quarta-feira, 14 de junho de 2017

CIDADÃO BRASILEIRO DA SILVA



“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)






Do morro, o cimo, o céu muito perto, o ponto mais alto da cidade. Lá está o barraco vencendo os demais da favela em altitude. A cidade a seus pés, o barraco, de madeira e zinco na feitura, simples, muito simples, mas imbatível em altura. Em torno dele, só as pedras. E ele fincado no único pedaço de chão, nenhum barraco ao seu lado. Entre o telhado e o firmamento há somente os urubus, muitos deles, planando nas grimpas do céu. Não há outros seres alados além de urubus. Sim, acima do homem há somente as tenebrosas aves negras. O homem, as aves negras, ele não é negro nem branco: é albino, é aço, é sarará; não é café nem leite, mas é Cidadão, o seu nome de pia, Brasileiro da Silva, o complemento. Filiação? Não a tem. Nem do pai, nem da mãe. Não sabe de onde veio nem para onde vai, certidão em vazio, filho da terra, da natureza, da procriação animal. Nada mais ele tem. É uma barata descascada, sem origem que o valha, sem eira nem beira e nem ramo de figueira, um intruso na sociedade, um estranho na comunidade, um joão-ninguém. Mas tem a certidão de nascimento, isto ele tem, feita com ele ainda criança por um velho líder comunitário. A certidão de nascimento é sua única cidadania, a cidadania restrita ao pedaço de papel.

Cidadão Brasileiro da Silva é como ele se chama, digo e repito. Acima dele, os medonhos urubus, a favela a seus pés, e ele no cimo do morro, dono de nada, nem da terra, nem do céu. Os urubus são os seus terríveis inimigos, os enormes urubus. O telhado do barraco é o poleiro, único poleiro daquelas aves medonhas no alto do morro. Todas pousam a chamar o sol às asas abertas em cruz. Cidadão sabe de cada um, identifica-os até no ar, espanta-os do telhado, desafia-os à luta, homem e urubus disputando o mesmo espaço sem dono e que ninguém mais quer. Ele tem ódio dos urubus, estes que descem ferozes a tentar comê-lo como carniça. Mas a carniça nem mesmo tem cor, ele não é preto nem branco. Os pretos não o aceitam, nem os brancos, nem os urubus. Vive isolado, não tem mulher nem filhos. Vive sozinho. E discute com os urubus, em briga constante, na mão um pedaço de pau, o porrete, a defesa, o ataque.

– Vem você, Facção! Vem cá, ganhar um cacete! – dirige-se ao urubu mais próximo com raiva no sangue, um sangue vermelho por dentro, igual ao do branco, igual ao do preto, o sangue comum, de pobre ou de rico.

– Vou comer você! Você é meu prato, o prato do dia! – exclama Facção com raiva e gulodice, mas fica de longe.

Cidadão está enfurecido, o porrete na mão, as veias intumescidas, sua luta vem de longe contra Facção. Já foram amigos, antes ainda fossem amigos. Mas foi muito usado. Acreditou nos discursos de vida melhor, da esperança astutamente acenada. Emprego, acreditou até num emprego. Trabalhou na campanha e até alimentou Facção no poder; deu-lhe a carne, sua própria carne, o seu suor. Mas continua lá no alto, no cume do morro. Nada mudou.

Pirâmide, a favela é a imagem inversa da pirâmide social, o ápice como base. Quanto mais perto do chão da cidade mais cara é a moradia. Quanto mais alta a moradia menor é o seu preço, não é como as coberturas de luxo dos prédios; a dele é a cobertura do morro, moradia barata, a mais barata de todas; a cobertura de Cidadão é poleiro de urubus. E no barraco mais barato, ou sem nenhum preço, Cidadão se abriga como pode.

Facção ganha altura, está morrendo de rir, um riso nervoso, e espera a carniça, o seu dia chegar, de comer Cidadão. E ele, Cidadão, olha lá de cima, do cimo do morro, olha para baixo, e vê a favela primeiro. Depois fita o horizonte e vê a cidade, tudo menor que ele, subjugada aos seus olhos, e ele grandioso. Abstração, pura abstração; se descer, é sem cor, sem lado nos pretos, sem lado nos brancos, um homem sozinho, nem café, nem leite, nem nada. Mas é definido dentro de si mesmo. É um lutador, é valente. Alerta-se, contudo, com a voz de outro inimigo alado que chega varando o ar com arrogância, mais um maldito urubu.

– Vou te comer, Cidadão! – grita grasnando como um corvo o urubu Sectário, um urubu bem falante, incisivo, e que antes mais o enganou.

– Vem, desgraçado! Vem cá, na ponta do meu porrete, seu Sectário de uma figa! – responde-lhe Cidadão, raivoso com o ataque.

Sectário plana alto. Veio de longe... e chegou mandando nos urubus da cidade. É o urubu-rei que lidera a sua seita, lidera Facção e os demais urubus. É o mais perigoso, Cidadão sabe disso. Já foi enganado, gastou o seu suor pensando em descer do morro para não mais subir; almejou uma vida melhor. Perdeu o seu tempo. Continua no morro, no cume do morro, sem mais esperança, mais perto da morte, da morte de fome.

Sectário lhe falava em Igualdade, uma bela mulher com poderes de Fada miraculosa. Garantia conhecê-la e lhe prometera apresentá-la até para um casamento. Tudo engodo. Depois Cidadão descobriria que Igualdade não tem forma, tudo fora pura abstração de discurso sofista. Igualdade era como se fosse um espírito, um ser impalpável. Na verdade, nem existia, a não ser na imaginação dos milhões de inocentes e protagonistas da desesperança, entre os quais Cidadão Brasileiro da Silva. A Igualdade evocada pelo urubu Sectário era como as nuvens do céu, que mudam de forma, viajam ao sabor dos ventos, se desfazem no ar ou caem em forma de chuva.

Contudo, Cidadão Brasileiro da Silva mantém a esperança, desce do morro e procura trabalho. E então lhe aparece uma chance, o velho líder comunitário o ajuda. Sempre o ajudou, o velho líder comunitário. O seu registro de nascimento, foi o velho líder quem o providenciou. O pouco que sabe, o pouco que lê, o velho líder ajudou. Também em conselhos, o velho líder ajudou: “Não creia em conversa, mantenha os olhos abertos, vida boa é de poucos, a desgraça é de muitos!”, o velho líder falou.

E lhe surge o trabalho, finalmente o trabalho, entrega de cartas, uniforme amarelo, os pés na cidade, queimando o asfalto, os pés na cidade, correndo as ruas, os pés na cidade... assim será finalmente o trabalho: descida cansada, subida cansada, o morro mais alto, o barraco esperando, no cume do morro, o cansaço, urubus levitando no céu do seu morro, as asas abertas, o pouso, o telhado do barraco, o sol tinindo, uma hora de medo... Mas Cidadão, desta feita, e mesmo sabendo ser assim, desce contente; enfim o trabalho, a mochila amarela nas costas, o emprego de carteiro, manhã de segunda-feira, o início, o primeiro endereço, um prédio de luxo, a cobertura. Atendido na porta, o porteiro, enfezado, querendo a carta endereçada ao Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Cidadão não dispensa o seu pequeno e efêmero poder de detentor da missiva; e insiste, teimoso, na entrega em mãos.

– Bom dia, senhor! Eu sou Cidadão, o novo carteiro, e tenho uma carta, o nome é Estado.

– Não pode entrar, aqui mando eu, meu nome é Autoridade. Passe-me a missiva.

– Preciso entrar, entrega da carta somente nas mãos do Senhor Estado.

– Senhor, não! Sua Excelência, o Senhor Doutor Estado, dobre a língua!

– Não dobro não, senhor! A carta é da Comunidade, é do líder comunitário, endereçada ao Excelentíssimo Senhor Doutor Estado, como o senhor sugere. Mas quem a leva sou eu! Se não, não a entrego.

–Então, espere! Vou interfonar.

Bom de briga, Cidadão consegue o seu intento. E sobe, e aperta a campainha. Ansioso, aguarda. A porta é entreaberta e lhe surge o mordomo.

– Bom dia! Eu sou Cidadão, o novo carteiro.

– Bom dia! Me chamo Poder. Eu sou o mordomo. Recebo a missiva.

– Não lhe posso entregar. A carta é para o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Tenho ordens de entrega em mãos.

– Aguarde um momento! Vou chamar a secretária...

– Bom dia, senhor! Meu nome é Sociedade, sou a secretária particular do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Ele ainda dorme.

– Prazer, senhora! A carta é do líder, do líder do morro, eu moro no morro, na Comunidade.

– Estimado senhor, eu vou entregar. Meu patrão é nervoso, não gosta de Povo. Mas pode deixar, eu vou entregar, qual é o assunto?

– Assunto, não sei. Só sei do problema, da falta de escola, das crianças com fome, do parto difícil, dos tiros infernais, do desemprego, dos doentes do morro, dentre outros problemas. Me explique uma coisa, dona Sociedade: por que a senhora é secretária dele?

– Olha, meu pobre rapaz, que vou fazer? Se recuso o trabalho, não tenho mais futuro. É ele quem manda, e sempre mandou. Mas eu sempre o influencio um pouquinho...

– Mas a senhora não é a mãe dele?... Já ouvi o velho líder falar...

– Não. Nesse sentido, não. Eu realmente nasci como Sociedade Primeira para servir ao Povo como se fosse sua filha; e ajudei, em conúbio com a Democracia, e por vontade de Deus, a gerar o Estado em tempos remotos, mas para ele ser obediente ao Povo. Porém ele, o Estado, me venceu e até me forçou ao estupro. De mãe que eu era, lá no início de tudo, acabei secretária dele. E hoje não sei mais quem sou. Perdi minha identidade original. Tem sido assim na história do mundo, tem sido assim. Sou o que resta da Sociedade Primeira, anterior ao Estado. Não sou mais a mesma, não sou mais a Sociedade Primeira, sou apenas um ridículo segmento dela. E ele, o Estado, é outro também, só que mais poderoso e muito pior.

– Quer dizer que nunca mais vamos ter um Estado submetido à Sociedade, e ambos naturalmente subordinados à vontade do Povo?

– Não! Nunca mais. O Estado é viril, e nós, Povo e Sociedade, somos fracos.

– Mas, a Sociedade não é filha dos Cidadãos que formam o Povo? E se o Estado é filho da Sociedade, e a Sociedade é filha do Povo, então o Estado não deveria também ser neto do Povo, ou dos Cidadãos que formam o Povo? Diga-me então, hoje o Povo é o filho espúrio do Estado? O Povo não é mais o seu avô? Nem são mais parentes? Está tudo ao contrário?... – confundiu-se o carteiro.

– Era assim, meu prezado Cidadão. A Sociedade e o Estado eram menos importantes que o Povo. Este é que era o único soberano. Como já lhe disse, eu mesma nasci da vontade de Deus para servir ao Povo, e da necessidade que o Povo tinha de organizar sua vida coletiva. Foi daí que surgiu a Sociedade Primeira, cujo tênue resíduo está em mim corporificada. Depois vocês, os humanos, pessoas comuns, que formavam o Povo natural, decidiram que deveria haver um representante viril para dirimir as contendas entre vocês mesmos. E então, por anseio do Povo e suprema vontade de Deus, as Fadas Sociedade Primeira e Democracia deram à luz duas filhas gêmeas: a Legitimidade e a Legalidade. A primeira manifestava a vontade natural, espontânea e de consenso do Povo, e a segunda a escrevia tudo nos pergaminhos para nada cair em esquecimento; e depois as Fadas geraram o Estado, o filho homem, este que veio para administrar a vida societária do Povo. A ideia era a de que o Estado sempre ouvisse a Legitimidade e a Legalidade, suas irmãs mais velhas, antes de decidir algo a respeito do Povo. Mas o Estado se tornou ambicioso e despótico, e impôs pela violência sua tirana vontade, porém nem sempre justa. Por tudo isso é que sou circunflexa ao Estado, tanto quanto o são o Povo, a Legitimidade e a Legalidade, que sucumbiram diante da ampliação do poder do Estado. O Estado agora é um ente artificial, que tem a força bruta, as armas e as leis feitas por ele mesmo sem a aprovação do Povo. O Estado manda em tudo, não obedece a ninguém e se tornou opressor.

– Mas, por que tudo isso? Que confusão!?! É difícil entender essa história...

– É complexo, prezado carteiro. Entende-se menos, sente-se mais... Gostei do seu nome, como é mesmo, completo?

– Cidadão Brasileiro da Silva.

– Bonito! Muito bonito! Devo ir agora. O Excelentíssimo Senhor Doutor Estado toca a sineta e já clama por minha presença a seu pé. Conversaremos outro dia, na próxima carta que vier, e sei que muitas outras virão, porque o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado não costuma responder às cartas do Povo. Mas o Povo é insistente e um dia vencerá de teimoso...

– Está certo, dona Sociedade, está certo. Gostei da senhora. Na senhora eu confio, não sei por quê. Acho que é por sua humildade. Vou procurar entender a conversa, este assunto difícil. Sou semialfabetizado, apenas. E moro lá no morro, nas grimpas do morro...

– Oh, meu prezado Cidadão! Quase analfabeto, como a imensa maioria do Povo... Aí está a chave de tudo, o motivo principal de eu ser hoje a servil secretária do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Eu sou a consequência dessa ignorância premeditadamente massificada... Vá, meu filho! Procure pensar mais um pouco. Eu tenho de ir. O Excelentíssimo Senhor Doutor Estado me chama. Ai de mim!...

E lá se foi Cidadão Brasileiro da Silva, o novo carteiro, com a cabeça perdida em confusão. Estado... Sociedade Primeira... Legitimidade... Legalidade... Povo... Cidadãos... Comunidade... Autoridade... Poder... “Mas, que tem isso a ver com o pico do morro, com o meu barraco?”, especula, enquanto rompe a marcha para um novo endereço. Pega outra carta e fita os detalhes. Está endereçada à Excelentíssima Senhora Doutora Justiça. “Quem será ela?”, pensa, enquanto se aproxima de outro prédio luxuosíssimo.

– Bom dia, senhor! — falou Cidadão com o porteiro.

– Bom dia! Eu sou o porteiro, meu nome é difícil, a mim me chamam Código.

– Eu tenho uma carta, pra dona Justiça.

– Não a chame de dona. É Sua Excelência, a dona da casa. Pode deixar a carta comigo. Depois, pode ir.

– Não posso deixar, não. Entrego em mãos.

– Então, vá embora! A ordem é dela; não recebe ninguém!

– Espere um pouquinho. Não posso deixar, mas não posso voltar, sem antes entregar.

– Você atrapalha. Eu chamo a polícia; você vai dançar, na dura da lei; ou não me chamo Código!...

– Então, vou embora! Mas a carta eu não deixo!...

– Espere um pouquinho, vou interfonar.

Vale a insistência. Cidadão sobe, toca a campainha, espera duas horas, dona Justiça o atende. Mas não lhe dá nem conversa, pega a missiva, bate-lhe a porta na cara, fechando assim um assunto que nem chega a começar. Cidadão desce fulo, sente-se menor, sem nada entender. À favela volta, subindo as ladeiras, escalando as encostas, e finalmente chega ao barraco, no cimo do morro, lá perto do céu.

Anoitece. O céu límpido mostra as estrelas em todo o seu esplendor. Nada de nuvens, nada de luzes, somente as estrelas. Cidadão deita-se na pedra e fica olhando as estrelas. Só ele e as luzes estelares rutilando no infinito. São suas, aquelas luzes, e de mais ninguém. Ele se sente dono de todas as estrelas, não quer a Lua, lá está a bandeira do homem estrangeiro, território violado, não mais lhe serve. E olha as estrelas, o céu sem urubus, seus piores inimigos. Cansado, dorme. Sobressalta-se ao acordar, um urubu bem perto, quase que o atinge com o bico feroz. Pega do porrete e brada.

– Sai pra lá, Proselitismo! Você eu conheço! É perigoso, porque voa até de noite. É bicho safado! Vou matar você! Você me enganou.

– Você mata nada! Eu vou esperar, eu vou te comer.

– Você come nada! Eu pego você, é só bobear.

– Você se distraiu, e eu quase abocanhei um pedaço de sua carniça viva. De que carne é você, miserável?... Aço de uma figa!... Espero, outro dia ou outra noite, comer a sua carne de barata descascada; você vai ver só!...

– Que venha você, seu miserável! Que venham vocês, seus abutres pilantras! Que venham todos de uma vez! Um dia eu lhes pego! – brada Cidadão.

Proselitismo, com medo, se afasta do irado Cidadão e ganha as alturas, indo juntar-se à Facção e ao Sectário. E ficam os três urubus rasgando o céu em piruetas e sobrevoos irritantes, com Cidadão furioso, até que pousam no teto do pobríssimo barraco. Cidadão, cansado, desiste; entra, deita-se no catre de madeira dura e adormece... Ao alvorecer, logo acorda, e depois desce para outras entregas, um novo dia de trabalho. Não muitas cartas, mas somente em endereços de luxo. E lá se vai ao novo endereço, o nome: Nação.

– Bom dia, porteiro! Eu sou o carteiro, eu sou Cidadão.

– Bom dia, amigo, eu sou seu vizinho, eu moro no morro, e trabalho na porta do prédio de dona Nação. Meu nome é Povoléu da Silva.

– Já ouvi falar de você lá na Comunidade. Como é que é a dona Nação? – indaga Cidadão.

– É pessoa bem simples. Mora aqui porque é herdeira do passado. Mas vive de boa pensão. Está velha, desatualizada, não lê jornais, não lê revistas, não vê televisão. Está de muleta e com osteoporose, e arteriosclerose, e ameaça de trombose, e um tiquinho de neurose. Também não ouve direito e respira com dificuldade, mas no que resta é boa pessoa...

– Mas ela não é a síntese de nós todos, que chamam de Povo politicamente organizado?

– Deveria ser... deveria ser... deveria ser... Mas é este o problema, porque ela se sente culpada ao ver o seu Povo morando em favelas, desvestido, descalço, morrendo de fome e sem saber ler. Muita culpa, ela, a Nação, sente, por ver tantas crianças analfabetas, sem cultura, sem conhecer nada do território que ela antes abraçava e acariciava como a verdadeira mãe de todos nós. É uma pessoa triste, o Hino Nacional não canta mais pra ela, e a Bandeira Nacional nunca mais veio visitá-la. Eram seus filhos queridos. Hoje, não mais; eles a abandonaram. Agora ela vive sozinha, isolada. Só quem lhe dá um pouco de atenção sou eu, mas aqui sou apenas um. E um Povoléu da Silva sozinho não faz verão.

– Mas, por que você não a leva ao passeio pelas ruas? Poderia ser bom ela andar um pouco e ver o seu Povo – sugere Cidadão.

– Não adianta. Até já a levei um dia lá na nossa Comunidade. E ela chorou de dor diante de tanta miséria. Foi reclamar com o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado e não foi por ele nem mesmo recebida. Ele somente riu às gargalhadas e de longe dela. E ela nada pôde fazer. Daí se recolheu e nunca mais quis sair. E dona Sociedade não a ajudou. Ficou quietinha no seu canto, acovardada, submissa, pois não quer perder o pouco de prestígio que ainda lhe resta, não quer se arriscar a perder o seu emprego de secretária particular do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado.

– Puxa, amigo Povoléu da Silva! Você me arrasou. Nem quero entregar a carta em mãos dela. Vou deixá-la com você e avisar ao líder comunitário que dona Nação precisa muito de ajuda. Em você, eu confio. Até outro dia!

Cidadão sai arrasado, com pena de dona Nação. “Como ajudá-la? Quem lhe poderá injetar um novo ânimo? Como encontrar alguém disposto a acordá-la de seu torpor?” E pensa no Dr. Patriotismo. Já ouvira falar dele, um bom médico, capaz de curar os males do Povo e da Nação. “Vou perguntar ao velho líder comunitário. Ele deve saber onde mora o Dr. Patriotismo. Vou pedir ao velho líder para mandar uma carta ao Dr. Patriotismo e eu mesmo irei entregá-la!”, continua a especular enquanto retorna ao seu barraco lá no cimo do morro.

Sobe devagar, olhando o Povo nas ruas, nas janelas, nos bares, muitos sentados à toa e bebericando a cachaça ruim. E fita a criançada brincando, pés no chão, calções rasgados, camisas rotas, catarro nos narizes, os ossos na pele da desnutrição e as barrigas inchadas dos vermes parasitos. São muitas, as crianças. E até parecem felizes em suas vidas inocentes e no desconhecimento de que aquilo não é vida nenhuma. Mas somente conhecem a vida na miserabilidade do morro. Vida?... E Cidadão chega ao barraco, em dia nublado.

Nesta tarde e início da noite o vento uiva com rancor. O barraco, entre as pedras e bem fincado ao chão, resiste. E desce a chuvarada, em tempestade, o céu riscado por fagulhas perigosas. Cidadão amedronta-se dentro do barraco. Os raios passam perigosamente perto e batem, violentos, nas pedras em torno do frágil barraco de madeira e zinco, que clareia a cada pancada das fagulhas. Cidadão, aterrorizado, pula fora e desce. Esperará passar a tempestade para novamente subir. Mas na descida vê os estragos: muitos barracos levados pela enxurrada, pessoas feridas, crianças mortas, lama cobrindo os corpos ensanguentados, o Povo chorando em gritos histéricos, as roupas e utensílios arrastados morro abaixo na incontida violência das águas. “Parece que a mãe Natureza odeia o morro, odeia a Comunidade, odeia a tudo e a todos, mas somente do morro. Não da cidade asfaltada, não, ali a mãe Natureza não mostra as suas garras ferozes.”, assim pensa um Cidadão em desespero.

Luz, não tem. Tudo apagado, e o Povo com velas nas mãos, e em correria, e rezando, e sem saber para que lado ir. E a chuva castigando, sem dó. Parece que cai apenas ali, no morro. “Quem terá mandado esta chuva? Que castigo será este? Por quê?”, pensa, aflito, Cidadão, enquanto busca abrigo em algum lugar, os raios rasgando o céu e ciscando em torno do mais elevado barraco, o seu barraco, o barraco do cimo do morro, mais perto do céu, da ira do céu, da ira de Deus. “Por que tanta ira de Deus contra o Povo?...”, novamente reflete.

As horas passam, horas de terror entre as pessoas do Povo. Só ali cai a chuva torrencial. Só ali batem os raios. Lá embaixo, na cidade, os raios entram em tubos de metal e somem inócuos. Os prédios, sem medo, com todas as luzes acesas, nos bairros nobres seguros, e o morro às escuras, medroso, enfrentando nas sombras a ira da Natureza. “Onde está Deus? Onde está o Estado? Onde está a Sociedade?”, cogita o albino, nem café, nem leite, nem branco, nem preto. Molhado.

A chuva passa, o dia amanhece, e surgem às vistas de todos os estragos humanos e materiais. E vem a imprensa, límpida e seca em suas indumentárias, para as entrevistas, para gravar as reclamações dos desesperados. Que cena de tevê! que depoimentos dramáticos! que maravilha de reportagem!... O morro arrasado. Os caminhões, “gentilmente mandados” pelo Excelentíssimo Senhor Doutor Estado, carregando os desabrigados para os colégios próximos, amontoando homens, mulheres e crianças em espaços improvisados. Os empregados do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado demonstram eficiência, todos ele garis, muitos carregando seus próprios despojos – são moradores do morro que também trabalham para o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado. Mas não são dispensados, têm de ajudar no socorro. E socorrem a si próprios, também atingidos em suas misérias. E chegam donativos em carros de luxo, e são os “heróis anônimos” de sempre que surgem na tela da tevê como os “salvadores” dos pobres-diabos dos favelados, às vezes com apenas a contribuição de dois quilos de feijão. “Que beleza!... A Sociedade do asfalto ajudando a Comunidade do morro... Que hipócritas!”, pensa Cidadão, ao assistir de longe as cenas.

Mas toda ajuda é bem-vinda. Os circunflexos favelados, como esfaimadas galinhas num terreiro, a correr ao milho a esmo jogado, recebem em mãos nervosas e sujas de sangue e lama os donativos em comida que disputam. É Povo contra Povo, a fome falando mais forte, a fome de muitos em contraste com a fartura de poucos. Sim, os favelados sabem que são muitos, muitos mesmo. Para cada um do asfalto, talvez sete favelados. Um com tudo, sete sem nada, a estimada proporção. “Coitada da dona Nação, se visse tudo aquilo”, amargura-se Cidadão, já tornando ao cume, ao pico do morro, ao seu barraco, agora brilhando ao sol feroz que de repente surge.

Negro, o telhado do barraco está negro, coberto por urubus risonhos, as asas abertas em cruz e os olhos avidamente fitos na desgraça do Povo. Buscam descanso, raios solares e carniça. Negro, o barraco, envolto nas sombras tétricas dos urubus. E lá estão Sectário, Proselitismo e Facção, e ainda muitos outros do bando que ali se ajuntam, todos submetidos à liderança de Sectário, o urubu-rei que veio de longe e pousou aqui, para desgraça dos favelados do morro.

Cidadão se enfeza ao ver a cena. Pega o porrete e parte para uma nova escaramuça. Os covardes voam, mas não sobem aos céus. Em vez disso, descem, buscando a carniça certa, os mortos, e os cachorros, e os gatos, e os ratos, tudo aos montões. Um belo banquete, o Povo passando e eles, os medonhos urubus, no meio, sem medo, banqueteando-se das vítimas e discursando: “Isto tem que acabar!... Isto não pode continuar!...

”Insone, Cidadão entra no barraco, deita no seu catre, na madeira dura e coberta com esteira; e, depois de muito ansiar, dorme. E logo lhe surge em pesadelo uma Bruxa toda de negro, nariz bexiguento, pele arroxeada, espada numa das mãos e noutra um chicote. Bruxa horrenda, penetra-lhe na mente adormecida sem pedir licença. E anuncia: “Sou a Bruxa Ideologia! Você está atacando os meus discípulos, e eu vou puni-lo. Todas as suas agressões são a mim contadas por Sectário, – o meu predileto, – e pelos outros meus adeptos. Sou íntima do mais poderoso, do meu amigo Estado. Também mando na Justiça. E a Polícia é minha obediente empregada. Vou lançá-los, todos, e ao mesmo tempo, contra você! Vou destruir sua miserável vida!... Ha! ha! ha!...”

Cidadão dá um pulo e fica de pé num estalo. Transpira por todos os poros, o sangue lhe querendo sair do corpo. Vai para o lado de fora, e lá estão os urubus: “Ha! ha! ha! ha!...” Gargalham em uníssono os urubus.

Meio-dia, sol a pino. Das pedras saem vapores, como se por baixo recebessem o fogo. O sol castiga vermelho, o barraco ferve ao calor de seus implacáveis raios. Cidadão, amedrontado, desaba morro abaixo, levando consigo na mente a figura da Bruxa medonha. Não se esquece do maldito pesadelo. Martelam em sua mente as palavras da Bruxa Ideologia. Vai direto ao velho líder comunitário, um negro de cento e dez anos que vence o tempo em meio à miséria.

– Meu velho líder. Preciso lhe contar o que houve. Tive um sonho terrível, mas não o consigo interpretar. Estou apavorado! – exclama.

– Calma, meu filho! Sente-se aqui, ao pé do velho, e vamos conversar. Que houve?

– Sonhei com uma Bruxa diabólica. E ela me disse chamar-se Ideologia. E me disse que os urubus são seus seguidores, seus pupilos. E ameaçou-me de fato. Estou apavorado!

– Calma, meu filho! Eu conheço essa Bruxa. Ela é assim mesmo, assustadora, assombrosa, mas não passa de uma grande enganadora. O poder que ela diz ter, na verdade não o tem, a não ser nas mentes das pessoas que ela maldosamente influencia, como fez com você. Primeiro ela assusta as pessoas. Depois lhes oferece a saída, desde que os afetados pelo seu terror admitam não mais pensar ou questionar ou reclamar contra os seus interesses imediatos. Da Bruxa, vem a vontade de dominar tudo e todos. Se você a ela se submete, fica como os urubus, passa a ser um deles, mesmo sendo um humano. Há muitos de nós que a ela já se sujeitam. Até aqui no morro, – e principalmente aqui, – há muitos desgraçados que estão possuídos e cultuam a Bruxa Ideologia como a uma deusa. Ela primeiro castiga, para depois atribuir seus castigos a outrem, sempre enganando todo mundo. Ela é demoníaca!...

– Mas, como combatê-la, meu velho líder? Eu combato os urubus, discuto com eles, brigo feio contra eles, e eles insistem em dizer que eu não existo, que não tenho cor, que não sou café nem leite, que sou um intruso no mundo, que não sou nada, nem maioria, nem minoria.

– É assim que eles fazem. São treinados para estimular conflitos entre brancos e negros, entre pobres e ricos, mas quando dominam o Estado, como agora ocorre, nada fazem para mudar. Querem ocupar o Governo, mas não admitem nunca mudar o Estado. Não passam do discurso e continuam a criticar um indefinido sistema, mesmo que sejam eles próprios o sistema. Pois vivem do caos. Fazem discursos hipócritas para os oprimidos e ganham o poder, mas depois se tornam os piores opressores. Faz muito tempo, surgiu no mundo um perigoso Mago, do qual essa Bruxa que lhe falou é parenta. Dizem os mais velhos que a Bruxa Ideologia tem muitos espíritos dentro dela, inclusive o espírito desse malicioso Mago conhecido por Sofisma. Esse Mago nasceu antes de Cristo. É antigo na Terra, e continua a existir encarnado em corpos alheios. E tem a capacidade de se desdobrar em muitos ao mesmo tempo, como o Lúcifer.

– Puxa, entendi, mas me explique melhor o que é sistema...

– Bem, o tal sistema de que lhe falei é a casa do Estado. É também conhecido como burocracia. Nessa casa moram os burocratas, aqueles que cumprem tudo o que lhes manda fazer o Estado. É a força do muque que o Estado tem e usa contra os cidadãos, que eles chamam de povoléu, de massa. Você já deve ter notado que o Estado usa os burocratas contra nós, mas estão sempre a dizer que os usa em favor dos menos aquinhoados, que somos nós, daqui do morro. Eu sei, sim, como sei, meu filho, que o Estado também tem encarnado o espírito do Mago Sofisma! Hoje mesmo você poderá ver e ouvir na tevê e nas rádios os burocratas dando explicações altamente complexas sobre as causas do desastre que aqui ocorreu, convencendo a minoria do asfalto de que tudo não passou de acidente natural, culpa do incontrolável gênio da Natureza. E você verá que a cada imagem da nossa desgraça surgirá um burocrata assegurando que as obras serão feitas, que o Excelentíssimo Senhor Doutor Estado se preocupa conosco, que no futuro teremos vida melhor, que tudo é culpa dos governantes passados... Isto eu garanto que você ouvirá e verá. Isto é trabalho da Bruxa Ideologia... Todos os incautos, – e são muitos, – seguem a malévola orientação dela, e seguem os ditames do Mago Sofisma, que lhes vêm através da Bruxa ou diretamente. Ao cabo de um tempo, ninguém mais falará do nosso morro. O seu barraco continuará cheio de urubus, e o Povo favelado continuará tentando sobreviver a duras penas, enquanto os anfibológicos burocratas continuarão a sofismar em outros lugares.

– Mas, e os políticos? São eles uns burocratas?

– Ora, meu filho, são os piores burocratas de todos. São os mais ambíguos. São os mais ambivalentes. São os urubus que você não reconhece, aqueles que só têm nome na hora de lhe pedir o voto. E todos são submetidos à vontade da Bruxa Ideologia. Veja só, meu filho, como a Bruxa Ideologia é perigosa. Ela diz para nós que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus. Não é isso?

– Puxa, meu velho líder, é verdade! Até eu me conformo com a pobreza pensando em ser salvo quando morrer. Olho para os ricos com desdém, porque acredito que irão todos para o inferno. Mas, ao mesmo tempo, não entendo muito bem isso. Conheci outro dia a dona Sociedade, secretária do Excelentíssimo Senhor Doutor Estado, e dela tive até boa impressão. Ela vive bem, mas não é feliz. Depois conheci a dona Nação, que está muito doente. Pensei até no Dr. Patriotismo...

– Ora, meu filho! A Nação não é mais a mesma. O Dr. Patriotismo até já tentou curá-la no passado e não conseguiu. Hoje é ele quem está muito cansado, meio doente, e já se aposentou. E também a Sociedade que você conheceu na casa do arrogante Estado não é mais a Sociedade Primeira. É apenas o que dela sobrou, um fragmento inútil e aproveitador daquele Poder do Estado que você conheceu. Mas, voltemos ao assunto. Por conta desse grande sofisma, – inventado pelo Mago Sofisma, – de que só o pobre irá para o Céu, os pobres se conformam com a pobreza. Não se unem na luta por uma vida melhor. Preferem a pobreza como se ela assim fosse uma religião, a salvação, a redenção de todos os males, como se a pobreza não fosse o maior desses males. E dela, da pobreza, não querem sair, como garantia de um lugar privilegiado no Céu. E nós, que aqui vivemos entre os pobres, podemos garantir que todos nós merecemos a salvação?

– Nunca, meu velho líder! Há aqui verdadeiros monstros, marginais perigosos, que vendem drogas, que nos ameaçam, que estupram as meninas com armas nas mãos, que matam inocentes... São uns miseráveis! Não merecem nada!...

– Então, meu filho, tudo não passa de um malicioso sofisma da Bruxa Ideologia. Que seria dela, se não existissem os pobres em grande quantidade? Que seria dela, se aqui não houvesse mais eleitores que no asfalto? Ela depende da pobreza, para oferecer-nos, a nós, os pobres, a riqueza; depende do Mal, para oferecer-nos, a nós, o Bem, tudo como forma de nos enganar a todos ao mesmo tempo. Também depende de muitos analfabetos, para lhes oferecer a educação. E é por tudo isso que ela diz que controlar a natalidade é pecado. Sim, ela depende da proliferação de muitos de nós. Ela precisa alimentar seus vorazes urubus de estimação. E há muitos urubus querendo carniça humana ignorante. Que seria feito dos urubus, que você tão bem os conhece, se não houvesse carniça humana? Que seria da Facção, do Sectário e do Proselitismo? Como se alimentariam?

– Mas, meu velho líder, tem alguma saída? Há como vencer esses urubus e essa Bruxa? – indagou Cidadão, muito preocupado.

– Difícil, meu filho, difícil; mas há, sim. Se um dia nós nos unirmos para resgatar a Sociedade dos grilhões colocados pelo Estado, mesmo que ela não mais seja a mesma; se um dia nós conseguíssemos a ajuda da Fada, nós poderíamos ter sucesso...

– Da Fada?... De que Fada? – indagou, curioso, Cidadão.

– Da Fada Democracia, meu filho, que anda esquecida. Ela é a nossa única salvação. Mas primeiro temos de conquistar a cidadania, que não existe mais, a não ser como mais um sofisma. Veja só, você é Cidadão Brasileiro da Silva. Mora no pico do morro mais alto da cidade, vê tudo de lá. Mas, quantas e quais vezes o Estado lhe deu trato de Cidadão, além do seu nome próprio?... Vou lhe responder, questionando-o: “Quantas vezes os burocratas o convocaram como um suposto cidadão brasileiro?...”

– Bem, que eu me lembre, só para deveres: quando fui chamado a servir ao Exército, com ameaças de que, se me não apresentasse, seria um desertor, um inadimplente com a Pátria, etc. E se não fosse imediatamente, não poderia tirar carteira de motorista, não poderia ter carteira profissional, enfim, não poderia ser mais considerado um cidadão. Outra vez, foi na hora de votar. Em todas as eleições sou obrigado a votar e a pegar um papelzinho. Se não tiver votado, mesmo que uma única vez, perco um montão de direitos, que, aliás, nunca me foram dados. Até agora, no emprego que o senhor me arranjou, exigiram-me o certificado de reservista; mas fui dispensado do serviço militar porque eles não souberam dizer se eu era preto, ou branco, ou mulato, ou não sei mais quê; e me exigiram o último papelzinho comprovando que eu votei. Pior é que votei nessa corja que acompanha a Bruxa Ideologia.

– Então, meu amigo, você já deve ter notado que não será fácil à Fada Democracia nos ajudar. O Estado é esperto. Ele oferece aos políticos muitas vantagens. E faz as leis do jeito que bem entende. Quer ver só? A nossa maior lei, que eles chamam de Carta Magna, de Lei do Povo, de Constituição, começa afirmando que somos cidadãos de um Estado Democrático de Direito. Ora, por que não deveria ser Sociedade Democrática de Direito? Ou Estado Democrático do Povo? Ou, pelo menos, Estado Democrático do Cidadão? Mas não! É o Estado primeiro e a Democracia depois, ou seja, a Fada vem em segundo lugar. Por último vem o Direito, que o Estado determina qual deve ser. E nós, – o Povo, – nem figuramos. E a Fada Democracia, nossa boa Fada, está imprensada entre o Estado e o Direito, como um miolo de sanduíche, pronta para ser deglutida pelos urubus fedegosos. Veja só, meu filho. O Estado é concreto, tem sistemas, tem estruturas, tem burocratas, tem a força. O Direito é concreto, tem as leis, tem a justiça de burocratas, tem a polícia. A Democracia é abstração, algo irreal, uma concepção apenas. Não apalpamos a Democracia. Ela é Fada sem corpo, é espírito inalcançável. Ela é um sonho nem sempre realizável...

– Ih! meu velho líder, estou todo enrolado, não consigo entender mais nada...

– Está vendo só, meu filho! É exatamente em meio a esta confusão que surge a Bruxa Ideologia, com os seus sofismas, atrás de votos e poder. Ela nada mais deseja além de colocar os seus adeptos, os seus sectários, os seus facciosos membros manipulando o poderoso Estado. E quantas vezes isso já ocorreu? Eu lhe respondo: muitas, muitas vezes! E mudou alguma coisa? A vida aqui mudou? Melhorou? Respondo-lhe veementemente que não!

– Puxa, meu velho líder, você tem razão! Mas, por que as pessoas não entendem assim?

– Porque não estudam, não conhecem a profundidade do problema. Daí preferirem a passividade e a submissão aos engodos daqueles medonhos urubus de lá de cima. Na verdade, o Povo funciona como massa de manobra da Bruxa Ideologia e de seus seguidores. Você já ouviu alguma vez a fábula da Legitimidade e da Legalidade?

– Um dia Dona Sociedade me falou alguma coisa, mas não a entendi muito bem, meu velho líder! Conte-me, conte-me então, por favor!

– Está bem, ouça-me com atenção – sugeriu o velho líder, iniciando a história, uma linda história de amor que se tornou desgraça.



“Há muito tempo, longínquo tempo, havia um mundo de humanos e animais e um outro, imaterial, de Bruxas, Magos e Fadas, os primeiros com poderes limitados e as Fadas com poderes infinitamente maiores. A procriação, neste mundo imaterial, somente surgia com autorização ou pela vontade de Deus e independia de sexo. E Ele, atendendo aos anseios do Seu Povo, constituído por Seus filhos humanos, uniu duas lindas Fadas, a Democracia e a Sociedade Primeira. Tão maravilhosa era a relação entre ambas que Deus lhes permitiu gerar filhos e filhas a povoar junto com os mortais o Éden Social. Da união, então, nasceram duas filhas gêmeas, duas novas Fadas, que viviam em total harmonia no Éden Social. Eram a Legitimidade e a Legalidade. A Legitimidade foi a primeira a nascer, gritando ao mundo o seu valor; em seguida veio a Legalidade, num choro mais suave, menos estrondoso que o da Legitimidade. E o Povo de humanos ficou feliz.

Mas, com o passar dos anos, o Éden Social foi ficando muito povoado. Havia muitos humanos ocupando os espaços e começaram os problemas. Não havia abrigos naturais para proteger todos eles das tempestades e dos animais ferozes; não havia terras iguais em água e fertilidade para acomodar aqueles viventes coletivamente denominados de Povo; não havia como igualar seus direitos ao uso comum do solo. Legitimidade e Legalidade, preocupadas com a grave questão, foram pedir conselhos à Democracia e à Sociedade Primeira. E estas, pensando em somente ajudar, e sem ouvir os conselhos do Criador, deram às Fadas gêmeas um poderoso irmão, que funcionaria como uma nova entidade de controle a que chamaram de Estado. E elas, a Democracia e a Sociedade Primeira, deram ao Estado o primeiro sopro de vida eterna e o materializaram entre os humanos. Daí em diante não mais interfeririam, seus limitados poderes não lhes permitiam ir além disso. Mas, por precaução, sugeriram que o Povo, agora organizado, passasse a ser chamado de Nação, de modo que o Estado, ao nascer, percebesse que o Povo era o mais importante, e que ele, o Estado, resumir-se-ia tão-somente num instrumento deste Povo, que lhe delegaria o poder, para, em seu nome, administrar seus conflitos a partir de leis e normas prefixadas por consenso deles, do Povo, além de aprovadas pela Legitimidade, em primeiro lugar, e referendadas pela Legalidade, em segundo lugar. Ao Estado, portanto, só cabia agir obedecendo a este restrito contexto legal.

Foi assim que tudo começou: o Povo se reunia numa praça chamada Ágora e discutia os seus problemas diante do Estado, tendo este a seu lado as irmãs Legitimidade e Legalidade. O Estado ouvia atentamente o Povo e consultava primeiro a Legitimidade. Depois ouvia a Legalidade, formando a síntese da vontade da nova Sociedade que emergia do Povo, como o seu lado formal, organizado. Poder-se-ia dizer que esta era a Sociedade Segunda, que se corporificava com identidade muito bem definida.

Todos os humanos que constituíam o Povo, eis que alçados à condição de cidadãos da Sociedade Segunda, tinham o direito de se manifestar na Ágora. Mas naquela época as pessoas do Povo cometiam um incompreensível erro: escravizavam seus iguais. E Deus ainda os castigaria por essa contradição fundamental... Mas lhe devo esclarecer que a palavra cidadão, que aproveitei para gravar como o seu prenome de pia batismal, ainda não existia naqueles tempos remotos. Ela, a designação das pessoas do Povo como cidadãos e cidadãs, somente emergiria no século XVIII, em França. Porém, o seu sentido genérico voltado para o homem coletivo e detentor de direitos e deveres, este vem de muito mais longe no tempo, eis que deriva de cidade. Mas foi a partir desses tempos mais recentes que a cidadania se consagrou e se universalizou. Bem, voltemos à Ágora...

Depois das discussões, muitas vezes acaloradas, surgia o consenso; e, deste, afloravam as boas leis. E também por consenso alguns da Sociedade Segunda eram escolhidos para fiscalizar as leis a serem igualmente cumpridas por todos. Só que, com o passar do tempo, muitos não mais aceitavam as regras e as leis. Decidiram, então, a Legitimidade e a Legalidade, que o Estado necessitava de força para agir, para obrigar os recalcitrantes a cumprirem as regras formais de convivência coletiva. Assim, do seio da Sociedade Segunda, surgiram os primeiros burocratas, que, por necessidade, foram distribuídos em três segmentos distintos e chamados de poderes: os burocratas do Poder Executivo, do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. E surgiu a Polícia, uma força instrumental de coação a ser usada contra os que se colocassem contrários às leis. Assim o Povo foi se voltando contra o próprio Povo...

O Povo aumentou naturalmente, gerando novos Cidadãos. Daí, ficou impossível ao Estado reunir-se com todos eles na Ágora. Não mais havia espaço nem interesse. Então o Estado sugeriu, com a aquiescência da Legitimidade e da Legalidade, a representação indireta dos poderes constituídos. Assim os poderes foram diluídos por regiões, com a Sociedade Segunda cada vez mais distante do Estado, tornando-se múltipla e menor que ele, que também se desdobrou em Estados menores, porém sempre mais poderosos que todos. E começaram as discussões isoladas entre a Legalidade e a Legitimidade, ambas já claudicantes diante do poder do Estado, porém com a Legalidade já controlando a Legitimidade, para isso contando com a conivência maliciosa do próprio irmão Estado. E foi assim que a Legitimidade foi sendo isolada e ficando sem voz ativa. E a Sociedade Segunda perdeu definitivamente a identidade, diluindo-se em inexpressivos segmentos que ainda se tornaram egoístas e fechados entre si. E o Povo se enfraqueceu concomitantemente. E muitos diziam que era o castigo divino que estava em curso...

Mas o Estado, já com a aquiescência maldosa da Legalidade, cresceu ainda mais e se tornou desobediente. Quando resolvia mudar alguma coisa, só convocava a Legalidade, que a ele logo se submetia, circunflexa, deixando de lado as opiniões da Legitimidade, até neutralizá-la totalmente. Foi como se a Legitimidade estivesse morta para sempre. E o Estado dizia ao Povo, aos homens do Povo: “Eu sou vocês ampliado! Tudo que faço é em benefício coletivo. Vocês não podem entender minhas complexas decisões porque elas decorrem de novas técnicas inventadas pelos meus queridos burocratas. Mas vocês devem obedecer às novas regras estabelecidas pela Legalidade. A Legitimidade está doente da cabeça, tive de interná-la num hospício. Por isso, trabalharemos só com a Legalidade, que será melhor.” E foi assim que nasceu o mago Sofisma, da união incestuosa entre o Estado e a Legalidade, sua irmã mais nova. E ambos se rebelaram contra os seus antepassados, ou seja, contra as Fadas Democracia e Sociedade Primeira.

Alguns do Povo tentaram reclamar, mas logo foram silenciados, ou como loucos, ou como inimigos dos interesses supremos do Estado, que inventou meios e modos de destruir os contrários. E foi nessa época que surgiram os calabouços, as torturas e as execuções, tudo invenção anterior do Povo para submeter seus escravos, e aprimorada pelo Estado para oprimir este mesmo Povo. E assim a Sociedade Segunda, já totalmente fragmentada e destituída de identidade coletiva, foi ainda diminuindo, diminuindo, diminuindo, até que ficou minúscula, e o Estado se tornou maiúsculo, enorme, um gigante, um Leviatã...

A Fada Democracia, triste com todos esses dissabores, recolheu-se em reclusão. A Sociedade Primeira, ao desejar também morrer, diluiu-se em outras menores e sem importância. Sua tristeza era tão grande quanto a sua desesperança. Por isso, não quis nem mesmo continuar a ser Fada. Então Deus, em sua ira, segmentou-a e castigou-a com a sina de ser submetida ao Estado por toda a eternidade. Por isso é que a Fada Democracia permaneceu sozinha no mundo, – agora sem mais o Éden Social, que também se esfacelou e desapareceu, – e até hoje vê sua filha mais querida, – a Legitimidade, – sob os grilhões do Estado e da Legalidade, sem nada poder fazer, eis que se enfraqueceu porque não tem mais a ajuda do Povo e não conta mais com a sua eterna parceira – a Sociedade Primeira.”



– Que história triste, meu velho líder! – exclama Cidadão em visível desalento.

– É sim, meu filho. Muito triste. Mas não nos devemos desanimar. Não se esqueça de que a Fada Democracia, mesmo reclusa, ainda tem algum poder. Tanto que, depois de algum tempo, quando o Estado decidiu gerar novos filhos com a Legalidade, num incesto programado, em vez de nascer apenas um, que até nome já lhe fora antecipadamente atribuído, nasceram gêmeos: um grotesco menino e uma linda filha, que veio para lhe atordoar a vida de mais poderoso do mundo. Tão logo o Estado e a Legalidade se depararam com a menina, tão linda quanto o inverso de seu filho, que nasceu um aleijão, ele a jogou no meio do Povo para que morresse de frio e fome. Mas, ao contrário, o Povo sofrido acolheu-a em seus braços, exatamente aquele Povo que nem como Sociedade era mais reconhecido pelo Estado e pela Legalidade, mas como ínfima e desprezível Comunidade. Na verdade, com o passar dos tempos, o Povo se subdividiu em duas partes bem distintas: os seguidores da Legalidade, que se mantiveram como Sociedade circunflexa ao Estado, porém se beneficiando disso, e os seguidores da Legitimidade, que passaram a ser chamados de Comunidade, que somos nós, os excluídos. Ao filho feio, o Estado deu-lhe a alcunha de Ditadura. À filha que, irado, não quis nem mesmo ver e sequer lhe deu nome, a Comunidade, sua mãe adotiva, batizou-a com o belo nome de Liberdade. E logo Deus a ungiu como Fada, sem que ninguém notasse.

– Puxa! Estou pasmo com a história. Pelo que entendi, a Liberdade é também uma Fada, um ser intocável, tanto quanto a Fada Democracia, que é sua avó? – indagou Cidadão.

– Isto, meu filho, isto! E você sempre as terá ao seu lado para combater a Bruxa Ideologia, o mago Sofisma e seus asseclas. Todas as vezes que você sonhar com a Bruxa ou com o mago, pense nas Fadas Democracia e Liberdade, e esses malditos correrão amedrontados. Quando você for atacado pelos urubus, clame pelas bondosas Fadas e os malditos voarão para longe. Voltarão, decerto, porque são insistentes e continuarão a perlongar o cercado do poder do Estado. Mas não lhe alcançarão no Mal, prezado Cidadão Brasileiro da Silva. Protegido você estará, tendo ao seu lado as Fadas Democracia e Liberdade. Estas estão perto do Ser Supremo, que um dia colocará ordem na Terra, não essa lei e ordem de hoje, do Estado e da Legalidade, mas uma outra, cuja orientação partirá apenas das Fadas Democracia e Liberdade. E a Fada Legitimidade finalmente sairá dos grilhões e novamente caminhará ao lado do Povo; e o Povo será um só, uma só Sociedade, aquela do início de tudo, voltará a ser a Sociedade Primeira, que terá a seu lado as Fadas Democracia, Liberdade e Legitimidade protegendo-a. E emergirá desse milagre um Povo de deuses vivendo em paz e harmonia, e a Terra finalmente se transformará num novo Éden Social governado pela Fada Democracia.

– Oh, meu velho líder! – disse Cidadão – depois desta conversa, confesso-lhe que vou retornar aos bancos escolares, vou estudar até por minha conta e vou descer o morro sentindo-me um vencedor, todos os dias, e com o coração esperançoso. Não mais acreditarei em discursos da Bruxa Ideologia. O mago Sofisma, para mim, não mais existirá. Os urubus não mais me incomodarão, e serei livre. E assim, livre, vou lutar contra esse Estado despótico, insensível, e até maldoso, porém travestido em democrata. Velho líder, obrigado! Mas, responda-me uma única pergunta que nunca lhe fiz: qual é o seu nome?...

– Chamo-me Sifogrante, meu prezado amigo!... Sou o derradeiro remanescente dos velhos sábios da ilha chamada Utopia. E não tive descendentes...


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