DA SÉRIE PUBLICADA EM LIVRO (BAIRRO DE
LATA, JÁ ESGOTADO): CONTOS VARIADOS, TENDO COMO CENÁRIO O DRAMA FAVELADO,
“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
– Tá passando um corisco no morro! –
gritava a Velha Cigana Maluca, com voz gutural que se ouvia longe.
Ela vivia no morro. De onde veio, ninguém
nunca soube. Apareceu de repente, – e anos antes, – com aquelas suas vestes
esfarrapadas e em pedaços aproveitados de qualquer tecido maltrapilho que lhe
davam. Mas lembrava a figura da antiga e enfeitada cigana, de roupas coloridas
e joias doiradas, tirando nas ruas a sorte do povo. De ornamento atual, porém,
a Velha Cigana Maluca usava de tudo que encontrasse: um pedaço de arame
enferrujado, e em voltas diversas, imitando um cordão, e nele dependurava uma
lata de cerveja amassada e recortada em estrela, que combinava com os
inusitados artesanatos espalhados pelos dois braços, em voltas e mais voltas do
mesmo arame enferrujado e indo tudo quase aos cotovelos.
Era uma figura sinistra, a Velha Cigana
Maluca, que andava morro abaixo e morro acima, parando em horas certas para
comer a comida doada. Nunca lhe negavam nada, ou por medo ou por pena. E ela
também nunca pedia; apenas parava em frente de algum barraco e esperava o que
vinha, e vinha sempre, o café com pão, o prato de comida e as roupas surradas
que ela mesma ajeitava com mãos habilidosas. Para dormir, era um cantinho nos
fundos do prédio da associação de moradores, onde também tomava o seu banho e
se perfumava com o perfume barato que ganhava. E lavava suas roupas com
carinho, como nos velhos tempos de moça bonita. Mas nunca se dirigia a ninguém,
nunca falava com ninguém, a não ser com Marluce, uma só vez, para pedir o
perfume. Mas, na verdade, não falava, apenas lhe mostrava o vidro vazio e
esperava, e sempre vinha o outro perfume, que Marluce lhe providenciava com
carinho. A Velha Cigana Maluca era assim, estranha, e parecia que chegara ao
morro apenas com aquela missão de gritar: “Tá passando um corisco no morro!” E
Marluce era a mãe de Corisco.
Era o morro do Corre-Longe, na verdade uma
cadeia de três elevações interligadas, todas mais ou menos se equivalendo em
altitude e formando uma esplanada, porém com um ponto ligeiramente mais alto e
empedrado, onde estava plantada a capela, uma bonita capela toda branquinha. E,
do alto do campanário, da torre do pequeno sino, via-se a maravilhosa cidade do
Rio de Janeiro, linda, especialmente à noite, com as luzes formando colares de
brilhantes tremeluzindo sem parar. De dia, nem tanto, porque aparecia a
sujeira, tanto do morro quanto de baixo. E, para variar, todo aquele conjunto
geológico compunha apenas mais um cenário de pobreza: uma monumental favela,
conhecida como Nossa Senhora da Encarnação. Mas o que predominava na boca do
povoléu era o nome de morro do Corre-Longe. E ali havia a solidariedade dos
pobres, estes que sustentavam a Velha Cigana maluca.
Os três picos se desfaziam numa chapada de
consideráveis proporções, o que acabou transformando aquele alto numa
verdadeira cidade, onde floresceu o comércio e o lazer. Um caso raro, naquele
morro era comum as pessoas subirem em vez de descerem ao divertimento. E é
lógico que ali somente frequentava o povo do morro. De fora, só com o
conhecimento e a autorização de Zé-Medonho, o chefão do tráfico... Mas isto não
era problema, porque o perigoso marginal sempre autorizava as visitações de
parentes e amigos do pessoal morador. Entretanto, mantinha-os sob a mais
estreita vigilância, papel geralmente desempenhado por inúmeros meninos da
quadrilha. Todavia, Zé-Medonho também respeitava a Velha Cigana Maluca, sempre
a gritar: “Tá passando um corisco no morro!”
O morro, porém, era calmo. Sua estratégica
conformação e as poucas vias de acesso por carros, estes que mesmo assim
conseguiam chegar ao topo e ao planalto, não sem uma certa dificuldade,
garantiam ao traficante o mais absoluto controle de tudo e de todos. Sem a
senha do dia somente chegava, esporadicamente, a polícia. Bem, não é o caso de se saber ou contar
histórias de polícia, porque a tragédia que emergirá nestas linhas ocorreu
apenas entre um morador do morro e os bandidos. E foi uma história de terror e
de muita morte...
Corisco era um negrinho espevitado, como
muitos daquele morro. Mas cumpria um rigoroso ritual de educação, eis que seus
pais não lhe davam trégua, mas no bom sentido da educação esmerada, é claro.
Por isso, ele estava sempre bem encaminhado nos estudos, além de viver restrito
ao ambiente do lar, somente frequentando a escolinha de futebol patrocinada
pela associação de moradores. Lá, o professor era um ex-jogador, que recebia um
salário pago pela associação. E ali era um lugar que o traficante respeitava,
um núcleo comunitário que buscava melhorias para os moradores e não lhe
atrapalhava os negócios. Na verdade, cada qual ficava “na sua”, como diziam na
gíria.
Corisco era o mais velho das crianças da
casa dele, um barraco de bom tamanho e muito bem cuidado. Havia ainda Cenira e
Eldimeia, suas duas irmãs mais novas, numa escadinha de ano a ano. E todos ali
cresceram estudando o primário na escola pública situada no pé do morro. Os
pais, Genésio e Marluce, estavam casados fazia dez anos, formando uma família
de cinco, entre milhares de outras iguais que habitavam o morro do Corre-Longe.
E Corisco, – antonomásia de Luiz Carlos Tavares, consagrado Luiz na pia
batismal, – surgira devido a uma sua habilidade que se acentuara bem cedo: era
um magnífico corredor, já se destacando em diversas competições, das quais
sempre se sagrava vencedor. Sim, o menino voava, era um corisco, daí a variação
do nome ao apelido dado pela Velha Cigana Maluca, quando pela primeira vez ele
disparou morro acima. Ele parecia, sim, um corisco ciscando o chão do morro, e
ela gritava à sua passagem: “Tá passando um corisco no morro!” Corisco não
ligava, e até gostava de ver a alegria da Velha Cigana Maluca quando gritava a
homenageá-lo: “Tá passando um corisco no morro!”
Corisco levava vida saudável. E foi adiante
nos estudos, concluindo o segundo grau ainda aos 17 anos e em bom colégio
particular, tudo custeado pelo próprio estabelecimento de ensino, que investira
naquela rara habilidade do jovem nas pistas de atletismo. E foi nesta época que
Corisco também se inclinou para uma outra modalidade de esporte: as artes
marciais. No colégio, ele se iniciou nos árduos treinamentos, angariando logo a
simpatia do mestre, que o convidou a treinar profissionalmente em academia,
dada a sua dedicação. Mas aquilo tudo para Corisco era motivo de muito prazer,
ele nascera para os esportes. E nem precisa dizer que Corisco, aos 18 anos, já
era um rapaz de 1,84m de altura e detentor de monumental físico. E já alcançara
a faixa-preta no judô e no jiu-jítsu, além de continuar a acumular prêmios nas
pistas de atletismo. Mas não se livrou do serviço militar obrigatório, ao qual
foi a contragosto.
Contudo, em pouco tempo não almejava mais
nada na vida que não fosse a caserna. Adaptou-se a ela, e passou do desânimo e
da irritação à alegria esfuziante. Na verdade, e segundo pensava, Corisco
encontrara a sua vocação: a farda. Lá, ele não era Corisco, e muito menos Luiz
Carlos, mas Tavares, o seu nome de guerra. Começava a surgir o homem, que no
morro, porém, continuava Corisco, tanto nas ruas como em casa, com suas irmãs
despontando para a vida adulta, ambas dotadas de rara beleza. Sim, tanto
Cenira, a mais velha, quanto Edilmeia, a mais nova, desabrocharam para a
adolescência como lindas flores, deslumbrando a turma do morro. E é lógico que
nelas brotara a vaidade de se verem cortejadas, além de agraciadas com prêmios
em concurso de beleza nas festas da associação de moradores, aonde iam sempre.
E começaram a se despertar para os primeiros flertes, todavia discretos, eis
que Marluce, a mãe, marcava-as bem de perto. Ela sabia que no morro era fácil
suas meninas escorregarem em dia de chuva e em noite de namoro. Nos dois casos,
os resultados não eram muito alvissareiros; no segundo, ainda pior, porque
geravam barrigadas precoces. E eram muitas no morro.
Enquanto ganhavam a fase adulta, também
Zé-Medonho via seus filhos crescerem soltos no morro, ambos já militando no
movimento de drogas. E eles herdaram do pai toda aquela índole malévola, pelo
mau exemplo que tinham. Eram dois, cujos nomes verdadeiros ninguém ali nunca
soubera, conheciam-nos por Tranca-Rua e Cospe-Sangue. Dava medo só dos nomes, e
ainda muito mais deles próprios, que só não ultrapassavam dos limites com os
moradores por obediência ao pai. E eram filhos de mulheres diferentes, ambas
prostitutas, que espertamente garantiram o futuro deitando no sexo com
Zé-Medonho.
Esquisitos, Tranca-Rua e Cospe-Sangue não
falavam com ninguém fora do bando. Eram arrogantes no trato das pessoas e
independentemente de sexo ou idade. Na verdade, não acatavam a nada e a
ninguém, apenas ao pai. Mas não era respeito, era medo. E invejavam Corisco,
que viam passar ciscando nas vielas como um corcel alado, algo mágico, enquanto
que eles, com aquela vida perigosa e sedentária de bandidos viciados no que
vendiam, mal conseguiam descer e subir o morro. Ficavam muito mais lá na
chapada, ou então subiam no campanário para demonstrar a todos que eram ali os
senhores absolutos daquele reino favelado. Zé-Medonho, mal comparando, era o
el-rei do morro... Mas todos eles, pai e filhos, tremiam de medo da Velha
Cigana Maluca; achavam que ela tinha parte com sete milhões de diabos rabudos e
fedorentos. E não podiam pensar diferente, porque naquele morro ela era a única
que espetava firme suas almas com um penetrante olhar. Era verde, verdíssimo
como esmeraldas reluzentes, os olhos que os fisgavam com aquele semblante
ameaçador, e que os bandidos diziam que pertencia a uma pomba-gira qualquer.
Mas não era assim com o menino Corisco, com o qual ela sempre se enternecia; e,
ao vê-lo passar como um bólide, no seu treinamento diário, gritava: “Tá
passando um corisco no morro!”
E veio o Exército na vida de Corisco, ou
Luiz Carlos, ou finalmente Tavares, o soldado pára-quedista que logo se
destacou entre os pares como o melhor de todos. Também, já chegara lá um ninja
formado, um perigoso especialista na máxima arte da defesa e do ataque. E foi
engraçado no dia em que o sargento monitor de artes marciais levou os recrutas
para a aula prática. Quando chegou a vez de Corisco, só pelo gesto de
cumprimento o sargento percebeu que estava em frente de um mestre conhecedor da
luta muito além do que ele próprio conhecia. E logo se inverteram os papéis, o
sargento como um mero aprendiz diante do mestre Corisco, algo muito levado a
sério entre os lutadores. E é lógico que ele também colocou Corisco como seu
auxiliar, para ensinar aos demais. Em compensação, nos treinamentos de
paraquedismo e táticas de guerra, é que Corisco percebeu que nada sabia. Mas
aprenderia, como de fato aprendeu, e ainda foi mais longe, pedindo o
engajamento, enquanto seus colegas pulavam fora da vida militar. Ele ficou por
gosto, e logo partiu para fazer o curso de sargento de infantaria. E fê-lo
rompendo todas as dificuldades, até que, depois de três anos, veio-lhe a
formatura.
E ele não parou aí. Empolgado com a vida
militar, e em sendo um ninja formado, partiu para os cursos de guerra na selva,
indianismo, sobrevivência na selva e no mar, alpinismo, tiro de arma curta,
lançamentos de faca e de flecha, etc. E foi acumulando brevês no seu peito,
chegando assim a segundo-sargento em pouco tempo, perto de cinco anos de farda.
Toda essa maratona fez Corisco afastar-se
do morro. Mas ele não resistia em realizar, de longe em longe, uma loucura, que
era a escalada do seu morro pelo lado da pedra, quase duzentos metros de
perigosa altura, parando detrás da igreja. E fazia isto na maior tranquilidade
e sempre à noite. E a Velha Cigana Maluca gritava lá de baixo e do outro lado
do morro: “Tá passando um corisco no morro!” Como podia?...
Impressionante é que Corisco nunca sabia
como ela lhe percebia a presença, só ela, a cigana, mesmo sem o ver, como se
corpo e espírito da velha estivessem distantes um do outro. E Corisco
estremecia de medo daquela mulher, porém sabia que ela não lhe desejava nenhum
mal. E quando ele sumia do morro, ela silenciava. Subia e descia sempre com o
semblante fechado, não falava com ninguém. E sempre terminava o dia subindo ao
ponto mais elevado, e, lá no alto, abria os braços ao céu e o ficava fitando
por muito tempo. Ninguém dela se aproximava; tinham medo de interrompê-la
naquele momento em que sua silhueta, no lusco-fusco do anoitecer, formava uma
imagem medonha. Ela sabia disso, e provocava os bandidos assim, desta forma,
mas acabava atemorizando também os moradores.
Corisco, agora o segundo-sargento Tavares,
pôde finalmente retornar ao serviço no Rio de Janeiro. Era um Força Especial
dos mais respeitados no Exército, ficando inclusive como instrutor. Mas foi
ruim ele se afastar do morro e da família, porque suas irmãs acabaram caindo na
vida mundana, tornando-se namoradeiras e não mais respeitando os pais.
Justificava-se, pois, o temor de Marluce, que de tudo fizera para evitar os
desvios das filhas, porém não o conseguira. E muito menos Genésio, que deixou
com a mulher a educação de ambas e lhes perdeu o controle. Demais, estava velho
e doente.
Foi isso que Corisco encontrou na volta,
para sua tristeza. E se decidiu que quando terminasse o próximo curso na
Amazônia retornaria e retiraria a família do morro. E estava feia a coisa
naquele morro, eis que a quadrilha de Zé-Medonho crescera aos setenta bandidos,
todos armados com material bélico sofisticado e organizados como se assim
fossem uma milícia mercenária.
Essas circunstâncias obrigaram Zé-Medonho a
ampliar os poderes de seus dois endiabrados filhos, Cospe-Sangue e Tranca-Rua,
que agora davam ordens e o pai não mais se metia. E foram esses dois que
passaram a violentar as meninas do morro, a matar trabalhadores e a implantar
um ambiente dos infernos. Só não se metiam com a Velha Cigana Maluca. Pensaram
em matá-la, isto pensaram, e mais de uma vez; mas temiam que o espírito dela os
viesse atormentar e a deixavam em paz no seu silêncio, quebrado mais uma vez
quando via subir o morro aquele sargento fardado de Exército: “Tá passando um
corisco no morro!”
– Pai, ouça-me bem, e você também, mãe. Eu
comprei uma casa na Zona Oeste, perto do quartel. Os proprietários que me a
venderam sairão dentro de sessenta dias. É o tempo em que passarei em outro
curso. Quando eu retornar, quero que tudo aqui esteja pronto; vou encostar um
caminhão e levar vocês comigo. Vamos tirar as duas dessa vida doida que estão
levando aqui. Não é o caso de brigar com elas. Já cresceram o bastante, exceto
em matéria de juízo. Mas creio que irão tomar pé em uma nova vida, tão logo
saiamos daqui...
Ficou, assim, tudo acertado. E Corisco
partiu ao seu mister na Amazônia. Contudo, não pôde completar nem duas semanas.
Lá, no meio do mato, recebeu ordem de se preparar para o resgate. Estremeceu.
“Alguma coisa ruim aconteceu”, assim pensou, enquanto o helicóptero trazia-o de
volta ao Batalhão de Selva, em Manaus. O piloto nada falava. Corisco sabia que
nem adiantava perguntar-lhe algo; ele cumpria apenas a missão de resgatá-lo e
nada falaria. Chegou à sede do CIGS (Centro de Instrução e Guerra na Selva),
indo direto ao comandante, que o aguardava com a catadura fechada como um céu
tampado de nuvens ameaçando trovoada.
– Sargento Tavares, não lhe tenho notícia
boa...
– Diga-me, comandante, por favor! É alguma
coisa com alguém da minha família? Diga-me logo, comandante! – exasperou-se
Corisco.
– Tavares, há um avião já lhe aguardando,
para voar direto ao Rio. Realmente aconteceu uma tragédia sem precedentes com a
sua família, toda ela, sem exceção. Aqui não temos delongas. Por isso, saiba de
uma vez: foram todos mortos por traficantes...
Nada mais precisava ser dito. E Corisco
trancou-se numa frieza tão gélida que fez tremer o próprio comandante. Na
realidade, aquele Corisco nunca mais seria o mesmo.
O avião, um Búfalo da FAB, parecia uma
carroça, e a viagem, interminável, tamanha era a ansiedade de Corisco. Mas ele
chegou, e na Base Aérea dos Afonsos já um carro da Polícia Civil o aguardava.
Dali, partiu ao Instituto Médico Legal (IML) para reconhecer os corpos. E foi
um momento dramático, o sargento Tavares de pé e olhando aqueles quatro
cadáveres, sua vida passada morta com eles. Era a família, dizimada pelos tiros
ferozes dos malditos traficantes. E também não lhe foi difícil saber, ainda na
polícia, que aquela matança fora obra gratuita de Tranca-Rua e Cospe-Sangue, os
endiabrados filhos de Zé-Medonho. Segundo a versão da polícia, as meninas
estavam namorando dois rapazes também traficantes e ligados a uma facção
inimiga. Por isso foram marcadas para morrer. Os pais foram de graça, apenas
porque os terríveis bandidos não os quiseram poupar.
No cemitério, diante dos quatro caixões,
apenas Corisco e alguns companheiros do quartel. Ninguém do morro compareceu e
Corisco sabia a razão: medo de represália. E os corpos desceram, um momento de
infinita tristeza e único em que Corisco deixou rolar duas lágrimas dos olhos
afiados em sua face pétrea. Só. Mais nada.
Uma semana depois, parecia que o morro já
se havia esquecido do grave incidente. Na casa antes ocupada pela família de
Corisco estavam os traficantes, seis deles, que a tomaram de assalto. Ficaram
com tudo o que lá havia, assumindo o local como mais uma base operacional do
tráfico. E veio a noite.
A escuridão era total. E na pedra, do lado
oposto à subida normal, quem tivesse visão infravermelha talvez enxergasse
aquele vulto escalando a íngreme escarpa numa impressionante velocidade e sem
qualquer barulho. Era o preto se movimentando no preto, era um ninja, era
Corisco. E ele se esgueirou até a sua casa, como a cobra escorregando num campo
e atrás da presa. Ele também buscava suas presas, e decidira exterminar aqueles
marginais que tomaram o seu lar. E era só o começo.
A casa estava toda acesa. Os bandidos,
animados, bebiam e contavam suas bravatas, quando de súbito a luz apagou. Eles
receberam um forte repelão nos nervos e empunharam as armas. Mas não puderam
evitar e nem chegaram a ver aquele vulto que entrara volteando a espada de
ninja em incrível velocidade. Tudo rápido, e lá estavam, caídos no chão, seis
corpos sem as cabeças. E não parou ali. Corisco subiu o morro e, de caminho,
executou mais quatro traficantes, decepando-os todos pelo pescoço. Era a marca
de Corisco.
A favela amanheceu ensanguentada.
Zé-Medonho mandou recolher e enterrar os finados lá mesmo, no morro, e a
polícia nem soube do episódio. E depois o líder do tráfico reuniu a quadrilha e
alertou sobre o perigo, que se chamava Corisco, ele sabia. E, logo de manhã, a
Velha Cigana Maluca subia e descia o morro bramindo: “Tá passando um corisco no
morro!”
Segunda noite. Todos os traficantes em
alerta máximo, rostos tensos, armas empunhadas por mãos que as crispavam em
exagero. Tinham medo de um perigo que não sabiam como surgiria diante deles.
Não saberiam nunca, porque muitos morreriam antes de notar que a terrível
vingança de Corisco os alcançara. E assim aconteceu, o ninja escalando o
rochedo e eliminando dez bandidos com certeiras flechadas. Só se ouvia um
pequeno ruído cortando o ar pesado da favela, isto já em adiantada madrugada. E
não importava se estivessem juntos dois ou três. As flechas voavam em velozes
sequências, cravando-se nos corações e gargantas atônitas daqueles que se iam
encontrar com o Senhor das Trevas. Foram mais dez enterros no cemitério
clandestino, e a velha maluca cigana gritando: “Tá passando um corisco no
morro!”
Zé-Medonho, naquele mesmo dia, já deduzira
que Corisco subira pelo penhasco como se fosse uma lagartixa. E lá colocou
quinze homens fortemente armados e com ordem de atirar em quem por ali subisse.
E aqueles quinze lá ficaram a noite toda, até quase amanhecer o dia. E, quando
o lusco-fusco do amanhecer trouxe o canto do galo, eles finalmente cederam ao
sono. E por isso morreram nas mãos daquele ninja que lhes arremessara nas
gargantas as estrelas envenenadas. Tudo muito rápido, tão rápido que não viram
a morte chegar. E logo veio Zé-Medonho com seus filhos, Cospe-Sangue e
Tranca-Rua, olhando a cena e bufando de ódio. Eles se sentiam como se fossem a
aveia do centro do prato de mingau que Corisco comia pelas beiradas. E mais se
enfezaram quando a Velha Cigana Maluca de lá de longe gritou: “Tá passando um
corisco no morro!” Eles estremeceram.
Mais uma noite. E outros quinze homens
postados no alto do morro e no campanário da igreja esperando Corisco. Duas
noites consecutivas e uma madrugada, e Corisco chegara sempre por ali. E eles
apostavam que naquela noite tudo se repetiria. Zé-Medonho já dera ordem para a
substituição dos homens durante a madrugada, ficando 15 de pé e ariscos,
enquanto outros 15 dormiam, com o fim de assumirem, descansados, os postos dos
primeiros: 30 homens com os bugalhos arregalados e os dedos crispados nos
gatilhos de suas armas. E os 15 andavam para lá e para cá, mirando o escarpado
do rochedo para ver o vulto que viria por ali. Não viram nada, e o vulto
deslizou na cara deles, indo até à casa onde dormiam os seus substitutos, que
morrerem ali mesmo, na respiração do gás letal e inodoro que Corisco silenciosamente
espargira direto em seus narizes. Os demais somente notaram na hora da troca,
quando foram acordar os meliantes. Mortos não acordam...
Mais um dia de derrota para Zé-Medonho, o
morro todo vendo aqueles quinze corpos conduzidos ao enterro clandestino. Era
questão de moral deixar a polícia de fora. E enquanto abriam as covas e jogavam
nelas os defuntos, ainda ficavam ouvindo os gritos altíssimos da Velha Cigana
Maluca: “Tá passando um corisco no morro!”
– Pai, vou matar essa maluca! – gritou, nervoso,
Cospe-Sangue.
– Não! – respondeu Zé-Medonho.
Ali era Zé-Medonho quem mandava, porém
agora em menos cinquenta comparsas de uma quadrilha de setenta. Faltavam vinte,
os piores, os cabeças, entre os quais Zé-Medonho e seus dois endiabrados
filhos. E ele então se resolveu homiziar na igreja e dali esperar a vinda de
Corisco. E ainda fez mais, telefonando para o quartel:
– Sargento Tavares falando.
– É Zé-Medonho!...
– E daí?
– E daí é que estou te esperando desta vez.
Vou ficar na igreja, e vamos acabar logo com isso.
Corisco nem respondeu e desligou. E
imaginava que Zé-Medonho o estaria esperando com todos os comparsas, além dos
filhos, e com as melhores armas. E o ninja sabia que desta feita não contaria
mais com o elemento surpresa, teria de enfrentar os bandidos praticamente de
peito aberto. Em compensação, poderia subir pela frente do morro, porque era
certo que todos estariam em torno e no interior da igreja, agora certamente
transformada numa casamata. “Tudo bem, que seja feita a vontade dos
miseráveis!”, pensava Corisco de si para si, enquanto também planejava como
faria aquela abordagem para pôr fim à batalha da vingança que vinha
empreendendo. Não deixaria um bandido vivo, isso estava decidido, a não ser que
ele morresse ou saísse ferido. Mas nada o preocupava ou atemorizava. Nele
somente existia o guerreiro militar e o ninja, ambos com sede de sangue e de
vindita.
E veio a noite, carregada e chuvosa. Era
meia-noite quando diversos estrondos em sequência apagaram todo o morro.
Corisco explodira os transformadores, colocando tudo às escuras. Depois subiu,
esgueirando-se na escuridão, até chegar próximo da igreja. De caminho, porém,
ouviu o grito da Velha Cigana Maluca: “Tá passando um corisco no morro!”
Corisco achou graça da sua amiga, sabia que ela era sua amiga. Mas não a viu,
apenas ouviu sua voz cantante e repetindo a frase de sempre, para ele um bom
agouro: “Tá passando um corisco no morro!” E Corisco pensava: “Como ela me vê?”
E lá se foi ele, agora já na zona de risco
máximo. E logo notou aqueles vultos na parte externa da igreja, todos
acantonados em improvisados abrigos feitos de sacos de areia, muito bem
protegidos por paredes na retaguarda, estas igualmente forradas para evitar
ricochetes, tudo esperando uma guerra. E nem precisaram ou tiveram tempo de
esperar mais nada, eis que Corisco explodiu tudo com um projetil-foguete
despachado por um lançador. Morreram cinco traficantes, com seus corpos
despedaçados pela violência do impacto e da explosão.
E veio a hora mais perigosa...
Corisco precisava entrar na igreja, mas
sabia que não seria pela porta, e sim pelo campanário, que certamente estaria
guardado. Não perdeu tempo e disparou outro projetil-foguete que fez descer de
uma vez os bandidos e o sino; na verdade, toda a torre, que se reduziu a pedra
e pó ensanguentados. Eram três que lá estavam. E nem viram a morte chegar na
ponta do foguete.
Agora havia doze do lado de dentro. Corisco
armou-se com duas metralhadoras e algumas granadas defensivas. Em cada mão,
aquelas armas mortíferas logo vomitariam fogo para todos os lados. Ali estava o
guerreiro, sabendo que o risco era extremo, porém pouco se importando com isso.
E entrou, descendo na corda do alto da torre, dando de cara com cinco bandidos
em fileira e também de metralhadoras prontas. Somente prontas, porque nem mesmo
alcançaram o aperto dos gatilhos e já tombavam costurados por Corisco, que caiu
e rolou pelo chão numa velocidade incrível, enquanto atirava sem parar. Os
demais, protegidos, assim ficaram, o que deu a Corisco a chance de também se
proteger. E agora eram sete, Zé-Medonho, Cospe-Sangue e Tranca-Rua, além de
mais quatro comparsas.
Corisco nem respirava. A escuridão fazia o
resto. E ele começou a sentir, com seus ouvidos apurados, ouvidos de ninja e de
comando de guerra, o arfar atemorizado dos bandidos. E foi detectando suas
posições com precisão, como se os estivesse vendo. E pegou duas granadas,
destravou-as e as arremessou exatamente onde estavam as duplas, que subiram
juntas com as explosões que lhes acertaram em cheio. E sobraram os três,
Zé-Medonho, Tranca-Rua e Cospe-Sangue, o pai e os dois filhos, mas todos filhos
do Coisa-Ruim, os matadores da família de Corisco. E foi aí que Corisco falou:
– Saiam! Eu quero ver suas caras!...
– Saia também! – respondeu Zé-Medonho,
enquanto surgia o seu espectro no fundo da igreja totalmente destruída.
Por detrás do altar-mor estavam os dois
filhos, ambos com fuzis, cada qual de um lado, o pai mais à frente, como se
fosse o padre na posição de rezar a missa e os filhos, sacristãos. E Corisco
apareceu, sua silhueta crescendo em frente da porta principal, no outro
extremo. E ficaram os quatro, expostos e se olhando, até que, de súbito, todos
atiraram ao mesmo tempo. E logo tombaram os três bandidos crivados das balas
certeiras cuspidas pela metralhadora de Corisco. Morreram os setenta.
Corisco saiu da igreja. No pé do morro as
luzes aos poucos voltavam; e a polícia subia, muitas viaturas com sirenes e
giroscópios ligados, vinham para uma festa de muita morte. E vinha também a
tropa especial, chamada de BOPE. Corisco olhou tudo aquilo e sorriu, enquanto
escorava com a mão direita o sangue que lhe brotava do abdômen. Estava ferido.
Mesmo assim, desceu na corda, por detrás, pegou um carro que lá deixara para a
fuga e partiu rumo ao quartel da Brigada Paraquedista. De caminho, porém, foi
desfalecendo. Com a sua experiência, já percebera que o projetil lhe acertara o
fígado. Era grave o ferimento. Mas ele chegou ao quartel, entrou com o carro,
estacionou... e ali ficou, para sempre. Morreu Corisco!... E neste mesmo átimo,
lá no morro, a Velha Cigana Maluca gritou histericamente: “Um corisco passou
pelo morro!” E correu morro acima sem parar de repetir a frase, até que chegou
ao topo e estendeu os seus braços em direção ao céu. E caiu, sumindo naquela
escuridão.
A polícia, cautelosa, cercou toda a área e
esperou o amanhecer. Daí, pôde finalmente ver o estrago, aqueles mortos todos,
além dos demais já enterrados, que a população avisou. E foram ao pico do
morro, os populares agora seguindo-os, até que viram a roupa e os balangandãs
da Velha Cigana Maluca caídos no chão vazio do corpo dela. E parecia que o
corpo ali estava, arrumado no chão na forma da roupa. Mas não estava, só a
roupa indicava a Velha Cigana Maluca, que sumira, e ninguém nunca mais a achou.
Desaparecera a Velha Cigana Maluca exatamente na hora em que Corisco expirava,
ao final de sua vingança.
Setenta mortos, e ninguém no morro dizia
nada, a polícia encerrando o caso como violenta guerra entre quadrilhas. O
Sargento Luiz Carlos Tavares foi sepultado com honras militares, como se
houvesse se acidentado numa instrução. Lá, porém, todos sabiam que aquela
vingança no morro fora obra do ninja e do comando feroz. Porém tudo acabado,
ele estava morto. De nada adiantaria apresentá-lo como o autor das setenta
mortes. O morro também sabia, porém não o dizia. E foi aí que o morro passou a
ser conhecido como “Morro dos Setenta”. E hoje está novamente ocupado por
ferozes e bem armados traficantes, porém ninguém mais ouve a Velha Cigana
Maluca gritar: “Tá passando um corisco no morro!” Mas o seu clamor pressagioso
ainda ressoa nas mentes daqueles que testemunharam a história de Corisco...
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