. Por isso, saiba de uma vez: foram todos mortos por traficantes...

Nada mais precisava ser dito. E Corisco trancou-se numa frieza tão gélida que fez tremer o próprio comandante. Na realidade, aquele Corisco nunca mais seria o mesmo.

O avião, um Búfalo da FAB, parecia uma carroça, e a viagem, interminável, tamanha era a ansiedade de Corisco. Mas ele chegou, e na Base Aérea dos Afonsos já um carro da Polícia Civil o aguardava. Dali, partiu ao Instituto Médico Legal (IML) para reconhecer os corpos. E foi um momento dramático, o sargento Tavares de pé e olhando aqueles quatro cadáveres, sua vida passada morta com eles. Era a família, dizimada pelos tiros ferozes dos malditos traficantes. E também não lhe foi difícil saber, ainda na polícia, que aquela matança fora obra gratuita de Tranca-Rua e Cospe-Sangue, os endiabrados filhos de Zé-Medonho. Segundo a versão da polícia, as meninas estavam namorando dois rapazes também traficantes e ligados a uma facção inimiga. Por isso foram marcadas para morrer. Os pais foram de graça, apenas porque os terríveis bandidos não os quiseram poupar.

No cemitério, diante dos quatro caixões, apenas Corisco e alguns companheiros do quartel. Ninguém do morro compareceu e Corisco sabia a razão: medo de represália. E os corpos desceram, um momento de infinita tristeza e único em que Corisco deixou rolar duas lágrimas dos olhos afiados em sua face pétrea. Só. Mais nada.

Uma semana depois, parecia que o morro já se havia esquecido do grave incidente. Na casa antes ocupada pela família de Corisco estavam os traficantes, seis deles, que a tomaram de assalto. Ficaram com tudo o que lá havia, assumindo o local como mais uma base operacional do tráfico. E veio a noite.

A escuridão era total. E na pedra, do lado oposto à subida normal, quem tivesse visão infravermelha talvez enxergasse aquele vulto escalando a íngreme escarpa numa impressionante velocidade e sem qualquer barulho. Era o preto se movimentando no preto, era um ninja, era Corisco. E ele se esgueirou até a sua casa, como a cobra escorregando num campo e atrás da presa. Ele também buscava suas presas, e decidira exterminar aqueles marginais que tomaram o seu lar. E era só o começo.

A casa estava toda acesa. Os bandidos, animados, bebiam e contavam suas bravatas, quando de súbito a luz apagou. Eles receberam um forte repelão nos nervos e empunharam as armas. Mas não puderam evitar e nem chegaram a ver aquele vulto que entrara volteando a espada de ninja em incrível velocidade. Tudo rápido, e lá estavam, caídos no chão, seis corpos sem as cabeças. E não parou ali. Corisco subiu o morro e, de caminho, executou mais quatro traficantes, decepando-os todos pelo pescoço. Era a marca de Corisco.

A favela amanheceu ensanguentada. Zé-Medonho mandou recolher e enterrar os finados lá mesmo, no morro, e a polícia nem soube do episódio. E depois o líder do tráfico reuniu a quadrilha e alertou sobre o perigo, que se chamava Corisco, ele sabia. E, logo de manhã, a Velha Cigana Maluca subia e descia o morro bramindo: “Tá passando um corisco no morro!”

Segunda noite. Todos os traficantes em alerta máximo, rostos tensos, armas empunhadas por mãos que as crispavam em exagero. Tinham medo de um perigo que não sabiam como surgiria diante deles. Não saberiam nunca, porque muitos morreriam antes de notar que a terrível vingança de Corisco os alcançara. E assim aconteceu, o ninja escalando o rochedo e eliminando dez bandidos com certeiras flechadas. Só se ouvia um pequeno ruído cortando o ar pesado da favela, isto já em adiantada madrugada. E não importava se estivessem juntos dois ou três. As flechas voavam em velozes sequências, cravando-se nos corações e gargantas atônitas daqueles que se iam encontrar com o Senhor das Trevas. Foram mais dez enterros no cemitério clandestino, e a velha maluca cigana gritando: “Tá passando um corisco no morro!”

Zé-Medonho, naquele mesmo dia, já deduzira que Corisco subira pelo penhasco como se fosse uma lagartixa. E lá colocou quinze homens fortemente armados e com ordem de atirar em quem por ali subisse. E aqueles quinze lá ficaram a noite toda, até quase amanhecer o dia. E, quando o lusco-fusco do amanhecer trouxe o canto do galo, eles finalmente cederam ao sono. E por isso morreram nas mãos daquele ninja que lhes arremessara nas gargantas as estrelas envenenadas. Tudo muito rápido, tão rápido que não viram a morte chegar. E logo veio Zé-Medonho com seus filhos, Cospe-Sangue e Tranca-Rua, olhando a cena e bufando de ódio. Eles se sentiam como se fossem a aveia do centro do prato de mingau que Corisco comia pelas beiradas. E mais se enfezaram quando a Velha Cigana Maluca de lá de longe gritou: “Tá passando um corisco no morro!” Eles estremeceram.

Mais uma noite. E outros quinze homens postados no alto do morro e no campanário da igreja esperando Corisco. Duas noites consecutivas e uma madrugada, e Corisco chegara sempre por ali. E eles apostavam que naquela noite tudo se repetiria. Zé-Medonho já dera ordem para a substituição dos homens durante a madrugada, ficando 15 de pé e ariscos, enquanto outros 15 dormiam, com o fim de assumirem, descansados, os postos dos primeiros: 30 homens com os bugalhos arregalados e os dedos crispados nos gatilhos de suas armas. E os 15 andavam para lá e para cá, mirando o escarpado do rochedo para ver o vulto que viria por ali. Não viram nada, e o vulto deslizou na cara deles, indo até à casa onde dormiam os seus substitutos, que morrerem ali mesmo, na respiração do gás letal e inodoro que Corisco silenciosamente espargira direto em seus narizes. Os demais somente notaram na hora da troca, quando foram acordar os meliantes. Mortos não acordam...

Mais um dia de derrota para Zé-Medonho, o morro todo vendo aqueles quinze corpos conduzidos ao enterro clandestino. Era questão de moral deixar a polícia de fora. E enquanto abriam as covas e jogavam nelas os defuntos, ainda ficavam ouvindo os gritos altíssimos da Velha Cigana Maluca: “Tá passando um corisco no morro!”

– Pai, vou matar essa maluca! – gritou, nervoso, Cospe-Sangue.

– Não! – respondeu Zé-Medonho.

Ali era Zé-Medonho quem mandava, porém agora em menos cinquenta comparsas de uma quadrilha de setenta. Faltavam vinte, os piores, os cabeças, entre os quais Zé-Medonho e seus dois endiabrados filhos. E ele então se resolveu homiziar na igreja e dali esperar a vinda de Corisco. E ainda fez mais, telefonando para o quartel:

– Sargento Tavares falando.

– É Zé-Medonho!...

– E daí?

– E daí é que estou te esperando desta vez. Vou ficar na igreja, e vamos acabar logo com isso.

Corisco nem respondeu e desligou. E imaginava que Zé-Medonho o estaria esperando com todos os comparsas, além dos filhos, e com as melhores armas. E o ninja sabia que desta feita não contaria mais com o elemento surpresa, teria de enfrentar os bandidos praticamente de peito aberto. Em compensação, poderia subir pela frente do morro, porque era certo que todos estariam em torno e no interior da igreja, agora certamente transformada numa casamata. “Tudo bem, que seja feita a vontade dos miseráveis!”, pensava Corisco de si para si, enquanto também planejava como faria aquela abordagem para pôr fim à batalha da vingança que vinha empreendendo. Não deixaria um bandido vivo, isso estava decidido, a não ser que ele morresse ou saísse ferido. Mas nada o preocupava ou atemorizava. Nele somente existia o guerreiro militar e o ninja, ambos com sede de sangue e de vindita.

E veio a noite, carregada e chuvosa. Era meia-noite quando diversos estrondos em sequência apagaram todo o morro. Corisco explodira os transformadores, colocando tudo às escuras. Depois subiu, esgueirando-se na escuridão, até chegar próximo da igreja. De caminho, porém, ouviu o grito da Velha Cigana Maluca: “Tá passando um corisco no morro!” Corisco achou graça da sua amiga, sabia que ela era sua amiga. Mas não a viu, apenas ouviu sua voz cantante e repetindo a frase de sempre, para ele um bom agouro: “Tá passando um corisco no morro!” E Corisco pensava: “Como ela me vê?”

E lá se foi ele, agora já na zona de risco máximo. E logo notou aqueles vultos na parte externa da igreja, todos acantonados em improvisados abrigos feitos de sacos de areia, muito bem protegidos por paredes na retaguarda, estas igualmente forradas para evitar ricochetes, tudo esperando uma guerra. E nem precisaram ou tiveram tempo de esperar mais nada, eis que Corisco explodiu tudo com um projetil-foguete despachado por um lançador. Morreram cinco traficantes, com seus corpos despedaçados pela violência do impacto e da explosão.

E veio a hora mais perigosa...

Corisco precisava entrar na igreja, mas sabia que não seria pela porta, e sim pelo campanário, que certamente estaria guardado. Não perdeu tempo e disparou outro projetil-foguete que fez descer de uma vez os bandidos e o sino; na verdade, toda a torre, que se reduziu a pedra e pó ensanguentados. Eram três que lá estavam. E nem viram a morte chegar na ponta do foguete.

Agora havia doze do lado de dentro. Corisco armou-se com duas metralhadoras e algumas granadas defensivas. Em cada mão, aquelas armas mortíferas logo vomitariam fogo para todos os lados. Ali estava o guerreiro, sabendo que o risco era extremo, porém pouco se importando com isso. E entrou, descendo na corda do alto da torre, dando de cara com cinco bandidos em fileira e também de metralhadoras prontas. Somente prontas, porque nem mesmo alcançaram o aperto dos gatilhos e já tombavam costurados por Corisco, que caiu e rolou pelo chão numa velocidade incrível, enquanto atirava sem parar. Os demais, protegidos, assim ficaram, o que deu a Corisco a chance de também se proteger. E agora eram sete, Zé-Medonho, Cospe-Sangue e Tranca-Rua, além de mais quatro comparsas.

Corisco nem respirava. A escuridão fazia o resto. E ele começou a sentir, com seus ouvidos apurados, ouvidos de ninja e de comando de guerra, o arfar atemorizado dos bandidos. E foi detectando suas posições com precisão, como se os estivesse vendo. E pegou duas granadas, destravou-as e as arremessou exatamente onde estavam as duplas, que subiram juntas com as explosões que lhes acertaram em cheio. E sobraram os três, Zé-Medonho, Tranca-Rua e Cospe-Sangue, o pai e os dois filhos, mas todos filhos do Coisa-Ruim, os matadores da família de Corisco. E foi aí que Corisco falou:

– Saiam! Eu quero ver suas caras!...

– Saia também! – respondeu Zé-Medonho, enquanto surgia o seu espectro no fundo da igreja totalmente destruída.

Por detrás do altar-mor estavam os dois filhos, ambos com fuzis, cada qual de um lado, o pai mais à frente, como se fosse o padre na posição de rezar a missa e os filhos, sacristãos. E Corisco apareceu, sua silhueta crescendo em frente da porta principal, no outro extremo. E ficaram os quatro, expostos e se olhando, até que, de súbito, todos atiraram ao mesmo tempo. E logo tombaram os três bandidos crivados das balas certeiras cuspidas pela metralhadora de Corisco. Morreram os setenta.

Corisco saiu da igreja. No pé do morro as luzes aos poucos voltavam; e a polícia subia, muitas viaturas com sirenes e giroscópios ligados, vinham para uma festa de muita morte. E vinha também a tropa especial, chamada de BOPE. Corisco olhou tudo aquilo e sorriu, enquanto escorava com a mão direita o sangue que lhe brotava do abdômen. Estava ferido. Mesmo assim, desceu na corda, por detrás, pegou um carro que lá deixara para a fuga e partiu rumo ao quartel da Brigada Paraquedista. De caminho, porém, foi desfalecendo. Com a sua experiência, já percebera que o projetil lhe acertara o fígado. Era grave o ferimento. Mas ele chegou ao quartel, entrou com o carro, estacionou... e ali ficou, para sempre. Morreu Corisco!... E neste mesmo átimo, lá no morro, a Velha Cigana Maluca gritou histericamente: “Um corisco passou pelo morro!” E correu morro acima sem parar de repetir a frase, até que chegou ao topo e estendeu os seus braços em direção ao céu. E caiu, sumindo naquela escuridão.

A polícia, cautelosa, cercou toda a área e esperou o amanhecer. Daí, pôde finalmente ver o estrago, aqueles mortos todos, além dos demais já enterrados, que a população avisou. E foram ao pico do morro, os populares agora seguindo-os, até que viram a roupa e os balangandãs da Velha Cigana Maluca caídos no chão vazio do corpo dela. E parecia que o corpo ali estava, arrumado no chão na forma da roupa. Mas não estava, só a roupa indicava a Velha Cigana Maluca, que sumira, e ninguém nunca mais a achou. Desaparecera a Velha Cigana Maluca exatamente na hora em que Corisco expirava, ao final de sua vingança.

Setenta mortos, e ninguém no morro dizia nada, a polícia encerrando o caso como violenta guerra entre quadrilhas. O Sargento Luiz Carlos Tavares foi sepultado com honras militares, como se houvesse se acidentado numa instrução. Lá, porém, todos sabiam que aquela vingança no morro fora obra do ninja e do comando feroz. Porém tudo acabado, ele estava morto. De nada adiantaria apresentá-lo como o autor das setenta mortes. O morro também sabia, porém não o dizia. E foi aí que o morro passou a ser conhecido como “Morro dos Setenta”. E hoje está novamente ocupado por ferozes e bem armados traficantes, porém ninguém mais ouve a Velha Cigana Maluca gritar: “Tá passando um corisco no morro!” Mas o seu clamor pressagioso ainda ressoa nas mentes daqueles que testemunharam a história de Corisco...


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Família Nordestina

  Estão sentados no chão batido e seco, no casebre de um só cômodo. Raimundo Nonato e Maria das Graças, o casal, nomes sant...