“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a
despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz
mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda
a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc.
Editores, 1957)
Lá vai Tião, queimando os pés descalços no
asfalto quente das ruas do Rio. Nem mesmo crescera, tão novinho, descera do
morro pelas mãos da mãe desnaturada para não mais voltar. E lá estava ele,
também já roubando bolsas de senhoras distraídas, como agora em que dispara na
frente e com um suado guarda municipal no seu encalço. Mas, como sempre, o esforçado
guardião do povo não alcançará aquele menino veloz e que já nasceu praticamente
nas ruas, como milhares de outros seus amiguinhos.
Hoje Tião tem dez anos, cara e tamanho de
cinco, olhos espertos porém despidos de cor. É a anemia e a verminose que o
perseguem desde quase o ventre da mãe que nem mesmo conheceu direito, largado
que foi, por ela, num lugar qualquer que ele também não sabe, só sabe que foi
nas ruas do Rio, onde ficou e está até hoje roubando e pedindo esmolas, mas
preferindo muito mais roubar. Tião entende que roubar dá mais dignidade do que
pedir, ele tem vergonha de pedir.
Debaixo do viaduto, já protegido das vistas
do guarda que se estropiou no caminho, Tião conta os despojos daquela sua
batalha diária. E vê que teve sorte, a bolsa tem um bom dinheiro, suficiente
para uma semana de comida. Tião sorri, feliz, e continua a vasculhar o fundo
daquele tesouro, até que também vê a identidade da dona, que na hora nem
percebera. Só fitava a bolsa, a sua presa. Não agora, que finalmente pôde apreciar
a simpática senhora, ainda nova e bonita, numa foto ao lado de uma menina. Tião
estacou sem entender, posto a mulher estar abraçada a uma menina pretinha como
ele, e ambas sorrindo um largo sorriso de muita felicidade.
Tião ficou curioso. “Como uma branca de
olhos azuis pode abraçar uma negrinha dessa?”, pensou, enquanto continuava
esmiuçando tudo de dentro da bolsa. E encontrou a identidade e uma agenda
contendo o endereço da vítima. Era na Zona Sul, não tão longe de onde ele
ficava de quando em vez atrás de dinheiro diferente, de turistas que igualmente
furtava. “Ah, deixa pra lá!”, Tião novamente pensou, enquanto curtia um pequeno
remorso. E estranhou, porque nunca lhe ocorrera antes sentir pena de quem
surrupiasse uma bolsa. Mas estava com pena, sim, e resolveu que iria ao menos
devolver os pertences da mulher bonita que amava uma pretinha tão preta como
ele era preto. O dinheiro, é lógico que não o devolveria, porque precisava
comer. E foi o que fez, comeu bastante, até que se acomodou entre as caixas de
papelão e dormiu. Sua casa era o viaduto, um lugar protegido para ele e para
muitos outros que também viviam a desventura de não ter um teto seguro e uma
família. Ali estava o exemplo da miséria extrema, o fim da linha social, uma
paisagem constante que deveria ferir mas nunca feria os olhos dos indiferentes
que passavam rápido de carro. Muitos, na verdade, nem viam aquela miséria
persistente.
Tião pulou cedo de sua cama rente ao chão,
dos seus papelões, alguns que ele de vez em quando trocava, porque sonhava e
lhe escapulia a urina durante o sono. Ele ficava danado da vida. Sentia-se um
homem, porém tornava a ser criança contra a vontade quando se mijava ao dormir
na improvisada cama. E até chorava em quietude envergonhada, porque nunca
deixava ninguém ver sua fraqueza de criança. Mas logo se superava e ia à luta,
pés descalços no asfalto quente, a cumprir sua sina de correr atrás da
sobrevivência e na frente dos guardas que o perseguiam de quando em quando.
Naquele dia, porém, Tião estava com outra ideia.
Decidira devolver a bolsa da moça bonita da foto, e que com ele parecia que se
comunicava. Ele mentiria dizendo que encontrara a bolsa nas ruas. Acreditava
que a pobre mulher nem mesmo pudera vê-lo, de tanto que fora rápido ao
furtar-lhe a bolsa. Bem, Tião decidira e estava mesmo inabalável; e não
costumava voltar atrás em suas resoluções. E foi assim que sobraçou a bolsa e
foi levá-la até o endereço de luxo. Era uma bela casa na Lagoa Rodrigo de
Freitas.
Tião se assustou com o tamanho da casa, uma
belíssima mansão. Mesmo assim, tocou a campainha e esperou. E veio o mordomo,
que também se espantou ao ver aquele negrinho sujo e descalço em pé no portão.
O mordomo era negro, como ele; apesar disso, portou-se hostil, sisudo,
esnobando um ar de superioridade que incomodou deveras o menino. Mas este,
empertigado e valente, não se intimidou:
– Quero falar com a dona!
– Falar o quê, seu negrinho sujo!
– É pra devolver a bolsa dela. Eu achei,
mas só devolvo a ela – falou Tião, enquanto mostrava a sua preciosidade.
O mordomo viu que com aquele resoluto
menino nem adiantava ponderar. E foi alertar a mulher, que se chamava Clarisse,
para atender ao espevitado menino de rua. E ela veio, sorrindo para ele com a
boca e com os olhos, encantando-se Tião com aquela doçura. Era ela, Tião se
lembrava. Sentiu medo de ser reconhecido e quase que disparou em fuga. Mas a
voz dela travou-o na ameaça do passo rápido que pensara dar, mas que, na
verdade, nem iniciara, eis que ficara cravado no chão.
– Olá, menininho! Você achou minha bolsa e
veio devolvê-la?... Oh! muito obrigado! Eu quero que você entre, para nós
conversarmos e lancharmos juntos.
–
Olha, dona, eu tô muito sujo. Num vou entrá, não. Eu perciso me mandá...
– Não, meu amiguinho, não se preocupe. Eu
tenho roupas novas para lhe dar. E um bom banho não lhe fará mal algum – falava
Clarisse, enquanto carinhosamente arrastava o menino para dentro.
Tião sucumbiu diante de tanta ternura.
Nunca em sua curta vida de menino de rua tivera um carinho daqueles. E, ao
devolver a bolsa, Clarisse somente conferiu os seus documentos e ficou
admirando, enternecida, o retrato. Nem se tocou em razão do dinheiro, que ali
não estava. Fingiu mesmo que estava tudo bem e continuou a conversar com Tião
como se dele fosse uma velha amiga. E nem precisou de muito tempo para Tião
assim considerá-la. Tião estava feliz como nunca estivera antes.
Quem visse o negrinho Tião duas horas
depois, sentado de maneira comportada e lanchando, não acreditaria que era ele.
Estava limpinho, perfumado e vestido em belo traje, tudo reluzindo de novo. E
já conhecera a menina da foto, que mais parecia uma princesa saída dos contos
de fadas. Era a menina Mariângela, que vivia adotada como filha legítima de
Clarisse. Tinha oito anos e falava pelos cotovelos. Tião gostou dela, gostou de
tudo, e se entristeceu na hora de ir. Clarisse até lhe sugeriu ficar, mas ele,
orgulhoso, se recusou e partiu.
Chegou de noite ao seu viaduto. E já tirara
os sapatos e os vendera a outro menino. Sentia-se bem com os pés direto no
chão. Bem alimentado e cansado, Tião dormiu. Não só dormiu, porque na verdade
também sonhou, um sonho desencontrado, sim, porém muito lindo. Começou
sobressaltado, porque viu estrelas caindo do céu e se perdendo no mar, e o céu
ficando às escuras. Mas logo elas subiram de novo, pois vieram só tomar banho.
E riram dele, do seu susto. Depois Tião sonhou com o dia, com os canteiros de
flores da mansão, ele passeando com Mariângela, comendo um belo sanduíche e
tomando guaraná, o que muito gostava. E, depois, viu-se escondido e urinando
atrás de uma touceira de rosas... “Ah, que merda! Estou todo molhado! Puxa, que
sonho bonito!”, pensava Tião, enquanto reclamava da sua distração. Ele não se
considerava uma criança.
O tempo passou, seis meses, e Tião
continuava nas ruas fazendo o de sempre. Aliás, até se esquecera de Clarisse e
de Mariângela, enquanto queimava no asfalto os seus pés descalços, sempre o
guarda atrás dele e ele na frente, disparado feito um bólide inalcançável.
Naquele dia, Tião correra muito e debaixo de um sol terrível. Mas à noite
choveu, e ele pegou boa chuva no lombo antes de chegar ao seu viaduto. Dormiu
molhado, e de madrugada fremia de frio e de febre alta, tão alta que nem
conseguiu se levantar. Tremia e delirava e tossia chamando atenção, quando veio
a radiopatrulha, avisada que fora, e o levou para o hospital já com um febrão
danado e em estado de lastimável pneumonia.
Puseram Tião na maca e o levaram corredor
adentro, até que veio a médica atender àquele garoto febril. E adivinhem quem?
Sim, era Clarisse, que reconheceu o menino e se consternou ao vê-lo tremendo
como um indefeso passarinho.
– Meu amiguinho Tião – falou-lhe Clarisse,
com carinho.
Tião também reconheceu aquela voz, e seus
olhos se abriram em surpresa. E viu aquele sorriso gentil e amoroso, enquanto
sentia as mãos de Clarisse percorrendo-lhe o corpo e o examinando. Tião
renasceu, mas logo se entregou à doença que o consumia. Seu estado era grave.
Foram dois meses de luta para salvar da
morte o menino Tião. E, se fosse apenas a medicina, ela seria pouca para
salvá-lo. O que resolveu foi o amor de Clarisse, que não se arredara do leito
de Tião até ele ficar curado. Postara-se resolutamente ao pé dele, como se
fosse assim a mãe extremada que ele nunca tivera. Sim, fora muito mais que médica.
E quando Tião melhorou, foi direto para a
casa dela, ficando mais dois meses em tratamento de príncipe. Não existia mais
aquele outro Tião, o menino de rua. Depois de quatro meses, com Mariângela
chamando-o de maninho e Clarisse se lhe dirigindo como se mãe dele fosse, Tião
capitulou e aceitou ficar como adotado naquela casa. Mesmo assim, insinuou que
daria despesa à Clarisse. Ela apenas sorriu e lhe aplicou um afetuoso beijo na
face, volvendo-lhe a sua para também receber o troco daquele carinho materno
que Tião desconhecia. E Tião deu o primeiro beijo da sua vida, um beijo de quem
agora era filho.
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