“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Ela desce, no limiar entre a noite e o
alvorecer (há um lusco-fusco ainda indefinido), mas já sabendo que raiará o sol
e que este fará surgir mais um dia em sua vida. Indiferente, porém, ela desce,
e o faz se desviando da água podre que desce junto com ela. E ali há o risco de
um escorregão quase fatal, o último que houvera, de uma mulher como ela,
resultara em fratura. Por isso ela vem cautelosa, forçando a vista sempre
desacostumada àquela escuridão que ainda a cerca. Mas sabe que quando chegar ao
pé do morro logo depois o dia já terá raiado e o som da vida recomeçado, aliás,
como todos os dias que àquele se antecederam.
Mesmo assim, de certo modo se arriscando,
ela desce, porém suas mãos estão muito doloridas, rachadas pela alergia ao
sabão vagabundo que impertinentemente usa para lavar as coisas. E lhe doem mais
ainda devido ao frio fino e seco que corta aquela madrugada, trazido por uma
brisa que vem de um mar que está próximo. Mas ela não vê o mar, que se oculta
teimosamente no lusco-fusco.
Embora dolorida, e sem ver o mar, ela vai
resoluta, porque não pode jamais deixar de fazer o que faz, apesar de ter
deixado atrás de si, com a filha de apenas seis anos, um bebê de três meses, o
seu recém-nascido. E nem mesmo a licença médica ultrapassara os dois meses e
ela logo voltara à labuta, com medo de perder o seu ganha-pão miserável. Sim, é
miserável, mas é o seu único ganha-pão, ela não se pode arriscar a perdê-lo.
Contudo, não apenas suas mãos doem; dói-lhe
também uma das mamas, que já secou o leite e parece inflamada. E ela pensa:
“Tenho de ir ao médico!...” Mas logo desiste, ao se lembrar da enorme fila de
espera, da sacrificada senha a conseguir, e do tempo que nela, na fila, não
pode perder, seus afazeres nunca jamais o permitem. O jeito é ir à rezadora no
próximo fim de semana, ou ao farmacêutico, este sempre atencioso com o pessoal
do morro, apesar de cobrar mais caro pelos remédios e de nunca ter o tal
genérico para oferecer...
E assim, preocupada, ela chega ao pé do
morro envolta em seus problemas e ainda pensando no pedaço de carne de porco
que na véspera ajudara a vizinha a limpar. Depois, ela ouvira a futrica de que
carne de porco costuma ter um bicho que cresce dentro das pessoas e chega a ser
tão grande de dar a volta no Maracanã. E ela não pensa em outra coisa que não
seja nos filhotinhos daquele bicho do porco entrando por suas rachaduras das
mãos...
Vem o ônibus, lotado, e ela deixa de pensar
e cai na realidade de uma sobrevivência a sopapos, pois a entrada naquele
ônibus é o início de outra realidade, a realidade de que não tem tempo de
pensar em nada, nem mesmo nos filhos. É como se tivesse mais uma vez sido apanhada
de surpresa por algum vagalhão. Sim, porque dali para frente ela não mais
pensa, apenas age, abrindo o seu espaço no mundo da competição. Mas a distância
e as paradas irritantes do ônibus não são suficientes para demovê-la da férrea
vontade de chegar ao seu destino naquela mais uma segunda-feira: a casa da
patroa.
E mal chega e lhe vem a gritaria das
crianças pedindo suco, pedindo água, pedindo... enquanto o patrão grita pelo
café e a patroa lhe exige o leite quentinho e acompanhado de duas bolachas com
requeijão. E é só a patroa falar em leite para a adolescente gritar que também
o quer, num prato fundo, para botar os cereais. E ela, que nem tempo tivera de
se trocar, de retirar o molambo e substituí-lo por um uniforme impecavelmente
azul e um casquete do mesmo pano, ela corre a servir a todos. E até com um
certo carinho, pois se sente dona daquelas pessoas, e nem mesmo se lembra de
seus próprios filhos.
Depois de um tempo, vem o silêncio da casa
vazia, e aí ela parte para a pia lotada da sujeira de apenas um domingo de
ausência, mas suficiente para dar a impressão de que por aquela casa passara um
vendaval. E pensa que na casa dela, apesar de ter a filha de apenas seis anos
cuidando de um nenê de apenas três meses, apesar disso, quando voltar encontrará
tudo como deixara, ou seja, limpinho. Mas depois reflete que não há muito que
sujar: são somente três pratos, três copos, três panelinhas, tudo três, até
para o bebê, que já está com o seu futuro mínimo garantido. E não há muito com
que encher aqueles vasilhames cansados pelo tempo de uso anterior na casa da
patroa...
O pensamento dela voa, e ela ainda consegue
sorrir ao se lembrar de que por aquela hora os bichinhos do porco já passeiam
pelas tripas de toda aquela família rica. Mas logo se assusta, porque também se
lembra que fizera alimentos para os próprios filhos com as mesmas mãos rachadas
que antes receberam o sangue contaminado da carne de porco. Aí ela entra em
pânico, um pânico que a toma da cabeça aos pés. E estremece e começa a suar
frio. E finalmente chora.
Nem o choro, porém, pode ser demorado,
porque as roupas sujas a esperam, e as roupas já lavadas no sábado, – ela
trabalha no sábado, – estão na fila do ferro elétrico. E ela corre a colocar a
roupa de molho e outras mais na máquina de lavar. E, acalentada por aquele
barulho da máquina girando e roncando em seu mister automático, ela esfrega o
chão da cozinha com um pano umedecido com água e produto de limpeza. E logo
volta ao sabão e às dores lancinantes nas rachaduras das mãos. E reclama de si
para si da falta de luvas que a patroa sempre se esquece de comprar. E debalde
se queixa da falta de um sabão neutro que ouve dizer na tevê que é bom para as
mãos, enquanto vai passar a pilha de roupas pequenas e grandes daquela família
apressada. E se demora nas calças e camisas do patrão, o mais chato de todos e
quem mais a critica por não lhe passar direito as roupas, que ele gosta que
fiquem como se viessem da tinturaria, para onde nunca jamais manda nada.
E ela não pode perder tempo, porque já é
hora apertada de se iniciar na faina de preparar o almoço de acordo com o
cardápio deixado pela patroa. E aí lhe vem a pior parte, porque cada um daquela
família quer uma comida diferente e deliciosa. Mas ela, sem nem saber muito por
que razão, dá conta do recado, enquanto retira as roupas da máquina e passa
mais algumas peças, enquanto a comida ferve no fogão e enquanto o tempo cada
vez mais lhe aperta os calos, tudo se encaminhando à hora da invasão do
meio-dia, hora do almoço, com a gritaria das crianças, o bater de copos, pratos
e talheres e as chiadeiras porque falta água na mesa, falta coca-cola, falta o
refresco da patroa, enfim, ninguém lhe emite qualquer elogio compensador, e as
crianças, em gritaria, pedindo sem parar...
“É tudo profissional!”, conclui,
desalentada, enquanto cumpre sua tarefa de correr para lá e para cá até ver de
novo a louçaria empilhada e suja dentro da pia. Mas aquela louça ela a deve
lavar sem barulho nenhum, porque a patroa está cumprindo a sesta da tarde e não
pode ser incomodada. As crianças, nem tanto, eis que a adolescente pula logo
fora e vai às ruas, enquanto os menores, um menino e uma menina, de cinco e de
sete, respectivamente, vão ao playground
brincar.
Há uma calmaria, finalmente. O relógio bate
quatro horas de uma tarde que o sol sobremaneira aquecera. E ela então consegue
comer um pouco e se sentar na área de serviço para descansar as pernas já
doloridas. Mas o que lhe doem mesmo são as mãos, com as rachaduras latejando
sem dó nem piedade. E ali ela fica, sentada, muito mais aliviando as dores
físicas que descansando.
A patroa acorda, vai à sala e liga a tevê.
Indaga pelos filhos, como sempre, porém nunca ouvindo a resposta, como sempre.
É apenas um comportamento mecânico e rotineiro dela, que logo vai à suíte se
produzir para a ida às lojas do bairro chique em que mora. Mas na tevê, ela, a
doméstica, ouve a fala de um general sobre a seriedade do militarismo, arguindo
que o militar perfeito sempre há de primar pela honra, pelo sacrifício, pelo
respeito aos valores pátrios, pela honestidade, etc. E deverá caminhar sempre
de cabeça erguida, mesmo que por dentro chore muitas lágrimas. E sua dedicação
à pátria deve superar a própria morte. E ela se lembra do uniforme que veste e
do casquete que mantém enfiado em sua cabeça, para lhe esconder a carapinha, e
se acha idêntica a um militar e se enche de orgulho, porque, até onde entendera
o recado do general, ela também se uniformiza e segue à risca o que o
importante militar falara na tevê. Só que sua pátria é aquela família...
E vem a hora do jantar, o patrão já chega
dando chutes pelos cantos e reclamando com ela do porquê de as crianças estarem
ainda sem banho, e de a adolescente não ter voltado das ruas. Mas nunca reclama
que a patroa não está em casa, ela sempre chega em cima da hora do jantar,
esbaforida ao ponto de se desconfiar. Mas ela, a doméstica, apenas observa o
desenrolar de um diálogo sem significado entre o marido desconfiado e a mulher
que muito fala, mas que não lhe dedica nenhuma palavra de carinho, e vice-versa,
ambos com o casamento claudicante e apenas mantendo as aparências, como um dia
fora o casamento dela com o ex-companheiro favelado. Ela sente que o vulcão
está prestes a explodir, porque para ela é mais que óbvio que ambos têm
amantes. Só lhes falta a coragem de assumir a verdade, talvez em razão dos
filhos, ela, a doméstica, não sabe. E lhe vem um medo futuro de desemprego...
O jantar é constrangedor, até que entra o
horário da novela. As louças são logo lavadas e ela enfim vai ao seu
apertadíssimo aposento e toma um banho frio. Mas está animada, porque a patroa
lhe permite ver na tevê da cozinha as novelas, que ela acompanha atentamente,
enquanto sofre com o sofrimento dos personagens e se diverte com o divertimento
deles. É a sua melhor hora, é quando ela pensa nos filhos que deixou na favela.
Mas logo se lembra de que aquele é apenas o primeiro dia da semana, e ela tem
de empurrar sua faina por mais cinco, como o militar garboso que ela sentiu
dentro dela nas palavras do general. Mas se preocupa; sente-se culpada por se
comparar a alguém com tantos predicados...
As novelas, porém, fazem o milagre do
esquecimento de tudo quanto ocorrera durante o dia. Agora é o drama da heroína
da novela que conta. Nada mais. E isto a conforta, desliga-a do mundo real e a
leva aos sonhos. E ela pensa em ser um dia aquela empregada desajeitada da
novela, que nunca sabe se comportar, que se mete nas conversas dos patrões,
numa democracia que a ela nunca permitiram, e muito menos ela ouvira falar
sobre a tal democracia por alguma de suas colegas de verdade. “De onde será
aquela empregada?”, pensa, sem entender que aquela empregada que tem tanta
liberdade não passa de uma ficção, palavra que não se integra ao seu quase
nenhum vocabulário. Para ela, porém, tudo o que acontece nas novelas é a mais
pura e singela verdade, e ai de quem a contestar, ai de quem disser que aquelas
histórias não são verdadeiras!... E assim, enlevada em sonhos, ela se esquece
do mundo, vem-lhe o sono, ela vai ao aposento, encolhe-se na pequeníssima cama
e logo adormece. É tempo de um sono mergulhado na profundidade de um cansaço
físico extremado, até que o despertador estrila convocando-a militarmente para
mais um dia...
Maravilhoso!
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