“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Do morro, o cimo, o céu muito perto, o
ponto mais alto da cidade. Lá está o barraco vencendo os demais da favela em
altitude. A cidade a seus pés, o barraco, de madeira e zinco na feitura,
simples, muito simples, mas imbatível em altura. Em torno dele, só as pedras. E
ele fincado no único pedaço de chão, nenhum barraco ao seu lado. Entre o
telhado e o firmamento há somente os urubus, muitos deles, planando nas grimpas
do céu. Não há outros seres alados além de urubus. Sim, acima do homem há
somente as tenebrosas aves negras. O homem, as aves negras, ele não é negro nem
branco: é albino, é aço, é sarará; não é café nem leite, mas é Cidadão, o seu
nome de pia, Brasileiro da Silva, o complemento. Filiação? Não a tem. Nem do
pai, nem da mãe. Não sabe de onde veio nem para onde vai, certidão em vazio,
filho da terra, da natureza, da procriação animal. Nada mais ele tem. É uma
barata descascada, sem origem que o valha, sem eira nem beira e nem ramo de
figueira, um intruso na sociedade, um estranho na comunidade, um joão-ninguém.
Mas tem a certidão de nascimento, isto ele tem, feita com ele ainda criança por
um velho líder comunitário. A certidão de nascimento é sua única cidadania, a
cidadania restrita ao pedaço de papel.
Cidadão Brasileiro da Silva é como ele se
chama, digo e repito. Acima dele, os medonhos urubus, a favela a seus pés, e
ele no cimo do morro, dono de nada, nem da terra, nem do céu. Os urubus são os
seus terríveis inimigos, os enormes urubus. O telhado do barraco é o poleiro,
único poleiro daquelas aves medonhas no alto do morro. Todas pousam a chamar o
sol às asas abertas em cruz. Cidadão sabe de cada um, identifica-os até no ar,
espanta-os do telhado, desafia-os à luta, homem e urubus disputando o mesmo
espaço sem dono e que ninguém mais quer. Ele tem ódio dos urubus, estes que
descem ferozes a tentar comê-lo como carniça. Mas a carniça nem mesmo tem cor,
ele não é preto nem branco. Os pretos não o aceitam, nem os brancos, nem os
urubus. Vive isolado, não tem mulher nem filhos. Vive sozinho. E discute com os
urubus, em briga constante, na mão um pedaço de pau, o porrete, a defesa, o
ataque.
– Vem você, Facção! Vem cá, ganhar um
cacete! – dirige-se ao urubu mais próximo com raiva no sangue, um sangue
vermelho por dentro, igual ao do branco, igual ao do preto, o sangue comum, de
pobre ou de rico.
– Vou comer você! Você é meu prato, o prato
do dia! – exclama Facção com raiva e gulodice, mas fica de longe.
Cidadão está enfurecido, o porrete na mão,
as veias intumescidas, sua luta vem de longe contra Facção. Já foram amigos,
antes ainda fossem amigos. Mas foi muito usado. Acreditou nos discursos de vida
melhor, da esperança astutamente acenada. Emprego, acreditou até num emprego.
Trabalhou na campanha e até alimentou Facção no poder; deu-lhe a carne, sua própria
carne, o seu suor. Mas continua lá no alto, no cume do morro. Nada mudou.
Pirâmide, a favela é a imagem inversa da
pirâmide social, o ápice como base. Quanto mais perto do chão da cidade mais
cara é a moradia. Quanto mais alta a moradia menor é o seu preço, não é como as
coberturas de luxo dos prédios; a dele é a cobertura do morro, moradia barata,
a mais barata de todas; a cobertura de Cidadão é poleiro de urubus. E no
barraco mais barato, ou sem nenhum preço, Cidadão se abriga como pode.
Facção ganha altura, está morrendo de rir,
um riso nervoso, e espera a carniça, o seu dia chegar, de comer Cidadão. E ele,
Cidadão, olha lá de cima, do cimo do morro, olha para baixo, e vê a favela
primeiro. Depois fita o horizonte e vê a cidade, tudo menor que ele, subjugada
aos seus olhos, e ele grandioso. Abstração, pura abstração; se descer, é sem
cor, sem lado nos pretos, sem lado nos brancos, um homem sozinho, nem café, nem
leite, nem nada. Mas é definido dentro de si mesmo. É um lutador, é valente.
Alerta-se, contudo, com a voz de outro inimigo alado que chega varando o ar com
arrogância, mais um maldito urubu.
– Vou te comer, Cidadão! – grita grasnando
como um corvo o urubu Sectário, um urubu bem falante, incisivo, e que antes
mais o enganou.
– Vem, desgraçado! Vem cá, na ponta do meu
porrete, seu Sectário de uma figa! – responde-lhe Cidadão, raivoso com o
ataque.
Sectário plana alto. Veio de longe... e
chegou mandando nos urubus da cidade. É o urubu-rei que lidera a sua seita,
lidera Facção e os demais urubus. É o mais perigoso, Cidadão sabe disso. Já foi
enganado, gastou o seu suor pensando em descer do morro para não mais subir;
almejou uma vida melhor. Perdeu o seu tempo. Continua no morro, no cume do
morro, sem mais esperança, mais perto da morte, da morte de fome.
Sectário lhe falava em Igualdade, uma bela
mulher com poderes de Fada miraculosa. Garantia conhecê-la e lhe prometera
apresentá-la até para um casamento. Tudo engodo. Depois Cidadão descobriria que
Igualdade não tem forma, tudo fora pura abstração de discurso sofista.
Igualdade era como se fosse um espírito, um ser impalpável. Na verdade, nem
existia, a não ser na imaginação dos milhões de inocentes e protagonistas da
desesperança, entre os quais Cidadão Brasileiro da Silva. A Igualdade evocada
pelo urubu Sectário era como as nuvens do céu, que mudam de forma, viajam ao
sabor dos ventos, se desfazem no ar ou caem em forma de chuva.
Contudo, Cidadão Brasileiro da Silva mantém
a esperança, desce do morro e procura trabalho. E então lhe aparece uma chance,
o velho líder comunitário o ajuda. Sempre o ajudou, o velho líder comunitário.
O seu registro de nascimento, foi o velho líder quem o providenciou. O pouco
que sabe, o pouco que lê, o velho líder ajudou. Também em conselhos, o velho
líder ajudou: “Não creia em conversa, mantenha os olhos abertos, vida boa é de
poucos, a desgraça é de muitos!”, o velho líder falou.
E lhe surge o trabalho, finalmente o
trabalho, entrega de cartas, uniforme amarelo, os pés na cidade, queimando o
asfalto, os pés na cidade, correndo as ruas, os pés na cidade... assim será
finalmente o trabalho: descida cansada, subida cansada, o morro mais alto, o
barraco esperando, no cume do morro, o cansaço, urubus levitando no céu do seu
morro, as asas abertas, o pouso, o telhado do barraco, o sol tinindo, uma hora
de medo... Mas Cidadão, desta feita, e mesmo sabendo ser assim, desce contente;
enfim o trabalho, a mochila amarela nas costas, o emprego de carteiro, manhã de
segunda-feira, o início, o primeiro endereço, um prédio de luxo, a cobertura.
Atendido na porta, o porteiro, enfezado, querendo a carta endereçada ao
Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Cidadão não dispensa o seu pequeno e
efêmero poder de detentor da missiva; e insiste, teimoso, na entrega em mãos.
– Bom dia, senhor! Eu sou Cidadão, o novo
carteiro, e tenho uma carta, o nome é Estado.
– Não pode entrar, aqui mando eu, meu nome
é Autoridade. Passe-me a missiva.
– Preciso entrar, entrega da carta somente
nas mãos do Senhor Estado.
– Senhor, não! Sua Excelência, o Senhor
Doutor Estado, dobre a língua!
– Não dobro não, senhor! A carta é da
Comunidade, é do líder comunitário, endereçada ao Excelentíssimo Senhor Doutor
Estado, como o senhor sugere. Mas quem a leva sou eu! Se não, não a entrego.
–Então, espere! Vou interfonar.
Bom de briga, Cidadão consegue o seu
intento. E sobe, e aperta a campainha. Ansioso, aguarda. A porta é entreaberta
e lhe surge o mordomo.
– Bom dia! Eu sou Cidadão, o novo carteiro.
– Bom dia! Me chamo Poder. Eu sou o
mordomo. Recebo a missiva.
– Não lhe posso entregar. A carta é para o
Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Tenho ordens de entrega em mãos.
– Aguarde um momento! Vou chamar a
secretária...
– Bom dia, senhor! Meu nome é Sociedade,
sou a secretária particular do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Ele ainda
dorme.
– Prazer, senhora! A carta é do líder, do
líder do morro, eu moro no morro, na Comunidade.
– Estimado senhor, eu vou entregar. Meu
patrão é nervoso, não gosta de Povo. Mas pode deixar, eu vou entregar, qual é o
assunto?
– Assunto, não sei. Só sei do problema, da
falta de escola, das crianças com fome, do parto difícil, dos tiros infernais,
do desemprego, dos doentes do morro, dentre outros problemas. Me explique uma
coisa, dona Sociedade: por que a senhora é secretária dele?
– Olha, meu pobre rapaz, que vou fazer? Se
recuso o trabalho, não tenho mais futuro. É ele quem manda, e sempre mandou.
Mas eu sempre o influencio um pouquinho...
– Mas a senhora não é a mãe dele?... Já
ouvi o velho líder falar...
– Não. Nesse sentido, não. Eu realmente
nasci como Sociedade Primeira para servir ao Povo como se fosse sua filha; e
ajudei, em conúbio com a Democracia, e por vontade de Deus, a gerar o Estado em
tempos remotos, mas para ele ser obediente ao Povo. Porém ele, o Estado, me
venceu e até me forçou ao estupro. De mãe que eu era, lá no início de tudo,
acabei secretária dele. E hoje não sei mais quem sou. Perdi minha identidade
original. Tem sido assim na história do mundo, tem sido assim. Sou o que resta
da Sociedade Primeira, anterior ao Estado. Não sou mais a mesma, não sou mais a
Sociedade Primeira, sou apenas um ridículo segmento dela. E ele, o Estado, é
outro também, só que mais poderoso e muito pior.
– Quer dizer que nunca mais vamos ter um
Estado submetido à Sociedade, e ambos naturalmente subordinados à vontade do
Povo?
– Não! Nunca mais. O Estado é viril, e nós,
Povo e Sociedade, somos fracos.
– Mas, a Sociedade não é filha dos Cidadãos
que formam o Povo? E se o Estado é filho da Sociedade, e a Sociedade é filha do
Povo, então o Estado não deveria também ser neto do Povo, ou dos Cidadãos que
formam o Povo? Diga-me então, hoje o Povo é o filho espúrio do Estado? O Povo
não é mais o seu avô? Nem são mais parentes? Está tudo ao contrário?... –
confundiu-se o carteiro.
– Era assim, meu prezado Cidadão. A
Sociedade e o Estado eram menos importantes que o Povo. Este é que era o único
soberano. Como já lhe disse, eu mesma nasci da vontade de Deus para servir ao
Povo, e da necessidade que o Povo tinha de organizar sua vida coletiva. Foi daí
que surgiu a Sociedade Primeira, cujo tênue resíduo está em mim corporificada.
Depois vocês, os humanos, pessoas comuns, que formavam o Povo natural,
decidiram que deveria haver um representante viril para dirimir as contendas
entre vocês mesmos. E então, por anseio do Povo e suprema vontade de Deus, as
Fadas Sociedade Primeira e Democracia deram à luz duas filhas gêmeas: a
Legitimidade e a Legalidade. A primeira manifestava a vontade natural,
espontânea e de consenso do Povo, e a segunda a escrevia tudo nos pergaminhos
para nada cair em esquecimento; e depois as Fadas geraram o Estado, o filho
homem, este que veio para administrar a vida societária do Povo. A ideia era a
de que o Estado sempre ouvisse a Legitimidade e a Legalidade, suas irmãs mais
velhas, antes de decidir algo a respeito do Povo. Mas o Estado se tornou
ambicioso e despótico, e impôs pela violência sua tirana vontade, porém nem
sempre justa. Por tudo isso é que sou circunflexa ao Estado, tanto quanto o são
o Povo, a Legitimidade e a Legalidade, que sucumbiram diante da ampliação do
poder do Estado. O Estado agora é um ente artificial, que tem a força bruta, as
armas e as leis feitas por ele mesmo sem a aprovação do Povo. O Estado manda em
tudo, não obedece a ninguém e se tornou opressor.
– Mas, por que tudo isso? Que confusão!?! É
difícil entender essa história...
– É complexo, prezado carteiro. Entende-se
menos, sente-se mais... Gostei do seu nome, como é mesmo, completo?
– Cidadão Brasileiro da Silva.
– Bonito! Muito bonito! Devo ir agora. O
Excelentíssimo Senhor Doutor Estado toca a sineta e já clama por minha presença
a seu pé. Conversaremos outro dia, na próxima carta que vier, e sei que muitas
outras virão, porque o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado não costuma
responder às cartas do Povo. Mas o Povo é insistente e um dia vencerá de
teimoso...
– Está certo, dona Sociedade, está certo.
Gostei da senhora. Na senhora eu confio, não sei por quê. Acho que é por sua
humildade. Vou procurar entender a conversa, este assunto difícil. Sou semialfabetizado,
apenas. E moro lá no morro, nas grimpas do morro...
– Oh, meu prezado Cidadão! Quase
analfabeto, como a imensa maioria do Povo... Aí está a chave de tudo, o motivo
principal de eu ser hoje a servil secretária do Excelentíssimo Senhor Doutor
Estado. Eu sou a consequência dessa ignorância premeditadamente massificada...
Vá, meu filho! Procure pensar mais um pouco. Eu tenho de ir. O Excelentíssimo
Senhor Doutor Estado me chama. Ai de mim!...
E lá se foi Cidadão Brasileiro da Silva, o
novo carteiro, com a cabeça perdida em confusão. Estado... Sociedade
Primeira... Legitimidade... Legalidade... Povo... Cidadãos... Comunidade...
Autoridade... Poder... “Mas, que tem isso a ver com o pico do morro, com o meu
barraco?”, especula, enquanto rompe a marcha para um novo endereço. Pega outra
carta e fita os detalhes. Está endereçada à Excelentíssima Senhora Doutora
Justiça. “Quem será ela?”, pensa, enquanto se aproxima de outro prédio
luxuosíssimo.
– Bom dia, senhor! — falou Cidadão com o
porteiro.
– Bom dia! Eu sou o porteiro, meu nome é difícil,
a mim me chamam Código.
– Eu tenho uma carta, pra dona Justiça.
– Não a chame de dona. É Sua Excelência, a
dona da casa. Pode deixar a carta comigo. Depois, pode ir.
– Não posso deixar, não. Entrego em mãos.
– Então, vá embora! A ordem é dela; não
recebe ninguém!
– Espere um pouquinho. Não posso deixar,
mas não posso voltar, sem antes entregar.
– Você atrapalha. Eu chamo a polícia; você
vai dançar, na dura da lei; ou não me chamo Código!...
– Então, vou embora! Mas a carta eu não
deixo!...
– Espere um pouquinho, vou interfonar.
Vale a insistência. Cidadão sobe, toca a
campainha, espera duas horas, dona Justiça o atende. Mas não lhe dá nem
conversa, pega a missiva, bate-lhe a porta na cara, fechando assim um assunto
que nem chega a começar. Cidadão desce fulo, sente-se menor, sem nada entender.
À favela volta, subindo as ladeiras, escalando as encostas, e finalmente chega
ao barraco, no cimo do morro, lá perto do céu.
Anoitece. O céu límpido mostra as estrelas
em todo o seu esplendor. Nada de nuvens, nada de luzes, somente as estrelas.
Cidadão deita-se na pedra e fica olhando as estrelas. Só ele e as luzes
estelares rutilando no infinito. São suas, aquelas luzes, e de mais ninguém.
Ele se sente dono de todas as estrelas, não quer a Lua, lá está a bandeira do
homem estrangeiro, território violado, não mais lhe serve. E olha as estrelas,
o céu sem urubus, seus piores inimigos. Cansado, dorme. Sobressalta-se ao
acordar, um urubu bem perto, quase que o atinge com o bico feroz. Pega do
porrete e brada.
– Sai pra lá, Proselitismo! Você eu
conheço! É perigoso, porque voa até de noite. É bicho safado! Vou matar você!
Você me enganou.
– Você mata nada! Eu vou esperar, eu vou te
comer.
– Você come nada! Eu pego você, é só
bobear.
– Você se distraiu, e eu quase abocanhei um
pedaço de sua carniça viva. De que carne é você, miserável?... Aço de uma figa!...
Espero, outro dia ou outra noite, comer a sua carne de barata descascada; você
vai ver só!...
– Que venha você, seu miserável! Que venham
vocês, seus abutres pilantras! Que venham todos de uma vez! Um dia eu lhes
pego! – brada Cidadão.
Proselitismo, com medo, se afasta do irado
Cidadão e ganha as alturas, indo juntar-se à Facção e ao Sectário. E ficam os
três urubus rasgando o céu em piruetas e sobrevoos irritantes, com Cidadão
furioso, até que pousam no teto do pobríssimo barraco. Cidadão, cansado,
desiste; entra, deita-se no catre de madeira dura e adormece... Ao alvorecer,
logo acorda, e depois desce para outras entregas, um novo dia de trabalho. Não
muitas cartas, mas somente em endereços de luxo. E lá se vai ao novo endereço,
o nome: Nação.
– Bom dia, porteiro! Eu sou o carteiro, eu
sou Cidadão.
– Bom dia, amigo, eu sou seu vizinho, eu
moro no morro, e trabalho na porta do prédio de dona Nação. Meu nome é Povoléu
da Silva.
– Já ouvi falar de você lá na Comunidade.
Como é que é a dona Nação? – indaga Cidadão.
– É pessoa bem simples. Mora aqui porque é
herdeira do passado. Mas vive de boa pensão. Está velha, desatualizada, não lê
jornais, não lê revistas, não vê televisão. Está de muleta e com osteoporose, e
arteriosclerose, e ameaça de trombose, e um tiquinho de neurose. Também não
ouve direito e respira com dificuldade, mas no que resta é boa pessoa...
– Mas ela não é a síntese de nós todos, que
chamam de Povo politicamente organizado?
– Deveria ser... deveria ser... deveria
ser... Mas é este o problema, porque ela se sente culpada ao ver o seu Povo
morando em favelas, desvestido, descalço, morrendo de fome e sem saber ler.
Muita culpa, ela, a Nação, sente, por ver tantas crianças analfabetas, sem
cultura, sem conhecer nada do território que ela antes abraçava e acariciava
como a verdadeira mãe de todos nós. É uma pessoa triste, o Hino Nacional não
canta mais pra ela, e a Bandeira Nacional nunca mais veio visitá-la. Eram seus
filhos queridos. Hoje, não mais; eles a abandonaram. Agora ela vive sozinha,
isolada. Só quem lhe dá um pouco de atenção sou eu, mas aqui sou apenas um. E
um Povoléu da Silva sozinho não faz verão.
– Mas, por que você não a leva ao passeio
pelas ruas? Poderia ser bom ela andar um pouco e ver o seu Povo – sugere
Cidadão.
– Não adianta. Até já a levei um dia lá na
nossa Comunidade. E ela chorou de dor diante de tanta miséria. Foi reclamar com
o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado e não foi por ele nem mesmo recebida. Ele
somente riu às gargalhadas e de longe dela. E ela nada pôde fazer. Daí se
recolheu e nunca mais quis sair. E dona Sociedade não a ajudou. Ficou quietinha
no seu canto, acovardada, submissa, pois não quer perder o pouco de prestígio
que ainda lhe resta, não quer se arriscar a perder o seu emprego de secretária
particular do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado.
– Puxa, amigo Povoléu da Silva! Você me
arrasou. Nem quero entregar a carta em mãos dela. Vou deixá-la com você e
avisar ao líder comunitário que dona Nação precisa muito de ajuda. Em você, eu
confio. Até outro dia!
Cidadão sai arrasado, com pena de dona
Nação. “Como ajudá-la? Quem lhe
poderá injetar um novo ânimo? Como encontrar alguém disposto a acordá-la de seu
torpor?” E pensa no Dr. Patriotismo. Já ouvira falar dele, um bom médico, capaz
de curar os males do Povo e da Nação. “Vou perguntar ao velho líder
comunitário. Ele deve saber onde mora o Dr. Patriotismo. Vou pedir ao velho
líder para mandar uma carta ao Dr. Patriotismo e eu mesmo irei entregá-la!”,
continua a especular enquanto retorna ao seu barraco lá no cimo do morro.
Sobe devagar, olhando o Povo nas ruas, nas
janelas, nos bares, muitos sentados à toa e bebericando a cachaça ruim. E fita
a criançada brincando, pés no chão, calções rasgados, camisas rotas, catarro
nos narizes, os ossos na pele da desnutrição e as barrigas inchadas dos vermes
parasitos. São muitas, as crianças. E até parecem felizes em suas vidas
inocentes e no desconhecimento de que aquilo não é vida nenhuma. Mas somente
conhecem a vida na miserabilidade do morro. Vida?... E Cidadão chega ao
barraco, em dia nublado.
Nesta tarde e início da noite o vento uiva
com rancor. O barraco, entre as pedras e bem fincado ao chão, resiste. E desce
a chuvarada, em tempestade, o céu riscado por fagulhas perigosas. Cidadão
amedronta-se dentro do barraco. Os raios passam perigosamente perto e batem,
violentos, nas pedras em torno do frágil barraco de madeira e zinco, que
clareia a cada pancada das fagulhas. Cidadão, aterrorizado, pula fora e desce.
Esperará passar a tempestade para novamente subir. Mas na descida vê os
estragos: muitos barracos levados pela enxurrada, pessoas feridas, crianças
mortas, lama cobrindo os corpos ensanguentados, o Povo chorando em gritos
histéricos, as roupas e utensílios arrastados morro abaixo na incontida
violência das águas. “Parece que a mãe Natureza odeia o morro, odeia a
Comunidade, odeia a tudo e a todos, mas somente do morro. Não da cidade
asfaltada, não, ali a mãe Natureza não mostra as suas garras ferozes.”, assim
pensa um Cidadão em desespero.
Luz, não tem. Tudo apagado, e o Povo com
velas nas mãos, e em correria, e rezando, e sem saber para que lado ir. E a
chuva castigando, sem dó. Parece que cai apenas ali, no morro. “Quem terá
mandado esta chuva? Que castigo será este? Por quê?”, pensa, aflito, Cidadão,
enquanto busca abrigo em algum lugar, os raios rasgando o céu e ciscando em
torno do mais elevado barraco, o seu barraco, o barraco do cimo do morro, mais
perto do céu, da ira do céu, da ira de Deus. “Por que tanta ira de Deus contra
o Povo?...”, novamente reflete.
As horas passam, horas de terror entre as
pessoas do Povo. Só ali cai a chuva torrencial. Só ali batem os raios. Lá
embaixo, na cidade, os raios entram em tubos de metal e somem inócuos. Os
prédios, sem medo, com todas as luzes acesas, nos bairros nobres seguros, e o
morro às escuras, medroso, enfrentando nas sombras a ira da Natureza. “Onde
está Deus? Onde está o Estado? Onde está a Sociedade?”, cogita o albino, nem
café, nem leite, nem branco, nem preto. Molhado.
A chuva passa, o dia amanhece, e surgem às
vistas de todos os estragos humanos e materiais. E vem a imprensa, límpida e
seca em suas indumentárias, para as entrevistas, para gravar as reclamações dos
desesperados. Que cena de tevê! que depoimentos dramáticos! que maravilha de
reportagem!... O morro arrasado. Os caminhões, “gentilmente mandados” pelo
Excelentíssimo Senhor Doutor Estado, carregando os desabrigados para os
colégios próximos, amontoando homens, mulheres e crianças em espaços
improvisados. Os empregados do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado demonstram
eficiência, todos ele garis, muitos carregando seus próprios despojos – são
moradores do morro que também trabalham para o Excelentíssimo Senhor Doutor
Estado. Mas não são dispensados, têm de ajudar no socorro. E socorrem a si
próprios, também atingidos em suas misérias. E chegam donativos em carros de
luxo, e são os “heróis anônimos” de sempre que surgem na tela da tevê como os
“salvadores” dos pobres-diabos dos favelados, às vezes com apenas a
contribuição de dois quilos de feijão. “Que beleza!... A Sociedade do asfalto
ajudando a Comunidade do morro... Que hipócritas!”, pensa Cidadão, ao assistir
de longe as cenas.
Mas toda ajuda é bem-vinda. Os circunflexos
favelados, como esfaimadas galinhas num terreiro, a correr ao milho a esmo
jogado, recebem em mãos nervosas e sujas de sangue e lama os donativos em
comida que disputam. É Povo contra Povo, a fome falando mais forte, a fome de
muitos em contraste com a fartura de poucos. Sim, os favelados sabem que são
muitos, muitos mesmo. Para cada um do asfalto, talvez sete favelados. Um com
tudo, sete sem nada, a estimada proporção. “Coitada da dona Nação, se visse
tudo aquilo”, amargura-se Cidadão, já tornando ao cume, ao pico do morro, ao
seu barraco, agora brilhando ao sol feroz que de repente surge.
Negro, o telhado do barraco está negro,
coberto por urubus risonhos, as asas abertas em cruz e os olhos avidamente
fitos na desgraça do Povo. Buscam descanso, raios solares e carniça. Negro, o
barraco, envolto nas sombras tétricas dos urubus. E lá estão Sectário,
Proselitismo e Facção, e ainda muitos outros do bando que ali se ajuntam, todos
submetidos à liderança de Sectário, o urubu-rei que veio de longe e pousou
aqui, para desgraça dos favelados do morro.
Cidadão se enfeza ao ver a cena. Pega o porrete
e parte para uma nova escaramuça. Os covardes voam, mas não sobem aos céus. Em
vez disso, descem, buscando a carniça certa, os mortos, e os cachorros, e os
gatos, e os ratos, tudo aos montões. Um belo banquete, o Povo passando e eles,
os medonhos urubus, no meio, sem medo, banqueteando-se das vítimas e
discursando: “Isto tem que acabar!... Isto não pode continuar!...
”Insone, Cidadão entra no barraco, deita no
seu catre, na madeira dura e coberta com esteira; e, depois de muito ansiar,
dorme. E logo lhe surge em pesadelo uma Bruxa toda de negro, nariz bexiguento,
pele arroxeada, espada numa das mãos e noutra um chicote. Bruxa horrenda,
penetra-lhe na mente adormecida sem pedir licença. E anuncia: “Sou a Bruxa
Ideologia! Você está atacando os meus discípulos, e eu vou puni-lo. Todas as
suas agressões são a mim contadas por Sectário, – o meu predileto, – e pelos
outros meus adeptos. Sou íntima do mais poderoso, do meu amigo Estado. Também
mando na Justiça. E a Polícia é minha obediente empregada. Vou lançá-los,
todos, e ao mesmo tempo, contra você! Vou destruir sua miserável vida!... Ha! ha!
ha!...”
Cidadão dá um pulo e fica de pé num estalo.
Transpira por todos os poros, o sangue lhe querendo sair do corpo. Vai para o
lado de fora, e lá estão os urubus: “Ha! ha! ha! ha!...” Gargalham em uníssono
os urubus.
Meio-dia, sol a pino. Das pedras saem
vapores, como se por baixo recebessem o fogo. O sol castiga vermelho, o barraco
ferve ao calor de seus implacáveis raios. Cidadão, amedrontado, desaba morro
abaixo, levando consigo na mente a figura da Bruxa medonha. Não se esquece do
maldito pesadelo. Martelam em sua mente as palavras da Bruxa Ideologia. Vai
direto ao velho líder comunitário, um negro de cento e dez anos que vence o
tempo em meio à miséria.
– Meu velho líder. Preciso lhe contar o que
houve. Tive um sonho terrível, mas não o consigo interpretar. Estou apavorado!
– exclama.
– Calma, meu filho! Sente-se aqui, ao pé do
velho, e vamos conversar. Que houve?
– Sonhei com uma Bruxa diabólica. E ela me
disse chamar-se Ideologia. E me disse que os urubus são seus seguidores, seus
pupilos. E ameaçou-me de fato. Estou apavorado!
– Calma, meu filho! Eu conheço essa Bruxa.
Ela é assim mesmo, assustadora, assombrosa, mas não passa de uma grande
enganadora. O poder que ela diz ter, na verdade não o tem, a não ser nas mentes
das pessoas que ela maldosamente influencia, como fez com você. Primeiro ela
assusta as pessoas. Depois lhes oferece a saída, desde que os afetados pelo seu
terror admitam não mais pensar ou questionar ou reclamar contra os seus
interesses imediatos. Da Bruxa, vem a vontade de dominar tudo e todos. Se você
a ela se submete, fica como os urubus, passa a ser um deles, mesmo sendo um
humano. Há muitos de nós que a ela já se sujeitam. Até aqui no morro, – e
principalmente aqui, – há muitos desgraçados que estão possuídos e cultuam a
Bruxa Ideologia como a uma deusa. Ela primeiro castiga, para depois atribuir
seus castigos a outrem, sempre enganando todo mundo. Ela é demoníaca!...
– Mas, como combatê-la, meu velho líder? Eu
combato os urubus, discuto com eles, brigo feio contra eles, e eles insistem em
dizer que eu não existo, que não tenho cor, que não sou café nem leite, que sou
um intruso no mundo, que não sou nada, nem maioria, nem minoria.
– É assim que eles fazem. São treinados
para estimular conflitos entre brancos e negros, entre pobres e ricos, mas
quando dominam o Estado, como agora ocorre, nada fazem para mudar. Querem
ocupar o Governo, mas não admitem nunca mudar o Estado. Não passam do discurso
e continuam a criticar um indefinido sistema, mesmo que sejam eles próprios o
sistema. Pois vivem do caos. Fazem discursos hipócritas para os oprimidos e
ganham o poder, mas depois se tornam os piores opressores. Faz muito tempo,
surgiu no mundo um perigoso Mago, do qual essa Bruxa que lhe falou é parenta.
Dizem os mais velhos que a Bruxa Ideologia tem muitos espíritos dentro dela,
inclusive o espírito desse malicioso Mago conhecido por Sofisma. Esse Mago
nasceu antes de Cristo. É antigo na Terra, e continua a existir encarnado em
corpos alheios. E tem a capacidade de se desdobrar em muitos ao mesmo tempo,
como o Lúcifer.
– Puxa, entendi, mas me explique melhor o
que é sistema...
– Bem, o tal sistema de que lhe falei é a
casa do Estado. É também conhecido como burocracia. Nessa casa moram os
burocratas, aqueles que cumprem tudo o que lhes manda fazer o Estado. É a força
do muque que o Estado tem e usa contra os cidadãos, que eles chamam de povoléu,
de massa. Você já deve ter notado que o Estado usa os burocratas contra nós,
mas estão sempre a dizer que os usa em favor dos menos aquinhoados, que somos
nós, daqui do morro. Eu sei, sim, como sei, meu filho, que o Estado também tem
encarnado o espírito do Mago Sofisma! Hoje mesmo você poderá ver e ouvir na
tevê e nas rádios os burocratas dando explicações altamente complexas sobre as
causas do desastre que aqui ocorreu, convencendo a minoria do asfalto de que
tudo não passou de acidente natural, culpa do incontrolável gênio da Natureza.
E você verá que a cada imagem da nossa desgraça surgirá um burocrata
assegurando que as obras serão feitas, que o Excelentíssimo Senhor Doutor
Estado se preocupa conosco, que no futuro teremos vida melhor, que tudo é culpa
dos governantes passados... Isto eu garanto que você ouvirá e verá. Isto é
trabalho da Bruxa Ideologia... Todos os incautos, – e são muitos, – seguem a
malévola orientação dela, e seguem os ditames do Mago Sofisma, que lhes vêm
através da Bruxa ou diretamente. Ao cabo de um tempo, ninguém mais falará do
nosso morro. O seu barraco continuará cheio de urubus, e o Povo favelado
continuará tentando sobreviver a duras penas, enquanto os anfibológicos
burocratas continuarão a sofismar em outros lugares.
– Mas, e os políticos? São eles uns
burocratas?
– Ora, meu filho, são os piores burocratas
de todos. São os mais ambíguos. São os mais ambivalentes. São os urubus que
você não reconhece, aqueles que só têm nome na hora de lhe pedir o voto. E
todos são submetidos à vontade da Bruxa Ideologia. Veja só, meu filho, como a
Bruxa Ideologia é perigosa. Ela diz para nós que é mais fácil um camelo passar
pelo buraco da agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Não é isso?
– Puxa, meu velho líder, é verdade! Até eu
me conformo com a pobreza pensando em ser salvo quando morrer. Olho para os
ricos com desdém, porque acredito que irão todos para o inferno. Mas, ao mesmo
tempo, não entendo muito bem isso. Conheci outro dia a dona Sociedade,
secretária do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado, e dela tive até boa
impressão. Ela vive bem, mas não é feliz. Depois conheci a dona Nação, que está
muito doente. Pensei até no Dr. Patriotismo...
– Ora, meu filho! A Nação não é mais a
mesma. O Dr. Patriotismo até já tentou curá-la no passado e não conseguiu. Hoje
é ele quem está muito cansado, meio doente, e já se aposentou. E também a
Sociedade que você conheceu na casa do arrogante Estado não é mais a Sociedade
Primeira. É apenas o que dela sobrou, um fragmento inútil e aproveitador
daquele Poder do Estado que você conheceu. Mas, voltemos ao assunto. Por conta
desse grande sofisma, – inventado pelo Mago Sofisma, – de que só o pobre irá
para o Céu, os pobres se conformam com a pobreza. Não se unem na luta por uma
vida melhor. Preferem a pobreza como se ela assim fosse uma religião, a
salvação, a redenção de todos os males, como se a pobreza não fosse o maior
desses males. E dela, da pobreza, não querem sair, como garantia de um lugar
privilegiado no Céu. E nós, que aqui vivemos entre os pobres, podemos garantir
que todos nós merecemos a salvação?
– Nunca, meu velho líder! Há aqui
verdadeiros monstros, marginais perigosos, que vendem drogas, que nos ameaçam,
que estupram as meninas com armas nas mãos, que matam inocentes... São uns
miseráveis! Não merecem nada!...
– Então, meu filho, tudo não passa de um
malicioso sofisma da Bruxa Ideologia. Que seria dela, se não existissem os
pobres em grande quantidade? Que seria dela, se aqui não houvesse mais
eleitores que no asfalto? Ela depende da pobreza, para oferecer-nos, a nós, os
pobres, a riqueza; depende do Mal, para oferecer-nos, a nós, o Bem, tudo como
forma de nos enganar a todos ao mesmo tempo. Também depende de muitos
analfabetos, para lhes oferecer a educação. E é por tudo isso que ela diz que
controlar a natalidade é pecado. Sim, ela depende da proliferação de muitos de
nós. Ela precisa alimentar seus vorazes urubus de estimação. E há muitos urubus
querendo carniça humana ignorante. Que seria feito dos urubus, que você tão bem
os conhece, se não houvesse carniça humana? Que seria da Facção, do Sectário e
do Proselitismo? Como se alimentariam?
– Mas, meu velho líder, tem alguma saída?
Há como vencer esses urubus e essa Bruxa? – indagou Cidadão, muito preocupado.
– Difícil, meu filho, difícil; mas há, sim.
Se um dia nós nos unirmos para resgatar a Sociedade dos grilhões colocados pelo
Estado, mesmo que ela não mais seja a mesma; se um dia nós conseguíssemos a
ajuda da Fada, nós poderíamos ter sucesso...
– Da Fada?... De que Fada? – indagou,
curioso, Cidadão.
– Da Fada Democracia, meu filho, que anda
esquecida. Ela é a nossa única salvação. Mas primeiro temos de conquistar a
cidadania, que não existe mais, a não ser como mais um sofisma. Veja só, você é
Cidadão Brasileiro da Silva. Mora no pico do morro mais alto da cidade, vê tudo
de lá. Mas, quantas e quais vezes o Estado lhe deu trato de Cidadão, além do
seu nome próprio?... Vou lhe responder, questionando-o: “Quantas vezes os
burocratas o convocaram como um suposto cidadão brasileiro?...”
– Bem, que eu me lembre, só para deveres:
quando fui chamado a servir ao Exército, com ameaças de que, se me não
apresentasse, seria um desertor, um inadimplente com a Pátria, etc. E se não
fosse imediatamente, não poderia tirar carteira de motorista, não poderia ter
carteira profissional, enfim, não poderia ser mais considerado um cidadão.
Outra vez, foi na hora de votar. Em todas as eleições sou obrigado a votar e a
pegar um papelzinho. Se não tiver votado, mesmo que uma única vez, perco um montão
de direitos, que, aliás, nunca me foram dados. Até agora, no emprego que o
senhor me arranjou, exigiram-me o certificado de reservista; mas fui dispensado
do serviço militar porque eles não souberam dizer se eu era preto, ou branco,
ou mulato, ou não sei mais quê; e me exigiram o último papelzinho comprovando
que eu votei. Pior é que votei nessa corja que acompanha a Bruxa Ideologia.
– Então, meu amigo, você já deve ter notado
que não será fácil à Fada Democracia nos ajudar. O Estado é esperto. Ele oferece
aos políticos muitas vantagens. E faz as leis do jeito que bem entende. Quer
ver só? A nossa maior lei, que eles chamam de Carta Magna, de Lei do Povo, de
Constituição, começa afirmando que somos cidadãos de um Estado Democrático de
Direito. Ora, por que não deveria ser Sociedade Democrática de Direito? Ou
Estado Democrático do Povo? Ou, pelo menos, Estado Democrático do Cidadão? Mas
não! É o Estado primeiro e a Democracia depois, ou seja, a Fada vem em segundo
lugar. Por último vem o Direito, que o Estado determina qual deve ser. E nós, –
o Povo, – nem figuramos. E a Fada Democracia, nossa boa Fada, está imprensada
entre o Estado e o Direito, como um miolo de sanduíche, pronta para ser
deglutida pelos urubus fedegosos. Veja só, meu filho. O Estado é concreto, tem
sistemas, tem estruturas, tem burocratas, tem a força. O Direito é concreto,
tem as leis, tem a justiça de burocratas, tem a polícia. A Democracia é
abstração, algo irreal, uma concepção apenas. Não apalpamos a Democracia. Ela é
Fada sem corpo, é espírito inalcançável. Ela é um sonho nem sempre
realizável...
– Ih! meu velho líder, estou todo enrolado,
não consigo entender mais nada...
– Está vendo só, meu filho! É exatamente em
meio a esta confusão que surge a Bruxa Ideologia, com os seus sofismas, atrás
de votos e poder. Ela nada mais deseja além de colocar os seus adeptos, os seus
sectários, os seus facciosos membros manipulando o poderoso Estado. E quantas
vezes isso já ocorreu? Eu lhe respondo: muitas, muitas vezes! E mudou alguma
coisa? A vida aqui mudou? Melhorou? Respondo-lhe veementemente que não!
– Puxa, meu velho líder, você tem razão!
Mas, por que as pessoas não entendem assim?
– Porque não estudam, não conhecem a
profundidade do problema. Daí preferirem a passividade e a submissão aos
engodos daqueles medonhos urubus de lá de cima. Na verdade, o Povo funciona
como massa de manobra da Bruxa Ideologia e de seus seguidores. Você já ouviu
alguma vez a fábula da Legitimidade e da Legalidade?
– Um dia Dona Sociedade me falou alguma
coisa, mas não a entendi muito bem, meu velho líder! Conte-me, conte-me então,
por favor!
– Está bem, ouça-me com atenção – sugeriu o
velho líder, iniciando a história, uma linda história de amor que se tornou
desgraça.
“Há muito tempo, longínquo tempo, havia um
mundo de humanos e animais e um outro, imaterial, de Bruxas, Magos e Fadas, os
primeiros com poderes limitados e as Fadas com poderes infinitamente maiores. A
procriação, neste mundo imaterial, somente surgia com autorização ou pela
vontade de Deus e independia de sexo. E Ele, atendendo aos anseios do Seu Povo,
constituído por Seus filhos humanos, uniu duas lindas Fadas, a Democracia e a
Sociedade Primeira. Tão maravilhosa era a relação entre ambas que Deus lhes permitiu
gerar filhos e filhas a povoar junto com os mortais o Éden Social. Da união,
então, nasceram duas filhas gêmeas, duas novas Fadas, que viviam em total
harmonia no Éden Social. Eram a Legitimidade e a Legalidade. A Legitimidade foi
a primeira a nascer, gritando ao mundo o seu valor; em seguida veio a
Legalidade, num choro mais suave, menos estrondoso que o da Legitimidade. E o
Povo de humanos ficou feliz.
Mas, com o passar dos anos, o Éden Social
foi ficando muito povoado. Havia muitos humanos ocupando os espaços e começaram
os problemas. Não havia abrigos naturais para proteger todos eles das
tempestades e dos animais ferozes; não havia terras iguais em água e
fertilidade para acomodar aqueles viventes coletivamente denominados de Povo;
não havia como igualar seus direitos ao uso comum do solo. Legitimidade e
Legalidade, preocupadas com a grave questão, foram pedir conselhos à Democracia
e à Sociedade Primeira. E estas, pensando em somente ajudar, e sem ouvir os
conselhos do Criador, deram às Fadas gêmeas um poderoso irmão, que funcionaria
como uma nova entidade de controle a que chamaram de Estado. E elas, a
Democracia e a Sociedade Primeira, deram ao Estado o primeiro sopro de vida
eterna e o materializaram entre os humanos. Daí em diante não mais interfeririam,
seus limitados poderes não lhes permitiam ir além disso. Mas, por precaução,
sugeriram que o Povo, agora organizado, passasse a ser chamado de Nação, de
modo que o Estado, ao nascer, percebesse que o Povo era o mais importante, e
que ele, o Estado, resumir-se-ia tão-somente num instrumento deste Povo, que
lhe delegaria o poder, para, em seu nome, administrar seus conflitos a partir
de leis e normas prefixadas por consenso deles, do Povo, além de aprovadas pela
Legitimidade, em primeiro lugar, e referendadas pela Legalidade, em segundo
lugar. Ao Estado, portanto, só cabia agir obedecendo a este restrito contexto
legal.
Foi assim que tudo começou: o Povo se
reunia numa praça chamada Ágora e discutia os seus problemas diante do Estado,
tendo este a seu lado as irmãs Legitimidade e Legalidade. O Estado ouvia
atentamente o Povo e consultava primeiro a Legitimidade. Depois ouvia a
Legalidade, formando a síntese da vontade da nova Sociedade que emergia do
Povo, como o seu lado formal, organizado. Poder-se-ia dizer que esta era a
Sociedade Segunda, que se corporificava com identidade muito bem definida.
Todos os humanos que constituíam o Povo,
eis que alçados à condição de cidadãos da Sociedade Segunda, tinham o direito
de se manifestar na Ágora. Mas naquela época as pessoas do Povo cometiam um
incompreensível erro: escravizavam seus iguais. E Deus ainda os castigaria por essa
contradição fundamental... Mas lhe devo esclarecer que a palavra cidadão, que
aproveitei para gravar como o seu prenome de pia batismal, ainda não existia
naqueles tempos remotos. Ela, a designação das pessoas do Povo como cidadãos e
cidadãs, somente emergiria no século XVIII, em França. Porém, o seu sentido
genérico voltado para o homem coletivo e detentor de direitos e deveres, este vem
de muito mais longe no tempo, eis que deriva de cidade. Mas foi a partir desses
tempos mais recentes que a cidadania se consagrou e se universalizou. Bem,
voltemos à Ágora...
Depois das discussões, muitas vezes
acaloradas, surgia o consenso; e, deste, afloravam as boas leis. E também por
consenso alguns da Sociedade Segunda eram escolhidos para fiscalizar as leis a
serem igualmente cumpridas por todos. Só que, com o passar do tempo, muitos não
mais aceitavam as regras e as leis. Decidiram, então, a Legitimidade e a
Legalidade, que o Estado necessitava de força para agir, para obrigar os
recalcitrantes a cumprirem as regras formais de convivência coletiva. Assim, do
seio da Sociedade Segunda, surgiram os primeiros burocratas, que, por
necessidade, foram distribuídos em três segmentos distintos e chamados de
poderes: os burocratas do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder
Judiciário. E surgiu a Polícia, uma força instrumental de coação a ser usada
contra os que se colocassem contrários às leis. Assim o Povo foi se voltando
contra o próprio Povo...
O Povo aumentou naturalmente, gerando novos
Cidadãos. Daí, ficou impossível ao Estado reunir-se com todos eles na Ágora.
Não mais havia espaço nem interesse. Então o Estado sugeriu, com a aquiescência
da Legitimidade e da Legalidade, a representação indireta dos poderes
constituídos. Assim os poderes foram diluídos por regiões, com a Sociedade
Segunda cada vez mais distante do Estado, tornando-se múltipla e menor que ele,
que também se desdobrou em Estados menores, porém sempre mais poderosos que
todos. E começaram as discussões isoladas entre a Legalidade e a Legitimidade,
ambas já claudicantes diante do poder do Estado, porém com a Legalidade já
controlando a Legitimidade, para isso contando com a conivência maliciosa do
próprio irmão Estado. E foi assim que a Legitimidade foi sendo isolada e
ficando sem voz ativa. E a Sociedade Segunda perdeu definitivamente a
identidade, diluindo-se em inexpressivos segmentos que ainda se tornaram
egoístas e fechados entre si. E o Povo se enfraqueceu concomitantemente. E
muitos diziam que era o castigo divino que estava em curso...
Mas o Estado, já com a aquiescência maldosa
da Legalidade, cresceu ainda mais e se tornou desobediente. Quando resolvia
mudar alguma coisa, só convocava a Legalidade, que a ele logo se submetia,
circunflexa, deixando de lado as opiniões da Legitimidade, até neutralizá-la
totalmente. Foi como se a Legitimidade estivesse morta para sempre. E o Estado
dizia ao Povo, aos homens do Povo: “Eu sou vocês ampliado! Tudo que faço é em
benefício coletivo. Vocês não podem entender minhas complexas decisões porque
elas decorrem de novas técnicas inventadas pelos meus queridos burocratas. Mas
vocês devem obedecer às novas regras estabelecidas pela Legalidade. A
Legitimidade está doente da cabeça, tive de interná-la num hospício. Por isso,
trabalharemos só com a Legalidade, que será melhor.” E foi assim que nasceu o
mago Sofisma, da união incestuosa entre o Estado e a Legalidade, sua irmã mais
nova. E ambos se rebelaram contra os seus antepassados, ou seja, contra as
Fadas Democracia e Sociedade Primeira.
Alguns do Povo tentaram reclamar, mas logo
foram silenciados, ou como loucos, ou como inimigos dos interesses supremos do
Estado, que inventou meios e modos de destruir os contrários. E foi nessa época
que surgiram os calabouços, as torturas e as execuções, tudo invenção anterior
do Povo para submeter seus escravos, e aprimorada pelo Estado para oprimir este
mesmo Povo. E assim a Sociedade Segunda, já totalmente fragmentada e destituída
de identidade coletiva, foi ainda diminuindo, diminuindo, diminuindo, até que
ficou minúscula, e o Estado se tornou maiúsculo, enorme, um gigante, um
Leviatã...
A Fada Democracia, triste com todos esses
dissabores, recolheu-se em reclusão. A Sociedade Primeira, ao desejar também
morrer, diluiu-se em outras menores e sem importância. Sua tristeza era tão
grande quanto a sua desesperança. Por isso, não quis nem mesmo continuar a ser
Fada. Então Deus, em sua ira, segmentou-a e castigou-a com a sina de ser
submetida ao Estado por toda a eternidade. Por isso é que a Fada Democracia
permaneceu sozinha no mundo, – agora sem mais o Éden Social, que também se
esfacelou e desapareceu, – e até hoje vê sua filha mais querida, – a
Legitimidade, – sob os grilhões do Estado e da Legalidade, sem nada poder
fazer, eis que se enfraqueceu porque não tem mais a ajuda do Povo e não conta
mais com a sua eterna parceira – a Sociedade Primeira.”
– Que história triste, meu velho líder! –
exclama Cidadão em visível desalento.
– É sim, meu filho. Muito triste. Mas não
nos devemos desanimar. Não se esqueça de que a Fada Democracia, mesmo reclusa,
ainda tem algum poder. Tanto que, depois de algum tempo, quando o Estado
decidiu gerar novos filhos com a Legalidade, num incesto programado, em vez de
nascer apenas um, que até nome já lhe fora antecipadamente atribuído, nasceram
gêmeos: um grotesco menino e uma linda filha, que veio para lhe atordoar a vida
de mais poderoso do mundo. Tão logo o Estado e a Legalidade se depararam com a
menina, tão linda quanto o inverso de seu filho, que nasceu um aleijão, ele a
jogou no meio do Povo para que morresse de frio e fome. Mas, ao contrário, o
Povo sofrido acolheu-a em seus braços, exatamente aquele Povo que nem como
Sociedade era mais reconhecido pelo Estado e pela Legalidade, mas como ínfima e
desprezível Comunidade. Na verdade, com o passar dos tempos, o Povo se
subdividiu em duas partes bem distintas: os seguidores da Legalidade, que se
mantiveram como Sociedade circunflexa ao Estado, porém se beneficiando disso, e
os seguidores da Legitimidade, que passaram a ser chamados de Comunidade, que
somos nós, os excluídos. Ao filho feio, o Estado deu-lhe a alcunha de Ditadura.
À filha que, irado, não quis nem mesmo ver e sequer lhe deu nome, a Comunidade,
sua mãe adotiva, batizou-a com o belo nome de Liberdade. E logo Deus a ungiu
como Fada, sem que ninguém notasse.
– Puxa! Estou pasmo com a história. Pelo
que entendi, a Liberdade é também uma Fada, um ser intocável, tanto quanto a Fada
Democracia, que é sua avó? – indagou Cidadão.
– Isto, meu filho, isto! E você sempre as
terá ao seu lado para combater a Bruxa Ideologia, o mago Sofisma e seus
asseclas. Todas as vezes que você sonhar com a Bruxa ou com o mago, pense nas
Fadas Democracia e Liberdade, e esses malditos correrão amedrontados. Quando
você for atacado pelos urubus, clame pelas bondosas Fadas e os malditos voarão
para longe. Voltarão, decerto, porque são insistentes e continuarão a perlongar
o cercado do poder do Estado. Mas não lhe alcançarão no Mal, prezado Cidadão
Brasileiro da Silva. Protegido você estará, tendo ao seu lado as Fadas
Democracia e Liberdade. Estas estão perto do Ser Supremo, que um dia colocará
ordem na Terra, não essa lei e ordem de hoje, do Estado e da Legalidade, mas
uma outra, cuja orientação partirá apenas das Fadas Democracia e Liberdade. E a
Fada Legitimidade finalmente sairá dos grilhões e novamente caminhará ao lado
do Povo; e o Povo será um só, uma só Sociedade, aquela do início de tudo,
voltará a ser a Sociedade Primeira, que terá a seu lado as Fadas Democracia,
Liberdade e Legitimidade protegendo-a. E emergirá desse milagre um Povo de
deuses vivendo em paz e harmonia, e a Terra finalmente se transformará num novo
Éden Social governado pela Fada Democracia.
– Oh, meu velho líder! – disse Cidadão –
depois desta conversa, confesso-lhe que vou retornar aos bancos escolares, vou
estudar até por minha conta e vou descer o morro sentindo-me um vencedor, todos
os dias, e com o coração esperançoso. Não mais acreditarei em discursos da
Bruxa Ideologia. O mago Sofisma, para mim, não mais existirá. Os urubus não
mais me incomodarão, e serei livre. E assim, livre, vou lutar contra esse
Estado despótico, insensível, e até maldoso, porém travestido em democrata. Velho
líder, obrigado! Mas, responda-me uma única pergunta que nunca lhe fiz: qual é
o seu nome?...
– Chamo-me Sifogrante, meu prezado
amigo!... Sou o derradeiro remanescente dos velhos sábios da ilha chamada
Utopia. E não tive descendentes...
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