quinta-feira, 22 de junho de 2017

MALANDROS DO LARGO DA MORTE



“No gênero dos contos (...). É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor.”. (Machado de Assis, Crítica Literária, W. M. Jackson Inc. Editores, 1957)



Era tempo da malandragem. No Largo de São Jorge, o lugar mais famoso da Engenhoca, bairro plantado na Zona Norte da cidade de Niterói e rodeado de morros favelizados, os malandros se reuniam para mais um jogo de ronda, revezando-se alguns na vigília da polícia especial, a dupla de radiopatrulha do quepe vermelho, pessoal ainda pertencente à Polícia Civil dos velhos tempos.

Tudo acontecia no ano de 1956, quando a Engenhoca fervilhava de malandros estilizados, alguns por gosto da gafieira, outros por conta da navalha afiada, porém todos finórios vagabundos, porque trabalho não se incluía no intrincado vocabulário da malandragem.

Muitos eram exploradores de mulheres que faziam vida na cidade, e até no Rio de Janeiro; outros se sustentavam engrupindo seus iguais ou lesando algum incauto chamado à roda para um jogo de ronda, o otário que muitas vezes ia, – por puro medo, como o pintinho vai à cobra para ser comido, – ia largar o seu parco dinheiro nas algibeiras astutas dos malandros.

Não havia cortesia entre malandros, mas, sim, respeito ao que eles representavam para si e para os demais. Para a população, todavia, não passavam de vagabundos bem-arrumados e donos do lugar por imposição da valentia, da navalha e da impunidade.

Era fácil distinguir um malandro, bastando mirar-lhe as indumentárias: a camisa de seda para escorregar o fio da navalha numa contenda qualquer, o sapato branco ou multicolor, de bico fino, a calça de linho branco e propositadamente amarrotada, e o cordão de ouro com a medalha de algum santo de fé. Este era o malandro, que se fazia respeitar pelos queloides que costumava ostentar, resultado de muitas brigas e navalhadas. Malandro sem marca de guerra e sem tatuagem não era como tal considerado.

Era na Engenhoca que os malandros moravam, uma questão de baixo status, porque na Zona Sul, é lógico, eles não faziam tanto ponto. Lá a tiragem apertava no rigor das blitze, por exigência das inúmeras personalidades e autoridades residentes naquele bairro nobre. Sobrava só a Zona Norte, e nela ficavam os malandros, que também circulavam no centro da cidade, lugar democrático e comum a todos, ricos e pobres.

Voltemos ao Largo de São Jorge e ao jogo de ronda. Era um domingo por volta das dez da manhã. A malandragem começava a chegar timidamente, cada um com o seu baralho no bolso e querendo jogar. Ali valia o respeito pela argúcia do jogador. Quem fosse mais sagaz e ganhasse o jogo, todo mundo respeitava; era a regra. Cada um tinha o seu método de marcar as cartas. Porém, quando um deles era descoberto, por mais valente que fosse tinha de entregar tudo aos perdedores. Como diziam naquela época: “Bom malandro não berra!”

Naquele domingo, além do jogo que corria cada vez mais animado e regado a cerveja e pinga, circulava a futrica de um entrevero pesado que estava prestes a acontecer. E todos tremiam em pensar como seria quando Pedro Mangulo e Zé Cabeleira se cruzassem. O pivô da inimizade entre ambos era a bela mulata Serena, que não se ligava neles, porém estava marcada, contra sua vontade, para a conquista de ambos. Parecia que era uma carta de baralho.

Ela sabia disso e tinha muito medo, porque, na verdade, o seu coração já pertencia a outro, um rapaz recatado e que de malandragem nada entendia. Era um trabalhador comum, bem-apanhado e vizinho de Serena. Eles já mantinham um namoro, porém se comportavam cautelosos porque sabiam que ela, a mulata Serena, estava gravitando na preferência daqueles dois endiabrados malandros. Era, portanto, perigo à vista.

Pedro Mangulo era um mulato de cor bem fechada, cabelo encarapinhado, alto, forte como um touro e exímio jogador de capoeira. Sua arma era o punhal, uma linda peça de cabo de madrepérola e sem corte. Ele dizia que sangrava os desafetos por dentro, para que morressem de hemorragia interna. E muitas vezes nem precisava sangrar quem o ousasse enfrentar: com a sua força bruta, aliada à arte de capoeirar, muitas vezes dizimava seus desafetos quebrando-lhes os ossos até a morte. Era um malandro infernal, tinha parte com um milhão e meio de demônios zangados e fedegosos.

Zé Cabeleira era um mulato mais claro, também alto e forte, cabelos compridos, engomados e jogados para trás em altas ondas piramidais e repartidos do lado. Nunca se via um fio daquele cabelo que não estivesse besuntado de óleo capilar de boa marca. Não era à toa que aquele excesso oleoso era levado por ele nos cabelos. Na hora da peleja na navalha, quando percebia qualidade e porfia em seu contendor, – algo raro, se comparado com a sua maestria e coragem – ele esfregava a mão esquerda na cabeça e na camisa de seda, tornando-a, a camisa, ainda mais escorregadia, enquanto na direita mantinha a navalha aberta e pronta para os golpes mortais. Os milhões e milhões de diabos também eram seus amigos, porque podiam se desdobrar em muitos quando o Todo-Poderoso cochilava no Céu.

Apesar da ferrenha inimizade entre Zé Cabeleira e Pedro Mangulo, havia em relação a ambos algo de comum: eram procurados pela polícia por diversos homicídios. E sabiam que, se fossem presos, teriam de ser ainda mais malandros na cadeia, algo nem sempre possível, porque lá era outra a cultura. Com efeito, muitos bons e valentes malandros, do lado de fora, lá dentro viravam mocinhas ou morriam tentando evitar. Eles sabiam disso...

No Largo de São Jorge, os fuxicos não mais paravam. Diziam os outros malandros que o confronto entre os mais afamados e temidos deles não tardaria. E eles moravam próximos, até quase no mesmo morro, separados apenas por uma travessa, a Cinco, pois Zé Cabeleira morava na Quatro e Pedro Mangulo, na Seis. Tudo território marcado, um não invadia os domínios do outro. E Serena, coitada, morava exatamente na Cinco, entre os dois indesejáveis amores e dois fogos de carga pesada de artilharia, ou melhor, de punhaladaria e navalhadaria, se é que existem os vocábulos. Se não existem, que fiquem agora instituídos, como gíria da malandragem, por absoluta necessidade estilística. Assim, não meterão bronca os eruditos, como diria o bom malandro.

Jeremias era o amor de Serena. E saía cedo ao trabalho, com medo, esgueirando-se premeditado, para evitar o casual encontro com algum dos ferozes malandros e torcendo para que ambos se decidissem à luta, uma chance que tinha de vê-los um dia tombados. Assim sonhava, e não passava de sonho irrealizável. Nunca veria isto acontecer, porque era ele quem já estava na mira dos seus perigosos concorrentes. E numa noite cruzou com Zé Cabeleira e ali ficou, ele sim, tombado de vez, com a goela aberta e os bugalhos voltados para o céu. Mas nada via, e, neles, nos olhos já mortos, os curiosos miravam o espanto de um fim tolo, somente porque era o preferido da bela mulata Serena. E ela, coitada, chorava sobre o corpo em desespero incontido, quando fitou a contrita senhora rodeando o corpo inerte do amado Jeremias com quatro velas acesas. Era o lume do fim, o desfecho trágico de um romance que nem se consolidara direito. Mas ali, baixinho, diante do corpo inerte do amado, Serena disse: “Vou me vingar!”

Ninguém seria capaz de ouvir o balbuciar surdo da bela mulata, mas que significava um brado homérico no seu peito que arfava, um grito que lhe teria saído em retumbante furor, se  assim pudesse ser. Mas ela sabia que não, e por isso travou dentro de si a imensa dor, a paixão e a ira infinitas. Nascia ali, na quietude de um choro de poucas lágrimas, uma nova mulher. Nascia, na verdade, um demônio com insaciável sede de vingança.

Caminho liberado, não havia por que esperar para a Engenhoca ver o confronto entre Zé Cabeleira e Pedro Mangulo. Era a hora da disputa, e os demais malandros, temerosos, mesmo assim estimulavam futricas para lá e para cá, criando folclore do tipo: “Zé Cabeleira disse que Pedro Mangulo vai engolir o punhal pelo rabo...” Ou: “Pedro Mangulo disse que vai fazer a barba com a navalha de Zé Cabeleira, mas com este segurando-a nas mãos depois de morto...” Sim, era uma provocação atrás da outra, com ambos os contendores enfezados ao máximo. E morrendo de amores por Serena, desejando logo partir para a peleja, que finalmente se marcou.

E tinha até comissão de juízes, três malandros, que estariam armados de revólver e com ordem dos próprios contendores de matá-los, caso algum deles descumprisse as regras da luta. Valia de tudo, desde que as armas fossem os seus corpos e a navalha, de um lado, do Zé Cabeleira, e o punhal, de outro lado, do Pedro Mangulo. Eles assinaram o papel com pose de reis. E escolheram a noite duma segunda-feira, que geralmente não contava com nenhuma polícia nas ruas, principalmente na Engenhoca. E depois que o povo se reunisse, nem toda a polícia teria coragem de chegar. Não eram loucos, os policiais, pois a radiopatrulha decerto seria incendiada e eles surrados, até com risco de linchamento. Era assim naqueles tempos dos malandros da Engenhoca.

O local da contenda não poderia ser outro que não fosse o Largo de São Jorge, no cruzamento das ruas principais. Nada de trânsito, tudo desviado, e todos já sabendo o motivo: o entrechoque de dois leões da malandragem. E eles, em casa, se arrumavam no melhor estilo. Antes, porém, ambos esquentaram os corpos em exercícios, Zé Cabeleira, nas pernadas, e Pedro Mangulo, nas capoeiradas. Depois, sem o banho para não esfriar, vestiram-se com suas melhores roupas, tudo novinho. O corpo era bem-vestido, sem dúvida, mas com roupas escorregadias. Eles assim brigariam, sempre deslizando e se esquivando das investidas mútuas.

Eram nove da noite. Na mesma hora partiram, por caminhos diferentes, para o Largo de São Jorge. De caminho, ao cruzarem com as pessoas nos seus portões, estas abaixavam as cabeças em sinal de respeito. E muitos ali estavam preocupados, porque sabiam que haveria disputas e mortes sanguinárias entre os outros malandros em busca da hegemonia naquele lugar. Todos os malandros, no fundo, queriam ocupar aqueles tronos, porque por detrás havia um forte ganho, principalmente na gigolotagem. E já sabiam que não lhes seria tão fácil, se caso sobrasse algum daqueles dois com vida.

E foram, ambos, sem pressa, olhando todo mundo com seus olhos ferozes e determinados. Medo?... Não!... Não tinham medo de nada. Eram destemidos, e todos sabiam. Malandro não engana malandro. Ou se é bom, ou não, e tem de provar na marra, até ao preço da morte. E chegaram, ao mesmo tempo, os dois malandros, no Largo de São Jorge. E cada qual no lado oposto da roda de gente, espaço bastante para o confronto isolado. Ali ninguém entraria, a não ser para recolher algum corpo ensanguentado. Aquela era a arena dos malandros, um lugar sagrado, mítico, uma roda de sangue e de morte.

E foi nesse clima de silêncio pesado que Zé Cabeleira deu o primeiro ar da sua graça: sacou da navalha, abriu-a e a prendeu na mão esquerda. Depois, sem que ninguém pudesse entender, rodopiou em evoluções incríveis, jogando as pernas em círculos e ciscando veloz com elas, apoiado somente na mão direita espalmada no chão. A plateia suspirava e quase que o aplaudiu. Mas aplauso ali não cabia. Era uma festa de morte.

Foram cinco minutos de evoluções fantásticas de Zé Cabeleira, que caiu de volta, num espetacular e derradeiro salto, no mesmo lugar de onde se iniciara em suas evoluções. E foi só ele se postar em quietude para se ver um corpo negro subindo mais de dois metros de altura e descendo de cabeça, numa das mãos o punhal. Quem fitava aquela cena seria capaz de jurar que aquela cabeça se espatifaria no chão, sem saída para o seu dono. Que nada! Como uma borracha, o corpo de Pedro Mangulo deu a volta em torno de si, flexível como a cobra, e se foi enroscando de baixo para cima até se plantar ereto, com os pés cravados no chão. Mas logo entrou em novos e fantásticos rodopios aéreos, a ponto de num átimo se ver apenas as passagens velozes e desfocadas de suas pernas, ora acima, ora em círculos, ora abaixo do nível do braço esquerdo esticado e apoiado pela mão espalmada no piso; e na mão direita o inseparável punhal tremeluzindo em perigo mortal. E foi nesta sequência sensacional que Pedro Mangulo tornou ao seu ponto de origem, como fizera antes o seu desafeto mortal. E neste momento, cruciante momento de morte, seus olhos se fisgaram no meio do caminho de um feroz cruzar de dardos mortais. Era a hora.

Caminharam, ambos, para o centro da roda, Pedro Mangulo com o punhal, na direita, e Zé Cabeleira com a navalha, na esquerda. E começaram a rodar, olhos cravados nos olhos, e todos os olhos dos assistentes cravados nos dois. O silêncio era de morte, e eles se foram aproximando com a cautela do bicho feroz na hora da morte. Eram dois bichos-homens, eram bestas-feras. Era uma briga de escorpiões, que se aproximavam até a distância do golpe. Nem um nem outro queria errar o primeiro, poderia ser primeiro e único. E ficaram na distância dos braços, quase que se tocando, os seus corpos suados evolando névoas sinistras... e, de súbito, se ouviram os tiros, seis tiros, seguidos e certeiros, três em cada malandro. Caiu Zé Cabeleira para um lado e Pedro Mangulo para o outro, mortos, olhos para cima, olhando sem ver as estrelas, suas almas escapulindo pelos buracos das balas e indo rumo ao inferno.

Todos pararam em espanto. E miraram a donzela Serena, a tristonha donzela, com a arma na mão ainda fumegando dos tiros que dera. Ela também treinara, sem eles saberem, para aquele grande dia, o dia de sua terrível vingança. Ninguém a notara quando chegou. Todos se ligavam no que seria a peleja do século naquele bairro da Engenhoca, naquele Largo de São Jorge, que a partir deste dia passou a ser chamado por todos como Largo da Morte.

E nenhum malandro reagiu contra Serena. E todos ainda ficaram com medo de assumir os lugares dos finados, fugindo das caras feias dos moradores do bairro, que acordaram para a inadmissível realidade de que estavam ali como se fossem assim uma dócil carneirada submetendo-se aos malandros, poucos malandros, que, no fundo, não eram de nada.

Serena, corajosa, abriu os olhos de todos, que, finalmente, deram o aviso aos malandros: “Quem manda agora é a comunidade!” E Serena sumiu, ninguém nunca mais soube dela. Mas ficou como o símbolo da reação comunitária no Largo da Morte.

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